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Maria Paixão Direito Comercial I – 2017/2018

Introdução
1. Conceções de direito comercial
1.1 Evolução histórica do direito mercantil
a) Época Medieval
O direito comercial propriamente dito terá surgido no séc. XII em Itália.
Na Época Medieval os grandes comerciantes, organizados em corporações, constituíam a classe económica e
politicamente dominante. Neste contexto, o direito romano-canónico (o designado “direito comum”) e os direitos
particulares mostravam-se desajustados às novas realidades da vida económico-mercantil. Estavam então reunidas
condições para a emergência de um direito “especial” do comércio. Eram, previamente, fontes desse direito:
 Costumes mercantis;
 Estatutos das corporações de mercadores;
 Jurisprudência dos tribunais “consulares” [estes tribunais tiveram um papel relevante na interpretação-aplicação e
desenvolvimento das normas consuetudinárias e estatutárias].
Surgem, deste modo, as regras, institutos e princípios jurídicos que viriam a originar este novo ramo do direito.
O ius mercatorum era um “direito de classe”, um direito criado por mercadores para regular as suas atividades
profissionais e, consequentemente, apenas por eles aplicado. Noutros termos, o direito comercial que emergiu nas
cidades italianas era um direito de cariz subjetivo: disciplinava as relações dos comerciantes e os atos por estes
praticados relativos ao seu comércio. Todavia, cedo se associaram a este direito de género subjetivista elementos
objetivistas, tais como:
 Sujeição dos membros das corporações à jurisdição consular pela prática de qualquer ato relativo ao comércio;
 Possibilidade de os não comerciantes demandarem os comerciantes nos tribunais consulares;
 Julgamento de não comerciantes em tribunais consulares sempre que exercessem o comércio ou praticassem
operações mercantis singulares.
Além das comunas italianas, também a região da Catalunha e a França contribuíram para a formação do direito
comercial medievo. A este respeito sublinhe-se o papel das feiras, especialmente as das regiões de Champagne e de
Lyon: centros de transação de mercadorias e dinheiro de toda a Europa ocidental.
Entre nós, não foi ainda durante a época medieval que se formou um autónomo ramo jurídico regulador das relações
comerciais. O comércio era regulado por costumes, forais, algumas disposições do Código Visigótico e de direito
canónico e, mais tarde, por leis especiais de âmbito nacional e regulamentos locais. Nenhuma destas fontes assumiu,
porém, substância suficiente para que se possa falar num direito do comércio. A escassa legislação especialmente
destinada à atividade comercial teve como principais objetivos regular o comércio marítimo, garantir o abastecimento
público e evitar a subida dos preços – estava, portanto, em causa legislação predominantemente administrativa. Entre
as razões por que não se registou a autonomização do direito comercial podemos identificar:
1. Centralização estatal-régia forte;
2. Intervenção ativa de membros da casa real, de nobres e de ordens militares e religiosas na atividade comercial;
3. Reduzida expressão das associações de tipo corporativo;
4. Inexistência de tribunais comerciais;
5. Ténue projeção das feiras.
b) Época Moderna
Na Época Moderna, com a centralização monárquica, a classe dos mercadores deixa de ser a fazedora (direta) do
direito comercial:
 Controlo e regulação das corporações dos comerciantes pelo Estado;
 Passagem dos tribunais consulares a órgãos estaduais;
 Prevalência das leis sobre os costumes como fontes de direito mercantil.
Assiste-se, então, a uma estatização-nacionalização do direito comercial.
Em Portugal, ao invés do que seria expectável, as descobertas marítimas e ultramarinas não despoletaram um
significativo movimento legislativo-comercial.
c) Época Contemporânea
Com a Revolução Francesa afirmam-se os princípios da liberdade e da igualdade perante lei. Ora, tais princípios não
se mostravam compatíveis com a manutenção, em França, de um direito dos comerciantes enquanto classe
corporativa. Assim sendo, é publicado, em 1807, o Code de Commerce, o qual acentua o caráter objetivo do direito

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comercial. Ressalve-se, contudo, que não se tratava de um sistema puramente objetivo, até porque não há registo de
sistemas puramente objetivos.
O código francês influiu bastante nas codificações mercantis oitocentistas, designadamente as que surgiram em
Espanha, na Alemanha e em Itália. Num sentido oposto a este tendência, o código alemão vem adotar de novo uma
conceção subjetivista de direito mercantil.
Os nossos códigos comerciais oitocentistas (de 1833 e de 1888) filiam-se também no referido sistema objetivo.
d) Época Contemporânea recente
No último século tem-se assistido a uma renovada tendência para a internacionalização-uniformização do direito
comercial. Este movimento tem-se acentuado no campo das relações comerciais internacionais, não intervindo tão
diretamente nas relações comerciais internas. Neste âmbito voltamos a deparar com um direito feito por comerciantes
e por eles aplicado (como na Idade Média), falando-se de uma moderna lex mercatoria.
1.2 Noção de direito comercial português
! Do já exposto resulta não existir um conceito unitário de direito mercantil com valia universal.
Não obstante, entre nós o direito comercial pode ser definido como:
“o sistema jurídico-normativo que disciplina de modo especial os atos de comércio e os comerciantes”.
Note-se que, embora o art. 1º CCom pareça apontar em sentido diverso, este ramo do direito não deve ser definido
com referência exclusiva aos atos de comércio – estamos perante um sistema misto, em que a lei regula tanto os atos
comerciais e seus efeitos diretos (independentemente de quem os praticou), como também aspetos relativos aos
próprios comerciantes.
O direito comercial é, como facilmente se compreende, um ramo do direito privado, ainda que as leis comerciais
possam conter disposições de direito público. Em face do direito civil, o direito comercial é um direito especial (as
normas jurídico-civilísticas revestem caráter subsidiário).
Note-se que a noção de “comércio” pressuposta no conceito de “atos de comércio” enquanto objeto do direito
comercial é uma noção jurídica, e não uma noção puramente económica. Vulgarmente, a atividade económica é
dividida em 3 setores:
1. Setor primário: agricultura, pecuária, silvicultura, pesca e caça;
2. Setor secundário: indústria;
3. Setor terciário: serviços.
Aqui incluem-se todas as atividades económicas não compreendidas nos dois primeiros setores
comércio, transportes, fornecimento de água, gás e eletricidade, atividade seguradora e bancária, etc.
Neste contexto, o comércio, numa aceção económica, é encarado como a atividade de interposição na circulação dos
bens ou de interposição nas trocas.
Para o que nos interessa, o comércio deve ser considerado numa perspetiva mais ampla, abrangendo indústrias e
outros serviços – o comércio, em sentido jurídico, não se limita a uma atividade de interposição, conglobando outras
atividades pertencentes tanto ao setor terciário como ao setor secundário.
1.2.1 A conceção empresarialista do direito mercantil
No século passado surge, nesta matéria, uma conceção empresarialista do direito mercantil. Todavia, esta conceção,
que via o direito comercial como simples direito das empresas, perdeu força e entrou em crise nos anos 50. Como
causa dessa crise aponta-se, sobretudo, a excessiva restrição do domínio do direito mercantil. Ainda assim, na
Alemanha (onde o direito comercial mantém o caráter subjetivo que acima lhe foi apontado [vide supra: Int., 1.1, c)])
esta conceção é ainda defendida por alguns setores da doutrina: para P. Raish e K. Schmidt, no centro do direito
comercial está a empresa (e não o comerciante), devendo estender-se, inclusivamente, a regulação comercial a
empresários não comerciantes.
Pode dizer-se, na verdade, que o núcleo do direito comercial está na empresa comercial e que o nosso direito
comercial renovado deve girar em torno da empresa. Todavia, o direito comercial português atual, além de admitir
comerciantes não empresários, regula atos de comércio ocasionais que não têm que ver com empresas mercantis.
Estes são fenómenos marginais, é certo, mas que não podem ser desconsiderados na definição rigorosa do direito
comercial vigente. Daí que sustentemos a definição de direito comercial como “o sistema jurídico-normativo que
disciplina de modo especial os atos de comércio e os comerciantes”.
1.3 O problema da autonomia do direito comercial
O problema da autonomia do direito comercial tem sido debatido sobretudo nas aceções de autonomia formal ou
legislativa e de autonomia substancial. Por um lado, questiona-se a (falta de) reunião das normas fundamentais num

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código próprio; por outro lado, pergunta-se se o direito comercial regula, efetivamente, de modo especial, certos
sujeitos e/ou objetos e relações. A questão nuclear é esta última, já que pode um ramo jurídico estar codificado sem
que isso signifique que ele é substancialmente autónomo.
Ora, desde o séc. XIX que se tem manifestado um forte movimento doutrinal em prol da unificação do direito privado
(fundindo-se o direito civil e o direito comercial). A tradicional separação seria contrária à unidade da vida económica.
Tal homogeneização do sistema sócio-económico ir-se-ia afirmando no plano jurídico, segundo os autores unitaristas.
É, de facto, evidente a generalização/comunização de institutos tradicionalmente jurídico-mercantis (ex.: seguros,
letras de câmbio, etc.). Vão-se incorporando no direito civil regras e caraterísticas ou princípios tradicionais do direito
mercantil. Esta “comercialização” do direito privado representa, simultaneamente, o triunfo do direito comercial (que
impõe as suas regras ao direito civil) e a morte do mesmo direito (que passa a integrar o direito comum). Esta é uma
tendência que se verifica sobretudo no domínio do direito das obrigações.
Não obstante, vários autores têm visto nos últimos tempos sinais de “reafirmação” da autonomia substancial do
direito comercial enquanto direito privado da empresa. Sobre esta questão, Coutinho de Abreu tece os seguintes
comentários:
 É aceitável a conceção do direito comercial como direito predominantemente das empresas, mas no direito
comercial porquês atual entram sujeitos e atos não incluídos no domínio empresarial e nem todas as espécies
de empresas são acolhidas por este direito.
 Os contratos comerciais não podem ser inteiramente identificados com os contratos de empresa, pois:
 Existem contratos comerciais sem que nenhuma das partes seja empresário;
 Existem contratos não comerciais apesar de neles participarem empresários.
 Alguns contratos unilateralmente de empresa têm disciplina autónoma não enraizada nas lógicas da
comercialidade (ex.: contrato de trabalho e contrato de consumo).
 Os contratos de empresa bilaterais não gozam de uma disciplina e ratio unitárias (ex.: regime do abuso de
dependência económica).
 O direito do consumo diferencia-se do direito das empresas, ainda que os contratos de consumo possam ser
qualificados como unilateralmente de empresa.
 Nem todos os contratos de consumo têm como contraparte um empresário.
 Os contratos de consumo integram o direito comercial mas, como referido, nem sempre pressupõem um
empresário e gozam de regime diferente do tradicional regime dos contratos de empresa unilaterais, pelo que
não se pode falar verdadeiramente numa “reautonomização” do direito comercial como direito dos contratos
de empresa.
 Os princípios e regras dos contratos comerciais alastraram-se para o direito civil dos contratos patrimoniais.
 Os princípios e regras dos contratos de consumo também se alastraram para o direito civil.
Do que foi dito resulta que a harmonização do direito privado dos contratos é um processo já em marcha e que pode
culminar na unificação. Neste linha, pensa-se que a reafirmação da autonomia do direito comercial não passará pela
configuração do direito comercial como direito contratual das empresas.
2. Fontes do direito comercial português
2.1 Fontes externas e fontes internas
Fontes de direito comercial
Internas Externas
 Lei em sentido amplo;  Convenções internacionais [vide: art. 8º/2 CRP];
 Constituição da República Portuguesa (arts.  Regulamentos e diretivas da União Europeia
61º, 81º/f), 82º, 85º, 86º, 99º, 100º e 293º); [vide: art. 8º/3 CRP].
 Jurisprudência e doutrina; NOTA: às diretivas não transpostas
 Usos e costumes (invocados pela lei ou atempadamente ou transpostas incorretamente
solicitados para a interpretação e integração reconhece-se efeito direto, daí a sua consideração
de negócios jurídico-mercantis). como fontes de direito comercial.
2.2 Aplicação da lei civil a matéria mercantil
A lei civil é aplicável a questões comerciais – art. 3º CCom. Sendo o direito comercial direito privado especial, lógico é
que o direito civil, enquanto direito privado comum, intervenha na disciplina de matérias mercantis de forma
subsidiária – sempre que a lei mercantil se mostre insuficiente, haverá que convocar a lei civil.
Note-se, porém, que a lei civil não intervém exclusivamente para integrar lacunas da lei comercial. Com efeito, o direito
comercial apresenta-se num ordenamento fragmentário, pelo que está aberto ao recurso direto ao direito comum.

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Por outras palavras: nem todas as omissões de regulamentação legal-mercantil significam verdadeiras lacunas; por
vezes o próprio legislador comercial optou por não atribuir regulação especial (comercial) a certa matéria, remetendo
a sua regulação para o regime comum (civil).

Parte I – Atos de comércio, comerciantes, empresas e sinais distintivos


Capítulo I – Dos atos de comércio em geral
1. Introdução
Os atos de comércio são parte essencial da “matéria mercantil”. Outrora, o regime especial dos atos de comércio
abrangia uma jurisdição própria (tribunais comerciais) e regras processuais próprias. Atualmente, o regime especial
comum aos atos de comércio em geral revela-se sobretudo nos seguintes aspetos:
 Solidariedade entre os co-obrigados (art. 100º CCom.);
 Juros convencionais ou legais, remuneratórios ou moratórios (art. 102º CCom.);
 Qualificação de atos acessórios e dos comerciantes (art. 13º CCom.); (...)
De um modo geral, dita o art. 1º do Código Comercial:
“A lei comercial rege os atos de comércio (...).”
Assim, é este o conceito basilar para a delimitação do âmbito de aplicação da lei comercial.
2. Noção de ato(s) de comércio
A norma delimitadora básica dos atos de comércio é o art. 2º CCom.:
“Serão considerados actos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código,
e, além deles, todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o
contrário do próprio acto não resultar.”
Deste conceito resulta, desde logo, a impossibilidade de um conceito unitário, homogéneo ou genérico de ato de
comércio. De facto, este conceito é delimitado por critérios distintos:
Atos de comércio
Previstos na lei comercial Praticados por comerciantes
(em princípio, praticados por comerciantes ou por não (conexionáveis com o comércio e, em regra, com a atividade
comerciantes) mercantil dos seus autores)

Não obstante ser esta a opção legislativa, a verdade é que têm sido defendidos conceitos unitários de ato de comércio,
assentes em diversos critérios:
 Critério da finalidade especulativa: seria comercial todo o ato praticado com escopo lucrativo;
 Critério da interposição nas trocas: seria comercial todo o ato intermediário no plano das trocas mercantis;
 Critério da empresa: seria comercial todo o ato praticado por uma empresa e/ou no quadro de uma empresa
[entre nós, este critério foi defendido por Orlando de Carvalho]
Sucede, porém, que nenhum destes critérios possibilita um conceito unitário de ato de comércio. Ora veja-se:
 (1)Existem atividades exercidas com intuito especulativo/lucrativo que não podem ser classificadas como
comerciais (ex.: agricultura, artesanato, atividades profissionais liberais, etc.); e (2)as atividades mercantis
propriamente ditas nem sempre são realizadas com fins lucrativos (ex.: atos de comércio praticados pelo
Estado, por cooperativas, por empresas públicas).
 O Código Comercial considera como comerciais certos atos que não realizam a interposição nas trocas (ex.:
fiança – art. 101º CCom.; conta corrente – art. 344º CCom.; penhor – art. 397º CCom.; etc.).
 (1)A comercialidade de atos esporádicos ou ocasionais prescinde da existência de empresa; (2)a
“empresarialidade” não é algo unívoco, captável através de um critério único; (3)os atos das “empresas” civis
não podem ser classificados como atos comerciais; (4)as noções de “contratos de empresa” e “contratos
comerciais” não são absolutamente correspondentes.
Os atos de comércio são sobretudo contratos. Mas, além dos negócios jurídicos bilaterais, podem ser atos mercantis
negócios jurídicos unilaterais – exs.: negócios cambiários, negócios constituintes de sociedades comerciais
unipessoais, etc. Ademais, também é possível encontrar simples atos jurídicos como atos comerciais – ex.: avisos e
interpelações efetuados por sociedades mercantis a sócios remissos. Os próprios atos jurídicos ilícitos não estão
excluídos da qualificação, em certos casos, como atos comerciais – ex.: abalroação culposa de navios (art. 665º CCom.).
Fora deste conceito devem ficar os factos não voluntários ou naturais.
3. Atos de comércio objetivos e subjetivos

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Atos de comércio
Objetivos Subjetivos
“(...) todos aqueles que se acharem especialmente “(...) todos os contratos e obrigações dos comerciantes,
regulados neste Código [Comercial]” que não forem de natureza exclusivamente civil, se o
contrário do próprio acto não resultar.”
Quatro critérios de identificação:
1. Atos previstos no próprio Código Comercial; Requisitos cumulativos:
2. Atos previstos em leis comerciais substitutivas ou a) Atos praticados por “comerciantes”
revogatórias do Código Comercial; b) Natureza dos atos não exclusivamente civil;
3. Atos previstos em leis que se auto-qualificam c) Atos não auto-classificados como não comerciais.
como comerciais;
4. Atos análogos aos acima enunciados.
3.1 Atos de comércio objetivos
A definição de atos de comércio objetivos presente na 1ª parte do art. 2º do Código Comercial é uma definição por
catálogo ou enumeração – só são atos de comércio objetivos aqueles regulados na lei comercial. Esta é,
evidentemente, uma enumeração implícita, já que não nos é apresentado no art. 2º um expresso elenco.
A este respeito importa coloca uma questão fulcral: são atos de comércio objetivos apenas e exclusivamente os
regulados no Código Comercial? Esta questão faz todo o sentido se relembrarmos que o nosso Código Comercial data
de 1888. Porque assim é, não será razoável petrificar a categoria dos atos previstos no Código. Assim, a expressão
“neste Código” deve ser extensivamente interpretada, abarcando também outras leis comerciais. A este respeito,
importa averiguar os critérios para a qualificação de uma lei como comercial; são eles:
 Caráter substitutivo ou revogatório da lei relativamente ao Código Comercial;
 Auto-qualificação da lei como comercial;
 Analogia entre a natureza da lei ou dos atos nela regulados e a natureza comercial dos atos legalmente
reconhecidos como comerciais.
Em suma, e como foi já desvelado, a determinação concreta do conceito de “ato de comércio objetivo” opera mediante
a utilização de quatro critérios:
a) Atos previstos no próprio Código Comercial;
b) Atos previstos em leis comerciais substitutivas ou revogatórias do Código Comercial;
c) Atos previstos em leis que se auto-qualificam como comerciais;
d) Atos análogos aos acima enunciados.
Atente-se em cada um destes grupos de atos:
a) Atos previstos no Código Comercial
O Código Comercial, no seu estado atual, prevê expressamente os seguintes atos comerciais:
 Fiança – art. 101º;  Depósito de géneros e mercadorias em
 Empresas – art. 230º; armazéns gerais – arts. 408º e ss.;
 Mandato – arts. 231º e ss.;  Compra e venda – art. 463 e ss.;
 Conta corrente – arts. 344º e ss.;  Reporte – arts. 477º e ss;
 Operações de banco – arts. 362º e ss.;  Escambo ou troca – art. 480º;
 Transporte – arts. 366º e ss.;  Aluguer – arts. 481º e 482º;
 Empréstimo – art. 394º e ss.;  Transmissão e reforma de título de crédito
 Penhor – arts. 397º e ss.; mercantil – arts. 483º e 484º;
 Depósito – arts. 403º e ss.;  Atos relativos ao comércio marítimo – Livro III.
Relativamente à maioria destes atos o Código estabelece disciplina específica. Isto sem prejuízo de mesmo os atos
comerciais para os quais o Código Comercial não estabelece disciplina específica serem classificados como atos
comerciais, sujeitando-se às regas (especiais) comuns aos atos de comércio em geral.
! De entre os preceitos elencados é o art. 230º CCom. que maiores questões suscita. De facto, o art. 230º CCom. não
identifica diretamente atos de comércio; o preceito qualifica, isso sim, empresas como comerciais. Assim sendo,
pergunta-se: qual o alcance desta norma? A este respeito a doutrina diverge:
a) Guilherme Moreira, Lobo Xavier, Menezes Cordeiro: as “empresas” previstas no preceito significam o mesmo
que “empresários” ou, mais corretamente, o mesmo que “comerciantes” – seriam comerciantes os sujeitos
que praticassem os atos de comércio enumerados no nº 1. Os atos previstos no art. 230º são comerciais

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porque praticados em “repetição orgânica” (praticados reiteradamente por comerciantes). Segundo esta tese,
o art. 230º CCom. qualifica “comerciantes”.
b) Coutinho de Abreu: as empresas do art. 230º CCom. são conjuntos ou séries de atos objetivamente comerciais
enquadrados organizatoriamente (sendo, normalmente (mas não necessariamente), comerciantes as pessoas
que exerçam tais empresas – art. 13º CCom.). Assim, o nº 1 do art. 230º CCom. elenca concretamente atos de
comércio objetivos, sendo que a sua prática repetida ou reiterada por uma determinada organização permite
classificá-la como “empresa”.
Pergunta-se: os atos objetivos contidos no art. 230º/1 CCom. são apenas aqueles em que o exercício da
empresa tipicamente se traduz ou são todos os atos praticados na exploração dessas organizações
empresariais?
Entendemos que devem considerar-se como atos de comércio objetivo todos os atos praticados no contexto
das atividades empresariais enunciadas no art. 230º/1 CCom. A favor desta tese pode argumentar-se:
 O preceito parece basear a tipificação dos atos cuja prática reiterada leva à classificação de
organizações como empresas em factos não jurídico-negociais (ex.: “explorar quaisquer espetáculos
públicos”; “transformar”; “edificar ou construir”; etc.).
 O legislador optou, aqui, por uma visão orgânica dos diversos atos em que o exercício das empresasse
traduz (os atos de comércio estão aqui associados à organização “empresa”).
 As empresas referidas no art. 230º CCom. podem ser exploradas por não comerciantes (vide: arts. 14º
e 17º CCom.) pelo que os atos que não pertencem ao exercício típico da empresa não poderiam ser
qualificados como comerciais através do critério subjetivo (não podem ser atos comerciais subjetivos).
b) Atos previstos em leis substitutivas ou revogatórias
Seria estranho considerar comerciais atos previstos no Código Comercial e considerá-los não comerciais quando
previstos de modo mais desenvolvido e/ou atualizado em legislação que veio alterar aquele Código. Ademais, o art.
4º da Carta de Lei de 28 de junho de 1888 dispunha que “Toda a modificação que de futuro se fizer sobre matéria
contida no Código Comercial será considerada como fazendo parte dele (...)”.
Podem referir-se como atos comerciais previstos em leis comerciais substantivas ou revogatórias:
 Atos constituintes das sociedade comerciais – Código das Sociedade Comerciais;
 Negócios respeitantes a letras, livranças e cheques – LULL e LUCh;
 Operações de bolsa – Código de Valores Mobiliários;
 Contratos de transporte de mercadorias por mar – DL nº 352/86;
 Contratos de freteamento – DL nº 191/87;
 Contratos de transporte de passageiros por mar – DL nº 349/86;
 Contratos de seguro – DL nº 72/2008.
[NOTA: o Dr. Ricardo Costa discorda desta inserção do contrato seguro, julgando-o um negócio jurídico não comercial.]
Sublinhe-se, porém, que nem todas as leis substitutas de artigos do CCom. serão comerciais e, por isso, qualificadoras
de atos de comércio. Poderá, de facto, resultar do diploma substitutivo um regime diferente, não comercial, aplicável
a uma figura anteriormente remetida para o domínio do direito comercial.
c) Atos previstos em leis que se auto-qualificam como comerciais
Serão também considerados como comerciais os atos assim qualificados por legislação dispersa. São exemplos de tais
atos os seguintes:
 Locação e trespasse de estabelecimento comercial – Novo Regime do Arrendamento Urbano;
 Contrato constituinte de agrupamentos europeus de interesse económico com objeto mercantil –
Regulamento (CEE) 2137-785 (art. 3º/1 do DL 148/90);
 Operações jurídicas de promoção e de assistência a contratos de seguro e atos de mediação de seguros – DL
nº 144/2006;
 Atos objeto de sociedades comerciais – Código das Sociedades Comerciais.
d) Atos análogos aos anteriores
Atos não regulados legislativamente, ou previstos em leis cujo caráter (comercial ou outro) não é declarado (direta ou
indiretamente) podem ser qualificados como comerciais por analogia aos atos previstos em lei mercantil? Esta questão
tem dividido marcadamente a doutrina portuguesa:
a) Recusa da analogia » os defensores desta tese invocam três argumentos principais:

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 Argumento literal: a letra do art. 2º CCom. prescreve que, além dos atos de comércio subjetivos, só
serão atos de comércio os “especialmente regulados” em lei mercantil – se um ato não é qualificado
expressamente como comercial, então não é “especialmente” regulado em lei mercantil.
 Argumento histórico: a 1ª parte do art. 2º CCom. foi inspirado no “Código de Comercio” espanhol de
1885 e a parte final do 2º parágrafo do seu art. 2º foi deliberadamente afastado da nossa lei.
 Argumento da certeza e segurança jurídicas: permitir a analogia neste domínio, atendendo ao regime
especial aplicável aos atos de comércio, seria atentar contra a segurança e certeza jurídicas.
b) Admissibilidade da analogia » os argumentos atrás enunciados podem ser contrariados:
 A letra do art. 2º CCom. não é concludente – não refere que são atos de comércio objetivo “apenas”
os especialmente regulados em lei especial.
 A interpretação da lei não deve ser realizada segundo uma conceção subjetivista-histórica, ainda mais
sendo o Código Comercial vigente datado de 1888.
 O valor da justiça ou razoabilidade deve sobrelevar no campo económico-jurídico relativamente ao
valor da segurança jurídica – caso contrário, os novos instrumentos jurídico-económicos, ainda que
similares a outros já existentes, sujeitar-se-iam a um diferente regime legal, o que traduz um
tratamento desigual de situações análogas/semelhantes.
Esta última é a posição propugnada. Assim, impõe-se agora perguntar se a analogia a que é lícito recorrer é uma
analogia legis e/ou uma analogia iuris. Se a admissibilidade do recurso à analogia legis não levanta grandes problemas
(pelo menos para quem, como nós, admite a analogia nesta matéria), o mesmo já não se dirá quanto à analogia iuris.
De facto, a analogia iuris traduz-se, tradicionalmente, na disciplina de casos omissos através da aplicação de “princípios
gerais” obtidos através de induções lógico-generalizadoras de uma série de normas legais. Nestes termos, quem
defende um conceito unitário de “ato de comércio” coerentemente defenderá o recurso à analogia iuris. No entanto,
como ficou já visto [vide supra: Parte I, Cap. I, 2.] não é defensável tal conceito unitário. Ainda assim, entendemos ser
possível recorrer à analogia iuris, na medida em que nos parece possível extrair “princípios gerais” de grupos de
normas qualificadoras de diversos atos como atos de comércio.
Concretizemos, então, estas ideias em situações concretas:
 Art. 230º/6 CCom. » refere-se apenas a empresas de construção de “casas” – devem também ser qualificados
como atos de comércio aqueles levados a cabo por empresas de construção de edifícios em geral. [AL]
 DL nº 148/90 » disciplina os Agrupamentos Europeus de Interesse Económico – devem também ser
considerados como atos de comércio os atos constitutivos de Agrupamentos Complementares de Empresas,
figuras análogas aos AEIE, sempre que tenham objeto comercial (nos termos da legislação que os regula – Lei
nº 4/73 e DL nº 430/73 – os ACE podem ter objeto civil e comercial; daí a sua não classificação direta como
atos de comércio objetivos). [AL]
 DL nº 149/95 » regula o contrato de locação financeira, referindo como atos de comércio objetivo a compra e
a venda de coisas móveis destinadas a subsequente aluguer, o aluguer das coisas móveis adquiridas com esse
intuito e a compra e revenda de coisas imóveis – devem também ser qualificados como atos comerciais os
atos de compra de coisas imóveis para arrendamento. [AL]
 Art. 230º/2 CCom. » refere-se a empresas fornecedoras de géneros – devem também considerar-se atos de
comércio objetivo os atos praticados por empresas fornecedoras de serviços. A este respeito importa
distinguir duas realidades diferentes que, por isso, convocam diversos raciocínios:
 Contratos de fornecimento de serviços (= alguém obriga-se, mediante um preço previamente estabelecido,
a fornecer a outrem, em determinadas épocas, serviços) » analogia legis – aquele preceito aplica-se,
exatamente, a contratos de fornecimento de bens. [AL]
 Contratos de prestação de serviços (= alguém obriga-se a prestar um serviço isolado a outrem, em
contrapartida do pagamento de um preço) » analogia iuris – podemos identificar um princípio geral de
direito comercial segundo o qual as empresas de serviços são, em regra comerciais (sejam elas
empresas de fornecimento ou de prestação). [AI]
 NRAU (Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro) » regula as figuras do trespasse e locação de estabelecimento
comercial – devem também considerar-se como atos de comércio objetivo quaisquer outros negócios sobre
empresas comerciais. [AI]
 DL nº 178/86 » disciplina o contrato de agência – deve ver-se o contrato de agência como ato de comércio
objetivos pois podemos discernir um princípio geral segundo o qual as atividades de interposição nas trocas

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pertencem ao comércio em sentido jurídico e o agente exerce efetivamente uma atividade de intermediação
nas trocas (de intermediação entre a oferta e a procura dos bens). [AI]
 DL nº 124/89 » regula as designadas “agências privadas de colocação” – as atividades de intermediação de
emprego devem também ser consideradas atos de comércio objetivos, com base em igual fundamentação à
expedida para o contrato de agência. [AI]
 Art. 463º/4 CCom. » aplicável às compras e vendas em geral, incluindo as feitas por concessionários ou
concedentes – devem considerar-se como ato de comércio objetivo o próprio contrato de concessão
porquanto ele é pressuposto necessário de uma atividade de intermediação nas trocas (as compras e vendas
posteriormente realizadas). [AI]
[NOTA: as expressões sublinhadas denotam os fundamentos da aplicação analógica sustentada em cada hipótese. Siglas:
AL = analogia legis; AI = analogia iuris]
Tendo em conta tudo o que tem vindo a ser dito, podemos definir os atos de comércio objetivos como:
“Factos jurídicos voluntários previstos em lei comercial e análogos”.
3.2 Atos de comércio subjetivos
A fórmula contida na 2ª parte do art. 2º do Código Comercial, onde se encontra a noção legal de atos de comércio
subjetivos, pode ser decomposta em três partes, como, aliás, foi já desvelado [vide: Parte I, Cap. I, 3.]:
1. Atos de comerciantes;
2. Atos de natureza não exclusivamente civil;
3. Atos não auto-qualificados como não comerciais.
Em primeiro lugar, é necessário que o ato seja praticado por um “comerciante” – quanto à noção de comerciante versa
o art. 13º CCom. Note-se, porém, que o art. 2º CCom. não fala simplesmente de atos de comerciantes, antes referindo-
se aos “contratos e obrigações dos comerciantes”. Este é uma formulação pouco harmónica: por um lado, nem todos
os atos dos comerciantes são contratos e o art. 2º começa e acaba referindo-se a “atos”; por outro lado, as obrigações
não são atos, mas sim consequências de atos.
Em segundo lugar, os atos dos comerciantes não podem ser de natureza exclusivamente civil. Segundo o
entendimento tradicional, seriam de natureza exclusivamente civil os atos apenas regulados na lei civil; já não
possuiriam essa natureza os atos incluíveis num género de que uma lei mercantil regula uma ou mais espécies, bem
como os atos com regulamentação tanto civil como comercial. Esta não nos parece a melhor interpretação: por um
lado, alguns atos previstos apenas na lei civil não são essencialmente civis; por outro lado, a 2ª parte do art. 2º CCom.
teria pequena utilidade se se limitasse a convocar a classificação (objetiva) realizada na sua 1ª parte (atos regulados
no CCom. são atos de comércio objetivos). Ademais, há atos omissos, não regulados nem na lei civil nem na lei
comercial e que, ainda assim, podem ter natureza comercial. Neste contexto, e em consonância com a doutrina
italiana, entendemos serem atos de natureza exclusivamente civil os que não são conexáveis com o exercício do
comércio, não sendo dirigidos a auxiliar, promover ou levar a cabo o exercício do comércio, nem a deste dependerem.
Vejam-se alguns atos cuja natureza essencialmente civil tem sido discutida:
 Doações realizadas por comerciantes » entende-se que quando realizadas com fins reclamísticos não serão
atos de natureza puramente civil, porque promotores do exercício do comércio.
 Rendas perpétuas e vitalícias pagas pelo comerciante » não são atos de natureza exclusivamente civil, na
medida em que são conexáveis com o comércio em geral.
 Factos jurídicos ilícitos praticados pelo comerciante, geradores de responsabilidade civil extracontratual » não
terão natureza exclusivamente civil se praticados no exercício do comércio.
Em terceiro lugar, o ato só será comercial se o contrário não resultar do próprio ato. Portanto é necessário que do
próprio ato não resulte a não ligação ao comércio. Podem então surgir três hipóteses:
 Do ato resulta a ligação com o comércio » ato comercial;
 Do ato não resulta a não ligação com o comércio » ato comercial;
 Do ato resulta a não ligação com o comércio » ato não comercial.
Note-se que a expressão “próprio ato” significa não apenas o facto jurídico em si mas também as circunstâncias
concomitantes que auxiliem a sua compreensão. A este respeito os autores têm discutido se esta parte final do art. 2º
CCom. constitui ou não uma presunção legal:
a) Há uma presunção juris tantum – Barbosa de Magalhães, José Benevides, etc.;
b) Há uma presunção juris et de iure – Alves de Sá;
c) Não há qualquer presunção – José Tavares, Coutinho de Abreu, etc. [posição adotada]

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Maria Paixão Direito Comercial I – 2017/2018
De tudo o que foi dito, resulta a seguinte definição de atos de comércio subjetivos:
“Factos voluntários dos comerciantes conexionáveis com o comércio em geral e de que não resulte não estarem
conexionados com o comércio dos seus sujeitos”.
4. Atos de comércio autónomos e atos de comércio acessórios
Atos de comércio autónomos Atos de comércio acessórios
= atos qualificados como mercantis por si mesmos, = atos que devem a sua comercialidade ao facto de se
independentemente da ligação a outros atos comerciais ligarem ou conexionarem a atos comerciais em si mesmos
São exemplos de atos de comércio acessórios a fiança, o mandato, o empréstimo, o penhor e o depósito. Estes atos
tanto podem ser acessórios de atos de comércio objetivos autónomos, de atos de comércio objetivos acessórios, ou
de atos de comércio subjetivos.
Tem-se questionado a possibilidade de qualificação como comerciais de atos de não comerciantes não especialmente
regulados na lei mercantil (portanto, não enquadráveis nem no conceito de ato de comércio subjetivo, nem no
conceito de ato de comércio objetivo) mas acessórios de atos objetivamente comerciais. A este propósito distinguem-
se duas respostas doutrinais:
a) Resposta afirmativa: de acordo com a “teoria do acessório”, todo o ato de um não comerciante efetivamente
conexionado com ato objetivamente mercantil é ato de comércio.
b) Resposta negativa: ou porque não se admite a analogia, ou porque, admitindo-se a analogia, reconhecem-se
algumas restrições à sua aplicação. [doutrina dominante e posição acolhida]
Entre nós entende-se que a analogia iuris não pode ser mobilizada neste caso. Com efeito, não parece ser possível
afirmar um “princípio geral” segundo o qual todo o ato de não comerciantes seria mercantil quando conexionado com
atos comerciais objetivos; isto porque o catálogo de atos acessórios previstos na lei inclui atos de índole muito
diversificada, não sendo possível extrair notas comuns caraterizadoras suficientes. Contudo, já será possível recorrer
à analogia legis, sempre que um concreto ato seja análogo a um específico ato acessório previsto na lei.
5. Atos formalmente comerciais e atos substancialmente comerciais
Atos formalmente comerciais Atos substancialmente comerciais
= esquemas negociais que, utilizáveis quer para a realização = atos especialmente regulados na lei comercial e que se
de operações mercantis, quer para a realização de operações integram ou estão ligados à atividade comercial
económicas que não são atos de comércio nem se inserem
na atividade comercial, estão contudo especialmente
regulados na lei comercial
Protótipos dos atos formalmente comerciais são os negócios cambiários: as letras de câmbio são atos comerciais
porque se encontram reguladas na lei comercial, mas a sua causa pode nada ter a ver com o comércio.
6. Atos bilateralmente comerciais e atos unilateralmente comerciais
Atos bilateralmente comerciais Atos unilateralmente comerciais
= atos cuja comercialidade se verifica em relação a = atos cuja comercialidade se verifica só em relação
ambas as parte a uma das partes
Importa, a este respeito, notar que o art. 99º CCom. dispõe que o regime previsto na lei comercial se aplica a ambas
as partes mesmo que o ato só seja mercantil em relação a uma delas. Excetuam-se, porém, as disposições que só
forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo respeito o ato é mercantil. Releva aqui, especialmente, o art. 100º CCom.
que dispõe a solidariedade entre os co-obrigados nas obrigações comerciais – este preceito só se aplica aos sujeitos
por cujo respeito o ato é mercantil, e já não à outra parte do negócio em relação ao qual não se verifica a
comercialidade. Uma outra exceção reconduz-se aos contratos de consumo: quando o ato unilateralmente comercial
for um contrato de consumo, aplicam-se a ambos os contraentes as regras especiais das relações de consumo.
7. Análise de alguns contratos comerciais em particular
7.1 Contratos de distribuição comercial
7.1.1 Âmbito
Ao falarmos em “contratos de distribuição” temos em vista:
“os contratos que disciplinam as relações entre o produtor (ou importador) e o distribuidor”.
Portanto, não estão aqui em causa contratos celebrados diretamente com os consumidores. Ainda que estes possam
ser incluídos num conceito amplo de “contratos de distribuição”, para o que nos interessa só devem ser considerados
os contratos de intermediação nas trocas (e não contratos que representem o ato final dessas trocas).

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Maria Paixão Direito Comercial I – 2017/2018
Em regra, os contratos de distribuição têm como sujeitos o produtor, de um lado, e o distribuidor, do outro. Quanto
aos objetivos prosseguidos, identificam-se frequentemente as finalidades de escoamento de produto, de conquista
de mercado e de angariação de clientela.
7.1.2 Distribuição e comércio
Quando hoje se fala em distribuição pretende revelar-se uma atividade desempenhada por sujeitos que se
especializaram em distribuir os bens, em fazê-los chegar ao consumidor. A produção orientada para o auto-consumo
ou canalizada através de comércio incipiente foi substituída, com a revolução industrial, por uma produção
excedentária, em série ou em massa. Essa excedentariedade veio tornar urgente o escoamento dos bens. Em face
desta necessidade, começaram a surgir pessoas especializadas em libertar o produtor da preocupação de distribuir os
bens, dedicando-se exclusivamente a essa distribuição, desenvolvendo-a e aperfeiçoando-a. Assim, a figura do
distribuir veio interpôr-se entre o fabricante e o consumidor, assumindo um estatuto próprio.
A utilização de colaboradores para efeitos de distribuição do produto surgiu, numa primeira fase, com recurso ao
“contrato de comissão”. Nesta primeira fase, os distribuidores assumiam a veste de representantes económicos da
empresa: representavam os interesses económicos da empresa mas gozavam de autonomia jurídica, dependendo a
sua retribuição do volume de negócios alcançado. Depressa se avançou, porém, para formas de colaboração mais
ajustadas aos interesses da empresa. Surge, então, a figura do “contrato de agência”. Tal como o comissário, o agente
é independente e atua com autonomia, poupa à empresa custos de organização e é remunerado em função dos
resultados obtidos. Só que, agora, é a empresa que, em via de regra, celebra os contratos com os clientes, limitando-
se o agente a promover a sua celebração e a angariar clientela. A empresa deixa, portanto, de estar “à margem” dos
contratos celebrados pelo comissário com terceiros adquirentes (pois perante a empresa, quem cumpria as obrigações
assumidas pelos terceiros era o comissário); na agência, a empresa interage diretamente com os terceiros adquirentes.
Numa ulterior fase evolutiva, emergiram ainda outras formas de colaboração, diferentes da agência; falamos,
sobretudo, do “contrato de concessão” e do “contrato de franquia”. Enquanto que no contrato de agência cabia à
empresa a decisão final de contratar, na concessão comercial e na franquia o concessionário e o franquiado surgem
como comerciantes independentes, que compram à empresa para revender os bens a terceiros. A diferença entre os
dois contratos é que, na concessão, o concessionário revende em seu nome e por conta própria e, na franquia, o
franquiado atua com a imagem empresarial do franquiador. Chegados ao fim do escurso histórico respeitante ao
surgimento dos diversos contratos de distribuição, importa realçar que todos eles coexistem e são utilizados como
esquemas diferentes, não se excluindo mutuamente.
7.1.3 Distribuição e consumo
Relações distribuidor-produtor Relações distribuidor-consumidor
VS
Direito da distribuição Direito do consumidor
Esta separação não significa que os dois ramos do direito não tenham uma matriz comum ou que não hajam fatores
comuns a contribuir decisivamente para a afirmação de um e outro. De facto, estes dois ramos jurídicos convergem
na chamada “sociedade de consumo”: a sociedade do nosso tempo é uma sociedade de abundância, que se debate
com o excesso de oferta e tenta por todos os meios seduzir os consumidores, em ordem a escoar os bens. Neste
contexto, o setor da distribuição cresce, especializa-se e ganha poder, quase eliminando o pequeno comércio. E além
das novas figuras do direito da distribuição, outras também surgem no domínio do direito do consumidor. Pense-se,
por exemplo, nos contratos de adesão, nas cláusulas contratuais gerais e outros “standard contracts”. Este novo
modus comercial suscitou problemas, nomeadamente nos domínios da formação do contrato, do conteúdo das
cláusulas e das medidas de reação a comportamentos abusivos. Em nome da tutela do consumidor, assistiu-se a uma
intervenção legislativa moderadora nesta matéria.
A distribuição e o consumo ganharam, na atualidade, uma dimensão de grande relevo, graças a um conjunto de fatores
comuns, responsáveis pela edificação da atual “sociedade de consumo”. Tantos os contratos de distribuição como as
figuras típicas do direito do consumo cumprem o objetivo de se afirmarem como instrumentos eficazes para a
distribuição dos bens, mas surgem uns e outras em fases diferentes desse processo, versando sobre relações diversas.
7.2 Formas dos contratos de distribuição
As principais modalidades dos contratos de distribuição são, atualmente, a agência, a concessão e a franquia.

Contrato de agência Contrato de concessão Contrato de franquia

» Aprofundamento das relações entre as partes »

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Maria Paixão Direito Comercial I – 2017/2018
Embora se possa afirmar o pluralismo como traço dominante do sistema comercial, coexistindo o pequeno
comerciante ao lado das grandes superfícies e do comércio integrado, a verdade é que a tendência aponta para a
organização e concentração. Assume, neste contexto, maior relevo a integração em redes de distribuição. É claro que
nada impede a distribuição direta, em que os bens se transmitem diretamente do produtor para o consumidor final.
Todavia, assume particular relevância na atualidade a distribuição indireta, a qual aproveita as vantagens da divisão
do trabalho e da especialização: o produtor concentra-se no aparelho produtivo e as empresas especializadas
(grossistas e retalhistas) assumem o controlo da comercialização.
Entre estes casos-limite é possível encontrar formas intermédias que permitem coordenar a fase da produção com a
da distribuição, mas sem anular a autonomia das partes, possibilitando uma “integração vertical convencional”. É aqui
que entram os contratos de distribuição.
No domínio da distribuição indireta há que distinguir dois tipos de realidades:
Distribuição indireta
Integrada Não integrada
» há uma coordenação entre a produção e a » não há coordenação entre a produção e a
comercialização comercialização
O distribuidor mantém a sua independência e O distribuidor tem total independência e autonomia,
autonomia jurídica, suportando os custos de não estando vinculado a quaisquer diretrizes,
organização e o risco da comercialização, mas é orientação, controlo ou fiscalização por parte do
integrado na empresa ou grupo produtor produtor no que diz respeito á atividade de
comercialização
Tem de seguir diretrizes do produtor e sujeita-se à sua
orientação, controlo e fiscalização; em contrapartida,
usufrui de privilégios vários
Em suma:
 Distribuição direta: posta em prática por intermédio dos próprios empregados e filiais da empresa;
 Distribuição indireta integrada: a empresa recorre a pessoas independentes que colaborarão consigo de modo
estável na distribuição dos bens (entram aqui o agente, o concessionário e o franquiado);
 Distribuição indireta não integrada: realizada com recurso a terceiros (por ex. os retalhistas e grossistas).
7.3 Regime jurídico
No que diz respeito ao regime jurídico aplicável aos contratos de distribuição, importa referir, desde já, que apenas o
contrato de agência dispõe de regime jurídico próprio: o DL nº 178/86, com as alterações introduzidas pelo DL nº
118/93, que transpôs a Diretiva 86/653/CEE, do Conselho.
Os contratos de concessão comercial e de franquia permanecem como contratos legalmente atípicos, apesar da sua
indiscutível tipicidade social. Assim sendo, põe-se o problema de saber que regime jurídico lhes aplicar. Duas questões
autónomas podem ser formuladas a este respeito: poderá aplicar-se ao regime legal do contrato de agência aos
contratos de concessão e franquia? E haverá um regime jurídico próprio de (todos) os contratos de distribuição?
Antes de mais, em face de um contrato atípico, haverá que seguir os seguintes passos:
1. Atender às cláusulas acordadas pelos contraentes;
2. Mobilizar o regime geral dos negócios jurídicos;
3. Ponderar a aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais e dos contratos de adesão;
4. Averiguar a possibilidade de aplicação da lei da defesa da concorrência;
5. Atender aos aspetos específicos do contrato concreto que podem convocar regimes legais especiais.
Só havendo sido percorrido este percurso se colocará a questão de saber se o regime do contrato de agência é
aplicável. Ora, é metodologicamente correr, perante um contrato legalmente atípico, atender ao regime dos contratos
mais próximos; e, efetivamente, o contrato de agência é o mais vocacionado para uma tal aplicação analógica do seu
regime aos contratos de concessão e de franquia. A aplicação analógica dos preceitos do regime do contrato de
agência dependerá da verificação de dois requisitos:
a) Semelhança entre as relações estabelecidas entre as partes: haverá que averiguar se o concessionário e o
franquiado exercem, nas suas relações com o concedente e com o franquiador, uma função económico-social
idêntica à que é exercida pelo agente, atuando de forma semelhante a este.
Manifestações desta semelhança:
 Colaboração entre as partes (ainda que de intensidade variável);
 Estabelecimento de uma relação duradoura;

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Maria Paixão Direito Comercial I – 2017/2018
 Integração do agente e dos concessionário e franquiado na rede;
 Obediência às diretrizes e instruções do dono do negócio;
 Submissão ao controlo do dono do negócio;
 Obrigação de zelar pelos interesses do dono do negócio e de promover a distribuição dos seus bens.
b) Ratio legis da norma a aplicar: haverá ainda que verificar se a ratio da norma que especificamente se pretende
aplicar analogicamente é adequada ao contrato de concessão ou de franquia.
Não serão de aplicar, nomeadamente, as seguintes normas:
 Normas relativas à comissão prevista para o agente exclusivo no caso de violação do seu direito;
 Normas sobre a comissão do agente;
 Normas sobre a indemnização de clientela.
No que diz respeito à existência de um regime jurídico próprio dos contratos de distribuição, importa referir, desde já,
que não pode identificar-se um regime único aplicável, pois esta figura integra uma grande diversidade de espécies
negociais. Em cada caso haverá que mobilizar as disposições legais pertinentes. A pluralidade dos contratos de
distribuição reclama um regime também plural. Isto não impede, porém, que seja identificável um núcleo ou fundo
comum de problemas suscetível de ser equacionado e resolvido por um mesmo regime jurídico. Para esse núcleo de
problemas o regime do contrato de agência surge como regime-modelo dos contratos de distribuição. De facto, o
regime do contrato de agência traduz-se muitas vezes na concretização de princípios gerais válidos para todos os
contratos de distribuição.
7.4 Categoria jurídica
Pode ainda perguntar-se se os contratos de distribuição formam uma categoria jurídica, ou se, pelo contrário, esta é
uma fórmula com mero relevo económico mas sem significado jurídico próprio.
Entende-se que, apesar das diferenças que distinguem os vários tipos de contratos integráveis nesta figura, há um
conjunto de notas essenciais, comuns a todos esses contratos, que permitem reuni-los numa mesma categoria jurídica.
! A nota fundamental reside na obrigação de o distribuidor promover os negócios da outra parte. No cumprimento
dessa obrigação, deve o agente, tal como o concessionário ou o franquiado, zelar pelos interesses da outra parte. Esta
obrigação, que o diploma legal do contrato de agência prevê expressamente no seu art. 6º, é uma obrigação
fundamental de todos os contratos de distribuição. É esta obrigação, através de cujo cumprimento se efetiva a função
económico-social dos contratos de distribuição, que permite distinguir o distribuidor do comerciante tradicional.
Ademais, verifica-se que, em todos os contratos de distribuição, é estabelecida uma relação de colaboração intensa e
duradoura, segundo a qual o agente, o franquiado e o concessionário ficam sujeitos às diretrizes, à fiscalização e ao
controlo do dono do negócio, integrando-se na sua rede comercial. Neste contexto, basta atentar na definição de
“contrato de agência” que consta do art. 1º do DL nº 178/86 para se perceber que aí são referenciados elementos que
se podem considerar comuns a todos os contratos de distribuição:
 Obrigação de promover os negócios da outra parte;
 Exercício de uma atividade onerosa por parte do agente (ou concessionário ou franquiador);
 Autonomia e estabilidade nesse exercício.
É claro que as notas comuns aos vários contratos de distribuição têm intensidade diversa, pelo que a aproximação de
cada um ao contrato de agência é variável. Privilegia-se aqui uma compreensão dos contratos de distribuição na sua
complexidade, através da imagem global formada pelos vários elementos em conjunto. Assim, não se exige, em cada
caso, a presença simultânea de todos os elementos considerados essenciais; o que importa verdadeiramente é apurar
o grau de intensidade com que esses elementos se apresentam e a imagem global que deles resulta.
[NOTA: consideramos aqui apenas os contratos de agência, de concessão e de franquia mas estes não são os únicos
contratos de distribuição identificáveis na praxis.]
7.5 Contrato de agência
O art. 1º do DL nº 178/86 define o “contrato de agência” como:
“o contrato pelo qual uma das partes se obriga a promover por conta da outra a celebração de contratos, de
modo autónomo e estável e mediante retribuição, podendo ser-lhe atribuída certa zona ou determinado círculo de
clientes”.
Como ficou já apontado, este diploma veio transpor a Diretiva 86/653/CEE, do Conselho, de 18 de dezembro de 1986,
a qual culminou um processo que se arrastou ao longo de 10 anos. A referida Diretiva visa, essencialmente, 3 objetivos:
 Garantir a igualdade de condições no plano da concorrência entre os Estados-membros;
 Proteger o agente comercial;

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Maria Paixão Direito Comercial I – 2017/2018
 Contribuir para a segurança das relações comerciais.
Sucede, porém, que os resultados obtidos pela Diretiva foram modestos:
 A Diretiva apresenta diversas deficiências e uma incompletude de conteúdo, o que determinou que
permanecessem muitas das diferenças existentes entre o direito interno dos vários países;
 A Diretiva é omissa quando a vários problemas e, quanto a outros, consagra soluções alternativas, o que
contribuiu para a fraca harmonização verificada.
Não obstante, há que reconhecer que a Diretiva conseguiu aproximar as legislações dos Estados-membros em alguns
aspetos importantes, sobretudo em matéria de proteção do agente.
7.5.1 Elementos essenciais
Para que um determinado contrato possa ser classificado como contrato de agência terão de estar verificados os
seguintes requisitos (art. 1º DL nº 178/86):
a) Obrigação de o agente promover a celebração de contratos;
b) Atuação por conta do principal;
c) Autonomia;
d) Estabilidade;
e) Retribuição.
Analisem, então, detalhadamente, estes elementos:
a) Obrigação de o agente promover a celebração de contratos
Esta é a obrigação fundamental do agente. Envolve toda uma complexa e multifacetada atividade material, de
prospeção do mercado, de angariação de clientes, de difusão de produtos e serviços, etc., que antecede e prepara a
conclusão dos contratos. Não se trata de mera atividade publicitária. É certo que agente deve publicitar, mas deve
também visitar clientes, fornecer catálogos, amostras e listas de preços, encetar e prosseguir negociações, dirigir ao
principal encomendas e propostas negociais e prestar a mais variada informação ao principal (situação do mercado,
gostos da clientela, etc.). Tenha-se, neste contexto, presente o dever do agente de zelar pelos interesses do principal,
o que faz deste contrato um contrato de gestão de interesses alheios.
Observe-se, porém, que o contrato de agência, por si só, não confere ao agente poderes para celebrar contratos com
terceiros. O agente limita-se a fomentar a sua conclusão e a prepará-los, mas não lhe cabe a celebração dos contratos
que promove (salvo havendo-lhe sido conferidos para tal). Assim sendo, a agência não se confunde com o mandato,
o qual envolve, tipicamente, a prática de atos jurídicos (art. 1157º CC).
Se o principal conferir ao agente poderes para celebrar contratos, este atuará em nome daquele (art. 2º DL nº 178/86).
Nesta sede coloca-se a questão de saber se o agente a quem tenham sido concedidos poderes para celebrar contratos
gozará também do poder de decidir, por si, se o contrato é ou não de concluir, e em que termos deverá ser concluído.
Tudo dependerá do sentido e da amplitude dos poderes que o principal atribui ao agente. Contudo, em princípio, a
atribuição de poderes de celebração de contratos ao agente não confere ao agente poder de decisão. Isto não obsta,
porém, a que ao agente possam ser apresentadas reclamações ou outras declarações, bem como a que lhe seja
reconhecida legitimidade processual ativa restrita – art. 2º/2 e 3 DL nº 178/86.
Também o poder para cobrar créditos depende de autorização do principal (art. 3º/1 DL nº 178/86), embora esse
poder seja presumido em determinados termos no nº 2 do art. 3º DL nº 178/86.
Impõe-se, neste âmbito, uma questão: quid iuris se o agente atuar sem que lhe hajam sido conferidos poderes que,
nos termos da lei, só lhe são reconhecidos por convenção?
Atuação do agente sem poderes
Celebração de negócios jurídicos Cobrança de créditos
 Ineficácia do negócio em relação ao principal – art.  Consideração do pagamento como “prestação a terceiro”
268º/1 CC (remissão do art. 22º/1 DL 178/86) – não há extinção da obrigação em face do principal (art.
770º CC) – art. 3º/3
Possibilidade de ratificação » se preenchidos os requisitos
pela lei (art. 22º/2 DL nº 178/86): Com ressalva do disposto no art. 23º DL nº 178/86 – “regime
a) Conhecimento da celebração do negócio e do da representação aparente”
seu conteúdo pelo principal; (art. 3º/3 in fine DL nº 178/86)
b) Boa fé do cliente;
c) Falta de oposição do principal; [NOTA: presume-se autorizado a cobrar créditos respeitantes
d) Decurso do prazo de 5 dias (a partir do aos contratos por si celebrados o agente a quem tenham sido
conhecimento do negócio. conferidos poderes de representação (art. 3º/2 DL nº 178/86)]

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Maria Paixão Direito Comercial I – 2017/2018
O art. 23º DL nº 178/86 consagra o regime da “representação aparente”, o qual pode ser aplicável quer aos negócio
celebrados sem poderes, quer à cobrança de créditos não autorizada. Haverá representação aparente sempre que o
agente, apesar da sua falta de poderes representativos e/ou de cobrança de créditos, atuou como se os tivesse,
criando no cliente a aparência de estar a contratar ou a pagar a um agente munido dos necessários poderes. Um
negócio celebrado ou uma cobrança de créditos efetuada nestes termos serão eficazes se verificados certos requisitos:
1. Existência de razões ponderosas, objetivamente apreciadas no contexto do caso, que justifiquem a confiança
do terceiro na legitimidade do agente;
2. Boa fé do terceiro;
3. Contribuição do principal para a confiança do terceiro.
Em princípio, esta solução será de alargar a todos os contratos de colaboração.
b) Atuação por conta do principal
No exercício da sua atividade e de acordo com a sua função, o agente atua sempre por conta do principal. Significa
isto que os atos praticados produzem efeitos na esfera jurídica do principal. Ademais, o agente prossegue sempre
interesses do principal, devendo zelar pela sua defesa. Isto decorre do art. 6º DL nº 178/86 e evidencia a natureza de
contrato de gestão que subjaz ao contrato de agência, manifestando a relação de confiança firmada entre as partes.
! Esta é, sublinhe-se, uma nota importante do contrato de agência, na medida em que permite distingui-lo dos demais
contratos de distribuição: o concessionário e o franquiado atuam por conta própria.
c) Autonomia
O agente é independente e atua com autonomia. Contudo, esta não é uma autonomia absoluta, pois o agente deve,
designadamente:
 Conformar-se com as orientações recebidas do principal;
 Adequar-se à política económica da empresa;
 Prestar regularmente contas da sua atividade.
Em conformação com esta nota essencial da agência, a lei permite, salvo convenção em contrário, o recurso a
subagentes (art. 5º DL nº 178/86) e prevê, não havendo estipulação em sentido diverso, que as despesas pelo exercício
normal da sua atividade fiquem a cargo do próprio agente (art. 20º DL nº 178/86).
d) Estabilidade
O agente exerce a sua atividade de modo estável, ou seja, realizando um número indefinido de operações, e não uma
operação isolada. Refira-se, porém, que esta estabilidade é compatível com a fixação de prazos curtos; o que implica
a desqualificação de um contrato como agência é a limitação da atividade a um único ato isolado.
Esta nota da estabilidade repercute-se no caráter duradouro da relação entre agente e principal, o que implica que o
contrato não se extingue por cumprimento.
No que diz respeito à matéria dos prazos, podem verificar-se as seguintes hipóteses:
 Contraentes fixam prazo » contrato por tempo determinado (ou a prazo);
Transforma-se em contrato por tempo indeterminado se continuar a ser executado após o decurso do prazo
(art. 27º/2 DL nº 178/86) – não relevam aqui meros atos de “liquidação” do contrato, mas sim atos de
execução propriamente ditos
NOTA: não será de aplicar esta “conversão” se as partes houverem convencionado que o contrato se prorroga
por um período de tempo, de igual ou diferente duração ao estipulado inicialmente, quando o prazo inicial
decorra sem que se verifique a comunicação, por uma das partes, no sentido de impedir a prorrogação
(aplicando, por identidade de razão, os prazos do art. 28º DL nº 178/86).
 Contraentes não fixam prazo » contrato presume-se por tempo indeterminado (art. 27º/1 DL nº 178/86);
 Contraentes convencionam a não fixação de prazo » contrato por tempo indeterminado.
Contrato por tempo determinado Contrato por tempo indeterminado
Extingue-se por caducidade – art. 26º/a) DL nº 178/86 Extingue-se por denúncia – art. 28º DL nº 178/86
e) Retribuição
A agência é um contrato oneroso. A retribuição determina-se fundamentalmente com base no volume de negócios
conseguido pelo agente, pelo que assume a forma de “comissão”
= percentagem calculada sobre o valor dos negócios alcançados
Nada impede, todavia, que a comissão possa cumular-se com qualquer importância fixa acordada entre as partes.
Quanto ao agente exclusivo, a lei assegura o seu direito à retribuição mesmo que se trate de cliente que não tenha
sido por si angariado ou mesmo que se trate de um contrato que não tenha sido por si promovido, desde que o

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Maria Paixão Direito Comercial I – 2017/2018
contrato haja sido concluído com alguém pertencente ao círculo de clientes que lhe foi reservado (art. 16º/2 DL nº
178/86). Entende-se por “agente exclusivo” o agente que, por determinação das partes, detém a exclusividade
relativamente a certo círculo de clientes, de tal forma que o principal fica impedido de utilizar, dentro desse círculo,
outros agentes para o exercício de atividades que estejam em concorrência com as do agente exclusivo (art. 4º DL nº
178/86). Este direito era elemento natural do contrato de agência até à alteração introduzida no respetivo regime
pelo DL nº 118/93, a partir da qual passou a depender do consentimento do principal – portanto, no silêncio do
contrato, o agente não tem direito de exclusividade.
O mesmo não sucede para o agente, que tem efetivamente um dever de não exercer atividades concorrentes com a
atividade do principal, independentemente de tal ter sido expressamente consagrado no contrato. Esta é a posição
que melhor se harmoniza com o disposto no art. 6º DL nº 178/86, visto que o princípio da boa fé e a obrigação do
agente de “zelar pelos interesses da outra parte” dificilmente se coadunam com o exercício, por parte do agente, de
atividades concorrentes, pelo menos sem a permissão do principal.
7.6 Contrato de mandato
Contrato de agência Contrato de mandato
 O agente tem promove os negócios do principal  O mandatário pratica atos jurídicos por conta do mandante
Atos materiais Atos jurídicos
 Agente não tem direito a reembolso das despesas pelo  O mandatário tem direito a reembolso das despesas pelo
exercício normal da sua atividade; exercício normal da sua atividade;
 Remunerado em função do volume de negócios  Remuneração fixa, independente do resultado do trabalho
» Ambos (agente e mandatário) atuam por conta de outrem (principal ou mandante) «
7.7 Contrato de comissão
O contrato de agência representou um “salto qualitativo” em relação ao contrato de comissão. Por “contrato de
comissão” entende-se, nos termos do art. 266º CCom.:
“contrato pelo qual o mandatário executa o mandato mercantil, sem menção ou alusão alguma ao mandante,
contratando por si e em seu nome, como principal e único contraente”.
A diferença entre o mandato comercial e a comissão reside no seguinte aspeto: o mandatário pratica atos em nome,
no interesse e por conta do mandante; o comissário, por sua vez, pratica atos no interesse e por conta do mandante,
mas em nome próprio. Sendo a comissão um mandato sem representação, são várias as diferenças a apontar entre
este contrato e o contrato de agência:
Contrato de agência Contrato de comissão
 Função do agente traduz-se numa atividade  Função do comissário traduz-se numa
material; atividade jurídica;
 Agente com poderes para celebrar negócios atua  Comissão atua em nome próprio, ainda que
em nome, no interesse e por conta do principal; por conta e no interesse do comitente;
 Relação duradoura entre as partes.  Relação pontual entre as partes.
7.8 Contrato de mediação
O contrato de mediação tem em comum com o de agência o facto de em ambos alguém atuar como intermediário,
procurando que determinado negócio venha a concretizar-se e preparando a sua conclusão.
A obrigação fundamental do mediador é conseguir interessado para certo negócio, que raramente conclui ele próprio.
Limita-se a aproximar duas pessoas e a facilitar a celebração do contrato, podendo a sua remuneração caber a ambos
os contraentes ou apenas àquele que recorreu aos seus serviços. A remuneração do mediador é independente do
cumprimento do contrato.
Ao contrário do agente, o mediador não atua “por conta” de nenhum dos contraentes, antes assumindo uma posição
imparcial, não se ligando a qualquer deles por relações de colaboração, dependência ou representação. O mediador
é, portanto, tipicamente uma pessoa independente, a quem qualquer outra pessoa pode recorrer na vigência de um
contrato com terceiro, cessando a relação contratual logo que concluído o negócio.
Deste modo, são evidentes as notas caraterizadores deste tipo de contrato que o apartam do contrato de agência:
Contrato de agência Contrato de mediação
 Atuação no interesse do agente;  Atuação imparcial;
 Relação de colaboração duradoura;  Relação prestação de serviços;
 Atividade material contínua.  Atividade ocasional.
7.9 Contrato de trabalho

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Apesar de existirem algumas afinidades entre o contrato de agência e o contrato de trabalho, eles diferenciam-se
porquanto o agente é juridicamente independente do principal, exerce a sua atividade com autonomia e assume riscos
no plano da retribuição. Não são, por isso, agentes certas pessoas que, apesar do título ostentado (“agentes”), estão
ligados a outrem por contrato de trabalho, ainda que possam gozar de relativa autonomia e exerçam de modo estável
uma atividade de promoção negocial.
7.10 Contrato de concessão
7.10.1 Noção
A concessão deve compreender-se como um “contrato-quadro”, definível como:
“o contrato que faz surgir entre as partes uma relação obrigacional complexa, por força da qual uma delas, o
concedente, se obriga a vender à outra, o concessionário, e esta aceita comprar-lhe, (1)para revenda (em (2)nome e
interesse próprios) determinada quota de bens, aceitando (3)certas obrigações e sujeitando-se a um certo controlo e
fiscalização do concedente”.
Como contrato-quadro, o contrato de concessão funda uma relação de colaboração estável, duradoura, de conteúdo
múltiplo, cuja execução implica a celebração de futuros contratos entre as partes, pelos quais o concedente vende ao
concessionário, para revenda, nos termos previamente estabelecidos, os bens que este se obrigou a distribuir.
Podem, então, identificar-se três notas essenciais desta noção:
1. Assunção da obrigação de compra para revenda » as partes celebram, posteriormente, contratos de execução,
de compra e venda dos bens com o objetivo de revenda, os quais devem respeitar os termos fixados
previamente no contrato de concessão;
2. Atuação do concessionário em nome próprio e por conta própria » o concessionário, atuando em seu nome e
por conta própria, assume os riscos da comercialização;
3. Vinculação das partes a outro tipo de obrigações (além da obrigação de comprar para revenda e de vender) »
através de tais obrigações efetua-se a integração do concessionário na rede de distribuição do concedente.
As obrigações referidas são obrigações de índole e intensidade diversa, com as quais se visa, no fundo, definir executar
determinada política comercial, bem como permitir um certo controlo do concedente sobre a atividade do
concessionário. Nesta linha, tem-se perspetivado a concessão no âmbito do contrato de gestão de negócios e
sublinhado justamente o dever de promoção dos bens distribuídos.
É, aliás, este conjunto de caraterísticas que constituem e emergem da integração do concessionário na rede de
distribuição do concedente que explica a posição que vimos assumindo quanto à aplicação a este contrato do regime
da agência. De facto, é fundamentalmente pela integração do revendedor na rede de distribuição do concedente que
se aproximam os dois contratos (de agência e de concessão), e, nessa medida, que se justifica o recurso à disciplina
do contrato de agência.
A referida integração apresenta vantagens para ambas as partes:
 Concedente: consegue impor a sua política comercial e controlar a fase de distribuição do produto;
 Concessionário: adquire uma posição de privilégio e uma vantagem concorrencial no mercado.
Tudo isto evidencia a função económico-social deste contrato.
7.10.2 Delimitação face a figuras afins
O contrato de concessão, embora apresentando notas comuns com os seguintes contratos, não se confunde com eles:
a) Contrato de agência
Contrato de concessão Contrato de agência
 O concessionário age em nome próprio e por  O agente age em nome e por conta do
conta própria; principal;
 O concessionário adquire a propriedade da  O agente limita-se a promover os negócios do
mercadoria; principal, não comprando, efetivamente, bens;
 O concessionário assume o risco da  O agente é remunerado em função do volume
comercialização (se não (re)vender os bens terá de negócios – comissão –, mas nada perde se
prejuízo, porquanto continua obrigado a pagar não conseguir promover o negócio (embora
o preço ao concedente); não ganhe nada, também não tem prejuízo);
 O concessionário tem, em regra, o direito de  O agente só será “exclusivo” quando as partes
exclusivo (monopólio da venda dos bens em acordarem nesse sentido (em regra, o direito
certo território); de exclusivo não é caraterístico da agência);
 As obrigações do concessionário perante o  As obrigações do agente resumem-se à
concedente não cessam com a alienação dos promoção do negócio do principal, sendo o

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bens – aquele está obrigado a prestar aos principal quem negoceia/contrata diretamente
clientes assistência pós-venda. com os clientes.
b) Contrato de distribuição seletiva
Tal como o concessionário, o distribuidor seletivo é um comerciante independente que compra para revenda, atuando
em seu nome e por conta própria.
A distribuição seletiva procura responder à preocupação dos titulares de grandes marcas em controlarem a
distribuição e em assegurarem o prestígio da marca e qualidade dos serviços, através de uma apurada seleção da
revendedores e de instalações comerciais adequadas. Isto aplica-se, sobretudo, a produtos de luxo, que não se
pretendem ver vulgarizados, e a produtos de alta tecnicidade, que se pretendem distribuídos por revendedores
competentes e capazes de assegurar um eficaz serviço pós-venda. Estamos, pois, perante um sistema de
comercialização de produtos de marca em que o fabricante selecciona os seus revendedores em função do
cumprimento de apertados requisitos, só a esses revendedores fornecendo os seus bens. Nada impede que o
revendedor comercialize outros bens concorrentes, mas só pode adquirir os produtos junto do fabricante ou de outro
revendedor selecionado e não beneficia de qualquer direito de exclusivo. Além desta caraterística da seleção, é
também nota caraterizadora deste tipo contratual os laços de colaboração que unem as partes. Estas são notas que
encontramos igualmente no contrato de concessão. Porém, elas assumem aqui menor intensidade.
Em suma, o contrato de distribuição seletiva distingue-se do contrato de concessão em dois aspetos:
 Menor intensidade dos laços de colaboração através dos quais o distribuidor/fabricante executa uma política
comercial e integra o revendedor na sua rede de distribuição;
 Especialização da rede de distribuição, de tal forma que os distribuidores são selecionados em função de
determinadas caraterísticas ou requisitos.
[NOTA: os critérios de seleção dos distribuidores são especialmente controlados pelo direito da concorrência, porquanto poderão
suscitar problemas nesse domínio.]
c) Contrato de distribuição autorizada
A distribuição autorizada exprime uma (ainda) menor integração do distribuidor na rede do fabricante do que aquela
que se verifica na distribuição seletiva. Aqui os critérios de seleção dos revendedores autorizados são muito menos
rigorosos e o controlo efetuado pelo fabricante é também inferior. Ademais, ao invés do que sucede com o distribuidor
seletivo, o distribuidor autorizado não é o único a poder (re)vender os produtos.
7.10.3 Regime jurídico
Sendo a concessão um contrato legalmente atípico, impõe-se saber qual o regime jurídico aplicável. Vale aqui o que
foi dito em geral – vide supra: Cap. I, 7.3.
Há, no entanto, alguns aspetos que suscitam uma particular atenção, os quais serão considerados no ponto seguinte,
acerca da cessação do contrato [vide infra: Cap. I, 8.].
7.11 Contrato de franquia
7.11.1 Noção
O contrato de franquia, também designado de “franchising”, pode definir-se como:
“o contrato mediante o qual o produtor de bens e/ou serviços (franquiador) concede a outrem (franquiado),
mediante contrapartidas, a comercialização dos seus bens, através da utilização da sua marca e demais sinais
distintivos (a “fórmula de sucesso”) e em conformidade com o plano, método e diretrizes prescritas por este, que lhe
fornece conhecimentos e regular assistência”.
O conceito “franchise” significa privilégio, o que indica, exatamente, que este é um contrato mediante o qual alguém
confere a outrem o “privilégio” de vender os bens por si produzidos. Portanto, o franquiado fica adstrito ao plano
delineado pelo produtor e executa-o e surge aos olhos do público com a imagem empresarial deste. Impõe-se, aqui,
uma série minuciosa de prescrições, que o franquiado deve observar estritamente, e que são dispostas de forma
uniforme para todos os franquiados.
Este modelo contratual apresenta vantagens para as ambas as partes:
 Franquiador:
 Controla e dirige, através de empresas independentes, a distribuição dos bens, como se fossem filiais
mas sem os pesados custos e riscos que isso implica;
 Consegue zelar pela qualidade dos serviços, uniformizar as condições de venda e difundir o seu nome,
insígnias e a marca dos produtos;
 Recebe contrapartidas financeiras pela fórmula que criou.

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 Franquiado:
 Comercializa bens já conhecidos do público, utilizando a marca e demais sinais distintivos de uma
grande empresa (muitas vezes, com projeção internacional);
 Poupa investimentos que, de outra forma, teria de suportar com a criação e instituição de uma marca,
não suportando os riscos inerentes ao lançamento de produtos e/ou serviços;
 Beneficia da assistência técnica, dos conhecimentos e da experiência do franquiador;
 Insere-se num sistema de integração vertical, que lhe permite beneficiar comercialmente do poderio
e renome de uma grande empresa.
7.11.2 Distinção do contrato de concessão
O franquiado, à semelhança do concessionário, é um comerciante que grosso modo compra para revenda, atuando
em nome e por conta própria e assumindo os riscos de comercialização. Habitualmente, beneficia também do direito
de exclusivo. Ademais, também aqui há uma obrigação de assistência aos clientes e uma interferência do franquiador
na organização do franquiado.
Não obstante, as diferenças entre as duas figuras são marcadas:
Contrato de concessão Contrato de franquia
 O concedente interfere na atividade do  O franquiador ingere-se na atividade do
concessionário de forma pouca intensa; franquiado de forma acentuada e extensa;
 O concessionário comercializa os bens  O franquiado comercializa os bens mediante
utilizando uma imagem própria; utilização obrigatória da marca e demais sinais
 O concessionário e o concedente vinculam-se a distintivos de comércio do franquiador;
obrigações adicionais que visam simplesmente  A utilização dos sinais distintivos pelo
permitir ao concedente executar uma política franquiado é acompanhada do fornecimento de
comercial e controlar deste a atividade do “know-how”, assistência, métodos e planos de
concessionário, mediante a sua inclusão na mercados, conhecimentos tecnológicos,
rede de distribuição do primeiro; diretrizes sobre a política de marketing, etc.;
 O concessionário adquire, periodicamente,  O franquiado paga contrapartidas pelos
bens ao concedente, retribuindo-lhe apenas benefícios que resultam da utilização da marca
mediante pagamento do preço desses bens. e dos conhecimentos e assistência que recebe.
Em suma, pode representar-se a franquia como um avanço qualitativo em relação ao contrato de concessão, no
esforço de o produtor se aproximar da fase de distribuição, controlando-a e dirigindo-a, ainda que servindo-se de
empresas independentes.
7.11.3 Modalidades
Segundo a classificação operada pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (Acórdão de 28 Janeiro de 1986),
que entretanto tem vindo a ser adotada pela doutrina e que foi acolhida no Regulamento nº 4087/88 da Comissão,
haverá que distinguir:
 Franquia de serviços: o franquiado oferece serviços sob a insígnia, o nome comercial ou a marca do
franquiador, conformando-se às suas diretrizes (ex.: empresa Hertz, de aluguer de viaturas);
 Franquia de produção ou industrial: o franquiado fabrica, segundo as indicações do franquiador, produtos que
ele vende sob a marca deste (ex.: Coca-Cola);
 Franquia de distribuição: o franquiado vende certos produtos num local que usa a insígnia do franquiador (ex.:
lojas de roupa Benetton).
A estas modalidades a doutrina acrescenta outras:
 Package franchise: o franquiador autoriza o franquiado a atuar de acordo com a sua imagem empresarial.
VS
Product franchise: o franquiador confere ao franquiado licença para vender produtos de marca.
 Master franchising: o franquiador acorda com alguém, situado na zona onde ele pretende entrar, que este
celebre contratos de franquia com terceiros – há um contrato de franquia principal e vários sub-contratos de
franquia realizados pelo franquiado daquele primeiro.
7.11.4 Regime jurídico
Tal como a concessão, também o contrato de franquia é um contrato legalmente atípico. Vale aqui também, em
princípio, o que foi dito supra Cap. I, 7.3.
Poder-se-á ter que tomar em especial consideração o regime do contrato de licença. Isto porque o contrato de
franchising é um contrato misto, em que avultam componentes do contrato de gestão de interesses alheios e do

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contrato de licença de exploração de direitos de propriedade intelectual. Noutro prisma, o regime das cláusulas
contratuais gerais terá de ser, em muitos casos, considerado, assim como o terá de ser o regime da responsabilidade
do produtor. Por último, também interesse de modo particular ao contrato de franquia o direito da concorrência,
designadamente a Lei da Defesa da Concorrência (DL nº 371/93, de 29 de Outubro).
8. Regime da cessação dos contratos comerciais
[NOTA: os problemas sob análise de seguida são comuns às várias espécies de contratos de distribuição – para o que
nos interessa, são comuns ao contrato de agência, ao contrato de concessão e ao contrato de concessão. Isto sem
prejuízo, note-se, da existência de particularidades a registar. Ainda assim, o apoio legal ao estudo que se segue é o
DL nº 178/86, relativo, como é já sabido, ao contrato de agência – em linha com o que foi dito supra Cap. I, 7.3.]
8.1 Formas de cessação
As regras que o art. 24º consagra a respeito do contrato de agência valem para qualquer contrato de distribuição –
assim, os contratos de distribuição podem cessar por:
1. Mútuo acordo;
2. Caducidade;
3. Denúncia;
4. Resolução.
A este respeito refira-se que pode assumir ainda especial relevância o regime das cláusulas contratuais gerais e dos
contratos de adesão, sobretudo em matéria de denúncia e de resolução do contrato – DL nº 446/85.
8.2 Mútuo acordo
A cessão do contrato por mútuo acordo depende da redação do acordo por escrito – art. 25º DL nº 446/85. Trata-se
de um acordo que deverá reunir, nos termos gerais, os requisitos de validade do negócio jurídico.
Este novo acordo pode surgir em qualquer contrato, por tempo determinado ou indeterminado. O mútuo acordo é
uma forma autónoma de fazer cessar o contrato, o que significa que, por acordo, pode fazer-se cessar um contrato
por tempo determinado antes do prazo inicialmente previsto ou um contrato por tempo indeterminado a qualquer
momento e com efeitos imediatos (sem necessidade de aviso prévio).
8.3 Duração do contrato
Antes da análise das demais formas de cessação do contrato de distribuição – caducidade, denúncia e resolução –
importa atentar na matéria da duração do contrato, na medida em que ela tem implicação nesses domínios.
Os contratos de distribuição podem assumir-se como:
 Contratos por tempo determinado: as partes estabeleceram no contrato o período de tempo durante o qual
vigorará o contrato » podem estar em causa:
 Contrato a termo certo: as partes determinam a data até à qual vigora o contrato (ex.: até 31 de
dezembro de 2018) ou o período de tempo certo durante o qual o contrato se mantém (ex.: duração
de 1 ano);
 Contrato a termo incerto: as partes vinculam-se em função de determinado objetivo ou escopo, o qual
é de verificação certa, vigorando o contrato até que esse objetivo ou escopo se cumpra (ex.: até
completo escoamento dos bens “em stock”).
 Contratos por tempo indeterminado: as partes não estabelecem um “prazo” para o contrato, o qual dura
indeterminadamente, até que uma ou ambas as partes decidam pôr-lhe termo.
Relembre-se que dispõe o art. 27º/2 DL nº 178/86 que, se após o decurso do prazo fixado as partes continuarem a
executar o contrato, então ele tem-se renovado por tempo indeterminado. Esta regra não valerá, como exposto,
quando as partes houverem estipulado a prorrogação do contrato por determinado período de tempo após o decurso
do prazo sem que se tenha verificado oposição de alguma das partes a essa prorrogação. Caso a cláusula de
prorrogação consagre a prorrogação por períodos sucessivos (quando acaba o prazo, o contrato prorroga-se por novo
prazo; após o término deste prazo, há nova prorrogação; e assim sucessivamente), a oposição de uma das partes à
prorrogação deverá respeitar os prazos de aviso prévio fixados a respeito da denúncia.
8.4 Caducidade
A caducidade do contrato traduz-se na cessação automática do contrato, sem necessidade de qualquer manifestação
de vontade das partes.
Logo que ocorra certo evento, o contrato cai por si – não se exige qualquer prazo de pré-aviso, nem o acordo entre os
contraentes, bastando que se verifique um dos eventos previstos na lei para que a cessação do contrato se dê
automática e imediatamente.

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Os eventos que, de modo especial, levam à caducidade do contrato de agência constam do art. 26º DL 178/86:
1. Decurso do prazo – nos contratos por tempo determinado;
2. Verificação da condição resolutiva; Elenco
3. Impossibilidade da condição suspensiva; exemplificativo !
4. Morte do agente (ou concessionário ou franquiado) ou extinção da pessoa coletiva.
Uma outra situação que gera caducidade do contrato é a declaração de falência do agente ou do principal (ou
concedente ou concessionário; ou franquiado ou franquiador).
8.5 Denúncia
O conceito de “denúncia” suscita controvérsia na doutrina, bem como na lei. Para o que aqui importa, entende-se por
denúncia a forma típica de fazer cessar relações duradouras por tempo indeterminado. Qualquer das partes, livre e
discricionariamente, pode fazer cessar o contrato, através de uma declaração unilateral e recetícia dirigida à outra
parte – é um direito potestativo de que gozam as partes do contrato. Esta faculdade restringe-se aos contratos por
tempo indeterminado e constitui uma forma de obviar a vínculos perpétuos, o que representaria uma limitação à
liberdade das pessoas e seria contrário à ordem pública.
Quanto aos requisitos a observar, a denúncia exerce-se livremente e sem que o contraente tenha que apresentar
qualquer motivo ou justificação. Ainda assim, deve ser comunicada à outra parte com determinada antecedência. No
caso da agência, esse pré-aviso deve revestir forma escrita (art. 28º/1 DL nº 178/86). Na verdade, há que obstar a que,
sem motivos sérios, qualquer das partes faça cessar bruscamente a relação contratual, pelo que essa decisão deverá
ser comunicada ao outro contraente com determinada antecedência mínima.
Os prazos de pré-aviso a observar pelas partes constam do art. 28º DL nº 178/86:
a) Contratos de duração inferior a 1 ano: 1 mês. As partes podem fixar prazos
b) Contratos de duração superior a 1 ano (= já se iniciou o 2 º ano): 2 meses. superiores a estes – os prazos
c) Contratos de duração superior a 3 anos (= já decorreu todo o 2º ano): 3 meses. legais são limites mínimos !
De todo o modo, o respeito do prazo legal (ou do prazo convencionado) não obsta a que o outro contraente, de acordo
com os princípios gerais, possa socorrer-se do instituto do abuso do direito (art. 334º CC).
Uma questão importante a este respeito é a de saber se estes prazos deverão ser aplicáveis, genericamente, aos
contratos de concessão e de franquia. Pinto Monteiro entende que a resposta terá de ir no sentido negativo. Isto
porque os contratos de concessão e de franquia, por manifestarem um maior grau de integração ou aprofundamento
das relações entre as partes, implicam um investimento, em regra, mais avultado. Assim, se os investimentos do
concessionário e do franquiado são de maior vulto do que aquele que é efetuado, em regra, pelo agente, então
também deverão ser superiores os prazos de pré-aviso. Em face do silêncio da lei, haverá que apurar, em cada caso,
qual a antecedência razoável para que a denúncia possa ser exercida licitamente. Entre as circunstâncias a ter em
atenção contam-se: (1) os investimentos que o distribuidor haja feito (sobretudo, aqueles consentidos ou incentivados
pela contraparte) e (2) o tempo necessário para a amortização desses investimentos.
Mediante o pré-aviso, o contraente que denuncia o contrato comunica à outra parte que o contrato cessará após
decorrido o prazo de pré-aviso. Se só após o decurso do prazo cessará o contrato, então o contrato mantém-se vigente
até lá. Isto implica, por um lado, que as obrigações das partes se mantêm, e, por outro, que é o tempo total de vigência
(incluindo o período pós-aviso) aquele que será considerado para eventuais efeitos indemnizatórios. Isto não obsta,
todavia, que, perante a denúncia, as partes acordem na cessação imediata. Essa cessação imediata terá ainda lugar
em caso de morte do agente.
Chegados a este ponto, perguntar-se-á qual a consequência para o caso de não ser respeitado o prazo de pré-aviso
por quem denuncia o contrato. Numa situação destas – não é efetuado qualquer pré-aviso, ou o pré-aviso tem lugar
mas fixa um prazo inferior ao devido – a denúncia é ilícita, incorrendo o contraente faltoso na obrigação de indemnizar
o outro pelos danos causados – art. 29º/1 DL nº 178/86. Esta é uma indemnização por incumprimento contratual, a
calcular nos termos gerais – incluem-se aqui tanto os danos emergentes como os lucros cessantes. Sublinhe-se,
contudo, que os danos aqui a considerar dizem-se respeito ao desrespeito pelo prazo de aviso prévio: se o contraente
que denúncia o contrato não respeita o prazo de pré-aviso, então durante esse período que deveria mediar entre o
aviso e a cessação do contrato há incumprimento contratual. Não estão aqui em causa danos devidos à cessação do
contrato em si mesma, já que a denúncia é um direito potestativo de que gozam os contraentes. A este respeito, o
art. 29º DL nº 178/86 prevê que o agente (mas já não o principal) possa pedir uma indemnização cujo calculado é
realizado a partir da remuneração média mensal auferida.

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Uma outra questão diz respeito aos casos em que o contrato é denunciado sem que haja vigorado durante um período
de tempo minimamente razoável; ou em que o contrato é denunciado mas o denunciante, pelo seu comportamento
anterior, permitiu que a contraparte confiasse na duração do contrato por tempo superior, tendo esta realizado
investimentos nessa perspetiva. A obrigação de indemnizar nestes casos parece-nos ser a solução que decorre do
princípio da boa fé.
Uma última nota a referir é a de que a denúncia pode ser efetuada sob condição de a outra parte não aceitar uma
modificação proposta: basicamente o contraente coloca em alternativa – ou o co-contraente aceita modificar o
contrato, ou então terá lugar a denúncia. Fala-se aqui em “denúncia-modificação”.
8.6 Resolução
Ao invés da denúncia, a resolução necessita de ser motivada, isto é, carece de fundamento. Verificado um dos
respetivos fundamentos, a resolução opera tanto nos contratos por tempo indeterminado como nos restantes. Esta
forma de cessação opera imediatamente, sem necessidade de aviso prévio.
O DL nº 178/86 consagra dois fundamentos para a resolução, a saber (art. 30º):
1. Não cumprimento, por qualquer das partes das respetivas obrigações, quando pela sua gravidade ou
reiteração não seja exigível a subsistência do vínculo contratual.
Não basta um qualquer (1) incumprimento, tout court:
A lei exige que o incumprimento verificado determine a inexigência da subsistência do vínculo contratual,
podendo essa inexigência derivar (2a) da gravidade do incumprimento ou (2b) da sua reiteração.
2. Impossibilidade ou prejuízo grave da/para a realização do fim contratual, em termos de não ser exigível que
o contrato se mantenha até expirar o prazo convencionado ou imposto em caso de denúncia.
Além da (1) impossibilidade de realização do fim contratual, é necessário que, em virtude dessa
circunstância, (2) não seja exigível a subsistência do contrato até ao término do prazo (no caso de contratos
por tempo determinado) ou até haver decorrido o prazo do pré-aviso de denúncia (para contratos por
tempo indeterminado).
Quanto às obrigações das partes, refira-se que, além das obrigações convencionadas pelas partes, existem também
obrigações decorrentes diretamente da lei, cujo incumprimento também releva para efeitos da alínea a) do art. 30º
DL nº 178/86. Destaque-se, neste âmbito, o princípio geral que ressalta das arts. 6º e 12º DL nº 178/86, o qual será
aplicável a todos os contratos de distribuição: o princípio da boa fé contratual – ambas as partes devem atuar com
boa fé, em ordem à realização do fim contratual, recaindo sobre eles a obrigação de zelar pelos interesses da outra
parte. Este princípio permite responder às questão de saber se a resolução do contrato fica impedida quando o
distribuidor consegue o volume mínimo de negócios estipulado. De facto, parece que tal circunstância não terá de
impedir, necessariamente, a resolução do contrato pela outra parte, porquanto poderá ter-se verificado um outro
comportamento contrário aos interesses da contraparte. Na situação inversa, logicamente poderá haver lugar à
resolução do contrato com fundamento na não obtenção do volume mínimo de negócios estipulado.
No que diz respeito à impossibilidade da realização do fim contratual, sublinhe-se, de novo, a necessidade de se tornar
inexigível a subsistência do contrato até ao término dos prazos hipoteticamente aplicáveis. Isto releva na medida em
que pode suceder haver justificação para a resolução mas ela não poder operar porque a justificação verificada não
desonera o contraente de comunicar a cessão do contrato com determinada antecedência (portanto, não implica que
não tenha de ser observado o prazo de pré-aviso).
Os fundamentos expostos para a resolução do contrato de agência são também aplicáveis aos contratos de concessão
e franquia, entendendo-se que o art. 30º DL nº 178/86 consagra princípios gerais aplicáveis a qualquer contrato
duradouro.
Uma vez que a resolução opera extrajudicialmente mas carece de ser motivada, pergunta-se: e se uma das partes
resolve o contrato e vem a apurar-se, por decisão judicial posterior, a falta de fundamento dessa resolução? Duas
soluções se perfilam neste âmbito:
1. Manutenção do contrato + indemnização pelos danos causados pela suspensão do contrato;
2. Extinção do contrato + indemnização por incumprimento contratual.
A resposta não se apresenta evidente, mas parece-nos ser de entender que o contrato se extingue, compreendendo-
se a falta de fundamento da resolução como situação de não cumprimento, com a consequente indemnização. Para
este efeito, será de equiparar a resolução sem fundamento à denúncia sem observância do pré-aviso. Embora seja
este um problema que suscite controvérsia, parece-nos ser esta a solução implicada pelo art. 29º/1 DL nº 178786 a
respeito da denúncia.

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Maria Paixão Direito Comercial I – 2017/2018
Em relação à agência, a lei consagra, no art. 31º DL nº 178/86, que a resolução deve ser feita através de declaração
escrita e no prazo de 1 mês após o conhecimento dos factos que a justificam.
8.7 Indemnização de clientela do agente
Sem prejuízo de qualquer outra indemnização a que haja lugar, consagra o art. 33º DL nº 178/86, a favor do agente,
uma “indemnização de clientela”.
“compensação a favor do agente, conferida após a cessação do contrato, pelos benefícios que o principal
continue a auferir com a clientela angariada ou desenvolvida pelo agente”.
Ela é devida seja qual for a forma por que se põe termo ao contrato ou o tempo porque este foi celebrado e acresce a
qualquer outra indemnização que haja lugar.
Pese embora o seu nome, não se trata de uma verdadeira indemnização. Com efeito, a compensação referida não
depende da prova de danos sofridos pelo agente. Ao invés, o que conta são os benefícios proporcionados pelo agente
à outra parte (o que não implica, necessariamente, um prejuízo ou dano para este). Não se trata, pois, em rigor, de
ressarcir o agente de quaisquer danos, mas antes de o compensar pelos benefícios de que a outra parte continue a
auferir e que se devam à atividade do seu ex-agente e que não mais aproveitarão também ao (ex-)agente. Mesmo que
o agente não sofra danos, haverá um enriquecimento do principal que legitima a compensação.
Atentem-se agora nos requisitos da indemnização de clientela (art. 33º DL nº 178/86):
1. Requisito inicial: cessação do contrato (não basta a modificação);
2. Requisitos positivos:
a) Agente angariou novos clientes para a outra parte ou aumentou substancialmente o volume de
negócios com a clientela já existente;
b) Clientela angariada pelo agente constitui, em si mesma, uma chance para o principal;
c) Inexistência de um acordo ou convenção através do qual as partes fixaram uma outra compensação.
3. Requisitos negativos:
a) Não cessação do contrato por razões imputáveis ao agente;
b) Não cessão da posição contratual do agente a outrem, com acordo da outra parte.
Um dúvida que poderia suscitar-se, neste domínio, é a de saber se também será devida esta compensação nos casos
em que o nível de clientela apenas se mantém, mas devido a um trabalho altamente meritório do agente, numa
conjuntura muito desfavorável. Ora, entende-se que, excecionalmente, deverá admitir-se aqui a indemnização de
clientela, sobretudo porque parece ser essa a resposta indicada pela ratio da norma. Noutro prisma, ficou referido
como requisito positivo a circunstância de a clientela angariada representar para o agente uma chance. Assim, não
haverá direito a indemnização de clientela se, por exemplo, o principal mudar de ramo de atividade ou deixar em
absoluto de poder tirar proveito da clientela angariada. Evidentemente, havendo um comportamento abusivo do
principal, haverá lugar a responsabilidade contratual (mas não à indemnização de clientela). Nesta linha,
evidentemente também não haverá lugar à indemnização se os clientes continuarem com o agente ou se transferirem
para outra empresa.
Neste domínio, importa distinguir os tipos de clientes que podem ser angariados:
Clientes esporádicos/ocasionais VS Clientes habituais/fixos
Não se ligam à empresa Estabelecem uma relação duradoura com a empresa
Apenas estes relevam para efeitos de indemnização de
clientela !
Relativamente às circunstâncias referidas no nº 3 do art. 33º DL nº 178/86, que excluem a indemnização (requisitos
negativos), não é pacífico na doutrina o que se deve entender por fatores “imputáveis ao agente”. Aliás, Pinto
Monteiro defende, a este respeito, que esta exclusão não deveria, de iure condendo, ser admitida, porquanto a
indemnização de clientela não tem caráter sancionatório. Segundo a perspetiva do autor, eventuais prejuízos sofridos
pelo principal, em virtude de factos imputáveis ao agente, seriam ressarcidos por meio da indemnização contratual; o
que em nada afetaria a indemnização de clientela. Ora, o texto inicial do diploma em apreço nada referia a este
respeito, consagrando o legislador uma “lacuna voluntária” por entender que a questão era ainda demasiado
controversa, pelo que seria melhor aguardar pela solução predominante no trabalho conjunto da doutrina e da
jurisprudência. Não obstante, a alteração de 1993 veio tomar posição sobre a questão, em obediência à Diretiva da
União Europeia que também o fez.
Uma matéria que assume especial relevância no domínio da indemnização de clientela é a que se refere à sua natureza
jurídica. E esta questão assume especial relevo porquanto em torno dela se verifica acesa controvérsia. Um primeiro

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Maria Paixão Direito Comercial I – 2017/2018
ponto a ressalvar é do que deve rejeitar-se a caraterização da indemnização de clientela como “medida de índole
social”, bem como a consideração da sua natureza como natureza indemnizatória – este é hoje o ponto de partida
para a maioria da doutrina. A partir daqui acentuam-se as divergências:
a) A indemnização de clientela é uma manifestação do instituto do enriquecimento sem causa;
b) A indemnização de clientela é uma retribuição suplementar devida ao agente pelo trabalho prestado;
c) A indemnização de clientela é uma retribuição devida em função de considerações de equidade.
A indemnização de clientela surge num campo em que, por um lado, há um benefício para o principal, e, por outro,
verifica-se uma perda para o agente (não necessariamente um dano) – o agente, pelo seu trabalho, angariou clientes
novos (ou desenvolveu os negócios com clientes antigos) e dessa angariação o principal retirará um benefício que se
prolongará no tempo (não se limitando esse benefício ao período de tempo em que o contrato de agência se mantém);
consequentemente, há um benefício que o principal irá auferir no futuro que o agente já não auferirá, em virtude da
cessão do contrato. É isto que resulta dos requisitos exigidos pela lei para a indemnização de clientela. Assim sendo,
poder-se-á dizer que essa compensação visa repor ou manter um certo equilíbrio entre as prestações: à prestação de
angariação de clientela realizada pelo agente haverá que corresponder uma prestação de retribuição a realizar pelo
principal. As comissões auferidas pelo agente ao longo da vigência do contrato dizem respeito ao trabalho “passado”
e, por isso, apenas constituem retribuição de uma parcela do trabalho do agente (pois também no futuro esse trabalho
terá repercussões). Existirá aqui, portanto, um elemento de retribuição “diferida”, com o intuito de repor o sinalagma
que subjaz ao contrato de agência. De tudo isto resulta ser esta uma figura com natureza jurídica singular, isto é, sui
generis, o que implica que nenhuma das respostas tradicionais pareça adequar-se.
A perspetiva que mais tentação há para perfilhar é a que vê na indemnização de clientela uma manifestação do
enriquecimento sem causa. Todavia, essa conceção deve ser de afastar, já que:
 O benefício que está aqui em jogo não é, em rigor, um enriquecimento » trata-se de um benefício meramente
potencial (ex.: o principal pode não retirar qualquer benefício do aumento de clientela em virtude da sua falta
de habilidade ou mestria, mas teve efetivamente a chance de o conseguir).
 O cálculo da indemnização tem em atenção a equidade (art. 34º DL nº 178/86) e esta não é atendida no cálculo
da indemnização devida por enriquecimento sem justa causa.
 A obrigação de pagar a indemnização de clientela tem como limite a culpa do agente (art. 33º/3 DL nº 178/86),
e a culpa não releva para efeitos de indemnização por enriquecimento sem causa.
 O “enriquecimento” eventual do principal sempre se poderá dizer “com causa”: o contrato de agência.
Em suma, acolhemos uma posição que vê na indemnização de clientela uma “retribuição diferida”, a qual não deixa
de se associar a um elemento de proteção social. Isto sem prejuízo de se reconhecer que com a consagração do
requisito negativo respeitante a factos imputáveis ao agente esta tese fica enfraquecida, saindo reforçada a tese da
natureza mista da indemnização de clientela (natureza retributiva e de equidade).
8.8 Indemnização de clientela do concessionário e do franquiado
A indemnização de clientela é também de atribuir em situações que não se enquadrem perfeitamente nos limites da
agência, como é o caso de uma união ou coligação de contratos (contrato de agência coligado com outros,
designadamente com contratos de concessão) ou de um contrato misto. Além disso, tem-se entendido que a
indemnização sob análise poderá ainda beneficiar outros sujeitos, como os concessionários e os franquiados, sempre
que a analogia se verifique. Com efeito, frequentemente, os contratos de concessão e franquia envolvem um conjunto
de tarefas similares às da agência, estando os sujeitos unidos por relações de estabilidade e colaboração e
comungando de um objetivo comum. A este entendimento não obsta o facto de o concessionário e o franquiado
atuarem por conta e em nome próprio. Isto porque também nestes contratos as atividades realizadas (ainda que em
nome e por conta própria) estão integradas numa relação de distribuição; e, além disso, o franquiador e o concedente
acabam por ficar ligados aos terceiros que lidam diretamente com o franquiador e com o concessionário.
Em suma, a aplicação da indemnização de clientela ao concessionário e ao franquiado terá lugar sempre que se
verifiquem os seguintes aspetos:
1. Desempenho de funções, cumprimento de tarefas ou prestação de serviços semelhantes aos de um agente.
A atividade do franquiado e o concessionário surge como fator de atração de clientela?
2. Adequação da norma convocada ao contrato de concessão e de franquia.
A ratio legis dos arts. 33º e 34º DL nº 178/86 permite a aplicação analógica desses preceitos aos contratos
de concessão e de franquia?

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Há dois aspetos derivados da ratio legis do art. 33º DL nº 178/86 a ter em conta :
 Angariação da clientela pelo agente ou aumento substancial do volume de negócios em virtude da
atuação do agente;
 Previsível benefício do principal advindo dessa angariação ou desse aumento.
[É quando a este segundo aspeto que as dúvidas se adensam: nos contratos de concessão e franquia
os clientes celebram os negócios com o concessionário e com o franquiado, e já não diretamente com
o concedente ou com o franquiador. Entende-se que este requisito estará respeitado sempre que o
concedente ou o franquiador tenha acesso efetivo à clientela angariada pelo distribuidor, sem que
isso tenha de resultar de uma qualquer obrigação prevista no contrato (ainda que, em regra, resulte
diretamente do contrato). Há aqui, então, uma continuidade de clientela.]

Capítulo II – Dos comerciantes


1. Introdução
Ficou já demonstrado que os sujeitos dos atos de comércio podem ser comerciantes e não-comerciantes. Porém, os
autores determinantes no direito mercantil são os comerciantes.
A determinação dos sujeitos que são comerciantes tem relevo prático na medida em que lhes é aplicável um estatuto
próprio, que se traduz principalmente no seguinte:
 Os atos dos comerciantes são considerados subjetivamente comerciais (2ª parte do art. 2º CCom.);
 As dívidas comerciais dos comerciantes casados presumem-se contraídas no exercício dos respetivos
comércios e tais dívidas são, em princípio da responsabilidade dos comerciantes e seus cônjuges (art. 15º
CCom. e art. 1691º/1/d) CC);
 A prova de certos factos em que intervêm comerciantes é facilitada (arts. 396º e 400º CCom.);
 Prazo prescricional específico, aplicável a determinados créditos (art. 317º/b) CC);
 Os comerciantes estão obrigados a adotar uma firma, a ter escrituração mercantil, a fazer inscrever no registo
predial os atos a ele sujeitos, a dar balanço e a prestar contas (art. 18º CCom.).
2. Sujeitos qualificáveis como comerciantes
2.1 Pessoas singulares
Nos termos do nº 1 do art. 13º CCom. são comerciantes:
“as pessoas que, tendo capacidade para praticar atos de comércio, fazem deste profissão”.
Neste domínio, discute-se se a capacidade exigida na lei é a capacidade jurídica (= aptidão para ser sujeito de relações
jurídicas) ou a capacidade de exercício de direitos (= aptidão para atuar juridicamente por ato próprio). Entende a
doutrina tradicional e dominante referir-se a norma à capacidade de exercício. Aliás, só assim o art. 13º CCom. está
em consonância com o art. 7º CCom., o qual exige a capacidade de exercício para a prática de atos comerciais. Sendo
assim, os incapazes não poderiam, prima facie, ser comerciantes. No entanto, não é assim: há normas legais que
apontam em sentido diverso, pelo que o requisito da capacidade de exercício deve ser compreendido com algumas
restrições. Vejam-se algumas dessas normas:
 Arts. 1889º, 1938º/1/a) e f) e 139º CC: os pais ou tutores (desde que autorizados pelo MP) podem adquirir
estabelecimento comercial ou continuar a exploração de estabelecimento que o menor ou interdito haja
recebido por sucessão ou doação;
 Art. 153º CC: o inabilitado, assistido por curador, pode continuar a exploração de estabelecimento que vinha
explorando, bem como pode adquirir nova empresa e explorá-la;
 Art. 156º CC: o curador (desde que autorizado pelo MP) pode adquirir estabelecimento comercial ou continuar
a exploração de estabelecimento que o inabilitado haja recebido por sucessão ou doação.
Ora, os incapazes que exerçam o comércio através de representantes legais devidamente autorizados pelo Ministério
Público dever ser considerados comerciantes. Já não serão comerciantes os menores, interditos e inabilitados que:
 Exerçam o comércio por si próprios (sem intervenção de representantes legais);
 Exerçam comércios através de pessoas que não são os seus representantes legais;
 Exerçam o comércio através de representantes legais mas sem autorização do Ministério Público.
Para serem comerciantes, as pessoas com capacidade para praticar atos comerciais têm de fazer do comércio
profissão. A correta compreensão deste segundo requisito da noção de “comerciante” requer a definição precisa dos
dois conceitos fundamentais que a compõem – “profissão” e “comércio”. Quanto à primeira, há consenso quanto à
sua identificação com a noção comum nos dicionários: a profissão é o exercício habitual de atividade económica como

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meio de vida. Já quanto ao conceito de “comércio” as certezas não são tantas. Uma primeira nota nesta matéria é a
de que, como foi já referido [vide supra: Introdução, 1.2], comércio em sentido jurídico vai para lá do comércio em
sentido económico. Este comércio (em sentido jurídico) traduzir-se-á, em regra, na prática de atos de comércio
propriamente ditos. Todavia, não é a prática, ainda que habitual ou sistemática, de quaisquer atos de comércio que
faz do respetivo sujeito comerciante. De facto, quanto a este ponto – de saber se a prática de atos comerciais implica
a qualificação da pessoa como comerciante – importa assentar alguns pontos-chave:
 Estão fora de causa para a classificação de um sujeito como comerciante os atos de comércio subjetivos » o
conceito de “atos de comércio subjetivos” pressupõem a qualidade de comerciante, e não o oposto;
 Não podem ser considerados para estes efeitos os atos formalmente comerciais » estão em causa atos que
podem ou não ser utilizados para a realização de operações mercantis pelo que a sua prática, mesmo que
habitual, não pode denotar o exercício de uma profissão (ex.: recorrer sistematicamente a letras de câmbio);
 Os atos acessórios só em determinados casos podem fundar a classificação de um sujeito como comerciante
(ex.: pessoa que explora um armazém onde são depositadas mercadorias destinadas a ser revendidas pelos
depositantes – art. 403º CCom.) [note-se, porém, que a doutrina maioritária vai no sentido de em caso algum
os atos acessórios puderem ser mobilizados para a qualificação de comerciantes];
 Nem sempre a prática de atos de comércio objetivos, substantivos e autónomos possibilita a qualificação da
pessoa como comerciante » um sujeito pode praticar um tal ato sem que esteja com isso a exercer a sua
profissão (exs.: conta corrente, compras e participações sociais não destinadas à revenda, etc.).
O comerciante é a pessoa que pratica atos de comércio com profissionalidade, não se exigindo que seja a atividade
mercantil a única profissão exercida pelo sujeito, nem que ela seja exercida de modo contínuo ou ininterrupto. Já será
exigível que a atividade seja exercida em nome próprio. Em suma, são 4 os requisitos que se impõem:
1. Capacidade de exercício; 3. Profissionalidade;
2. Prática de atos de comércio objetivos; 4. Atuação em nome e interesse próprios.
Chegados a este ponto, pergunta-se: é correto dizer-se que os comerciantes são as pessoas que exploram empresas
comerciais? Ainda que tendencialmente assim o seja, não podemos reputar esta afirmação de completamente correta.
É verdade que a larga maioria dos comerciantes explora empresas comerciais, mas não todos. Não detêm, em
princípio, uma empresa, por exemplo, os vendedores ambulantes, os especuladores, os agentes, etc.
Uma outra questão crucial é a de saber a partir de que momento adquirem as pessoas singulares a qualidade de
comerciantes. Ora, entende-se que o início da qualidade de comerciante poderá depender de um só ato ou de vários.
Em tese geral, diremos que tal início de determina pela prática do ato ou atos reveladores do propósito e possibilidade
do sujeito se dedicar ao exercício habitual de uma atividade comercial. Concretamente, quanto aos comerciantes-
empresários, tem-se entendido que a pessoa passa a ser comerciante logo que abre um estabelecimento pronto a
funcionar (vide: art. 95º CCom.). Neste domínio Coutinho de Abreu vai mais longe, na senda da doutrina italiana
(minoritária, porém) e da legislação alemã, considerando que o sujeito deve ser considerado como comerciante a
partir do momento em que começa a praticar atos preparatórios da empresa. Veja-se o seguinte exemplo:
1) compra de máquinhas e 3) exercício habitual da atividade
contratação de trabalhadores comercial

2) abertura do estabelecimento

De entre estes três momentos, uma tendência natural ab initio seria a de classificar o sujeito como comerciante apenas
naquele terceiro momento (3), em que já se pode afirmar que ele pratica profissionalmente atos de comércio.
Contudo, é relativamente consensual o entendimento segundo o qual a classificação do sujeito como comerciante
deve ser contemporânea do primeiro ato ou atos que revele(m) o propósito de ele se dedicar ao exercício habitual de
uma atividade comercial – no caso, estaríamos a falar no segundo momento (2), pois com a abertura do estabelecido
torna-se indubitável o intuito de desenvolver uma atividade comercial (apesar de não haver ainda a prática de atos
comerciais de forma profissional). A posição propugnada por Coutinho de Abreu vai um pouco mais longe: bastará,
para a qualificação do sujeito como comerciante, a verificação de atos preparatórios da empresa (nos casos em que o
comerciante é/será empresário) – no exemplo seria o primeiro momento (1) o suficiente para tal qualificação, já que
os atos praticados demonstram fazer parte de um processo de preparação da empresa.
2.2 Pessoas coletivas
a) Sociedades comerciais

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O art. 13º CCom. prescreve expressamente, no seu nº 2, que as sociedades comerciais são comerciantes. As sociedades
comerciais adquirem o estatuto de comerciantes no momento em que adquirem personalidade jurídica (art. 5º CSC),
não sendo necessária a prática de quaisquer atos de comércio compreendidos no seu objeto.
O nº 4 do art. 1º CSC permite que as sociedades que tenham por objeto a prática de atos não comerciais adotem um
dos tipos ou formas das sociedades comerciais, sendo-lhes aplicável o regime do CSC. Evidentemente, as sociedades
civis sob forma comercial não são sociedades comerciais, logo não são classificadas como comerciantes.
b) Outras pessoas coletivas
Além das sociedades comerciais outras pessoas coletivas podem ser comerciantes. É o caso das:
 Entidades públicas empresariais (EPE);
 Agrupamentos complementares de empresas (ACE);
 Agrupamentos europeus de interesse económico (AEIE);
 Cooperativas (quando tenham objeto comercial).
Uma primeira questão que se coloca é a seguinte: não sendo as EPE, os ACE, os AEIE e as cooperativas sociedades
(comerciais) como se justifica a sua inserção no art. 12º CCom.? De facto, o nº 1 do referido artigo utiliza a expressão
“pessoas” e o nº 2 o conceito de “sociedades comerciais”. Ora, é certo que neste segundo grupo não caberão as
entidades mencionadas. Resta, portanto, inseri-las no nº 1. Alguns autores defendem que aquele nº 1 do art. 13º
CCom. ao utilizar a palavra “pessoas” estaria a referir-se exclusivamente a pessoas singulares ou físicas. Todavia, em
rigor, as “pessoas”, em sentido jurídico, tanto podem ser singulares como coletivas. Ademais, a própria lei optou por
não adjetivar o substantivo (pessoas singulares), consagrando um conceito mais amplo no qual cabem pessoas
singulares e coletivas (pessoas). Uma outra via de exclusão das pessoas coletivas (não sociedades comerciais) como
comerciantes seria a ancorada na referência da lei ao exercício da atividade comercial como “profissão”. Vejam-se os
argumentos convocados a este respeito e a forma como os refutamos:
Posição contra a admissibilidade de pessoas coletivas Posição a favor da admissibilidade de pessoas coletivas
como comerciantes como comerciantes
 Apenas as pessoas físicas exercem profissões (na  Se caraterizarmos a “profissão” como a atividade
linguagem corrente e nas leis aquele conceito está exercida por pessoas jurídicas, temos de incluir pessoas
ligado às pessoas humanas); singulares e coletivas;
 Ao exercício de uma profissão está necessariamente  Uma interpretação objetivo-atualista da norma
ligado um intuito lucrativo (além da prática habitual (atendendo às novas realidades económico-
ou regular de atos de comércio). empresariais) afasta o intuito lucrativo como nota
essencial do conceito de “profissão”.
Em suma, não pode ab initio negar-se a legitimidade para serem comerciantes às pessoas coletivas que não sejam
sociedades comerciais. O que relevará é, isso sim, a sua capacidade para praticarem atos de comércio e a circunstância
de o seu objeto ser efetivamente o exercício de atividades mercantis.
Ora, as EPE têm, efetivamente, capacidade para praticar atos de comércio, sempre que o seu objeto seja jurídico-
mercantil – isso mesmo resulta do art. 58º/2 do Regime do Setor Público Empresarial.
Os ACE e os AEIE serão também comerciantes quando tenham objeto comercial. Tal asserção, que resultaria da
interpretação do nº 1 do art. 13º CCom. tal como a expusemos, é hoje apoiada pelo art. 3º/2 do DL nº 148/90.
No que diz respeito às cooperativas, o art. 2º do Código Cooperativo dispõe expressamente a falta de intuito lucrativo
destas entidades. Não obstante, elas serão consideradas como comerciantes sempre que, repita-se, tenham objeto
comercial. Se dúvidas houvessem acerca deste ponto elas foram afastadas através daquele art. 3º/2 do DL nº 148/90,
já que também os AEIE e os ACE não têm intuito lucrativo.
Refira-se, a título de nota, que deve entender-se que todas estas pessoas coletivas adquirem a qualidade de
comerciantes pelo menos a partir do momento em que passam a gozar de personalidade jurídica.
3. Sujeitos não qualificáveis como comerciantes
Por inteleção inversa, não são comerciantes todos aqueles que não exercem atividades mercantis. Entram aqui todas
as atividades não qualificadas legalmente como mercantis, não análogas à atividade comercial e aquelas que a lei
exclui expressamente do campo da comercialidade.
Atente-se em alguns casos especiais:
 Atividade agrícola: convoca-se aqui um conceito amplo de “agricultura”, no qual se incluem a atividade
agrícola tradicional, a silvicultura, a pecuária e ainda a cultura de plantas e a criação de animais sem terra ou
em que esta apresenta um caráter acessório. A exclusão desta atividade é operada diretamente pela lei –
vejam-se os arts. 230º parágrafo 2 nºs 2 e 1 1ª parte, 464º/2 e 4 CCom.

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 Artesanato: são “artesãos” os produtores qualificados que, podendo embora servir-se de máquinas, utilizam
predominantemente o seu trabalho manual e, como instrumentos, ferramentas. A exclusão desta atividade é
operada diretamente pela lei – arts. 230º parágrafo 2 nº 1 2ª parte e 464º/3 CCom.
 Profissões liberais: entende-se por “profissionais liberais” as pessoas singulares que exercem de modo habitual
e autónomo atividades primordialmente intelectuais, suscetíveis de regulamentação e controlo próprios, bem
como as pessoas coletivas cujo objeto consiste numa atividade profissional-liberal (ou seja, uma atividade
predominantemente intelectual). A exclusão desta atividade resulta, desde logo, do caráter não mercantil dos
atos tipicamente realizados; ademais, também diversas normas de diplomas avulsos confirmam o que foi dito,
inclusivamente qualificando as sociedades que exerçam este tipo de funções como “sociedades civis”.
 Escultura, pintura, música, ciência, literatura, etc.: os trabalhadores autónomos que exercem as atividades
referidas não são comerciantes na medida em que tais atividades não podem ser qualificadas como mercantis
– tal asserção é ainda corroborada pelo disposto no art. 230º parágrafo 2 nº 3 CCom.
 Atividade das pessoas coletivas públicas: o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais podem praticar
atos de comércio, inclusivamente de forma habitual e sistemática, mas não adquirem por isso a qualidade de
comerciantes – esta exclusão é realizada diretamente pela lei, no art. 17º CCom.
NOTA: este preceito deve ainda ser aplicado a outras pessoas coletivas públicas de tipo institucional e de tipo
associativo, com exceção das EPE.
 Atividades de associações e fundações de direito privado com fim desinteressado ou altruístico: nos termos do
art. 17º CCom. o que foi referido quanto ao Estado é também aplicável às misericórdias, asilos e institutos de
beneficência e de caridade.
4. Sujeitos legalmente inibidos da profissão de comércio
4.1 Entidades coletivas
Dispõe, numa formulação algo obscura, o art. 14º CCom.:
“É proibida a profissão do comércio: /1º Às associações ou corporações que não tenham por objeto interesses
materiais”
O que entender, então, do disposto nesta norma? Isto porque a norma, pela forma como foi redigida, peca por ser
obscura. Com efeito, não poderá pretender-se que as referidas associações fiquem impossibilitadas de praticar atos
de comércio, inclusivamente de forma sistemática e habitual. O preceito legal dispõe, sublinhe-se, que é “proibida a
profissão do comércio”. Consequentemente, o que aqui está em causa não é a proibição da prática de atos comerciais,
mas antes a proibição da sua prática a título profissional. Por outras palavras: não se impede que tais associações ou
corporações pratiquem atos de comércio, apenas se afasta a sua qualificação como “comerciantes”. Uma associação
ou corporação que não tenha por objeto interesses comerciais sempre poderá praticar atos de comércio objetivos,
mas, ainda que os pratique reiteradamente, não poderá ser considerada como “comerciante”. Daqui resulta,
obviamente, que tais associações ou corporações nunca poderão praticar atos de comércio subjetivo, porquanto este
tipo de atos tem como pressuposto a qualidade de comerciante do seu autor. O único limite que se coloca, nesta sede,
à prática de atos comerciais objetivos por tais associações ou corporações é aquele que resulta, de um modo geral, do
art. 160º CC: a capacidade jurídica das pessoas coletivas “abrange [e abrange apenas] todos os direitos e obrigações
necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins” – aplica-se aqui o art. 17º, parágrafo único CCom.
Vejam-se agora que categorias de associações estão aqui incluídas:
 Associações de fim desinteressado ou altruístico;
 Associações de fim interessado ou egoístico mas ideal (ex.: associação promotora de cultura teatral que gere
um cine-teatro);
 Associações de fim interessado ou egoístico de cariz económico não lucrativo (exs.: associações mutualistas,
associações sindicais, etc.).
Têm por objeto interesses materiais
Quando exercem atividades comerciais podem considerar-se “comerciantes”?
A resposta deverá ir no sentido negativo, porquanto estas associações, ainda que praticando uma atividade
comercial, não fazem do comércio profissão; ele é encarado unicamente como acessório ou instrumental
das atividades principais (de caráter não mercantil).
Neste contexto, importa colocar uma questão: se uma associação dos tipos referidos, desconsiderando a lei ou os
respetivos estatutos/ato constitutivo, passar a dedicar-se exclusivamente ao exercício de uma atividade mercantil?
No fundo, estão em causa hipóteses em que uma pessoa coletiva que não tinha, no momento da sua criação, como

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objeto interesses materiais, passa a praticar com profissionalidade atos de comércio objetivos. Entende-se que os atos
de comércio assim praticados, por caírem fora da capacidade jurídica da associação (art. 160º CC), serão nulos, nos
termos dos arts. 294º e 295º CC. Ora, se os atos praticados são nulos, então não poderão sustentar a qualificação do
seu autor como “comerciante”. Reitere-se, então, que, em caso algum, poderá a prática sistemática de atos nulos
fundamentar a caraterização de uma pessoa (singular ou coletiva) como comerciante.
4.2 Pessoas singulares
4.2.1 Alguns casos de incompatibilidades
O nº 2 do art. 14º CCom. dispõe ainda que é proibida a profissão do comércio “aos que por lei ou disposições especiais
não possam comerciar”. O que está aqui em causa são as denominadas “incompatibilidades”.
= impossibilidade legal do exercício do comércio por sujeito que desempenhe certas funções ou que se
encontre em determinada situação jurídica.
As incompatibilidades aqui em causa são várias e podem agrupar-se em dois grandes grupos:
Incompatibilidades
De direito público De direito privado
 Magistrados judiciais » não podem desempenhar  Gerentes » não podem comerciar em nome próprio
qualquer outra função pública ou privada de (art. 253º CCom.);
natureza profissional, salvo a docência e a  Sócios de sociedades em nome coletivo » não podem
investigação científica (art. 13º/1 Lei nº 21/85); exercer atividade concorrente com a da sociedade
 Magistrados do MP » não podem desempenhar que integram (art. 180º/1 CSC);
qualquer outra função pública ou privada de  Gerentes de sociedades por quotas » não podem
natureza profissional, salvo a docência e a exercer atividade concorrente com a da sociedade
investigação científica (art. 81º/1 Lei nº 47/86); que integram (art. 254º/1 CSC);
 Militares » não podem exercer quaisquer atividades  Administradores de sociedades anónimas » não
privadas relacionadas com as funções militares, podem exercer atividade concorrente com a da
equipamento, armamento, infraestruturas, etc. (art. sociedade que integram (art. 398º/3 CSC);
14º/3 DL nº 90/2015);  Sócios comanditados de sociedades em comandita
 Titulares de órgãos de soberania, de outros cargos simples » não podem exercer atividade concorrente
políticos e de altos cargos públicos » não podem com a da sociedade que integram (art. 477º CSC).
exercer quaisquer outras funções profissionais (art.
4º Lei nº 64/93).
Então e se uma pessoa proibida por lei de comercial, porque relativamente a ela se verifica uma incompatibilidade,
violar a proibição, exercendo profissionalmente o comércio? Será essa pessoa qualificada como comerciante? A
doutrina tem-se dividido a este respeito:
a) Pinto Coelho, Oliveira Ascensão: a pessoa não pode ser qualificada como comerciante » a atividade comercial
é, nestes casos, praticada em violação de um preceito legal pelo que não pode sustentar a caraterização do
sujeito como comerciante;
b) Ferrer Correia, Coutinho de Abreu: a pessoa deve ser qualificada como comerciante » podem convocar-se, a
favor desta conceção, dois argumentos [posição adotada]:
1. Se atentarmos no art. 13º/1 CCom., concluímos estarem preenchidos os requisitos para a qualificação
das pessoas como “comerciantes”: (a) têm capacidade de exercício, (b) praticam atos de comércio e
(c) exercem o comércio com profissionalidade.
2. Os atos assim praticados não são nulos (ao contrário do que vimos quando estão em causa, não
pessoas singulares, mas pessoas coletivas), nem anuláveis ou ineficazes: as sanções cominadas para a
violação das proibições legais em apreço são de outra ordem – responsabilidade civil, destituição com
justa causa, penas disciplinares, perda de mandato, demissão, destituição judicial, etc. – não
interferindo com a validade e eficácia do negócio (isto porque tais proibições apenas prosseguem o
objetivo de assegurar o desempenho efetivo e eficiente dos cargos).
4.2.2 Insolvência e inibição para o exercício do comércio
O processo de insolvência, enquanto processo de execução universal, visa satisfazer conjuntamente os credores de
um devedor. Os credores dispõem de duas vias principais para aproveitarem das forças patrimoniais do devedor:
1. Liquidação dos bens integrantes da massa insolvente e repartição dos resultados distribuíveis;
2. Regulação autónoma do modo de satisfação dos seus interesses.
O primeiro aspeto que importa considerar nesta matéria é o de saber quem está sujeito a declaração de insolvência.
Atendendo ao art. 2º CIRE é possível compor três grupos:

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 Pessoas singulares ou coletivas (ex.: associações, fundações, sociedades comerciais, sociedades civis sob
forma comercial, cooperativas, ACE, AEIE, sociedades civis simples personalizadas, etc.) – alínea a);
 Entidades ou sujeitos de natureza coletiva não personalizados (ex.: associações sem personalidade jurídica,
comissões especiais, sociedades civis simples, sociedades comerciais e sociedades civis de tipo comercial antes
do registo definitivo, cooperativas antes do registo) – alíneas c), d), e) e f);
 Patrimónios autónomos (ex.: herança jacente, estabelecimento individual de responsabilidade limitada, etc.)
– alíneas b), g) e h).
Como resulta logo do art. 2º CIRE, os sujeitos passivos da declaração de insolvência não têm de ser comerciantes – o
CIRE veio iniciar uma futura com o regime tradicional, em que a “falência” era instituto privativo dos comerciantes. Os
sujeitos em causa também não têm de ser empresários. Inclusive, o plano de insolvência não pressupõe a existência
de uma empresa na massa insolvente (vide: art. 192º/1 CIRE). Não obstante, há aspetos do regime da insolvência
dependentes da existência ou inexistência de empresa: designadamente os aspetos regulados nos arts. 18º/2, 223º e
ss., 251º e ss., 249º CIRE.
Pressuposto objetivo para alguém (ou algo) ser declarado insolvente é a situação de insolvência ou situação
equiparada. Em geral, é considerado em situação de insolvência “o devedor que se mostre impossibilitado de cumprir
as suas obrigações vencidas” (art. 3º/1 CIRE). A impossibilidade de cumprimento referida há de assentar
essencialmente na falta de meios de pagamento ou bens de liquidez. Noutro prisma, note-se que a impossibilidade de
cumprimento não tem de abranger todas as obrigações vencidas – basta o incumprimento de uma ou algumas
obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revelem uma relação deficitária e não
passageira entre o valor dos meios de liquidez e o valor de todas as obrigações vencidas. Daqui decorrem duas
conclusões de relevo, que denotam a diferença entre o regime atual e o anterior:
 Um devedor com ativo superior ao passivo pode encontrar-se em situação de insolvência
Ativo < Passivo
Está impossibilitado de cumprir a generalidade das suas obrigações
 Um devedor com ativo inferior ao passivo pode não se encontrar em situação de insolvência Insolvência
Consegue obter os meios necessários ao pagamento (ex. crédito bancário)
Acrescenta o nº 4 do art. 3º CIRE que se equipara à situação de insolvência atual aquela que seja meramente iminente,
no caso de apresentação do devedor à insolvência. A nossa lei não define o conceito de “situação de insolvência
iminente”, mas podemos defini-la, atendendo o preceito homólogo da lei alemã, como a situação em que se antevê
como provável que o devedor não terá meios para cumprir a generalidade das suas obrigações no momento em que
se vençam. A insolvência só poderá ser declarada, nesta hipótese, a pedido do devedor, e já não dos credores.
Pretende-se, assim, evitar que os credores coloquem pressão sobre o devedor ainda não insolvente.
O CIRE considera ainda uma outra situação como de insolvência: a situação prevista no art. 3º/2, que se verifica se
preenchidos concomitantemente os seguintes pressupostos:
a) Devedor é uma pessoa coletiva ou um património autónomo;
b) Nenhuma pessoa singular responde pessoal e ilimitadamente pelas dívidas;
c) Passivo manifestamente superior ao ativo – avaliação segundo as normas contabilísticas aplicáveis.
Este preceito aplica-se, nomeadamente, às sociedades por quotas e anónimas e às sociedades em nome coletivo e em
comandita, em que, respetivamente, todos os sócios (nas sociedades por quotas e anónimas) ou os sócios
comanditados (sociedades em nome coletivo e em comandita) sejam pessoas coletivas de responsabilidade limitada.
Aplica-se ainda o preceito às cooperativas sem cooperadores de responsabilidade ilimitada, aos estabelecimentos
individuais de responsabilidade ilimitada, aos ACE e AEIE cujos membros sejam somente pessoas coletivas de
responsabilidade limitada.
O preceito em apreço indica dever ser a avaliação do ativo e passivo do devedor realizada segundo as normas
contabilísticas aplicáveis – serão elas as constantes do Sistema de Normalização Contabilística. No entanto, permite o
nº 3 do art. 3º CIRE que se utilizem outros critérios de avaliação, a fim de ser feita prova de que o ativo é afinal superior
ao passivo.
O regime exposto, consagrado nos nºs 2 e 3 do CIRE, implica as seguintes notas:
 Regime semelhante foi entre nós inaugurado pelo Código de Falências de 1935 e veio a deixar de vigorar com
o CREF. Impõe-se então saber a razão do seu ressurgimento com o CIRE. Na vigência do Código da Insolvência
de 1935 justifica-se esta figura com base no seguinte raciocínio: nas sociedades de responsabilidade limitada
o crédito propriamente pessoal não existe (pois os sócios não respondem ilimitadamente pelas dívidas da
sociedade) pelo que a impossibilidade de pagar anda normalmente associada à insuficiência de ativo. Sucede,

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porém, que se reconhece hoje que as sociedades de responsabilidade limitada podem dispor de crédito
próprio, além de que beneficiam do eventual crédito e capacidade dos administradores e/ou sócios
dominantes. Assim sendo, esta solução parece-nos desprovida de sentido.
 Nem sempre a situação de património líquido negativo constitui a antecâmara da situação de impossibilidade
de cumprimento das obrigações. Seria uma solução legal mais coerente afastar o art. 3º/2 CIRE e manter
apenas o art. 3º/4 CIRE, que cobriria as situações em que há um passivo superior ao ativo e em que essa
circunstância denota uma iminente situação de insolvência.
 Independentemente da crítica apontada, no sentido de se considerar preferível a eliminação do nº 2 do art.
3º CIRE, é também de criticar a falta de conjugação deste preceito com o art. 35º CSC – a convocação dos dois
preceitos, em situações em que se situem no âmbito de aplicação de ambos (o que se verifica sempre que o
âmbito de aplicação do art. 35º CSC se encontra preenchido, pois nesse caso também será aplicável o art. 3º/2
CIRE), repercute-se em duas soluções de certo modo incompatíveis: o CIRE permite à administração da
sociedade, sem prévia deliberação dos sócios, requerer a declaração de insolvência e o CSC impõe à
administração a realização de uma assembleia geral para os sócios decidirem.
Aqui chegados, importa agora atentar no ponto que verdadeiramente nos importa em matéria de insolvência: o efeito
de inibição do exercício do comércio.
Antes de mais, importa considerar, de um modo geral, alguns efeitos da declaração de insolvência:
 Privação do insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e disposição dos
bens integrados na “massa insolvente”, poderes esses que passam a competir ao administrador de insolvência
(art. 81º/1 CIRE).
= todo o património do devedor à data da declaração de insolvência e bens adquiridos na pendência
do processo, salvos os bens isentos de penhora se o devedor não os apresentar voluntariamente e/ou a
impenhorabilidade for absoluta (art. 46º/1 e 2 CIRE).
Se o insolvente dispuser de um objeto da massa, o ato é ineficaz, não produz efeitos (art. 81º/6 CIRE). Esta é
uma ineficácia absoluta, na medida em que a massa insolvente responderá pela restituição do que lhe houver
sido prestado pela contraparte do insolvente, mas apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa.
Caso o ato praticado seja benéfico para a massa, o administrador poderá ratificá-lo.
 Obrigação de indemnização dos credores e inibição do exercício do comércio aplicáveis às pessoas afetadas
pela insolvência culposa.
Poderá abrir-se, durante ou depois do processo, o incidente de qualificação da insolvência, a fim de se
apurar se ela é (1) culposa ou (2) fortuita.
= “situação de insolvência criada ou agravada em consequência da atuação, (b)dolosa ou com culpa grave,
(a)

do (c)devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos (d)três anos anteriores ao início do
processo de insolvência” (art. 186º/1 CIRE).
O nº 2 do art. 186º CIRE enuncia determinados comportamentos que fazem presumir iniludivelmente que a
insolvência é culposa; o nº 3 do mesmo preceito estabelece novo elenco de comportamentos que se traduzem
agora numa presunção ilidível de culpa grave. Na sentença o juiz fixará, desde logo, as pessoas afetadas pela
qualificação (art. 189º/2/a) CIRE), isto é, as pessoas de cujo comportamento decorre a natureza culposa da
insolvência. Tais pessoas serão instituídas na obrigação de indemnizar os credores (art. 189º/2/e) CIRE) e serão
declaradas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos (art. 189º/2/c) CIRE).
No que diz respeito a este último efeito da declaração de insolvência – a inibição da prática do comércio – haverá que
perguntar se esta inibição deve ser considerada como incapacidade ou como incompatibilidade. Não podemos falar
aqui em incapacidade porquanto o objetivo da lei é a proteção do comércio, e não a proteção do próprio inibido (como
sucede nas incapacidades, em que se pretende proteger o inibido face si próprio, devido a um défice nas suas
faculdades pessoais). Sendo esta uma incompatibilidade, importa atentar na hipótese de o sujeito, não obstante a
proibição, praticar atividades comerciais. Entende-se que, mesmo que se verifique o exercício profissional do
comércio, o sujeito não poderá ser qualificado como comerciante.
5. Responsabilidade por dívidas comerciais contraídas por cônjuge comerciante
Dispõe o art. 1691º/1/d) CC que são da responsabilidade de ambos os cônjuges – quando casados em regime de
comunhão, de adquiridos ou geral – as dívidas contraídas por qualquer um deles no exercício do comércio, salvo se se
provar que não foram contraídas em proveito comum do casal. Por tais dívidas respondem os bens comuns do casal
e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges (art. 1695º/1 CC).

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Ficou assim apresentado o esquema geral da responsabilidade do cônjuge por dívidas contraídas por comerciante.
Importa agora considerá-lo de forma mais cirúrgica. Em primeiro lugar, importa ressalvar que o que está aqui em causa
é a ampliação dos sujeitos aos quais o credor pode exigir o crédito – é sempre certo que o credor pode demandar o
devedor pela dívida comercial contraída e não cumprida tempestivamente; o que se permite com este regime é que
o credor possa, além de demandar o devedor, ir exigir o cumprimento ao cônjuge deste. Para que tal seja possível
haverão que se encontrar reunidos os seguintes pressupostos:
a) Devedor casado no regime de comunhão de adquiridos ou de comunhão geral » não haverá possibilidade de
mobilizar este regime se o devedor é casado em regime de separação de bens;
b) Dívida(s) contraída(s) no exercício do comércio » não haverá mobilização deste regime se a dívida que o credor
pretende ver paga não é uma dívida comercial.
Este segundo pressuposto evidencia, claramente, o intuito tutelador do comércio que subjaz a este regime – é
manifesta a proteção ou garantia acrescida que se pretende conferir ao credor comercial. Este escopo é ainda
reforçado por um outro aspeto. É que, em princípio, o credor, para convocar este regime especial, teria que provar os
dois pressupostos acima expostos – o regime de bens em que o casal contraiu matrimónio e o caráter comercial da
dívida. Porém, a lei vem facilitar-lhe tal tarefa: não terá o credor que provar que a dívida foi contraída no exercício da
atividade comercial. De facto, o art. 15º CCom. consagra, a este respeito, uma presunção: “as dívidas comerciais do
cônjuge comerciante presumem-se contraídas no exercício do comércio”. Para que esta presunção opere, basta ao
credor fazer prova de dois elementos:
1. O devedor é comerciante;
2. A dívida advém de um ato comercial.
Esta presunção vem aliviar o encargo probatório que recai sobre o credor na medida em que é mais fácil provar estes
dois aspetos do que provar que um ato é praticado no exercício da atividade comercial. Pode, por exemplo, um
comerciante (requisito nº 1) contrair uma dívida cambiária ou uma dívida titulada por letras, livranças ou cheques que,
apesar de formalmente serem atos comerciais (requisito nº 2), não o são substancialmente – aqui não há efetivamente
a contração de dívidas no exercício da atividade comercial, mas o credor pode mobilizar a presunção do art. 15º CCom.
Ademais, basta ao credor que a dívida constitui um ato comercial, podendo estar em causa um ato comercial objetivo
ou subjetivo. Significa isto que, como é sabido, a dívida poderá não se relacionar com o exercício do comércio mas ser
classificada como ato comercial somente porque praticada por um comerciante (ato de comércio subjetivo).
O devedor pode afastar a aplicação deste regime por três vias:
 Invocação da exceção do art. 1691º/1/d) CC in fine » o devedor vem demonstrar que a dívida não foi contraída
em proveito comum do casal.
Esta prova raramente será produzida !
É inerente à própria “conjugalidade” a ideia de que todos os rendimentos obtidos pelos cônjuges beneficiam
a família no seu todo, direta ou indiretamente.
 Afastamento da presunção do art. 15º CCom. » esta presunção pode ser afastada mediante refutação de
qualquer ou dos seus dois elementos (ou de ambos):
 Prova de que o devedor não é comerciante;
 Prova de que a dívida não é ato comercial.
 Ilição da presunção do art. 15º CCom. » o devedor vem fazer contra-prova, demonstrando que a dívida não
foi, apesar da presunção, contraída no exercício da atividade comercial (ex.: comerciante que compra um
quadro para decorar a habitação própria – há um comerciante e um ato comercial, mais não seja um ato
comercial subjetivo, mas afinal a dívida não surge no exercício do comércio).
6. Estatuto dos comerciantes
6.1 Firmas e denominações
6.1.1 Noção
Um carater absolutamente essencial do estatuto dos comerciantes é o que consta do art. 18º/1 CCom.: todos os
comerciantes devem adotar firma ou denominação. Frequentemente diz-se que a firma é o nome comercial dos
comerciantes, ou seja, o sinal que os individualiza ou identifica. Esta é, porém, uma noção insuficiente, na medida em
que a firma pode ainda identificar alguns não-comerciantes e em que alguns comerciantes são identificados, não por
uma firma, mas por uma denominação. Não obstante, aquela é uma asserção que se aproxima da realidade aqui em
causa. O diploma que contém o regime atual das firmas e denominações – o “Regime do Registo Nacional Pessoas
Coletivas” (DL nº 129/98, de 13 de Maio) – distingue as duas figuras nos seguintes termos:

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Firma Denominação
» vocábulo preferido para designar o signo » sinal identificador, predominantemente, de não
individualizador de comerciantes comerciantes
Porém, individualiza ainda: (1) sociedades civis de tipo Todavia também identifica: (1) entidades públicas
comercial; (2) ACE com objeto civil; (3) empresários empresarias (EPE); (2) cooperativas » são comerciantes
individuais não comerciantes » não são comerciantes
6.1.2 Composição
A composição das firmas depende do tipo de entidade que por ela seja identificada:
 Firmas de comerciantes individuais:
 Elemento obrigatório: nome, completo ou abreviado, do comerciante (art. 38º/1 e 3 RRNPC);
 Elementos facultativos:
 Expressões ou siglas correspondentes a títulos académicos, profissionais ou nobiliárquicos a
que o comerciante tenha direito (art. 38º/3 RRNPC);
 Alcunha ou expressão alusiva à atividade exercida (art. 38º/1 RRNPC).
 Firmas de sociedades comerciais:
 Firma de sociedades em nome coletivo:
 Elementos obrigatórios:
 Nome (completo ou abreviado) ou firma, de todos os sócios, ou nome completo ou
abreviado, ou firma, de um deles (art. 177º/1 CSC);
 Aditamento “eCompanhia” ou qualquer outro que indique a existência de outros
sócios (“eFilhos”, “eIrmão”, etc.).
 Elementos facultativos:
 Expressão alusiva ao objeto social (analogia com o art. 38º/1 RRNPC);
 Siglas, iniciais, expressões de fantasia ou composições (analogia com o art. 42º/1).
 Firma de sociedades por quotas:
 Elementos obrigatórios:
 Nome (completo ou abreviado) ou firma, de todos, algum ou alguns dos sócios ou
particular denominação, ou reunião de ambos estes elementos (art. 200º/1 CSC);
 Aditamento “Limitada” ou “Lda.”.
 Elemento facultativo: utilização de sigla (= vocábulo constituído pelas iniciais ou outras letras
do nome ou expressão que identifique a firma).
 Firmas de sociedades anónimas:
 Elementos obrigatórios:
 Nome (completo ou abreviado) ou firma, de algum ou alguns dos sócios ou particular
denominação, ou reunião de ambos estes elementos (art. 275º/1 CSC);
 Aditamento “Sociedade Anónima” ou “S.A.”.
 Elemento facultativo: utilização de sigla.
 Firmas de sociedades em comandita:
 Elementos obrigatórios:
 Nome (completo ou abreviado) ou firma de um, alguns ou todos os sócios
comanditados (= sócios de responsabilidade ilimitada) (art. 467º/1 CSC);
 Aditamento “em Comandita” ou “& Comandita” – sociedades em comandita simples;
aditamento “em Comandita por Ações” ou “& Comandita por Ações” – sociedades em
comandita por ações.
 Elementos facultativos:
 Nome ou firma de sócios comanditários (= sócios de responsabilidade limitada) e de
não-sócios que tal consintam expressamente (art. 467º/2 e 3 CSC);
[Tais sócios comanditário e não-sócios ficam sujeitos às consequências estabelecidas nos nºs
3 e 4 do art. 467º CSC.]
 Expressões alusivas ao objeto social;
 Siglas, expressões de fantasia, etc.
 Firmas de agrupamentos complementares de empresas:

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 Elementos obrigatórios:
 Denominação particular ou nomes (abreviados ou completos) ou firmas de todos os seus
membros ou, pelo menos, de um deles ou reunião de ambos esses elementos (art. 3º/1 DL nº
430/73 – Regime do funcionamento e constituição de ACE);
 Aditamento “Agrupamento Complementar de Empresas” ou “A.C.E.”.
Como referido, além da firma, também alguns comerciantes são identificados por uma denominação. Vejam-se os
elementos constitutivos das várias denominações:
 Denominação de entidades públicas empresariais: deve integrar a expressão “entidade pública empresarial”
ou “E.P.E.” (art. 57º/2 RSPE);
 Denominação de cooperativas: deve ser seguida das expressões “cooperativa”, “união de cooperativas”,
“federação de cooperativas”, “confederação de cooperativas” e ainda de “responsabilidade limitada” ou
“responsabilidade ilimitada” e respetivas abreviaturas (art. 15º/1 CCoop.).
 Agrupamentos europeus de interesse económico: deve incluir o aditamento “Agrupamento Europeu de
Interesse Económico” ou “AEIE” (art. 5º/a) Regulamento 2137/85 e art. 4º DL nº 148/90).
6.1.3 Princípios informadores da composição das firmas e denominações
A composição de firmas e denominações deve respeitar determinados princípios, de cuja observância dependerá a
admissão da firma ou denominação no registo nacional. Atente-se, então, nesses princípios:
a) Princípio da verdade
Dispõe o art. 32º/1 RRNPC que “os elementos componentes das firmas e denominações devem ser verdadeiros e não
induzir em erro sobre a identificação, natureza ou atividade do seu titular”. Este princípio tem várias repercussões.
Desde logo, nos casos em que é exigido o nome do comerciante ou de sócios, não poderá a firma ou denominação
contar com o nome (ou firma) de estranhos. Depois, não podem a firma e a denominação conter abreviaturas,
palavras, expressões, etc. que induzam em erro quanto à caraterização jurídica dos respetivos titulares – aqui ressalva-
se o uso dos aditamentos (ex.: “Lda.”, “S.A.”, “E.P.E”, “&Comandita”, “eCompanhia”, etc.) expressamente previstos na
lei para cada tipo de comerciante, e não outros. Depois, as firmas e denominações não podem conter elementos que
sugiram atividades diversas das que os respetivos titulares exercem ou se propõem exercer. Por fim, haverá que
atender especialmente aos casos de desassociação: quando determinada pessoa cujo nome figure na firma ou
denominação deixe de ser sócio ou associado (por transmissão de participação social, morte, exclusão, exoneração,
etc.), deve tal firma ou denominação ser alterada no prazo de 1 ano, salvo havendo consentimento para a manutenção
da firma ou denominação tal como ela estava (art. 32º/5 RRNPC).
b) Princípios da novidade e da exclusividade
Nos termos do art. 33º/1 RRNPC “as firmas e denominações devem ser distintas e não suscetíveis de confusão ou erro
com as registadas ou licenciadas no mesmo âmbito de exclusividade, mesmo quando a lei permita a inclusão de
elementos utilizados por outras já registadas, ou com designações de instituições notoriamente conhecidas”. Esta
exigência é implicado pelo direito exclusivo, reconhecido aos titulares de firmas e denominações já validamente
registadas de forma definitiva, sobre a firma ou denominação registada em determinado âmbito geográfico (art. 35º/1
e 4 RRNPC). Significa isto, que outras/novas firmas ou denominações não podem vir incluir expressões idênticas ou
confundíveis com as já existentes, no mesmo espaço geográfico. O “espaço geográfico” a que nos referimos será:
 Para sociedades comerciais » território nacional (art. 37º/2 RRNPC);
 Para ACE, AEIE e EPE » território nacional, excepto quando o respetivo objeto indicie a prática de atividades
de caráter essencialmente local ou regional (art. 43º/3, remetendo para o art. 36º/3, ambos do RRNPC);
 Para comerciantes individuais que não usem como firma apenas o seu nome » território do concelho onde se
encontra o seu estabelecimento principal (arts. 38º/4 e 40º/3 RRNPC).
[NOTA: ao comerciante individual com firma composta somente pelo seu nome não é conferido direito de
exclusivo pelo RRNPC. Esta parece-nos ser uma solução condenável. Não obstante, entende-se que poderá
um comerciante com firma composta apenas pelo seu nome reagir judicialmente contra outro comerciante
ou não-comerciante que utilize o mesmo nome no exercício da atividade profissional, socorrendo-se do direito
ao nome, consagrado no art. 72º/2 CC, para sustentar a sua posição.]
Refira-se que os arts. 10º/2 CSC e 33º/1 RRNPC poderiam parecer, prima facie, contraditórios: aquele primeiro
preceito exigiria que todos os elementos de novas firmas ou denominações fossem diferentes de outras já existentes,
e este último exigiria somente que as firmas ou denominações não fossem semelhantes ao ponto de induzirem em

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erro ou confusão, admitindo a inclusão de elementos comuns. Esta é uma contradição aparente, porquanto é este
último significado que deve conferir-se aos dois preceitos.
Neste momento, impõe-se questionar quando é que se considerará que uma firma ou denominação não é “nova”.
Entende-se que uma firma ou denominação não é nova relativamente a outra quando, atendendo à grafia das
palavras, ao efeito fonético das expressões, ao núcleo caraterizante, à forma “oficiosa” dos signos, o público médio as
não consegue distinguir, tomando uma por outra, ou, não as confundindo, crê erroneamente referirem-se a
comerciantes distintos mas especialmente relacionados.
Noutro prisma, pergunta-se se este princípio valerá para comerciantes não concorrentes, isto é, para comerciantes
que exercem atividades diversas. Acerca desta questão a doutrina divide-se:
a) Pinto Coelho, Nogueira Serens: este princípio só é aplicável a comerciantes concorrentes, não valendo quando
os comerciantes identificados pelas firmas ou denominações não concorrem entre si.
Entendem estes autores que o risco de confusão entre firmas em casos de não concorrência entre os
comerciantes é inexistente ou quase inexistente. Ademais, o art. 33º/2 RRNPC viria confirmar este
entendimento, considerando como critério para aferir a distinção e não suscetibilidade de confusão a
afinidade ou proximidade das atividades das firmas ou denominações consideradas.
b) Ferrer Correia, Oliveira de Ascensão, Remédio Marques: o princípio vale também para comerciantes não
concorrentes, não relevando para efeitos de aplicação deste princípio a prática, pelos comerciantes
envolvidos, de atividades concorrentes ou não.
Entendem estes autores que, apesar da não concorrência, o risco de confusão se mantém, sobretudo se
estiverem em causa firmas ou denominações sediadas num espaço geográfico relativamente reduzido. Há
que considerar o impacto no público médio, e não um impacto abstrato (referido a um público “ideal”).
Ademais, o art. 33º/2 RRNPC não exige a afinidade das atividades como elemento necessário para que se
possa falar em confusão entre as firmas ou denominações; a afinidade das atividades é um critério, entre
outros, mobilizável para a apreciação sobre a confundibilidade.
Entre nós, é esta última a posição adotada, não se distinguindo entre comerciantes concorrentes e não concorrentes.
c) Princípio da capacidade distintiva
As firmas e as denominações, enquanto sinais distintivos de comerciantes, hão de ser constituídos por forma a
poderem desempenhar a função diferenciadora. O problema não só coloca tanto quando as firmas ou denominações
são compostas pelos nomes de pessoas (comerciantes individuais ou sócios/associados). Haverá já que ter especial
atenção a este princípio no caso de sociedades por quotas, sociedades anónimas, ACE e EPE. Com efeito, sob pena de
incapacidade distintiva, as denominações ou firmas não podem aqui bastar-se com designações genéricas, vocábulos
de uso comum para designar atividades ou produtos, topónimos ou indicações de proveniência (exs. de elementos
não distintivos: “sociedade de seguros”, “sociedade conimbricense”, etc.). Tais elementos, de per si não distintivos,
hão de ser associados a outros, de modo a que o conjunto seja capaz de distinguir a firma ou designação
concretamente em causa (ex.: “sociedade cavali de seguros conimbricense”). Tudo isto decorre expressamente do nº
2 do art. 33º RRNPC e do art. 10º/4 CSC.
d) Princípio da unidade
O art. 38º/1 RRNPC impõe que cada comerciante individual adote somente uma firma. Igual solução está consagrada
nos arts. 19º/1/c) e 171º/1 CSC quanto às sociedades e nos diplomas próprios quanto às demais pessoas coletivas que
podem ser comerciantes. Isto implica, inclusive, que o comerciante que adquira a firma de outro (passando a explorar
duas ou mais empresas) só possa manter uma firma, ainda que com aditamento (arts. 38º/ 1 e 2 e 44º/1 e 3 RRNPC).
Todavia, este princípio admite uma exceção: um comerciante individual que exerça atividades mercantis no quadro
de um estabelecimento individual de responsabilidade limitada e também fora dele, terá 2 firmas (art. 40º/1 RRNPC).
e) Princípio da licitude
Este é um princípio residual, que significa um conjunto variado de requisitos (art. 32º/4/b), c) e d) RRNPC):
 As firmas ou denominações não podem conter expressões proibidas por lei ou ofensivas dos bons costumes;
 As firmas ou denominações não podem conter expressões incompatíveis com o respeito pela liberdade
política, religiosa ou ideológica;
 As firmas ou denominações não podem conter expressões que desrespeitem ou se apropriem ilegitimamente
de símbolos nacionais, personalidades, épocas ou instituições cujo nome ou significado seja de salvaguardar
por razões históricas, patrióticas, científicas, institucionais, culturais ou outras.
6.1.4 Alteração de firmas de denominações

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Maria Paixão Direito Comercial I – 2017/2018
Respeitados que sejam os princípios assinalados, os comerciantes podem livremente alterar as denominações ou
firmas. Aliás, casos há em que a alteração tem que se realizar:
 A alteração do nome do comerciante acarreta a alteração da firma (art. 38º/1 RRNPC);
 A desassociação de um sócio ou associado cujo nome figure da firma ou denominação de uma pessoa coletiva
implica alteração desta firma ou denominação, salvo havendo consentimento para se manter a anterior (art.
32º/5 RRNPC);
 A aquisição da firma implica a alteração da firma originária (art. 44º/1 e 4 RRNPC);
 A alteração do objeto estatutário de uma sociedade poderá repercutir-se na alteração da firma ou
denominação (arts. 54º/2 RRNPC e 200º/3 e 275º/3 CSC);
 A transformação de sociedades (de uma forma para outra), de EPE’s em sociedades anónimas, de ACE em AEIE
e vice-versa exige alteração dos aditamentos obrigatórios nas firmas ou denominações (vide, designadamente:
arts. 130º e ss. CSC);
 A proibição do uso ilegal de firma ou denominação importa a sua alteração (art. 62º RRNPC).
6.1.5 Transmissão
Normalmente, a firma distingue não apenas o comerciante mas também a(s) respetiva(s) empresa(s). Assim, a firma
pode ter considerável valor económico, na medida em que se assume como “colector de clientela”. Daqui resulta a
possibilidade de transmissão da firma. No entanto, esta transmissibilidade da firma deverá estar associada à respetiva
empresa, pois caso contrário provocar-se-iam enganos no público.
Neste contexto, dispõe o art. 44º/1 RRNPC que “o adquirente, por qualquer título entre vivos, de um estabelecimento
comercial pode aditar à sua própria firma a menção de haver sucedido na firma do anterior titular do estabelecimento,
se esse titular autorizar, por escrito”. E o nº 4 do mesmo preceito acrescenta: “é proibida a aquisição de uma firma
sem a do estabelecimento a que se achar ligada”.
Da conjugação destes dois preceitos resultam os critérios a que está sujeita a transmissão entre vivos de firmas:
1. A transmissão da firma deve fazer-se simultaneamente com a transmissão do estabelecimento comercial a
que esteja ligada;
[NOTA: a hipótese oposta já não é necessária: a transmissão de estabelecimento não acarreta necessariamente a
transmissão da firma.]
2. A transmissão do estabelecimento, por associação à transmissão da firma, deve decorrer de acordo, por
escrito, das partes;
3. O adquirente deve aditar à sua própria firma menção de sucessão e a firma adquirida.
Uma questão que tem gerado controvérsia, a este respeito, é a de saber se aquele primeiro requisito se considera
preenchido quando a transmissão da firma é acompanhada pela transmissão de apenas parte do estabelecimento.
Entre nós entende-se que poderá a transmissão da firma ser acompanhada tão-só pela transmissão parcial do
estabelecimento, se preenchidos dois requisitos:
1. Divisibilidade do estabelecimento;
2. Não potenciação do engano do público.
A transmissão da firma de comerciante individual pode ainda dar-se mortis causa – art. 44º/3 RRNPC.
O regime exposto, constante do art. 44º RRNPC, diz respeito, expressamente, à firma. Porém, razões não há para que
ele não deva ser também considerado aplicável às denominações. Neste sentido aponta do art. 43º/1 RRNPC.
6.1.6 Tutela do direito à firma ou denominação
O direito à exclusividade de firma ou denominação constitui-se com o registo definitivo delas (arts. 3º e 35º/ 1 RRNPC).
Para o correspondente âmbito de exclusividade, a proteção das firmas e denominações faz-se por duas vias:
Meios preventivos Meios repressivos
 Certificados de admissibilidade de firmas e  Declaração de nulidade, anulação ou revogação
denominações: estes documentos, emitidos do registo – implica a perda do direito ao uso da
pelo Registo Nacional das Pessoas Coletivas, firma ou designação (arts. 35º/4 e 60º RRNPC);
são condição necessária para a formalização e  Ação de indemnização e ação criminal em caso de
/ou registo da constituição ou alteração de uso ilegal de firma ou denominação (art. 62º).
firmas e denominações.
Outros meios repressivos não previstos no RRNPC:
 Regime da concorrência desleal (art. 317º CPI) –
A emissão de tais certificados depende da observância
sobretudo convocado por firmas ou
dos princípios enunciados e demais critérios previstos
denominações não registadas;
na lei para a admissibilidade de firmas/denominações.

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 Convenção da União de Paris (arts. 2º, 3º e 8º):
reconhecimento da referida tutela a firmas e
denominações não registadas em Portugal mas
reconhecidas no seio da União de Paris.
Impõe-se mais algumas considerações acerca da “União de Paris” ou “União Internacional para a Proteção da
Propriedade Industrial”. Esta entidade foi criada em 1883, através da “Convenção de Paris para a Proteção da
Propriedade Industrial”, entretanto revista várias vezes. Portugal, como membro da União, deverá reconhecer
internamente os “nomes comerciais” de comerciantes nacionais, e equiparados, dos países da União, que tenham sido
constituídos validamente nesses países – tais “nomes comerciais” serão tidos em conta, portanto, para efeitos de
admissibilidade de registo de novas firmas (não se têm em conta apenas as firmas e denominações constituídas em
Portugal). Este reconhecimento só se impõe, todavia, relativamente a “nomes comerciais” usados (direta ou
indiretamente) em Portugal ou aqui notoriamente conhecidos. Significa isto que não está um comerciante português
impossibilitado de usar uma firma idêntica a outra existente na Rússia, só porque a Rússia também é membro da União
de Paris; esse impedimento verificar-se-á se a firma russa homóloga for usada em Portugal ou cá for notoriamente
conhecida – só aqui haverá desrespeito pelo princípio da novidade e da exclusividade. Há quem seja menos rigoroso
e não exija, para o reconhecimento interno de um nome comercial, o seu uso ou notoriedade no país. No entanto,
estamos com aqueles que consideram ser necessária, pelo menos, a notoriedade ou publicidade da firma
internamente, porquanto nos demais casos não se colocam os riscos de confusão e erro que se pretendem obviar com
o princípio da exclusividade e novidade, pelo que não há necessidade de coarctar (ainda mais) a liberdade dos
comerciantes na constituição das firmas e denominações.
6.1.7 Extinção do direito à firma ou denominação
Sendo as firmas e denominações dos comerciantes sinais distintivos destes, poderia pensar-se que a cessação das
atividades mercantis pelos comerciantes implicaria a extinção das correspondentes firmas ou denominações.
Contudo, nem sempre terá de ser assim. Atente-se nas várias situações que podem ter lugar.
Em primeiro lugar, poderá a atividade comercial cessar em virtude do falecimento do comerciante. Nesta hipótese, há
que distinguir as seguintes possibilidades:
1. O comerciante não deixa estabelecimento » extinção da firma;
2. O comerciante deixa estabelecimento, associado a empresa mercantil:
a) O estabelecimento é transmitido mas sem a firma do autor da sucessão » extinção da firma;
b) O estabelecimento é transmitido com a firma do autor da sucessão » integração da firma na firma do
adquirente – constituição de nova firma;
c) O estabelecimento não é transmitido » extinção da firma.
Tudo depende, portanto, do destino que é conferido ao estabelecimento associado à firma.
Em segundo lugar, a atividade comercial poderá também cessar por opção do comerciante. Neste contexto, haverá
que considerar, por um lado, a cessação por opção do comerciante individual e, por outro, a cessação por extinção de
comerciantes-entidades coletivas:
 Comerciante individual:
1. O comerciante tinha estabelecimento mercantil:
a) O estabelecimento é transmitido com a firma » integração da firma na firma do adquirente;
b) O estabelecimento é liquidado » manutenção do direito à firma;
c) O estabelecimento é transmitido sem a firma » manutenção do direito à firma.
2. O comerciante não tinha estabelecimento mercantil » manutenção do direito à firma.
 Comerciante entidade coletiva:
1. A entidade coletiva não se extingue:
a) O estabelecimento é transmitido com a firma » integração da firma na firma do adquirente;
b) O estabelecimento não é transmitido » manutenção do direito à firma;
c) O estabelecimento é transmitido sem a firma » manutenção do direito à firma.
2. A entidade coletiva extingue-se » extinção da firma.
Acrescente-se que, nos termos do art. 61º RRNPC, nos casos em que se mantém o direito à firma, o Registo Nacional
de Pessoas Coletivas pode declarar, oficiosamente ou a requerimento de interessados, a sua perda, desde que fique
provado que o titular da firma não exerce atividade mercantil há pelo menos dois anos consecutivos.
Em suma, de forma sistemática, haverá extinção do direito à firma ou denominação nos seguintes casos:

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(1) Desaparecimento do seu titular (2) Transmissão do (3) Declaração do Registo Nacional
estabelecimento com a firma de Pessoas Coletivas
 Morte do comerciante individual (sem
que haja transmissão da firma); A firma extingue-se porque é integrada Oficiosa ou a requerimento de
 Extinção da entidade coletiva. na firma do adquirente interessados
6.1.8 Natureza jurídica do direito à firma ou denominação
Outrora, alguma doutrina defendeu a consideração do direito à firma ou denominação como direito de personalidade
(seria uma modalidade do direito ao nome). Esta é hoje uma visão ultrapassada.
Na Alemanha, a doutrina dominante considera este direito como um direito de natureza mista: não é um puro direito
de personalidade nem um puro direito patrimonial, mas antes uma conjugação.
Entre nós, assim como em França e Itália, as firmas e denominações são vistas como “coisas”, coisas incorpóreas (bens
imateriais), e, por isso, suscetíveis de constituir objeto de direitos reais. Concretamente, o direito à firma ou
denominação é, por cá, visto como de direito de propriedade.
6.2 Escrituração e prestação de contas
6.2.1 Noção de escrituração mercantil
A escrituração mercantil consiste no “registo ordenado e sistemático em livros e documentos de factos relativos à
atividade mercantil dos comerciantes, tendo em vista a informação deles e de outros sujeitos”.
O referido registo deve conter as operações de natureza comercial, não sendo necessário o registo de outras
operações de natureza patrimonial não mercantil.
6.2.2 Organização da escrituração
O art. 30º CCom. dispõe que “o comerciante pode escolher o modo de organização da escrituração mercantil”. Este
preceito não significa, evidentemente, o puro arbítrio do comerciante quanto ao “quê” e ao “como” dos assentos
escriturais. Desde logo, impõe-se verdade nos registos (vide: arts. 29º e 41º CCom). Depois, fora do Código Comercial
há lei que regula a escrituração mercantil, designadamente:
 Legislação fiscal (CIRS, CIRC...);
 Legislação contabilística » designadamente:
 Planos oficiais de contabilidade (geral e sectoriais);
 Regime especiais (1) para as microentidades e (2) para o setor não lucrativo;
 Normas Internacionais de Contabilidade.
6.2.3 O caráter (não) secreto da escrituração mercantil
Tradicionalmente afirmava-se o caráter secreto da escrituração mercantil, na medida em que a lei proibia o exame
dos livros destinado a ver se eles estavam ou não devidamente “arrumados”. No entanto, as exceções a este princípio
têm vindo a aumentar exponencialmente, de tal modo que talvez não seja completamente errado falar, hoje, num
caráter não secreto da escrituração mercantil. O art. 41º CCom. afirma a possibilidade de as autoridades analisarem a
organização da escrituração mercantil. Os arts. 42º e 43º CCom. preveem a exibição judicial da escrituração e
documentos a ela relativos, seja este um exame por inteiro (nos casos do art. 42º) ou limitado (nas hipóteses do art.
43º). Também fora do Código Comercial normas várias preveem a possibilidade de examinação e publicitação da
escrituração mercantil, designadamente nos seguintes domínios:
 Direito de defesa da concorrência;
 Direito de informação dos sócios;
 Direito das comissões de trabalhadores a serem informadas da situação contabilística da empresa;
 Dever de prestação de contas.
6.2.4 Força probatória da escrituração comercial
Nos termos do art. 44º CCom. os livros irregularmente arrumados ou escriturados fazem prova contra o comerciante
a que pertençam; já os livros regularmente arrumados podem fazer provar quer a favor quer contra o próprio
comerciante. Tem especial relevância, nesta matéria, o art. 30º/4 CIRE, segundo o qual o comerciante só poderá provar
a sua solvência, no seio de um processo de insolvência, com recurso à própria escrituração, se ela estiver legalmente
arrumada e organizada.
6.2.5 Prestação de contas
O art. 18º/4 CCom. determina que os comerciantes são obrigados “a dar balanço, e a prestar contas”.
O “balanço” é o documento onde compara o ativo com o passivo, para revelar o valor do capital próprio ou situação
líquida. Este é, geralmente, um dos principais documentos de prestação de contas, acompanhado pela “demonstração

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de resultados por naturezas”, a “demonstração de alterações no capital próprio”, a “demonstração dos fluxos de caixa
pelo método direto” e o “anexo”.
Ao invés do dito nos arts. 18º e 62º CCom., nem todos os comerciantes têm o dever de prestar anualmente contas,
nomeadamente através do balanço – alguns pequenos comerciantes estão desonerados de cumprir o SNC.
A prestação de contas é relevante sobretudo no domínio das sociedades comerciais – se os documentos de prestação
de contas não forem apresentados, pela administração, atempadamente, qualquer sócio pode requerer ao tribunal
que se proceda a inquérito (art. 67º/2 CSC).
6.2.6 Conservação dos documentos de escrituração
Os comerciantes são obrigados a arquivar os documentos respeitantes à escrituração mercantil, bem como a
correspondência emitida e recebida, devendo conservar tudo pelo período de 10 anos (art. 40º CCom.). Todavia,
liquidando-se uma sociedade, o prazo de conservação é de 5 anos (vide: art. 157º/4 CSC). Falecendo o comerciante
individual, transmite-se a obrigação de conservar os documentos para os herdeiros.
6.3 Inscrições do registo comercial
O registo comercial publicita certos factos respeitantes a comerciantes individuais, sociedades comerciais, sociedades
civis sob forma comercial e estabelecimento individuais de responsabilidade limitada, tendo em vista a segurança do
tráfico ou comércio jurídico (art. 1º CRCom.).
Vigora nesta matéria o “princípio da tipicidade”: estão sujeitos a registo apenas os factos enunciados na lei. Tais factos
são, sobretudo, os enunciados nos arts. 2º a 10º CRCom. Só são, todavia, sujeitos a registo obrigatório os factos
enunciados no art. 15º CRCom. Os demais factos estão apenas sujeitos a registo facultativo, com os efeitos que
veremos infra.
Depois da reforma de 2006, há duas formas de registo – art. 53º-A CRCom.:
Registo Comercial
Por transcrição Por depósito
= extração dos elementos que definem a situação = mero arquivamento dos documentos que titula factos
jurídica das entidades sujeitas a registo constantes dos sujeitos a registo (art. 53º-A/3 CRCom.)
documentos apresentados (art. 53º-A/2 CRCom.) [Os documentos apresentados constituem títulos
[De documentos são retirados elementos/aspetos que (autenticadores) dos factos, sendo arquivados como tal]
definem a situação jurídica que se pretende registar]
Não implica controlo de legalidade » uma vez que há um
Vigora aqui o “princípio da legalidade”: a viabilidade do “título”, a legalidade é pressuposta (o que não obsta à
registo depende da conformidade com as disposições impugnação do registo e sua anulação)
legais aplicáveis (art. 47º CRCom.)
O registo efetua-se, em regra, a pedido dos interessados, só assim não sendo nos casos de oficiosidade previstos na
lei (art. 28º/1 CRCom.) – vigora aqui, então, o “princípio da instância”.
O registo tem como efeitos:
 Efeito presuntivo: o registo por transcrição definitivo constituição presunção de que a situação existe e existe
nos precisos termos em que é definida no registo (art. 11º CRCom.).
 Efeito declarativo: o registo é, em princípio, requisito de eficácia dos factos em relação a terceiros (art. 13º/1
CRCom.). Significa isto que o registo não influi sobre a constituição das situações jurídicas (não tem efeito
constitutivo-regra), limitando-se a conferir-lhes eficácia perante terceiros. Antes do registo, os factos sujeitos
a registo são válidos, mas apenas são eficazes em relação às partes. Consequentemente, antes do registo tais
factos não são oponíveis a terceiros (art. 14º/1 e 2 CRCom.).
Há, no entanto, casos excecionais em que o registo assume natureza constitutiva: nos casos previstos
na lei o registo é condição de validade do facto, não se constituindo isto enquanto não for registado (exs.: arts
13º/2 CRCom e arts. 5º, 112º, 120º, 169º/2 CSC).
 Efeito sonante: alguns factos sujeitos a registo só podem ser declarados nulos em virtude de determinados
vícios. Significa isto que os demais vícios que, em regra, conduziriam à nulidade do facto são inatendíveis e
ainda que a anulabilidade não se aplica. Note-se, porém, que este efeito, ainda que decorrendo do registo, diz
respeito ao próprio facto. Consequentemente, ainda que não possa anular-se o facto ou declarar a sua
nulidade com base noutros vícios para além dos previstos na lei, sempre se poderá declarar a nulidade do
registo nos termos gerais. É este o regime consagrado no art. 42º CSC para os contratos de sociedade.

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NOTA: o entendimento de que o referido preceito ao referir que “o contrato só pode ser declarado nulo” afasta
a possibilidade de se invocar a anulabilidade não é consensual; todavia é o entendimento que melhor se
coaduna com o disposto na Diretiva da UE que este preceito vem transpor.

Capítulo III – Das empresas


1. As concepções metajurídicas e pré-jurídicas de empresa perante as concepções jurídicas de empresa
Para resolver o problema da determinação da empresa em sentido jurídico, começam muitos autores por definições
da empresa em sentido meta ou pré-jurídica, as quais caraterizam a empresa enquanto “produto da vida” (revelado
pela análise económica, pela sociologia, pela semântica, etc.).
Ora, entre nós é recusado o “método ontológico” de definir ou formar conceitos: a empresa seria um dado ôntico
(algo que resulta da realidade do ser), havendo que ser captada na realidade. A recusa deste método assenta nas
seguintes críticas que lhe podem ser apontadas:
 Não está provado que a empresa apresente uma inequívoca identidade no mundo do ser, sendo possível uma
sua inequívoca captação » pelo contrário, investigações de diferentes quadrantes (sociologia, economia, etc.)
têm mostrado imagens variadas dela, além de que as divergências ainda se reiteram no próprio seio da cada
ramo do saber.
 Mesmo que se alcançasse uma única definição pré-jurídica de empresa, sempre se imporia provar que o direito
recebia cabalmente (ou tinha que receber) essa definição » é indubitável que o direito não recebe essa
hipotética definição inteiramente, além de que não tem se quer que a receber, já que é reconhecida a
autonomia relativa do direito em relação à económica, sociologia, etc.
Entendemos, então, que será preferível partir dos próprios dados jurídicos, captando a empresa enquanto categoria
jurídica. Isto não significa, porém, que se deva atender exclusivamente às informações e indícios jurídicos. O direito
refere sempre a empresa a algo que existe na realidade empírica, pelo que será preciso atender também às
informações que se colhem nos terrenos extra-jurídicos. Todavia, esta atenção nos dados extra-jurídicos não assume
uma função definitória, mas antes uma mera função auxiliar.
2. Conceções jurídicas de empresa
2.1 Terminologia
Para designar o fenómeno jurídico-empresarial tem-se recorrido tanto ao vocábulo “empresa”, como à palavra
“estabelecimento”. Será legítimo o emprego sinonímico destes vocábulos? Em tese geral, parece legítima a utilização
sinonímica das duas palavras. Até porque mesmo as leis não se opõem a tal equipolência. Por outra banda, a linguagem
corrente também não se opõe à equivalência “empresa”-“estabelecimento”. Assim sendo, entende-se que a clareza
ou o rigor do discurso jurídico não sofrem, em regra, com o emprego sinonímico dos dois vocábulos.
2.2 Principais aceções de empresa
No direito, as empresas revelam-se hoje em duas aceções principais:
Empresa
Em sentido objetivo Em sentido subjetivo
» empresas como instrumentos/estruturas produtivo- » empresas como sujeitos jurídicos que
económicos, objetos de direitos e de negócios exercem uma atividade económica
Estas aceções não se equivalem ou correspondem de modo a poder formar-se um conceito unitário de empresa, um
conceito geral que valha para todas as espécies empresariais e em todos os ramos do direito. Isto sem prejuízo de, na
maioria dos casos, a empresa-sujeito implicar a empresa-objeto.
2.3 As empresas em sentido subjetivo
As empresas em sentido subjetivo evidenciam-se sobretudo no direito da concorrência. No âmbito do direito europeu
da concorrência (que vigora na ordem interna dos Estados-membros, como é sabido) são empresas, primordialmente,
os sujeitos jurídicos que exercem uma atividade económica, e que, por isso, têm a possibilidade de, em cooperação,
restringir a concorrência e afetar as trocas comerciais entre os Estados-membros, ou a possibilidade de, individual ou
conjuntamente, explorar de forma abusiva uma posição dominante, com afetação do comércio intracomunitário. As
empresas aparecem aqui, então, como sujeitos de direitos e deveres. Podem estar em causa pessoas singulares ou
coletivas, bem como sociedades, associações ou outras entidades sem personalidade jurídica. Estes sujeitos jurídicos,
para serem considerados empresas, têm de exercer uma atividade económica. Todavia, tal atividade não tem de ser
necessariamente dirigida à obtenção de lucros. Nem tem de ser suportada por uma organização de trabalho
dependente e de outros fatores produtivos – noutras palavras, a empresa não tem de assentar numa organização de

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meios autonomizável em face ao sujeito, podendo a atividade empresarial depender tão-só da pessoa do sujeito (é
possível serem considerados como empresas: artistas que explorem comercialmente as suas prestações artísticas,
profissionais liberais, inventores que comercializem as suas invenções, etc.).
Esta noção de empresa vigente no direito comunitário da concorrência influenciou manifestamente a correspondente
noção portuguesa de empresa. Os diplomas mais recentes na matéria consagraram, inclusivamente, uma noção
explícita de empresa – Lei nº 18/2003 3 Lei nº 19/2012 (“Regime Jurídico da Concorrência”). As noções consagradas
nestes diplomas (quase) reproduzem a noção oferecida pelo TJUE em numerosos acórdãos [vide, sobretudo, o Ac. de
23/4/1991 – Processo C-41/90]. O diploma de 2012 alterou a noção do antecedente de 2003 substituindo última palavra
da noção consagrada neste último – “funcionamento” – pela palavra “financiamento” (a utilização da palavra
“funcionamento” era uma gralha de tradução do citado acórdão de 1991). Do preceito legal agora em vigor resulta
que as empresas são:
“sujeitos que exercem atividade económica que consista na oferta de bens ou serviços num determinado mercado”.
A oferta de bens num determinado mercado implica a troca não gratuita de bens. O oferente não tem que visar, com
a troca, a obtenção de lucro; mas não pode, em mercado, proporcionar todos os bens gratuitamente. Por conseguinte,
não exercem atividade económica caraterizadora da empresa:
 Os consumidores privados;
 O Estado e outros entes públicos que adquirem bens para satisfação de necessidades próprias, sem intenção
de os reintroduzir no mercado;
 O Estado e outros entes públicos que atuem exclusivamente no exercício de prerrogativas de poder público;
 Os trabalhadores dependentes;
 As entidades que exercem atividades exclusivamente “sociais” (baseadas no princípio da solidariedade).
Esta exclusão poderia parecer contraditória com a parte final do nº do art. 3º da Lei nº 19/2012, nos
termos da qual a qualificação de uma empresa é independente “do seu modo de financiamento”. Foi com
base neste raciocínio que o Ac. do TJ de 23/4/1991 julgou ser empresa um serviço público de emprego que
exerce gratuitamente a atividade de colocação de trabalhadores – não importaria saber quem paga os
serviços, nem a origem dos recursos para o pagamento. Ora, Coutinho de Abreu critica esta solução com base
no seguinte argumento: a “atividade económica” não é consistente com a prestação de serviços financiada
por via fiscal. Apesar de o escopo lucrativo não ser um pressuposto necessário, a verdade é que a noção de
“atividade económica” pressuposta implica uma finalidade concorrencial, isto é, o intuito de competir com
outros operadores económicos, a fim de se conseguir determinadas vantagens económicas. Como referido, a
“oferta de bens ou serviços num determinado mercado” implica a troca não gratuita de bens, ainda que essa
troca não prossiga objetivos lucrativos. As entidades que exercem atividades exclusivamente sociais, além de
não prosseguirem objetivos lucrativos, realizam trocas de bens gratuitas, pelo que não poderão ser
qualificadas como empresas para estes efeitos.
A qualificação das entidades como empresas não depende, diz também o nº 1 do art. 3º Lei nº 19/2012, do respetivo
estatuto jurídico. Significa isto, por um lado, que as empresas podem situar-se nos setores privado, público e
cooperativo (como, aliás, dispõe o art. 2º/1 Lei nº 19/2012); e, por outro, que as empresas podem apresentar formas
diversas, sujeitas a regimes diferenciados. As empresas do setor privado podem ser entidades coletivas, com ou sem
personalidade jurídica, ou pessoas singulares. No setor público, são “empresas” sobretudo as entidades públicas
estaduais, regionais ou locais, de caráter societário ou institucional (ex.: entidades públicas empresariais, etc.). No
setor cooperativo relevam as cooperativas de primeiro grau e algumas cooperativas de grau superior (mormente as
uniões de cooperativas).
O nº 2 do art. 3º Lei nº 19/2012 considera como “uma única empresa” o “conjunto de empresas” juridicamente
distintas mas que “constituem uma unidade económica” ou mantêm “laços de interdependência”.
Existirá “unidade económica” nas sociedades em relações de grupo (arts. 488º e ss. CSC) e nos conjuntos de empresas
em que, apesar de não haver relação de grupo, uma delas domina totalmente, de modo direto ou indireto, uma ou
mais sociedades, não gozando estes de real autonomia.
Por sua vez, os “laços de interdependência” decorrem, nomeadamente, de uma empresa:
a) Ter participação maioritária no capital de outra;
b) Ser titular de mais de metade dos votos atribuídos pela detenção de participações sociais;
c) Ter a possibilidade de designar mais de metade dos membros do órgão de administração ou de fiscalização;
d) Ter o poder de gerir os respetivos negócios (ex.: contrato de gestão de empresa ou de franquia).

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A norma em análise releva praticamente tão-só a propósito da proibição de concertações restritivas da concorrência
(art. 9º Lei nº 19/2012). Este art. 9º não será aplicável a acordos e práticas concertadas entre empresas do referido
“conjunto de empresas” porquanto tal conjunto é reconhecido pelo art. 3º/2 como “uma única empresa”. Todavia, já
nos parece excessivo não aplicar esse art. 9º a concertações entre empresas que mantêm entre si laços de
interdependência. Impõe-se, por isso, uma interpretação restritivo-teleológica do art. 9º Lei nº 19/2012, de modo a
não se permitir que em virtude da existência de (aparentes) relações de interdependência entre empresas se permita
a falsificação da competência.
2.4 As empresas em sentido objetivo
2.4.1 Espécies empresariais quanto ao objeto
Quanto ao seu objeto, as empresas podem assumir, fundamentalmente, duas designações:
Empresa
Comercial Não comercial
= empresas que desenvolvem atividades comerciais = empresas que não têm como objeto a prática do comércio
A estas duas categorias, pode acrescentar-se ainda a figura dos “estabelecimentos individuais de responsabilidade
limitada” (e.i.r.l.), os quais, em virtude da sua natureza de patrimónios autónomos, gozam de regime especial.
a) Empresas comerciais
Na linda do conceito exposto de “comércio” em sentido objetivo, serão comerciais as empresas através das quais são
exercidas atividades de interposição nas trocas, atividades industrial-transformadoras, serviços, etc. No fundo:
“são comerciais as empresas cujo objeto se traduza na realização de atos objetivamente mercantis”.
Neste contexto, importa definir com precisão a empresa mercantil.
Desde logo, a empresa, em termos gerais, reveste as seguintes notas caraterizadoras:
 Valor ou bem económico ou patrimonial;
 Bem transpessoal » não confundível com a pessoa que o criou ou que detém a sua titularidade;
 Bem duradouro » transferível e assumível e ainda retrotransferível e reassumível;
 Bem reconhecível e irredutível (algo distinto de outros bens, ligados ou não à própria empresa);
 Bem complexo » composto por vários elementos: (1)coisas corpóreas (ex.: prédios, máquinas, ferramentas,
mobiliário, etc.), (2)coisas incorpóreas (ex.: invenções patenteadas, modelos, marcas, logótipos, etc.) e (3)bens
não coisificáveis (ex.: prestações de trabalho e de serviços, know-how, etc.).
Deflui do exposto que a perspetiva adotada limita os “elementos da empresa” aos “fatores produtivos” (capital e
trabalho) e a outros bens que primordialmente individualizam ou identificam as empresas (entram aqui os designados
bens não coisificáveis). No entanto, autores há que incluem como elementos da empresa as “situações ou relações de
facto com valor económico”: (1) posições advenientes da organização interna das empresas, do know-how e das
experiências negociais acumuladas, (2) relações com fornecedores, financiadores e clientes e (3) outros direitos e
obrigações. Esta não nos parece, contudo, uma posição razoável: apenas o know-how deve ser, do nosso ponto de
vista, considerado como elemento da empresa, porquanto se encontra intimamente ligado ao processo produtivo (e,
como referido, identificamos os elementos da empresa com os fatores produtivos). A favor da conceção perfilhada
podem mobilizar-se alguns argumentos:
(1) Quanto às posições advenientes da organização interna da empresa: a empresa exige uma determinada
organização, mas esta organização não se confunde com a empresa nem é seu elemento componente; a
organização interna é, pura e simplesmente, um modo de estar dos meios empresariais.
(2) Quanto às relações com fornecedores, financiadores e clientes: as ligação entre estes sujeitos e a empresa não
são relações internas, mas antes relações externas; consequentemente, tais relação não podem ser integradas
no seio da empresa (como elementos da empresa), situando-se, isso sim, na periferia do núcleo-empresa.
A discussão a este propósito tem sido suscitada sobretudo em torno das relações com a “clientela”.
= círculo ou quota de pessoas (consumidores, em sentido amplo) que contactam com determinada empresa
Este círculo de pessoas pode ser composto por consumidores relativamente fixos ou habituais (“clientela fiel”)
e/ou por consumidores ocasionais ou variáveis (“clientela de passagem”). Quanto a saber se a clientela é ou
não elemento da empresa, as opiniões dividem-se:
a) Opinião dominante entre autores franceses: a relação com a clientela é elemento da empresa
b) Opinião dominante entre autores alemães: a relação com a clientela é elemento da empresa:
c) Opinião dominante entre autores italianos: a resposta dependerá de se considerar a clientela como
bem verdadeiro e próprio (objeto jurídico autónomo).

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d) Autores portugueses:
i. A relação de clientela é elemento da empresa » Barbosa de Magalhães, Ferrer Correia,
Menezes Cordeiro, entre outros.
ii. A relação de clientela não é elemento da empresa » Coutinho de Abreu, Fernando Olavo, Nuno
Aureliano, entre outros.
Como ficou já enunciado, a perspetiva entre nós acolhida recusa a qualidade de elemento da empresa
conferida à relação de clientela. Isto porque, segundo se entende, a clientela não é um meio ou instrumento
estrutural-funcionalmente inserido na organização produtiva em que a empresa consiste. As relações com a
clientela são uma consequência da organização produtiva que a empresa representa, e não um elemento
dessa organização. Com isto não se propugna, sublinhe-se, que a clientela seja mera “qualidade” da empresa.
Verdadeiramente, entre a clientela e a empresa existe uma íntima ligação, ainda que seja uma relação externa.
(3) Quanto aos direitos e obrigações: os elementos da empresa podem ser objeto de relações jurídicas,
constituindo-se, em relação a eles, direitos e obrigações, o que implica que não possam considerar-se estes
últimos também como elementos da empresa; de facto, não faz sentido primeiro falar dos meios empresariais
e depois falar de direitos e obrigações relativos a esses meios – é indiferente falar em máquinas de produção
ou no direito de propriedade sobre elas, e a referência aos elementos produtivos (capital) já inclui este meio
(não fazendo sentido repeti-lo noutra categoria, de direitos e obrigações). Ademais, os direitos e obrigações
são referenciados de forma indiscriminada, o que significa que se incluem aqueles que têm como objeto bens
que não os elementos da empresa – tais direitos e obrigações em nada tem que ver com a empresa, sendo
apenas titulados pelo empresário enquanto sujeito de direito privado e o património dos empresários não se
confunde com a empresa dos mesmos.
(4) Quanto ao dinheiro: um outro bem que por vezes surge referido como elemento da empresa é o dinheiro.
Sucede, porém, que também haverá que afastar esta qualificação com base nos argumentos já expostos: o
dinheiro é um bem exterior ao processo produtivo e à respetiva estrutura empresarial sustentadora.
[NOTA: o dinheiro, bem como os créditos e obrigações, serão já considerados como elementos da empresa
nos casos excecionais da empresas bancárias e de seguros.]
Ora, ficou então justificada a conceção acolhida, segundo a qual são “elementos da empresa” apenas os fatores
produtivos e outros bens que a identifiquem ou individualizem. E ficou patente que a justificação fundamental para
esta conceção é a de que apenas tais bens integram o processo produtivo que sustenta a empresa, isto é, somente
esses bens se podem dizer estrutural-funcionalmente inseridos na organização produtiva que é a empresa. E isto
porque os “elementos da empresa” não podem ser perspetivados como objetos individuais de cuja soma resulta a
empresa. Ao invés, estes bens são “peças” de um sistema, de uma organização, que é considerado/a como um todo.
Assim que os vários bens são articulados estavelmente com vista à consecução de um fim (portanto, integrados na
empresa), eles perdem a sua individualidade e autonomia, passando a constituir um todo que é a empresa. A empresa
é um complexo de elementos, uma unidade, global e não elementar, e original. No fundo, estamos em face de um
“todo que é mais do que a soma das suas partes”, com propriedades novas.
Além disso, a empresa descobre-se-nos como sistema “aberto”, em intercâmbio com o exterior, com o “mercado”.
Deste intercâmbio resultarão as referidas “relações de facto com valor económico” com fornecedores, financiadores
e clientes, relações essas que constituem como que um campo de forças ligado à empresa.
! Em suma, a empresa manifesta-se como sistema autossuficiente e autónomo – um ente com identidade própria,
como tal reconhecido no mundo macro-económico.
Chegados a este ponto, importa atentar em algumas “situações de fronteira” que podem gerar dúvidas:
 Organização produtiva apta a funcionar mas que ainda não entrou em funcionamento: uma organização que,
já possuindo valores de organização, ainda não disponha de valores de exploração poderá ser considerada
como empresa?
A empresa, como sistema organizatório, é composta por dois tipos de “valores” ou “elementos”.
Valores de organização VS Valores de exploração
= bens ligados entre si por uma lógica específica para = bens externos à organização mas que se encontram na
a prossecução de um fim sua periferia, cumprindo funções auxiliares
Integram-se aqui os “elementos da empresa”: Demais bens associados à empresa:
 Fatores produtivos (capital e trabalho);  Posições advenientes da organização interna;
 Bens que individualizam a empresa.  Relações com fornecedores, financiadores e clientela;
 Direitos e obrigações.

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Entende-se que, em princípio, não haverá que falar de empresa enquanto a organização não tiver “aberto ao
público”, porquanto só aí se verificarão os elementos de exploração que, embora não integrem o núcleo da
empresa (não são “elementos da empresa”), são essenciais à realização dos seus fins. Não obstante, na
doutrina portuguesa tem-se entendido que um complexo de bens de produção organizados, embora ainda
não em funcionamento, pode ser considerado empresa comercial. E sê-lo-á, à partida, se (1)já se revelar
minimamente apto para realizar um fim económico-produtivo jurídico-comercialmente qualificado e se (2)esse
fim não for perder autoridade pela natureza do sujeitos que porá o complexo em funcionamento nem em
decorrência de outras circunstâncias. Cumpridos estes pressupostos, existe já um bem jurídico novo – uma
organização produtiva não redutível a bens meramente agregados, um sistema identificável autonomizado. O
direito não pode, portanto, deixar de vê-lo como verdadeira empresa. Daqui que se, por exemplo, um desses
complexos, ainda não aberto ao público mas com a abertura anunciada, for alienado entretanto, se deva
aplicar o regime próprio do trespasse de estabelecimento comercial. Havendo já empresa, apesar de ainda
não funcionar, há já aviamento. De facto, o estabelecimento já possui capacidade produtiva, aptidão para
realizar o fim para que foi criado. A existência de clientela efetiva não é, pois, necessária, na medida em que
o aviamento real se traduz numa qualidade da organização em si mesma. E quando exista, a clientela é apenas
uma das manifestações do aviamento do estabelecimento.
 Complexo de bens produtivos que ainda não entrou em funcionamento e que carece, para isso, de um ou mais
elementos: uma organização que já possui alguns valores de organização, embora ainda não todos, e que não
disponha ainda de valores de exploração pode ser considerada como empresa?
Em princípio, um complexo de bens nestes termos não poderá ainda ser qualificado como empresa. Desde
logo, não dispõem ainda de todos os fatores produtivos necessários ao seu funcionamento. Depois, não possui
ainda valores de exploração. Assim sendo, dir-se-á que tal estabelecimento está ainda em formação. No
entanto, nem sempre a resposta será tão linear. Pode, de facto, suceder que estejamos já perante um conjunto
de bens heterogéneos e complementares devidamente organizados com vista à consecução de determinado
fim. Tais elementos organizados podem já projetar-se no público com imagem de bem novo, de algo que não
se reduz ao mero somatório de bens singulares. Neste caso, ainda que falta um bem necessário ao
funcionamento e ainda que não existam valores de exploração (o que é evidente, já que estes só poderão
existir depois do início do funcionamento), já podemos falar de empresa, na medida em que, para o público,
há já o bem-empresa, distinguível dos vários elementos que o compõem. O que se exige é, portanto, que já
esteja reunido o “âmbito mínimo” da empresa (vide infra o que será dito a este respeito).
= conjunto de bens que, combinados, projetam no público a imagem de uma nova organização-
unidade com potencial para atuar autonomamente no mundo da produção para a troca
 Estabelecimento que tenha entrado em funcionado mas que é transmitido sem alguns dos seus elementos ou
que cujos elementos físicos são destruídos por fenómenos naturais: quando as partes de um negócio de
transmissão da empresa convencionam a exclusão de certos elementos, podemos continuar a falar em
transmissão da “empresa” ou antes da transmissão de elementos desta?
Sublinhe-se, desde já, que não é possível responder a esta questão a priori. Haverá, a este respeito, que
distinguir as seguintes hipóteses:
a) Manteve-se o âmbito mínimo da empresa » apesar da exclusão de alguns elementos da venda ou sua
destruição, a empresa manter-se-á se subsistirem os bens necessários para exprimir a permanência
do sistema-todo diferente da soma das partes.
b) O âmbito mínimo da empresa não é integralmente transmitido ou não subsiste na sua totalidade » a
empresa não poderá considerar-se transmitida ou subsistente, passando a identificar-se tão-só um
conjunto de elementos dispersos, sobre os quais podem incidir, obviamente, negócios jurídicos.
[NOTA: o âmbito mínimo da empresa pode ser constituído tanto por “valores de organização” como por
“valores de exploração”, dependendo das caraterísticas específicas do estabelecimento. Constata-se, todavia,
que à medida que a empresa se mantém em funcionamento, a sua individualização perante o público depende
menos dos valores de organização e mais dos valores de exploração – uma empresa há muitos anos no
mercado já não dependerá tanto do imóvel onde se encontra sediada, nem tanto das máquinas, etc.
porquanto a marca, em si mesma, e as relações firmadas com a clientela regular ou orgânica serão suficientes
para que o público reconheça o bem-empresa na sua unidade. Isto sem prejuízo de sempre haver que incluir
elementos da empresa no âmbito mínimo.]

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 Secções e sucursais de uma empresa: as secções ou sucursais de uma empresa podem ser qualificadas, elas
próprias, como empresas?
Importa, para este efeito, distinguir as duas figuras referidas:
Sucursal Secção
= casa ou loja que depende de um sede ou que a = divisão ou repartição necessária ou útil para a
representa, ainda que com autonomia realização da atividade empresarial
 Dependência em relação à empresa principal: nela
efetuam-se apenas negócios integrantes do objeto Parte componente da empresa
da empresa e está sujeita à direção geral desta; (Exs.: armazém, local de venda ao público, local
 Autonomia em relação à empresa principal: além de onde é realizado o fabrico, etc.)
separada espacialmente do estabelecimento
principal, possui contabilidade separada,
personalidade judiciária, competência para celebrar
certos negócios e alguma liberdade de gestão
Enquanto as secções não podem subsistir na falta da empresa (são parte desta), as sucursais podem deixar de
se identificar com o todo empresarial de que fazem parte, transformando-se em estabelecimentos comerciais
autónomos – sobretudo se forem alienadas separadamente.
Como ficou já demonstrado, o estabelecido é, segundo a nossa perspetiva, uma unidade jurídica. De facto, a maioria
dos autores portugueses vê na empresa um objeto jurídico unitário, ao qual é conferida tutela autónoma.
Contudo, não versámos ainda sobre a questão de saber se a empresa comercial é uma coisa, nomeadamente uma
coisa suscetível de ser objeto do direito de propriedade. Ora se é coisa “tudo aquilo que pode ser objeto de relações
jurídicas” (art. 202º/1 CC), a empresa, como unidade jurídica objetiva, é uma coisa. Com efeito, verificam-se em
relação à empresa os pressupostos da coisa: (1)impessoalidade, (2)autonomia, (3)utilidade e (4)apropriabilidade. E será
esta uma coisa corpórea ou incorpórea ou imaterial. Entendemos que o estabelecimento, integre ou não bens
materiais (em princípio, uma empresa não dispensa meios corpóreos), não é igual à mera soma dos seus elementos.
Ao invés, a empresa é, repetimos, uma organização ou sistema com individualidade e qualidades próprias, algo que se
diferencia das suas “peças” por assumir unidade própria. Daí que, propugnamos, ele deve ser considerado como coisa
incorpórea (complexa). Autores que defendem a posição contrária, convocando a favor dessa conceção a ideia de que
a empresa só muito excecionalmente poderia dispensar meios corpóreos (nem que seja, por exemplo, um
computador, no caso das empresas tecnológicas, que serão, porventura, aquelas que mais dispensam meios
corpóreos). Sucede porém, que esta posição implica uma visão da empresa como uma agregação de vários bens com
individualidade, na medida em que em vez de olhar para “a empresa” refere-se aos “meios que a compõem”. Não há
aqui uma visão de conjunto que nos parece fulcral. Ora, esta perspetiva suscita, contudo, um problema: o art. 1302º
CC dispõe que “só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem ser objeto do direito de propriedade regulado neste
código [Civil]”. Não obstante, a verdade é que diversas normas legais afirmam a possibilidade de a empresa ser objeto
do direito de propriedade, e de outros direito reais.
O facto e se reconhecer a propriedade sobre a empresa implica três corolários de extremo relevo:
 Admissibilidade da “reivindicação” do estabelecimento – arts. 1311º e ss. CC;
 Possibilidade de “posse” sobre a empresa (com todas as consequências daqui advenientes) – arts. 1251º e ss. CC;
 Possibilidade de “responsabilidade civil extracontratual” em virtude da violação do direito de propriedade
(direito absoluto) sobre a empresa – art. 483º/1 CC.
Depois de todas as considerações expostas, pode já enunciar-se uma definição de “empresa comercial”:
“unidade jurídica fundada numa organização de meios que constitui um instrumento de exercício
relativamente estável e autónomo de uma atividade comercial”.
b) Estabelecimento individual de responsabilidade limitada
Os bens de uma “normal” empresa comercial pertencente a uma pessoa singular respondem quer pelas dívidas
contraídas na exploração dessa empresa quer por quaisquer outras do respetivo titular; por sua vez, pelas dívidas
resultantes da exploração dessa empresa tanto respondem os bens a ela afetados como outros bens do empresário.
O “estabelecimento individual de responsabilidade limitada”, instituído pelo DL nº 248/86, de25 de agosto, constitui
uma exceção a este regime geral: no seu âmbito há uma limitação da responsabilidade empresarial-mercantil das
pessoas singulares. Na verdade, o e.i.r.l. é um património autónomo, o que significa que os bens a ele afetado
respondem apenas pelas dívidas contraídas no desenvolvimento das atividades de que ele é instrumento (já não
respondendo pelas dívidas “pessoais” do empresário) e por estas dívidas, contraídas no exercício da atividade

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comercial do e.i.r.l., respondem apenas aqueles bens (e já não os demais bens na titularidade do empresário). No
fundo, verifica-se aqui a afetação de determinado património à empresa, de tal forma que apenas esse património
reponde pelas dívidas da empresa e tais dívidas só poderão ser pagas através daquele património.
Pergunta-se então: o facto de o e.i.r.l. ser um património autónomo implica que ele não deva ser considerado
verdadeira empresa comercial? Parece-nos que não. Com efeito, o e.i.r.l. é constituído para o exercício de uma
atividade comercial (art. 1º/1 e 10º/1 DL nº 248/86). O exercício do comércio implicará, as mais das vezes, um
estabelecimento mercantil, que prossiga essa atividade. Quer isto dizer que, em regra, o património separado tende
a consubstanciar-se na empresa, com a especificidade de estar “separado” do restante património do
“titular”/empresário. É esta a ideia que parece subjacente à norma que regula os negócios jurídicos e direitos sobre o
estabelecimento (art. 21º DL nº 248/86) – por ex. admite-se aí o penhor ou a locação do e.i.r.l.
c) Empresas não comerciais
Nesta categoria incluem-se todas as empresas cujo objeto não seja o comércio. Portanto, estão em causa empresas
que não realizam atos de comércio objetivos. Podemos enunciar as seguintes:
 Empresas de indústria extrativa » estas empresas não estão previstas como comerciais em qualquer norma
legal e não parece existir norma respeitante a outro tipo de empresas mercantis que se lhes possa aplicar por
analogia legis, assim como não será razoável convocar a este respeito a analogia iuris.
 Empresas agrícolas » as explorações agrícolas, bem como as organizações industriais-transformadoras
auxiliares da atividade agrícola do produtor, não são empresas mercantis tanto porque não se encontram
especialmente reguladas na lei comercial, como porque a sua exclusão do âmbito da comercialidade resulta
dos arts. 230º/1 e 2 e 464º/2 CCom. Neste conceito deverão ser incluídas, note-se, além das empresas
agrícolas em sentido estrito, as empresas silvícolas, as empresas pecuárias e as empresas de cultura de plantas.
 Empresas artesanais » a atividade artesanal é excluída da comercialidade pelo parágrafo 1º do art. 230º CCom.
Deve entender-se, para estes efeitos, como “artesão” o produtor qualificado que, podendo embora servir-se
de máquinas, utiliza prevalecentemente o seu trabalho manual e, como instrumentos, ferramentas. As
empresas artesanais (para quem as reconheça) serão, portanto, constituídas pelo artesão e por alguns
auxiliares e/ou aprendizes.
NOTA: caso o “artífice” não exerça diretamente a atividade, limitando-se á direção administrativa, comercial
ou financeira da empresa, podemos já falar em atividade comercial.
 Sociedades de profissionais liberais » as organizações amplas de profissionais liberais não são considerados
como empresas comerciais na medida em que a atividade desenvolvida não é uma atividade comercial, mas
antes uma atividade puramente intelectual. Ademais, poderá advogar-se que tais sociedades e os respetivos
consultórios, escritórios ou estúdios, bem como evidentemente os profissionais liberais singulares, não
chegam sequer a ser “empresas”, na medida em que os instrumentos de trabalho não têm autonomia
funcional – a atividade do sujeito exaure praticamente o “processo produtivo”; o que avulta é a pessoa do
profissional, e não a organização envolvente.
2.4.2 As empresas e os seus sujeitos jurídicos
Quanto aos seus sujeitos jurídicos, as empresas podem agrupar-se em três categorias:
a) Empresas do setor público;
b) Empresas do setor privado;
c) Empresas do setor cooperativo e social.
Caraterizaremos sumariamente cada uma destas categorias:
a) Empresas do setor público
Integram-se neste setor fundamentalmente as:
 Empresas públicas: organizações empresariais constituídas sob a forma de sociedade de responsabilidade
limitada, nos termos da lei comercial, nas quais o Estado ou outras entidades públicas possam exercer, isolada
ou conjuntamente, de forma direta ou indireta, influência dominante – art. 5º/1 DL nº 133/2013, de 3 de
outubro (Regime Jurídico do Setor Público Empresarial).
 Empresas participadas: organizações empresariais em que o Estado ou quaisquer outras entidades públicas,
de caráter administrativo ou empresarial, detenham uma participação permanente, de forma direta ou
indireta, desde que o conjunto das participações públicas não origine influência dominante – art. 7º/1 DL nº
133/2013.
NOTA: nos termos do art. 2º DL nº 133/2013, o setor público empresarial subdivide-se em várias categorias:

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Setor Público Empresarial (SPE)
Setor Empresarial do Estado (SEE) Setor Empresarial Local (SEL):
Empresas Públicas Empresas Participadas Empresas Locais
 Entidades Públicas Empresariais: pessoas coletivas de direito público, com denominação parcialmente
taxativo-exclusiva criadas pelo Estado que formam e/ou exploram organizações de meios produtivos de bens
para a troca, de modo a satisfazerem interesses público-estaduais – art. 56º DL nº 133/2013.
 Empresas locais: sociedades constituídas ou participadas nos termos da lei comercial, de responsabilidade
limitada, nas quais as entidades públicas participantes, que serão municípios, ou associações de municípios,
ou áreas metropolitanas, possam exercer, de forma direta ou indireta, uma influência dominante, e cujo
objeto serão atividades de interesse geral e/ou de promoção do desenvolvimento local e regional – art. 19º/1
Lei nº 50/2012, de 31 de agosto (Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local e das Participações Locais).
Podem estar em causa:
 Empresas municipais;
 Empresas intermunicipais;
 Empresas metropolitanas.
 Serviços municipalizados: empresas municipais desprovidas de personalidade jurídica e integradas na
estrutura organizacional do município que têm como objeto uma ou mais das seguintes áreas prestacionais:
 Abastecimento público de água;  Gestão de resíduos urbanos e limpeza
 Saneamento de águas residuais urbanas; pública;
 Transporte de passageiros;  Distribuição de energia elétrica.
Todas as empresas supramencionadas gozam, como exposto, de regimes próprios de direito público.
b) Empresas do setor privado
A propriedade ou gestão de uma empresa privada pode pertencer a:
 Uma pessoa singular;
 Várias pessoas singulares: empresa bem comum dos cônjuges casados em regime de comunhão de adquiridos
(arts. 1721º e ss. CC) ou de comunhão geral (arts. 1732º e ss. CC); empresa-herança indivisa de dois ou mais
herdeiros (arts. 2050º e ss. CC); empresa de sociedade pluripessoal não personalizada (arts. 980º e ss. CC e
arts. 36º/2 e ss. CSC); empresa de associação sem personalidade jurídica (arts. 195º a 198º CC).
 Uma pessoa coletiva;
 Agrupamentos Complementares de Empresas (ACE) – DL nº 430/73, de 25 de agosto;
 Associações e fundações.
Não é, portanto, correto, reduzir a titularidade de empresas do setor privado às pessoas singulares e coletivas
consideradas isoladamente.
c) Empresas do setor cooperativo e social
Neste setor encontramos:
 Empresas cooperativas;
 Empresas em autogestão;
 Empresas comunitárias;
 Empresas de entidades coletivas sem caráter lucrativo e com fins de solidariedade social.
De todas estas categorias, releva sobretudo aquela primeira. O art. 2º/1 CCoop. dá-nos a noção de cooperativa: “as
cooperativas são pessoas coletivas autónomas, de livre constituição, de capital e constituição variáveis, que, através
da cooperação e entreajuda dos seus membros, e com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins
lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles”. Daqui decorre que
nem sempre as cooperativas são empresas; porém, a correspondência verifica-se as mais das vezes.
As cooperativas podem assumir, de forma geral, três espécies:
 Cooperativas de consumo: cooperativas que têm por objeto principal fornecer aos seus membros e respetivo
agregado familiar, nas melhores condições de qualidade e preço, bens ou serviços destinados ao seu consumo
ou uso direto – art. 2º/1 DL nº 522/99, de 10 de dezembro.
 Cooperativas de produção: cooperativas em que todos os cooperadores são trabalhadores e em que os
excedentes das sua respetivas produções são repartidos por todos eles.

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 Cooperativas de venda: cooperativas cujo escopo é a substituição, pelos cooperadores, dos intermediários-
comerciantes, de modo a evitar que parte do valor dos produtos por si produzidos fique nas mãos destes
últimos a título de lucros.
Uma questão que tem sido muito discutida é a natureza não lucrativa das cooperativas. De facto, pode concluir-se que
o excedente que as cooperativas distribuem pelos cooperadores não pode ser considerado “lucro”. Ademais, todos os
excedentes que são reconduzidos às reservas das cooperativas constituem “lucros não suscetíveis de repartição”. E,
se no âmbito da economia os conceito de “lucro” e “escopo lucrativo” andam indissociavelmente associados, o mesmo
não sucede no domínio jurídico. Com efeito, o “lucro” só implicará um “escopo lucrativo” da entidade quando ele for
obtido com o intuito de ser repartido pelos sócios. Daqui conclui-se, então, que apesar de haver um “lucro”
reconduzido às reservas das cooperativas, tal lucro não acarreta o escopo lucrativo das cooperativas.
Há, contudo, um elemento perturbador neste contexto: a possibilidade de pagamento de juros pelos títulos de capital
(art. 88º CCoop.). Esta remuneração é, na verdade, um rendimento do capital, um lucro. E tal verba beneficiará
cooperadores à custa de outros cooperadores. Ainda assim, esta remuneração dos títulos de capital não passa de uma
“eventualidade”... Por conseguinte, não nos parece despiciendo dizer que as cooperativas não têm escopo lucrativo.
Tendo em conta todas as considerações precedentes, podemos definir genericamente a empresa em sentido
objetivo do seguinte modo:
“unidade jurídica fundada em organização de meios que constitui um instrumento de exercício relativamente
estável e autónomo de uma atividade de produção para a troca”.
Como é possível constatar, o conceito de empresa apresentado não faz qualquer menção ao lucro ou escopo lucrativo.
E assim é porque, se é inegável que as empresas são normalmente instrumentos para a consecução de lucros, a
verdade é que tal escopo lucrativo não é essencial à definição do conceito de “empresa” em termos amplos –
designadamente, não têm escopo lucrativo as empresas públicas, as empresas cooperativas, os ACE e os AEIE...
3. Negócios sobre as empresas: trespasse
3.1 Noção; forma
O trespasse é definível como:
“a transmissão da propriedade de uma empresa por negócio inter vivos”.
Caraterísticas principais:
 Tem como objeto a empresa (comercial ou não comercial);
 Consiste na transmissão da propriedade;
 Tem caráter definitivo ;
 Pode ser um negócio oneroso ou gratuito;
 É um negócio inter vivos.
Este conceito é um conceito elástico, no seio do qual se encontram diversas figuras negociais (ex.: compra e venda,
doação, dação em cumprimento, etc.).
Durante muito tempo a forma exigida para o trespasse foi a escritura pública. Depois do ano 2000, contudo, passou a
exigir-se simples documento escrito. Entretanto, com a entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano,
deixou de existir norma legal expressa neste sentido. Ainda assim, entende-se que continua a ser exigível o documento
escrito, por interpretação extensiva do art. 1112º/3 CC. Aplicamos este preceito, que no seu teor literal pretende
aplicar-se somente à transmissão da posição do arrendatário, porquanto ele veio substituir o art. 115º/3 do Regime
do Arrendamento Urbano (revogado).
[NOTA: a norma respeitante à forma legal do trespasse constava do diploma respeitante ao arrendamento urbano (RAU) porque
aí se dispunha que a transmissão da posição de arrendatário se dá independentemente do consentimento do senhorio em caso
de trespasse do estabelecimento. A este respeito acrescentava o referido nº 3 do art. 155º RAU que o trespasse só seria válido se
reduzido a escrito – e isto relevaria neste domínio porque a transmissão da posição do arrendatário só seria imposta ao senhorio
se o trespasse efetuado fosse válido.]
A favor deste entendimento – da exigência de documento escrito – militam ainda outras normas legais:
 Art. 44º/1 e 4 RRNPC » a transmissão de firma depende da forma escrita;
 Arts. 31º/5 e 6 e 304º-P/3 CPI » a transmissão de marca ou logótipo exige escrito;
 Art. 18º/4 DL nº 307/207 » o trespasse de farmácia deve observar a forma escrita.
3.2 Âmbitos de entrega

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Num concreto negócio de trespasse gozam as partes de liberdade para excluírem da transmissão alguns elementos da
empresa. Todavia, tal exclusão não pode abranger os bens necessários ou essenciais para identificar a empresa como
unidade ou objeto individual. Por outras palavras: o trespasse qua tale depende da transmissão do “âmbito mínimo”
da empresa, ou seja, da não exclusão dos elementos que integram esse âmbito mínimo do negócio que pretende
operar a transmissão do estabelecimento. Podemos definir o “âmbito mínimo da empresa” como:
“conjunto de elementos da empresa [vide supra: Cap. III, 2.4.1] que, combinados, projetam no público a imagem
de uma nova organização-unidade com potencial para atuar autonomamente no mundo da produção para a troca (do
comércio) e que, por isso, são os elementos necessários e suficientes para a transmissão do estabelecimento em que
consiste essa organização-unidade”.
Desrespeitando-se o âmbito mínimo da entrega, o trespasse fica impossibilitado. Isto porque, na sequência do foi dito,
o trespasse tem como objeto a “empresa” e na falta de elementos do âmbito mínimo deixa de haver “empresa”, como
unidade jurídica, e passam a existir tão-só bens independentes/autónomos que estão mais ou menos interligados
entre si. Consequentemente, em lugar do trespasse, o que haverá é um negócio translativo sobre os bens singulares,
e não um negócio sobre a empresa.
Valores de organização (= elementos da
Empresa empresa)
Âmbito mínimo Valores de exploração (= situações de
facto com valor patrimonial)
O âmbito mínimo de uma empresa não pode ser definido a priori, ou em abstrato. De facto, a determinação dos
elementos da empresa que integram esse âmbito deve ser feita em concreto, atendendo às especificidades de cada
empresa. Para certas empresas, a sua unidade e identidade junto do público depende (também) da marca ou do
logótipo; para outras, a marca ou o logótipo são dispensáveis e assume relevo fundamental o know-how; para outras
ainda poderá ser fundamental o prédio em que a empresa está instalada ou as máquinas utilizadas; etc.
Fora o âmbito mínimo, os elementos constitutivos da empresa podem ser reconduzidos a duas categorias:
Âmbito Natural Âmbito Convencional
= elementos que se transmitem ex silentio com a = elementos que apenas se transmitem por estipulação
empresa trespassada, isto é, independentemente da das partes, ou seja, que não são transmitidos no
estipulação das partes silêncio das partes
Elementos aqui integrados normalmente: Elementos aqui integrados normalmente:
 Logótipos e marcas(*);  Firma(*);
 Máquinas e utensílios;  Logótipo e marca(*) (quando neles figure o
 Mobiliário; nome individual, firma ou denominação do
 Matérias-primas e mercadorias; titular trespassante);
 Inventos patenteados;  Créditos do trespassante ligados à
 Modelos de utilidade; exploração da empresa mas cujos objetos
 Desenhos ou modelos; não são meios do estabelecimento(*);
 Prestações laborais(*);  Dívidas a favor de trabalhadores(*);
 Posição do locatário financeiro(*);  Coimas aplicadas pela prática de contra-
ordenações laborais(*);
 Posição do arrendatário(*);
 Dívidas à segurança social(*);
 Know-how.  Dívidas respeitantes a e.i.r.l.
[NOTA: o símbolo (*) identifica os elementos incluídos nos respetivos âmbitos por expressa previsão legal.]
! Os elementos integrantes do “âmbito mínimo” podem tanto integrar-se no “âmbito natural” como no “âmbito
convencional”. Isto implica que as disposições do contrato de trespasse a eles respeitantes assumam especial relevo,
Ora veja-se as hipóteses que poderão verificar-se:
1. Elementos do âmbito mínimo incluídos no âmbito natural:
a) Silêncio das partes » transmitem-se ainda assim » há trespasse da empresa;
b) Convenção das partes a afastar a sua transmissão » não se transmitem » não há trespasse da empresa.
2. Elementos do âmbito mínimo incluídos no âmbito convencional:
a) Silêncio das partes » não se transmitem » não há trespasse da empresa;
b) Convenção das partes a determinar a sua transmissão » transmitem-se » há trespasse da empresa.
Assim, deixará de se poder falar em trespasse da empresa, por falta da transmissão dos elementos pertencentes ao
respetivo âmbito mínimo de entrega, quando as partes afastem expressamente a transmissão de tais elementos, no
caso de os elementos em causa pertencerem ao âmbito natural, ou quando as partes nada dispuserem sobre a
transmissão dos elementos, caso os elementos envolvidos pertençam ao âmbito convencional.

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Atente-se agora com mais pormenor nos referidos elementos incluídos no âmbito natural e convencional, de modo a
compreender-se a sua inserção num e noutro grupo:
a) Âmbito natural
Os logótipos e as marcas incluem-se no âmbito natural por força da lei. Com efeito, dispõe o art. 304º–P/3 do Código
da Propriedade Intelectual: “(...) a transmissão do estabelecimento envolve o respectivo logótipo, que pode continuar
tal como está registado, salvo se o transmitente o reservar para outro estabelecimento, presente ou futuro”. Deverá
incluir-se aqui, também, a marca, por interpretação extensiva, sempre que nela não constar o nome individual, firma
ou denominação do titular – por interpretação a contrario do art. 31º/5 CPI.
Quanto aos outros elementos, a lei é omissa. Sabemos no entanto que o estabelecimento é uma organização de meios
para o exercício de uma atividade de produção destinada à troca. Sabemos também que ele é um bem jurídico
complexo-unitário e uma coisa (em sentido jurídico). O mais razoável será, portanto, que os elementos dessa
organização sobre os quais a lei é omissa se transmitam naturalmente. De todos os elementos enunciados, um há que
tem suscitado na doutrina alguma controvérsia: os prédios. A este respeito a doutrina divide-se:
a) Posição tradicional – Orlando de Carvalho: o trespasse não implica a transmissão do prédio onde a empresa
funciona – o autor inclui este bem naquilo que designava de “âmbito convencional máximo”;
b) Coutinho de Abreu, Barbosa de Magalhães, Ferrer Correia: o trespasse implica a transmissão do prédio
porquanto não há razões para tratar de forma diferente este elemento da empresa em comparação com os
demais elementos não mencionados pela lei.
Esta última é a posição entre nós acolhida. Entende-se que os imóveis assumem uma importância elevada na estrutura
organizatório-exploracional das empresas.
A este respeito há uma outra questão que é suscitada. A partir do ano 2000 deixou de ser exija a forma de escritura
pública para o trespasse, como foi já referenciado. Basta hoje um mero documento escrito. Tendo em conta que a
nossa lei (arts. 947º e 875º CC) exige hoje, para a validade dos negócios de transmissão inter vivos de direitos reais, a
escritura pública ou documento particular autenticado, pergunta-se: quando o trespasse da empresa implicar a
transmissão do direito de propriedade (ou outro direito real) sobre o prédio bastará o escrito simples ou será exigível
a escritura pública ou o documento particular autenticado? Entendemos que bastará o escrito simples. A favor desta
opção, convocamos sobretudo os seguintes argumentos:
 O imóvel, quando integrado na empresa, perde a sua individualidade, passando a constituir mera “parte” do
“todo” unitário que é a empresa. Assim, também o negócio que incide sobre a empresa (trespasse) é um
negócio unitário, que abrange toda a empresa. Consequentemente, não é compreensível que se exija uma
forma para a transmissão de certos elementos e outra forma para a transmissão de outros; todos estes
elementos são constituintes de um objeto jurídico uno e é sobre este objeto que incide o negócio, sendo que
a lei apenas exige para ele a forma de escrito simples.
 Se o legislador pretendesse exigir a forma de escritura pública nestes casos não teria alterado o preceito que
exigia essa forma para o trespasse ou então, quando o fez, salvaguardaria esta hipótese. Ao eliminar a
exigência da escritura pública, sem mais, o legislador deu a entender não exigir aquela forma solene para o
trespasse em caso algum (portanto, mesmo que ele implique transmissão de imóvel).
 O art. 101º/1/g) CRPred. dispõe que “são registados por averbamento às respetivas inscrições (...) a
transmissão de imóveis por efeito (...) de trespasse de estabelecimento comercial”. Portanto, a própria letra
da lei menciona que a transmissão do imóvel se dá “por efeito” do trespasse. E uma vez que para o trespasse
baste o escrito simples, então também bastará para a transmissão do imóvel, porquanto esta é uma
decorrência daquele.
Todos os elementos da empresa até aqui referidos pertenciam ao titular/trespassante. Daí que eles se consideram
como integrados no âmbito natural do trespasse: com o trespasse transmite-se a propriedade sobre todos esses
elementos, pois só assim haverá transmissão da propriedade sobre a empresa. Mas então e que dizer sobre os
elementos empresariais na disponibilidade do trespassante a título obrigacional? Por força da lei, continuam a contar-
se entre os elementos do estabelecimento trespassado as prestações laborais a que os trabalhadores subordinados
se haviam obrigado perante o trespassante – art. 285º/1 CT. Quanto à transmissão da posição do arrendatário e do
locatário financeiro, a lei refere que estas são “permitida[s]” (arts. 1112º/1/a) CC e 11º/1 DL nº 149/95). Daqui decorre,
segundo a nossa perspetiva (e a de muitos autores), a inclusão de tais elementos obrigacionais no âmbito natural. Por
último, também o know-how deverá ser incluído no âmbito natural de entrega, pois este é um elemento de extrema
importância para que haja uma efetiva entrega da unidade funcional e jurídica que é a empresa.

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b) Âmbito convencional
A lei refere expressamente a inclusão da firma no âmbito convencional da empresa: “o adquirente (...) de um
estabelecimento comercial pode aditar à sua própria firma a menção de haver sucedido na firma do anterior titular do
estabelecimento, se esse titular o autorizar, por escrito” (art. 44º/1 RRNPC). Na linha do que já foi dito, também
integrarão este âmbito a marca e o logótipo quando neles figure nome individual, firma ou denominação do titular
anterior do estabelecimento (art. 31º/5 CPI). Noutro prisma, decorre ainda dos arts. 577º e ss. CC que poderá o
trespassante-credor ceder ao trespassário, por acordo, os créditos que detenha ligados à exploração da empresa mas
cujos objetos não sejam meios da empresa.
As posições contratuais e os créditos já não serão incluídos nem no âmbito natural nem no âmbito convencional, na
medida em que a sua transmissão não depende apenas da vontade das partes – trespassante e trespassário – mas
também do consentimento de um terceiro – a contraparte ou o credor (valem aqui as regras dos arts. 424º e ss. CC).
Mais debatida é a transmissão singular de dívidas. A jurisprudência e a doutrina dominantes negam, atualmente, a
transmissão automática das dívidas. De harmonia com o art. 595º CC, a transmissão a título singular de dívidas
referentes a empresa só pode verificar-se por acordo entre o trespassante e o trespassário e mediante “ratificação”
dos credores, ou sem consentimento do trespassante mas com o acordo de trespassário e credores. Portanto, em
todo o caso não basta o acordo das partes do trespasse, exigindo-se o consentimento de terceiros – os credores.
Excecionalmente, o trespassário terá que responder por dívidas anteriores ao trespasse: no caso de dívidas aos
trabalhadores e de coimas aplicadas pela prática de contra-ordenações laborais – nos termos do art. 285º/1 e 2 CT; e
no caso de dívidas à segurança social – de acordo com o art. 209º/2 CRCSPSS. Por último, também se dará a
transmissão das dívidas respeitantes ao estabelecimento individual de responsabilidade limitada trespassado.
3.3 Obrigação implícita de não concorrência
A obrigação de não concorrência, decorrendo implicitamente dos negócios de alienação das empresas (não sendo
necessária, portanto, qualquer estipulação ad hoc), é reconhecida pela jurisprudência e doutrina, nacionais e
estrangeiras. Esta obrigação significa, de forma linear, que o trespassante de estabelecimento fica em princípio
obrigado a não concorrer com o trespassários, durante um certo período de tempo e num certo espaço geográfico.
Para uma obrigação nestes termos têm sido avançados fundamentos diversos:
 Princípio da boa fé na execução dos contratos (Alemanha e Espanha);
 Princípio da equidade;
 Usos do comércio;
 Concorrência leal;
 Garantia contra a evicção;
 Dever do alienante de entregar a coisa alienada e assegurar o seu gozo pacífico.
É este último o fundamento prevalecente entre nós (e em Itália). De facto, a empresa que se assume neste contexto
como objeto do negócio é um bem complexo – com valores de organização e exploração [vide supra: Cap. III, 2.4.1, a)].
O alienante/trespassante conhece as caraterísticas organizativas da empresa (valores de organização) e manteve
relações pessoais com financiadores, fornecedores e clientes (valores de exploração). De tal modo que a concorrência
por ele exercida (a uma empresa de que já foi proprietário) seria manifestamente desleal e, mais ainda, seria uma
concorrência que poderia pôr em risco a subsistência da empresa alienada. Porque assim é, essa concorrência estaria,
ao fim e ao cabo, a impedir ao adquirente/trespassário o verdadeiro gozo da coisa. E, como se compreende, este é um
pressuposto absolutamente fundamental de qualquer negócio de transmissão.
Deste modo, a obrigação implícita de não concorrência pode intervir na generalidade dos negócios incluíveis no
conceito de “trespasse”: compra e venda (voluntária, executiva ou falência), troca, realização de entrada social, dação
em cumprimento e doação. Note-se, porém, que quanto à subsistência desta obrigação de não concorrência nos casos
de compra e venda falência (integrada em processo de insolvência) os autores divergem: há quem entenda que a
obrigação de não concorrência não se mantém nestes casos, porque o insolvente não está na mesma posição em que
se encontra um trespassante “normal”; e há quem entenda que a obrigação se mantém, porquanto, apesar do seu
contexto (o processo de insolvência) não deixamos de estar perante um trespassante com conhecimentos especiais
sobre a organização e exploração da empresa. É esta última a nossa posição.
Uma matéria que tem vindo a suscitar polémica nesta matéria diz respeito à alienação de participações sociais de uma
sociedade – alineação das quotas detidas por uma pessoa numa determinada sociedade comercial; sociedade essa
que é titular de uma determinada empresa (no fundo, a empresa em vez de ser titulada por uma pessoa singular é
titulada por uma pessoa coletiva, cuja quotas podem ser alienadas). Atente-se, antes de mais, na seguinte destrinça:

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Alienação de participações sociais Trespasse de empresa
» negócio que tem como objeto quotas de uma sociedade, » negócio que tem como objeto a empresa em si mesma,
permanecendo a empresa na titularidade dessa sociedade (o permanecendo a (eventual) sociedade que a titulava
que mudam são os titulares das quotas) exatamente igual mas agora já não sendo titular da empresa
 Empresa não é transmitida (permanece na  Sociedade titular não é transmitida (deixa de
esfera jurídica da sociedade); ter na sua esfera jurídica empresa);
 Quotas da sociedade são transmitidas (mudam  Empresa é transmitida (muda o seu titular, que
os sócios da sociedade titular). já não será aquela sociedade).
A questão que tem vindo a dividir a doutrina e a jurisprudência é a de saber se a obrigação de não concorrência (entre
outros aspetos do regime da trespasse e locação de empresa) deverá também considerar-se quando há, não um
verdadeiro trespasse de empresa, mas uma alienação da totalidade (ou grande maioria) das quotas sociais.
Entendemos que a obrigação também nestes casos se verificará porquanto o resultado material de um e outro
negócios (embora distintos os seus objetos, é certo) acaba por ser similar. De facto, a alienação de todas (ou da grande
maioria) das quotas sociais de uma sociedade (Y) que é titular de uma determinada empresa (X) acaba por,
substancialmente, ter os mesmos efeitos que a transmissão pura e simples dessa empresa (X) – trespasse. Uma vez
que o adquirente dessas quotas se torna ou o sócio único ou o sócio maioritário da sociedade (Y), ele acaba por assumir
a posição de titular isolado da empresa (X). Não tendo havido trespasse de empresa qua tale, a verdade é que a
titularidade da empresa (X) mudou (é agora de Y). Daqui que seja de entender que ao alienante das quotas não seja
legítimo vir constituir uma nova empresa (Z) de objeto idêntico à empresa (X) titulada pela sociedade (Y) cujas quotas
foram transmitidas. No fundo, admitir essa constituição seria admitir uma concorrência desleal e, consequentemente,
impedir o adquirente das quotas da sociedade (Y) gozar efetivamente dela, porquanto esse gozo passa pelo controlo
da empresa de que a sociedade é titular (X).
Num outro prisma, tem-se vindo a entender ainda que não só o trespassante fica vinculado pela obrigação de não
concorrência; e que não só o trespassário é credor deste obrigação. Ficá-lo-ão também:
 Devedores da obrigação de não concorrência:
 Cônjuge do trespassante (independentemente do regime de bens (embora no caso de comunhão seja
possível que a própria empresa transmitida seja bem comum e, por isso, ambos os cônjuges sejam
trespassantes));
 Filhos do trespassante (que com ele tenham colaborado na exploração da empresa transmitida);
 Sócios da sociedade trespassante (nomeadamente, os sócios que detinham conhecimentos suficientes
para realizar uma concorrência qualificada – 1sócios que exerciam funções de administração, 2sócios
que detinham participação social dominante ou 3sócios que exerciam o controlo efetivo).
 Credores da obrigação de não concorrência:
 Eventuais trespassários sucessivos (são credores em relação ao trespassante originário e ao
trespassante do negócio por si mesmos celebrado).
Esta obrigação de concorrência tem, como é evidente, limites:
 Limites objetivos: os sujeitos passivos da obrigação ficam apenas impedidos de:
 (Re)iniciar o exercício de uma atividade concorrente com a exercida através da empresa trespassada
(atividade económica, no todo ou em parte, igual ou sucedânea);
 Desempenhar função de administração ou direção em empresa alheia e concorrente da trespassada;
 Entrarem em sociedade com objeto idêntico ao do estabelecimento alienado, nela passando a exercer
funções de administração ou ficando a deter posição controladora.
 Limites temporais: a obrigação de não concorrência permanece apenas durante o tempo suficiente para se
consolidarem os valores de organização e/ou de exploração da empresa transmitida na esfera de um
adquirente/empresário razoavelmente diligente. [NOTA: a Comunicação da Comissão Europeia (publicada no JOCE
nº C 188, de 4/7/2001) dispõe que esta obrigação, (1) quando a cessão da empresa inclui ao mesmo tempo elementos
de clientela e de know-how, justifica-se por um período de 3 anos, (2) quando só inclui apenas elementos de clientela,
justifica-se por um período de 2 anos.]
 Limites espaciais: a obrigação de não concorrência diz respeito somente aos lugares delimitados pelo raio de
ação do estabelecimento trespassado.

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[Já não lhes será proibido, designadamente, o exercício de qualquer outra atividade económica ou da mesma atividade
económica fora do âmbito espacial de ação da empresa trespassado ou até mesmo dentro desse âmbito decorrido o
período de tempo suficiente para a consolidação dos valores de organização e exploração na esfera do adquirente.]
Se os obrigados a não concorrer violarem a obrigação, pode o trespassário exercer os direitos previstos na disciplina
do não cumprimento das obrigações, sobretudo os seguintes:
 Indemnização por incumprimento contratual – art. 798º CC;
 Resolução do contrato de trespasse – art. 801º/2 CC;
 Ação de cumprimento – art. 817º CC;
 Sanção pecuniária compulsória – art. 829º-A CC;
 Encerramento do estabelecimento do obrigado – art. 829º/1 CC.
Por último, importa notar que a obrigação de não concorrência pode ser afastada por estipulação contratual. A este
respeito é de sublinhar que a inclusão, num contrato de trespasse, de uma cláusula de livre concorrência pode indiciar,
em determinados casos, a simulação acerca do negócio celebrado. De facto, como veremos adiante, por vezes o
trespasse é um negócio simulado que encobre um negócio dissimulado de cessão da posição contratual de
arrendatário de imóvel (porque, em caso de trespasse, o senhorio não pode opôr-se á transmissão da posição do
arrendatário para o trespassário). E um dos indícios desta simulação será a convenção da livre concorrência, na medida
em que daí se poderá inferir que o trespassário não pretende efetivamente exercer a atividade económica inerente à
empresa (e que o trespassante apenas se quer “ver livre” dela).
3.4 Trespasse de estabelecimento instalado em prédio arrendado
Em caso de trespasse de estabelecimento comercial ou industrial instalado em prédio arrendado, o trespassante-
arrendatário pode ceder a sua posição contratual de arrendatário ao trespassário sem necessidade de autorização do
senhorio – art. 1112º/1/a) CC, resposto pelo art. 3º do Novo Regime do Arrendamento Urbano. Deste preceito
decorrem duas notas de relevo:
 A posição de arrendatário pertence ao âmbito natural de entrega » na falta de disposição em contrário das
partes, há transmissão dessa posição;
 A transmissão da posição de arrendatário não depende de autorização do senhorio » ficando provado o
trespasse, o senhorio não pode obstar à mudança do arrendatário.
Esta é uma norma expressiva da tutela ou defesa da circulação negocial dos estabelecimentos e, eventual e
concomitantemente, da própria manutenção deles. De facto, sendo necessária a autorização do senhorio essa seria,
as mais das vezes, negada, porquanto o contrato de arrendamento está associados, frequentemente, à pretensão do
senhorio de conhecer o arrendatário para decidir se pretende ou não arrendar-lhe o espaço (por exemplo, para que
possa assegurar-se do pagamento tempestivo das rendas e da preservação correta do imóvel, de que continua a ser
proprietário). Esta resposta negativa determinaria, em alguns casos, que o trespasse não se viesse efetivamente a
concretizar-se, prejudicando o (pretenso) trespassante; e que, em outros casos, o trespassário adquirisse uma
empresa menos valiosa e funcional, com maiores dificuldades de desenvolvimento.
A este respeito, importa atentar com mais pormenor no art. 1112º CC:
Artigo 1112.º
Transmissão da posição do arrendatário
1 – É permitida a transmissão por acto entre vivos da posição do arrendatário, sem dependência da autorização do senhorio:
a) No caso de trespasse de estabelecimento comercial ou industrial;
2 – Não há trespasse:
a) Quando a transmissão não seja acompanhada de transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros
elementos que integram o estabelecimento;
b) Quando a transmissão vise o exercício, no prédio, de outro ramo de comércio ou indústria ou, de um modo geral, a sua afectação a
outro destino.
4 – O senhorio tem direito de preferência no trespasse por venda ou dação em cumprimento, salvo convenção em contrário.
5 – Quando, após a transmissão, seja dado outro destino ao prédio, ou o transmissário não continue o exercício da mesma profissão liberal, o
senhorio pode resolver o contrato.
Interpretando “à letra” aquela alínea a) do nº 2 do art. 1112º CC , concluir-se-ia que o trespasse de um estabelecimento
exige a transferência de todos os seus elementos, isto é, que todos os elementos da empresa integrariam o âmbito
mínimo de entrega. Sabemos já que este não deve ser o entendimento a retirar nem do regime legal nem da própria
figura do trespasse. A empresa é composta por valores de organização e valores de exploração, sendo que uns e outros
podem integrar ou o âmbito natural (cômputo de elementos da empresa que se transmitem no silêncio das partes) ou
o âmbito convencional (cômputo de elementos da empresa que se transmitem apenas havendo convenção das partes

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nesse sentido). Dos âmbitos natural e convencional são extraídos elementos que integram o denominado “âmbito
mínimo de entrega”: cômputo de elementos da empresa cuja transmissão é necessária para que se possa afirmar a
ocorrência de um trespasse da empresa. Neste âmbito incluem-se, então, elementos que se transmitem ex silentio
(pertencentes ao âmbito natural) e elementos que se transmitem por convenção negocial (pertencentes ao âmbito
convencional). Deste modo, conclui-se que não é, de todo, necessária a transmissão de todos os elementos da
empresa para que possa ocorrer trespasse e para que, consequentemente, a transmissão da posição de arrendatário
não dependa de autorização do senhorio. Ao invés, bastará a transmissão do âmbito mínimo para que se verifique o
trespasse da empresa e, consequentemente, a transmissão da posição de arrendatário (que integra o âmbito natural).
Desta feita, há trespasse mesmo que “(...) a transmissão [da posição do arrendatário] não seja acompanhada de
transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o
estabelecimento”. Portanto, ao senhorio não basta provar que a transmissão da posição do arrendatário não foi
acompanhada pela transferência de alguns elementos da empresa (porque estes elementos podem não integrar o
âmbito mínimo de entrega e, portanto, o trespasse existe mesmo sem a sua transmissão). Incumbir-lhe-á provar, isso
sim, que não foram transmitidos elementos que integram o âmbito mínimo de entrega, isto é, que não foram
transmitidos elementos sem os quais a empresa não é um bem unitário e individualizado. Se não houve transferência
destes elementos (do âmbito mínimo), então o que houve foi, não um trespasse, mas vários negócios de transmissão
de elementos empresariais avulsos. Neste caso, o art. 1112º/1/a) CC não tem aplicação (porquanto não há trespasse)
e, por isso, a transmissão da posição do arrendatário obedece ao regime geral – art. 424º CC (e art. 1038º/f) CC), por
remissão do art. 1059º/2 CC –, dependendo da autorização da contraparte (o senhorio). Assim sendo, fazendo prova
da falta de transmissão dos elementos do elemento mínimo, o senhorio poderá resolver o contrato de arrendamento,
nos termos do art. 1083º/2/e) CC.
A propósito de situações como a exposta, a doutrina diverge quanto ao vício subjacente aos casos de “trespasse” em
que não há verdadeiramente transmissão dos elementos do âmbito mínimo de entrega:
a) Coutinho de Abreu: o autor entende que, em todo o caso, estaremos perante uma hipótese de simulação, o
que poderá repercutir-se, inclusivamente, na nulidade do negócio simulado – trespasse (além da resolução do
contrato de arrendamento), sendo ela invocada pelas pessoas com legitimidade para tal;
b) Soveral Martins: o autor entende que poderá estar em causa ou uma hipótese de simulação ou um caso de
erro sobre o objeto do negócio, só se podendo afirmar a simulação quando se faça prova do conluio entre
trespassário e trespassante.
Noutro prisma, e agora a respeito da alínea b) do art. 1112º/2 CC, considera-se não haver trespasse quando, no
momento do negócio, havia intenção de dar outro destino ao prédio, isto é, quando, no momento do negócio, o já se
tinha em vista a não continuação da mesma empresa, mas antes a constituição de empresa nova naquele mesmo
prédio, ou a sua utilização para fins não comerciais. Acerca desta intenção pergunta-se: bastará a intenção do
trespassário? ou será exigível a intenção tanto do trespassário como do trespassante? Os autores divergem:
a) Coutinho de Abreu: basta a intenção do trespassário para que o art. 1112º/2/b) CC tenha aplicação e,
consequentemente, deixe de ser aplicável o nº 1 desse preceito;
b) Soveral Martins e Orlando de Carvalho: é necessária a intenção comum, do trespassário e trespassante, para
que se afaste o regime do art. 1112º/1 CC por aplicação do art. 1112º/2/b) CC – esta intenção comum denotar-
se-á, no entendimento dos autores, no próprio conteúdo do negócio de trespasse (podendo até faltar o âmbito
mínimo de entrega, o que denota claramente a simulação).
O nº 5 deste art. 1112º CC suscita também algumas polémicas. Desde logo, é considerado pela doutrina um preceito
“perturbador”, sem antecedentes legislativos e sem razão de ser que seja atendível pelos autores. Dispõe-se aí que o
senhorio tem direito a resolver o contrato de arrendamento se o transmissário, depois da transmissão, der um novo
destino ao prédio. Defendeu-se já que esta norma não cria uma causa autónoma de resolução e/ou que seria
dispensável, porquanto bastariam, a este respeito, as alíneas a) e b) do nº 2, as quais implicam a aplicação do regime
geral, nos termos do qual está já consagrada esta possibilidade de resolução – art. 1083º/2/c) CC. Era este o
entendimento de autores como Januário Gomes e Sousa Ribeiro.
Embora considerando, efetivamente, que o preceito é criticável, entendemos que ele constitui um fundamento
autónomo de resolução. Mesmo em comparação especificamente com a alínea b) do nº 2 do art. 1112º CC, o art.
1112º/5 CC não perde autonomia, porquanto ali a alteração do destino do imóvel é já previamente pretendida (daí
que não se verifique efetivamente o trespasse da empresa).
Entendemos, então, que os campos de aplicação dos nºs 2 e 5 do art. 1112º CC não coincidem necessariamente:

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Art. 1112º/2 CC Art. 1112º/5 CC
Não há trespasse Alteração do destino conferido ao prédio
(ainda que tenha havido verdadeiro trespasse)
Inaplicabilidade do art. 1112º/1 CC
Regime geral » exigência de autorização do senhorio Resolução do contrato
Falta de autorização » Resolução do contrato
O que se entende é que pode haver, efetivamente, trespasse da empresa, sendo transmitido o âmbito mínimo e
permanecendo o exercício da atividade comercial (ex.: compra de bens eletrónicos para revenda ao público) e ser
ainda assim possível a resolução do contrato. De facto, o trespassário pode continuar a explorar a mesma empresa
(não havendo falta de transmissão de quaisquer elementos do âmbito mínimo nem o exercício de outra atividade),
mas alterar o destino daquele imóvel específico – ex.: continua o trespassário a comprar bens eletrónicos para revenda
mas o imóvel arrendado que lhe foi transmitido deixa de ser local da revenda ao público (que passa a ocorrer num
outro imóvel) e passa a ser armazém dos bens adquiridos com intuito de revenda, ou, então, passa a ser utilizado
numa outra atividade complementar que o trespassário exerce também (ex.: papelaria). Nestes casos, não podemos
concluir que não houve verdadeiramente trespasse de empresa, pelo que nunca poderia afastar-se a aplicação do nº
1 do art. 1112º CC com base no nº 2 desse preceito, viabilizando-se assim a resolução ao abrigo do art. 1083º/2/e) CC.
Mas houve alteração do destino a que está afetado o imóvel arrendado, pelo que a resolução do contrato de
arrendamento pode ocorrer à luz do art. 1112º/5 CC.
Importa, por fim, questionar o que se deverá entender por “outro destino do prédio” para estes efeitos. A doutrina
apresenta soluções ligeiramente distintas:
a) Coutinho de Abreu e Soveral Martins: integram-se aqui todas as alterações do destino do prédio, sejam elas
dentro do mesmo ramo (ex.: restaurante passa a bar) ou respeitantes a outro ramo de atividade (ex.:
restaurante passa a loja de roupa);
b) Ricardo Costa: integram-se aqui apenas as alterações de destino do prédio que se repercutam na alteração do
ramo de atividade (se a alteração ocorrer dentro do mesmo ramo, então este preceito não tem aplicação e o
senhorio não pode resolver o contrato) – interpretação restritiva.
Um último ponto que importa referir a respeito do trespasse de estabelecimento em prédio arrendado é o de que,
mesmo havendo trespasse (inaplicabilidade do nº 2 do art. 1112º CC) e mesmo não havendo alteração do destino do
imóvel (inaplicabilidade do nº 5 do art. 1112º CC), haverá que ser comunicada ao senhorio a transmissão da posição
do arrendatário dentro de 15 dias, nos termos do 1038º/g) CC (e, repetitivamente, nos termos do art. 1112º/3 CC).
Impõe-se então perguntar: não sendo feita tal comunicação qual a consequência jurídica?
a) Coutinho de Abreu, Soveral Martins, Ricardo Costa: a cessão da posição do locatário é ineficaz perante o
locador (art. 424º/2 CC, para o qual remete o 1059º/2 CC), podendo o locador/senhorio resolver o contrato,
salvo se tiver reconhecido o novo arrendatário como tal ou se este lhe tiver comunicado a posição por si
ocupada (arts. 1083º/e) 1049º a contrario sensu e 1038º/f) e g) CC). Este direito de resolução é entendido,
contudo, em termos restritos, na medida em que dispõe o preâmbulo do art. 1083º CC (cuja alínea e) viabiliza
a resolução nestes casos) que a resolução só decorre quando “o incumprimento (...) pela sua gravidade ou
consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”. Ora, entende-se que não basta
o decurso do mero prazo de 15 dias para a comunicação para que o incumprimento seja gravosos a esse ponto;
será exigível, para efeitos de resolução, que a não comunicação se verifique num prazo mais alargado.
b) Cassiano dos Santos: o art. 424º/2 CC não se aplica porquanto ele diz respeito à falta de notificação nos casos
em que é necessário o consentimento da contraparte, pelo que não falamos aqui em ineficácia da cessão;
verdadeiramente haverá incumprimento contratual, de acordo com a cláusula geral do art. 1083º CC – como
a comunicação desempenha aqui um papel importante, ao permitir ao senhorio desencadear o controlo da
licitude da transmissão à luz do art. 1112º/1/2/5, haverá sempre incumprimento passados os 15 dias.
4. Negócios sobre as empresas: locação
4.1 Noção
A locação de estabelecimento comercial é definível como:
“o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma empresa
mediante retribuição”.
Esta definição vai em linha com o disposto no art. 1022º CC, do qual consta a noção geral de locação (substitui-se
“coisa” por “empresa/estabelecimento”). Com isto fica demonstrado que: (1) as empresas podem ser locadas; (2) a

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locação de empresa é um contrato nominado; (3) a locação de empresa é um contrato típico. Este último ponto é hoje
mais nítido do que porventura foi antes, já que o Novo Regime do Arrendamento Urbano veio aditar ao Código Civil o
art. 1109º, nos termos do qual a locação de estabelecimento (epígrafe) “rege-se pelas regras de presente subsecção
[Subsecção VIII – Disposições especiais do arrendamento para fins não habitacionais] com as necessárias adaptações”.
4.2 Regime
Nos termos do art. 1110º/1 CC “as regras relativas à (1)duração, (2)denúncia e (3)oposição à renovação dos contratos de
arrendamento para fins não habitacionais são livremente estipuladas pelas partes, aplicando-se, na falta de
estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para habitação.” Assim sendo, cabe às partes acordar sobre:
Duração do contrato Denúncia do contrato Oposição à renovação
» as partes podem celebrar contratos » as partes acordam acerca da existência » estando em causa contrato a prazo
por tempo indeterminado ou e do modo de exercício do direito de certo, as partes acordam a possibilidade
contratos a termo (ou condição), certo denúncia, designadamente estipulando de prorrogação (automática ou não) e
ou incerto ou não prazos de pré-aviso de oposição a essa prorrogação
Regime legal supletivo: Regime legal supletivo: Regime legal supletivo:
Art. 1110º/2 CC » contrato a prazo  Contratos a prazo fixado pelas Arts. 1051º e 1055º CC
por 5 anos partes » art. 1098º/3, 4 e 5 CC; [Não se aplicam aqui os arts. 1096º/1 e
[Não se aplica o regime geral do  Contratos a prazo sendo o prazo 1054º CC pois estes dizem respeito à
arrendamento para habitação porque o supletivo » art. 1110º/2 CC; renovação do contrato e o art. 1110º/1
há estipulação legal específica – este  Contratos por tempo CC só remete para o regime geral em
nº 2 do art. 1110º] indeterminado » arts. 1100º e matéria de oposição à renovação]
1101º CC.
Quanto à forma do contrato de locação de empresa, é aplicável a primeira parte do art. 1112º/3 CC: o contrato deve
ser celebrado por escrito, sob pena de nulidade [aplicando-se aqui o referido supra a respeito do trespasse – Cap. III, 3.1].
O nº 2 do art. 1112º CC, com as devidas adaptações, é também relevante para os efeitos que nos ocupam:
1. Pertencendo ao locador o prédio onde funciona a empresa, não há locação de estabelecimento se não forem
incluídos no negócios os elementos da empresa que compõem o âmbito mínimo ou se as partes visarem a
afetação do imóvel a outro destino ou atividade.
Haverá aqui um puro contrato de arrendamento sobre o imóvel (e não um contrato de locação sobre
a empresa que aí funciona).
2. Pertencendo a terceiro o prédio onde funciona a empresa, não há locação de estabelecimento se não forem
incluídos no negócios os elementos da empresa que compõem o âmbito mínimo ou se as partes visarem a
afetação do imóvel a outro destino ou atividade.
Haverá aqui um contrato de sub-arrendamento do imóvel, o qual será ilícito sem autorização do
senhorio (arts. 1038º/f), 1049º, 1083º/2/e) e 1109º/2 CC).
Será também aplicável ao contrato de locação de estabelecimento o art. 1113º CC: a locação não caduca por morte
do locatário. Aplicando-se ainda ao contrato que ora nos ocupa outros preceitos do regime geral da locação.
4.3 Âmbitos de entrega
Tal como nos casos de trespasse, a locação de empresa não pode prescindir dos elementos necessários ou essenciais
para a identificação da empresa objeto do negócio. Noutros termos: o âmbito mínimo da empresa tem de ser locado.
Aliás, qualquer negócio jurídico que pretenda ter como objeto a “empresa” (como bem jurídico unitário e autónomo,
pois ela não é um mero conjunto ou soma de vários elementos) terá de incidir, pelo menos, sobre esse âmbito mínimo,
pois caso contrário não estaremos em face de um negócio sobre a empresa, mas sim de vários negócios sobre os vários
elementos empresariais, enquanto elementos individuais.
Salvo quando outra coisa resulte da lei ou de contrato, é de entender que os elementos empresariais se transferem
naturalmente para o locatário. É que o estabelecimento locado transmite-se a título meramente temporário
(transfere-se para a esfera do locatário mas sempre para regressar à esfera do locador), mantendo-se ligado ao
locador. Deste modo, integra-se no âmbito natural de entrega:
 A generalidade dos meios empresariais pertencentes em propriedade ao locador;
A propriedade de cada um dos elementos empresariais permanece no locador, porquanto o negócio
de locação incide sobre a empresa (unidade jurídica) e não sobre esses elementos individualmente. O que
locatário adquire, e que lhe permite exercer a atividade empresarial, é um poder-dever de exploração do
estabelecimento – o locatário tem não apenas o poder de explorar-gozar o estabelecimento, mas tem também

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o dever de o fazer. Pois bem, esse exercício implica necessariamente o gozo, consumo e alienação dos bens
empresariais de que é proprietário o locador, não significando isso que o locatário se torne seu proprietário.
 O logótipo e as marcas (arts. 31º/5 e 304º-P/3 CPI adptados ao caráter temporário desta “transmissão”);
 A posição de empregador (art. 285º/3 CT);
 O gozo do prédio arrendado onde funciona a empresa;
 Os bens empresariais detidos pelo locador do estabelecimento a título de locação financeira ou de aluguer;
 As patentes, modelos de utilidade, desenhos e modelos ou marcas objeto de licença de exploração (art. 32º(
CPI a contrario sensu);
 As situações de facto com valor económico, como o know-how.
Em face do art. 44º/1 RRNPC, entende-se que a firma integra o âmbito convencional de entrega.
4.4 Obrigação de não concorrência
Enquanto durar a locação de estabelecimento, o locador (bem como as pessoas supramencionadas a respeito do
trespasse) está obrigado a não concorrer num determinado espaço com o locatário. Tal obrigação não é, aqui,
implícita, antes resultando de expressas disposições legais, como os arts. 1031º/b) e 1037º/1 CC. Neste contexto,
entende-se que igual obrigação se verifica em sentido inverso: o locatário também não poderá, durante a duração do
contrato de locação, iniciar o exercício de atividade concorrente com a exercida através da empresa locada, sob pena
de estar a violar o seu dever de “manutenção e restituição da coisa no estado em que a recebeu” (art. 1043º CC), pois
o exercício de atividade concorrente implicaria a diminuição do valor da coisa-empresa.
Terminado o contrato de locação e na ausência de um possível pacto de não concorrência, pergunta-se: fica o locatário
obrigado a não concorrer? As respostas têm sido diversificadas. Todavia, entre nós entende-se que o ex-locatário fica
livre para concorrer. E isto porque o princípio nesta matéria sempre será o da livre concorrência e da livre iniciativa
económica. É certo que o locatário pode aproveitar conhecimentos sobre a clientela e organização empresarial
adquiridos durante a locação, mas este será um risco que caberá ao locador acautelar. De facto, igual risco se verifica
em relação a assalariados após o término do contrato de trabalho, e é certo que eles podem iniciar atividade
concorrente subsequentemente a esse término.
4.5 Locação de estabelecimento e arrendamento
A locação de estabelecimento, mesmo quando envolve o prédio onde funciona a empresa, não é contrato de
arrendamento. Também não é um contrato misto, associando o arrendamento de prédio ou fracção ao aluguer de
estabelecimento. O nº 1 do art. 1109º CC sugere, em alguma medida, essa perspetiva. Não obstante, a locação de
estabelecimento aí prevista é um negócio unitário que tem como objeto um bem jurídico unitário – a empresa. O gozo
do prédio não é transmitido a título autónomo (o prédio não é dado em arrendamento); ele é, isso sim, transmitido
enquanto componente de um todo, o todo que é a empresa.
Quanto à necessidade de consentimento do senhorio para a cedência de gozo do prédio (que vai dentro da locação
da empresa), o nº 2 do art. 1109º CC é hoje claro a afastar essa necessidade. Não obstante, tal como no trespasse,
essa cedência do gozo do prédio acarretada pela locação da empresa deve ser comunicada ao senhorio, no prazo de
1 mês. Faltando a comunicação, a cedência do gozo do prédio é ineficaz em relação ao senhorio, que poderá, por isso,
resolver o contrato de arrendamento, também aqui nos termos expostos acerca de igual situação em caso de trespasse
(para nós, não basta o incumprimento do prazo para que se possa falar em incumprimento contratual grave que
justifique a resolução).
5. Recuperação de empresas por vias judiciais e extrajudiciais
5.1 Considerações iniciais
Atualmente, no nosso sistema jurídico, são previstos três processos de recuperação de empresas:
Recuperação de empresas
Processos judiciais Processo extrajudicial
Processo com plano de insolvência Processo especial de revitalização Sistema de recuperação de empresas
(Plano de Insolvência) (PER) por via extrajudicial (SIREVE)
 Aplicável a (1)devedores (pessoas  Aplicável a (1)devedores  Aplicável a (1’)empresas em
(2)
coletivas com empresas ou não (empresas ou não) em situação económica difícil ou em
(2)
e pessoas singulares com situação económica difícil ou situação de insolvência iminente
empresa grande) em (2’)situação em situação de insolvência
de insolvência ou equiparada meramente iminente

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5.2 Plano de insolvência
Dispõe o art. 1º CIRE: “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a
satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência baseado, nomeadamente, na recuperação da
empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do
devedor insolvente (...)”. Convém, no entanto, chamar a atenção para alguns pontos a este respeito:
 O “plano de insolvência”, mesmo quando aplicado a empresários, não tem que visar a recuperação da
empresa. Embora o desígnio recuperativo do plano deva ser considerado primordial, este instrumento pode
ser utilizado com objetivos distintos (que não passam pela recuperação empresarial).
 A “recuperação” de empresa de que o CIRE trata deve ser entendida em sentido amplo, incluindo-se aqui
tanto a reorganização da empresa (para que (re)conferir condições de vida autónoma) como a mera
manutenção da empresa na titularidade do insolvente ou de terceiro.
 A recuperação ou manutenção da empresa não implica a sua continuidade na esfera jurídica do insolvente;
 O processo de insolvência é único, não se verificando formas de processo distintas para a via da liquidação e
para a via do plano de insolvência.
O CIRE oferece uma noção de empresa, no seu art. 5º: “toda a organização de capital e de trabalho destinada ao
exercício de qualquer atividade económica”. Esta é uma definição com escassa utilidade no contexto do CIRE
porquanto a empresa, embora importante para efeitos vários, não é essencial para o âmbito de aplicação subjetivo
do Código – vide o art. 2º do referido Código.
O plano de insolvência pode definir-se como:
“um instrumento de natureza jurídico-negocial utilizável pelos credores que contém primordialmente medidas
de recuperação de empresa do devedor insolvente”.
Portanto, se o devedor insolvente continuar a explorar a empresa, os credores esperam satisfazer-se basicamente
com os resultados empresariais; no caso de a empresa ser transmitida, satisfazem-se os credores principalmente com
o produto da venda e/ou a aquisição de participações em nova sociedade em troca de créditos sobre o insolvente.
Podem apresentar proposta do plano – art. 193º CIRE:
 O devedor;
 O administrador da insolvência;
 Um credor ou grupo de credores (com créditos correspondentes a, pelo menos, 1/5 do total dos créditos
classificados como “não subordinados” [a este respeito: arts. 47º/4, 48º e 49º CIRE];
 Qualquer responsável legal pelas dívidas da insolvência.
À apresentação da proposta seguem-se os seguintes passos:
1. Admissão da proposta de plano de insolvência pelo juiz – art. 207º CIRE;
2. Notificação das entidades mencionadas no art. 208º CIRE para emissão de parecer sobre a proposta;
3. Convocação da assembleia de credores para discussão e votação da proposta de plano (art. 209º/1 CIRE).
Só poderá realizar-se esta assembleia de credores após (art. 209º/2 CIRE):
a) Trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência;
b) Esgotamento do prazo para a impugnação da lista de credores reconhecidos;
c) Realização da assembleia de apreciação do relatório prevista no art. 36º/n) e 156º CIRE.
4. Realização da assembleia de credores e votação da proposta de plano de insolvência – arts. 209º a 213º CIRE;
5. Homologação da proposta por decisão judicial – arts. 214º a 216º CIRE
Para que a hipótese de recuperação empresarial pareça plausível aos credores em assembleia de discussão de
proposta de plano de insolvência, é naturalmente importante que a empresa não se encontre paralisada e mantenha
o maior ativo possível. Ora, entre o início do processo de insolvência e a verificação das condições do art. 209º/2 CIRE,
há risco de serem tomadas decisões que comprometam a manutenção da empresa. O Código prevê, porém, algumas
medidas que diminuem o risco – vide, designadamente, os arts. 31º, 33º. 55º/1/b) e 157º, 156º/2 e 3, 206º/1 e 2, 161º
e 166º CIRE.
Na assembleia de credores para discussão e votação da proposta de plano de insolvência, presidida pelo juiz (art. 74º
CIRE), têm direito a participar os credores (com ou sem direito de voto), bem como outras pessoas (art. 72º CIRE). Para
se poder deliberar sobre o plano de insolvência é necessário que estejam presentes ou representados na assembleia
credores cujos créditos constituam, pelo menos, 1/3 do total do total dos créditos com direito a voto (arts. 212º/1 e
211º/1 CIRE). Em geral, de acordo com o art. 73º CIRE, os créditos (não subordinados) conferem um voto por cada
euro ou fração. Todavia o nº 2 do art. 212º elenca os créditos que, para estes efeitos, não conferem direito de voto. A

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votação pode ser efetuada na própria assembleia ou por escrito fora da assembleia (art. 211º CIRE). Em qualquer caso,
a proposta ter-se-á como aprovada se obtiver mais de 2/3 da totalidade dos votos emitidos e mais de 1/2 de votos
emitidos correspondentes a créditos não subordinados (art. 212º/1 CIRE).
O plano de insolvência aprovado pelos credores necessita, para ser plenamente eficaz, de ser homologado por
sentença judicial (art. 217º/2 CIRE 1ª parte). A homologação necessária pode ser recusada em dois tipos de casos:
1. Não homologação oficiosa (art. 215º CIRE):
 Violação não negligenciável de normas procedimentais;
 Violação não negligenciável de normas respeitantes ao conteúdo do plano (sobretudo, normas legais
que impõem determinados consentimentos – vide, nomeadamente, o art. 202º CIRE);
 Não verificação das condições suspensivas do plano dentro de um prazo razoável (art. 201º/1 CIRE);
 Falta de prática dos atos que devem preceder à homologação dentro de prazo razoável (art. 201º/2);
 Falta de execução das medidas que devem preceder à homologação dentro de prazo razoável.
2. Não homologação a solicitação dos interessados (art. 216º CIRE) » pressupostos (nº 1):
a) Tratar-se de devedor não proponente do plano, credor sócio, associado ou membro do devedor;
b) Manifestação da oposição ao plano de insolvência logo nos autos antes da respetiva aprovação;
c) Demonstração de uma de duas hipóteses (que resultarão da eficácia do plano):
i. A sua situação ficará pior com o plano do que sem ele;
ii. O plano proporciona a algum credor um valor patrimonial superior ao montante nominal dos
seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor de contribuições a que fique obrigado.
Mesmo verificando-se estes pressupostos, se reunidos os requisitos do nº 3 do art. 216º CIRE, o juiz pode
proceder à homologação (pois cessa o disposto no nº 1).
As providências ou medidas de recuperação de empresas que é possível estatuir num plano de insolvência são muito
variadas, dependendo fundamentalmente da imaginação e vontade dos credores. Ainda assim, o legislador indica
numerosas medidas – vide arts. 196º e 198º CIRE (atente-se nas expressões “nomeadamente” e “pode”, as quais
indicam a não taxatividade dos elencos; isto sem prejuízo do disposto no art. 192º/2 CIRE), bem como no art. 199º.
No que diz respeito ao 198º CIRE, do qual constam “providências específicas de sociedades comerciais”, importa referir
que Coutinho de Abreu critica as providências referidas no nº 2, já que aí se elencam diversas medidas que, segundo
a legislação societária só podem ser tomadas pelos sócios e que, neste contexto, permite-se serem “impostas” pelos
credores da sociedade. Falamos, designadamente, das seguintes medidas:
 Redução do capital social para cobertura de prejuízos, incluindo redução a zero ou a montante inferior ao
mínimo legal (em determinadas condições);
 Aumento do capital social a subscrever por terceiros ou por credores (designadamente mediante conversão
dos créditos sobre a insolvência em participações sociais), com ou sem respeito pelo direito de preferenciados
sócios previsto legal (arts, 266º e 458º CSC) e estatutariamente;
 Outras alterações dos estatutos da sociedade;
 Transformações da sociedade (em tipos diferentes);
 Alteração dos órgãos sociais;
 Exclusão de todos os sócios de sociedade em nome coletivo ou em comandita simples ou dos sócios
comanditados de sociedade em comandita por ações;
 Exclusão de todos os sócios de responsabilidade ilimitada, gerentes ou não;
 Exclusão de sócios comanditários de sociedade em comandita simples.
Entende o autor, então, que é estranho que o Código não se baste com permitir aos credores disporem do património
da sociedade ou condicionarem a continuação dela à adoção de medidas pelos respetivos órgãos, permitindo-lhes
infundirem em alterações tão drásticas na organização pessoal da sociedade.
Contudo, quando o insolvente seja uma sociedade anónima de responsabilidade limitada, uma sociedade em
comandita por ações ou sociedade por quotas de responsabilidade limitada, cumpre ao juiz recusar oficiosamente a
homologação do plano de insolvência que estatua um aumento ou redução do capital social, porquanto as alíneas a)
e b) do nº 2 do art. 198º CIRE viola a recém redigida Diretiva 2017/1132 (mormente, os seus arts. 68º, 73º e 74º).
5.2.1 Plano de pagamentos para pessoas singulares que sejam pequenos empresários
Como exposto acima, o plano de insolvência aplica-se, além de a pessoas coletivas (com ou sem empresa), tão-só a
pessoas singulares que sejam (1)empresários que sejam detentores de (2)“grandes empresas”. Todavia, os arts. 249º e

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(1) (2)
ss. CIRE estabelecem um regime aplicável a não empresários e a titulares de pequenas empresas, nos quais, em
alternativa ao “plano de insolvência”, é disciplinado o “plano de pagamentos”.
Nesta hipótese, quando preenchidos os requisitos enunciados no art. 249º/1 CIRE, o devedor pode apresentar,
conjuntamente com a petição inicial (ou na contestação, ao abrigo do art. 253º CIRE) do processo de insolvência, um
plano de pagamento aos credores (art. 251º CIRE). Neste plano é formulada uma proposta de satisfação dos direitos
dos credores, na qual podem ser previstos expedientes como os elencados no nº 2 do art. 252º CIRE, entre outros. O
processo decorrerá, subsequentemente, nos termos previstos nos artigos seguintes.
5.3 Processo especial de revitalização (PER)
O PER encontra-se regulado no CIRE, pelo menos na sua modalidade que ora nos interessa, nos arts. 17º-A a 17º-H
(uma outra modalidade, extrajudicial, consta do art. 17º-I CIRE).
Logo no nº 1 do art. 17º-A CIRE é estabelecida uma noção do processo especial de revitalização:
“processo destinado a permitir ao devedor, em situação económica difícil ou de insolvência meramente
iminente, estabelecer negociações com os seus credores, a fim de concluir com eles um acordo conducente à
revitalização ou recuperação da empresa”.
Portanto, o PER distingue-se do Plano de Insolvência, desde logo, em dois aspetos fulcrais:
1. Empresa em situação económica difícil ou de insolvência eminente » no plano de insolvência, ou já houve ou
haverá sentença de declaração de insolvência (relembre-se que assembleia de credores só pode ser convocada
depois do trânsito em julgado dessa sentença – art. 209º/2 CIRE);
2. Acordo entre devedor e credores » o plano de insolvência é votado apenas pelos credores (ainda que o devedor
possa submeter ele próprio a proposta de plano).
O processo especial de revitalização dá-se nos seguintes termos:
1. Processo nicado mediante requerimento do devedor ao tribunal, acompanhado das declarações e
documentos previstos nos arts. 1º/2, 17ºA/2, 17º-C/1, 2 e 3 CIRE;
2. Verificação dos pressupostos para o prosseguimento e, em caso afirmativo, nomeação pelo juiz, por despacho,
de administrador judicial provisório (art. 17º-C/4 CIRE);
3. Convite a todos os credores para participar nas negociações (art. 17º-D/1 e 7 CIRE);
4. Reclamação de créditos pelos credores (art. 17º-D/2 CIRE)
5. Impugnação da lista provisório de créditos (art. 17º-D/3 e 4 CIRE);
6. Negociações, sob a orientação do administrador judicial provisório – prazo de 2/3 meses (art. 17º-D/5, 8 e 9);
7. Aprovação do plano resultante das negociações pelos credores (art. 17º-F/1 e 4 CIRE);
8. Homologação judicial do plano (art. 17º-F/7 CIRE).
Após o despacho do juiz no qual é nomeado administrador judicial provisório, e enquanto durarem as negociações, as
ações para cobrança de dívidas contra o devedor não podem ser propostas e são suspensas as previamente
instauradas; tais ações extinguir-se-ão, inclusive, se o plano de revitalização for aprovado (art. 17º-E/1 CIRE). Por seu
lado, o devedor fica impedido, sob pena de ineficácia, de praticar atos de relevo especial para o processo sem
autorização do administrador judicial provisório (arts. 17º-E/2 a 5 e 17º-C/3/a), que remete para o art. 34º, CIRE).
O plano de recuperação, enquanto instrumento jurídico-negocial, pode conter quaisquer providências não proibidas
por lei, nomeadamente: perdão parcial de dívidas; diminuição das taxas de juro dos créditos; moratórias para
satisfação dos créditos; promoção do aumento de capital da sociedade devedora; empréstimo, pelos credores, ao
devedor, de capital ou de meios de produção; constituição de garantias a favor dos credores; etc. As garantias
constituídas no decurso das negociações do PER mantêm-se mesmo quando, findo o processo, venha a ser declarada
a insolvência do devedor no prazo de 2 anos (art. 17º-H/1 CIRE). Ademais, os credores que financiem a atividade do
devedor disponibilizando-lhe capital para a revitalização gozam de privilégio creditório mobiliário geral, graduado
antes do privilégio creditório mobiliário geral dos trabalhadores (art. 17º-H/2 CIRE). Estes negócios de financiamento
são ainda insuscetíveis de resolução a favor da massa insolvente, em caso de insolvência do devedor (art. 120º/6 CIRE).
A aprovação do plano de recuperação conducente à revitalização da empresa pode dar-se nos seguintes termos:
 Aprovação por unanimidade: plano subscrito por todos os credores (art. 17º-F/4 CIRE);
 Votação feita por credores cujos créditos representem, pelo menos, 1/3 dos votos relacionados com o direito
de voto contidos na lista a que se refere o art. 17º-D/3 e 4 CIRE, da qual resulte a recolha de votos favoráveis
de mais de 2/3 da totalidade dos votos emitidos, sendo mais de metade dos votos emitidos correspondentes
a créditos não subordinados (art. 17º-F/5/a) CIRE);

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 Votação que resulte na recolhe de votos favoráveis de credores cujos créditos representem mais de 1/2 da
totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, calculados de harmonia com o disposto na alínea
anterior, sendo mais de 1/2 destes votos correspondentes a créditos não subordinados (art. 17º-F/5/b) CIRE).
A votação nestas duas últimas realiza-se por escrito, de acordo com o disposto no art. 17º-F/6 CIRE.
Cada credor tem um voto por cada euro ou fracção do crédito respetivo, por aplicação analógica do art. 73º/1 CIRE.
No que diz respeito à homologação do plano aprovado, também aqui ela é condição de eficácia do plano de
recuperação, aplicando-se o disposto quanto à homologação do plano de insolvência, como dispõe o art. 17-F/7 CIRE.
A decisão de homologação ou de não homologação vincula todos os credores, tenham ou não participado no PER (art.
17º-F/10 CIRE.
A título final, importa referir que o art. 17-I CIRE prevê uma outra modalidade de PER. Este preceito remete
fundamentalmente para as disposições prévias, acabadas de analisar, mas contando com a particularidade de que o
procedimento é iniciado com a apresentação ao tribunal, pelo devedor, de um acordo extrajudicial de recuperação
assinado por ele e por credores seus que representem, pelo menos, a maioria de votos prevista no art. 212º/1,
acompanhada da apresentação de outros documentos.
5.4 Sistema de recuperação de empresas por via extrajudicial (SIREVE)
O SIREVE pode ser definido como
“procedimento que visa promover a recuperação extrajudicial de empresas em situação económica difícil ou
em situação de insolvência iminente, mas com alguns indicadores avaliados positivamente, mediante celebração de
um acordo entre a empresa e todos ou alguns credores”.
Este procedimento, regulado no Decreto-Lei nº 178/2012, decorre nos seguintes termos:
1. Requerimento da empresa dirigido ao IAPMEI – Agência para a Competitividade e Inovação, I.P. (art. 3º/1);
Deve conter (art. 3º/3):
 Identificação do credor(es) com o qual ou quais a empresa pretende negociar e que represete(m) pelo
menos 1/3 do total das dívidas da empresa;
 Conteúdo do acordo de recuperação pretendido;
 Plano de negócios da empresa que identifique as medidas necessárias para o cumprimento do acordo.
2. Despacho do IAPMEI (dentro do prazo de 15 dias) com um dos seguintes conteúdos (art. 6º/1 a 4):
a) Recusa fundamentada do requerimento;
b) Convite ao aperfeiçoamento do requerimento;
c) Aceitação do requerimento » segue o procedimento:
i) Negociações entre a empresa e os credores (e outras entidades cuja participação o IAPMEI
eventualmente promova), promovidas e dirigidas pelo IAPMEI (arts.6º/5 e 6 e 8º);
ii) Extinção do procedimento por uma de duas vias:
1. Extinção automática ou por iniciativa do IAPMEI sem acordo (art. 16º);
2. Celebração de acordo de recuperação – aprovado em votação (*).
Entre o despacho de aceitação do requerimento inicial e a extinção do procedimento, fica impedida a instauração,
contra a empresa ou respetivos garantes, de quaisquer ações executivas para o pagamento de quantias certas ou de
outras ações destinadas a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias, e são suspensas as ações daquela espécie
propostas até à data do despacho por e contra os referidos sujeitos (art. 11º/ 2 e 3). Em contrapartida, neste mesmo
período, a empresa fica impedida de praticar atos de disposição ou oneração do património seu que não se incluam
na respetiva atividade ou objeto (art. 11º/5).
As garantias prestadas pela empresa e os negócios por ela celebrados no decurso do procedimento com vista à
obtenção dos meios financeiros necessários à recuperação não são resolúveis em benefício da massa insolvente se a
empresa vier a ser declarada insolvente (art. 11º/6 e 7). Ademais, os credores que financiarem a empresa durante
esse período beneficiarão, se ela vier a ser declarada insolvente, de privilégio mobiliário geral graduado antes do
reconhecido aos trabalhadores (art. 11º/8).
Tal como plano de recuperação do PER, o acordo de recuperação do SIREVE, enquanto instrumento jurídico-negocial,
pode conter quaisquer providências não proibidas por lei.
O acordo de recuperação deve ser reduzido a escrito simples e assinado pela empresa, pelo IAPMEI e pelos credores
que votem a favor da aprovação (art. 12º/1).
(*) Note-se, contudo, que o acordo de recuperação só se tem como aprovado nos seguintes casos:

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 Votação por credores cujos créditos representem, pelo menos 1/3 do total das dívidas apuradas da empresa,
da qual resulte a recolha de voto favorável de mais de 2/3 da totalidade dos votos emitidos e mais de 1/2 dos
votos emitidos corresponda a créditos não subordinados, nos termos do CIRE;
 Votação da qual resulte voto favorável dos credores cujos créditos representem mais de 1/2 da totalidade das
dívidas apuradas da empresa, e mais de 1/2 destes votos corresponda a créditos não subordinados, nos termos
do CIRE.
A lei nada diz sobre a forma de votação. Parece que o IAPMEI poderá promover a votação em reunião de credores
(com voto oral, por ex.) ou sem reunião (com voto por escrito).
Celebrado validamente o acordo, extinguem-se as ações executivas para pagamento de quantia certa instauradas
contra a empresa e/ou seus gerentes, salvo se o acordo previr a manutenção da suspensão. As ações destinadas a
exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias propostas contra a empresa e/ou seus garantes mantêm-se suspensas
(art. 13º/1). Isto vale, todavia, apenas para os credores que tenha subscrito o acordo, e já não para os demais (art.
13º/2), a menos que estes sejam abrangidos pelo suprimento judicial previsto no art. 19º/2. Nos termos deste
preceito, é permitido o alargamento da eficácia do acordo para lá do círculo dos credores subscritores do mesmo. Este
alargamento é possível se reunidos os seguintes requisitos:
a) Acordo de recuperação com conteúdo correspondente ao previsto no art. 252º/2 CIRE;
b) Subscrição do acordo por credores titulares de mais de 2/3 do valor total dos créditos relacionados no SIREVE
pela empresa;
c) Submissão do acordo ao juízo do tribunal (competente para o processo de insolvência) e sua homologação.
Sendo o acordo de recuperação judicialmente homologado, fica suprida a falta de provação dos demais credores
relacionais pela empresa; aquele acordo passa a ter os efeitos previstos para o plano de pagamentos relativo a
pequenas empresas (arts. 258º e 259º CIRE).
NOTA: no contexto da matéria exposta – recuperação de empresas – importa chamar a atenção para o “processo de
coordenação de grupo”, previsto nos arts. 61 º e ss. do Regulamento 2015/848 UE. Nos termos do art. 56º/1 do
referido Regulamento: “Se o processo de insolvência se referir a dois ou mais membros de um grupo de sociedades, o
administrador da insolvência nomeado no processo relativo a um membro do grupo coopera com qualquer
administrador da insolvência nomeado em processos relativos a outros membros do grupo (...) Essa cooperação pode
assumir qualquer forma, incluindo a celebração de acordos ou protocolos.” O procedimento de coordenação solicitado
em sede jurisdicional seguirá os trâmites previstos nos arts. 61º e ss. Neste contexto é escolhido um órgão jusdicional
competente (art. 66º), é nomeado um coordenador (art. 71º) e elaborado um plano de coordenação (art. 70º).

Capítulo IV – Dos sinais distintivos de empresas e de produtos


1. Introdução
Os sinais distintivos são signos/símbolos capazes de identificar empresas e produtos, permitindo a sua distinção em
face de outros. Os sinais distintivos não identificam tão-só empresas e produtos mercantis, daí que a sua
regulamentação conste, não de legislação comercial, mas sim do denominado “Código da Propriedade Industrial” (CPI)
Podemos enunciar, para o que nos interessa, quatro tipos de sinais distintivos “do comércio”:
 Logótipo;
 Marca;
 Denominação de origem e indicações geográficas;
 Recompensas.
2. Logótipos
2.1 Noção
O logótipo consiste no (arts. 304º-A e 304º-B CPI):
“signo suscetível de representação gráfica que distingue a entidade ou sujeito (que presta serviços ou produz
bens destinados ao mercado) e, eventualmente, o(s) estabelecimento(s) deste”.
O sujeito titular de logótipo não tem que ser empresário. Mas quando o for, é normal que use o logótipo que o
identifica para individualizar o seu estabelecimento. Portanto, o logótipo distingue a pessoa/entidade, mas pode por
ela ser utilizado para distinguir o seu estabelecimento dos demais, quando aquela pessoa/entidade detenha empresa.
Esta função de identificação de estabelecimento era típica do nome e/ou da insígnia, os quais foram fundidos ou
agregados na figura do logótipo, com a alteração ao CPI de 2008.
3. Marcas

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3.1 Noção, espécies e funções
A marca deve ser compreendida como:
“signo ou sinal suscetível de representação gráfica destinado sobretudo a distinguir certos produtos de outros
produtos idênticos ou afins”.
Esta definição afasta-se ligeiramente de alguns enunciados normativos, como é o caso do art. 222º/1 CPI: por um lado,
refere-se a “produtos” em vez de utilizar a expressão redundante “produtos ou serviços”; por outro lado, exclui a
referência à empresa, na medida em que os produtos distinguidos pela marca podem não ser de uma empresa ou ser
de várias empresas.
No que diz respeito às espécies de marcas, importa considerar critérios distintos de agrupamento:
 Critério da natureza da atividade:
 Marcas de indústria (assinalam produtos de indústria transformadora e extrativa);
 Marcas de comércio (assinalam bens comercializados por grossistas e retalhistas);
 Marcas de agricultura (assinalam produtos agrícolas em sentido amplo);
 Marcas de serviços (assinalam atividades do setor terciário).
 Critério dos elementos componentes (art. 222º CPI):
 Marcas nominativas (constituídas por nomes ou palavras);
 Marcas figurativas (formadas por figuras ou desenhos);
 Marcas de letras, números ou cores;
 Marcas mistas (misturam os elementos anteriores);
 Marcas auditivas (constituídas por sons representáveis graficamente);
 Marcas tridimensionais ou de forma (com três dimensões ou volume);
 Marcas simples (constituídas por um só elemento);
 Marcas complexas (compostas por vários elementos, do mesmo género ou não).
 Critério do titular:
 Marcas de empresários (titulares de empresas em sentido objetivo);
 Marcas de não empresários;
 Marcas individuais (pertencentes a uma ou várias pessoas singulares);
 Marcas coletivas (pertencentes a entidades coletivas) (art. 228º CPI):
 Marcas coletivas de associação (pertencem a associações de pessoas singulares e/ou pessoas
coletivas, podendo ser utilizadas pelos respetivos associados) (art. 229º CPI);
 Marcas coletivas de certificação ou de garantia (pertencem a pessoas coletivas que controlam
a existência de determinadas qualidades em produtos ou que estabelecem normas técnicas a
que eles ficam sujeitos) (art. 230º CPI).
 Critério do regime de proteção:
 Marcas registadas;
 Marcas não registadas ou livres;
 Marcas notórias (art. 241º CPI);
 Marcas de prestígio (art. 242º CPI).
Referidas a noção e as espécies de marcas, importa perguntar: que função cumprem as marcas?
Da noção de “marca” referida decorre, desde logo, a sua função primordial: distinguir produtos. Mas, afinal, em que
consiste esta função? Ora, segundo a conceção tradicional dominante, a função distintiva das marcas equivale
fundamentalmente a uma função (jurídica) de indicação de origem ou proveniência dos produtos. Esta “origem” é
entendida por alguns autores de forma estrita, coincidindo com a empresa, e, por outros, de modo amplo, atendendo
não só à empresa, mas também aos fenómenos das marcas coletivas, de grupo e das cedidas em licença. Segundo a
conceção tradicional, esta função, de indicação de origem (distinção de produtos), é a única função das marcas
juridicamente tuteladas; as funções publicitária e de garantia de qualidade tão-só reflexa ou indiretamente protegidas.
Sucede que cedo se ergueram vozes contra esta conceção tradicional, não para pôr em causa a função de indicação
de origem das marcas, mas mais para negar a sua essencialidade. Para Coutinho de Abreu, a tradicional função de
origem falha, desde logo, em três pontos:
 A marca é um sinal muitas vezes “anónimo", não surgindo associada a um titular ou sujeito específico;
 Não se coaduna com a reconhecida categoria das marcas coletivas de certificação (art. 230º CPI);

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 Não é consentânea com o regime que permite a dois ou mais sujeitos não ligados por quaisquer relações
jurídico-económicas usarem a mesma marca para produtos idênticos (arts. 243º e 267º CPI).
Entende-se, então, que a função de indicação de origem é apenas parte, e nem sempre presente, da função distintiva
das marcas. A outra parte desta função, parte esta sempre presente, é a distinção dos produtos através de mensagens.
Função distintiva das marcas:
Indicação da origem Comunicação de uma mensagem
» indicação da proveniência dos produtos » informação dirigida ao público de que os produtos
[Nem sempre esta dimensão se efetiva] assinalados são individualizados e distintos
Além deste entendimento mais amplo do que é a função distintiva das marcas, entende-se ainda que esta não é a sua
única função. Com efeito, no art. 242º/1 CPI, aplicável às “marcas de prestígio”, verifica-se uma tutela direta e
autónoma da função atrativa ou publicitária excecional (função evocativa de excelência) das marcas de prestígio. Estas
marcas são marcas conhecidas de parte significativa do público interessado, não tendo de ser, contudo, marcas super-
notórias ou célebres. O prestígio aqui considerado é um fenómeno, mais do que quantitativo, qualitativo – além de
notórias (mais ou menos), as marcas haverão de ter boa reputação. A proteção conferida a estas marcas é conferida
sempre que o uso de marca posterior, ainda que destinada a produtos sem afinidade ou identidade com o produto
identificado pela marca de prestígio, implique:
 Tirar partido do caráter distintivo da marca de prestígio (ex.: por fazer supor que os produtos assinalados por
uma e outra marca provêm da mesma entidade ou de entidades diversas mas negocialmente relacionadas);
 Tirar partido do prestígio da marca (ex.: quando se verifique transferência da imagem de qualidade e de
acreditamento no mercado de uma marca para a outra);
 Prejudicar o caráter distintivo e o prestígio da marca (ex.: quando provoque a banalização da marca de
prestígio, que perde a sua posição singular ou quando desencadeie indesejáveis associações, designadamente,
a produtos de qualidade inferior).
Além desta função, uma outra acrescentamos também à tradicional função distintiva: a função de garantia de
qualidade. Desde logo, a autonomia desta função é evidente no regime das marcas coletivas de certificação (arts. 230º
e 231º/1/a) CPI). Ademais, quanto às marcas individuais, o art. 269º/2/b) CPI dispõe que o registo caduca se a marca
se tornar suscetível de induzir o público em erro acerca da sua qualidade. Daqui decorre, então, que as marcas
individuais também cumprem uma função de garantia da qualidade, porquanto as deteriorações sensíveis e ocultas
da qualidade implicam a caducidade do registo da marca.
3.2 Princípios informadores da constituição das marcas
A constituição das marcas deve respeitar quatro princípios basilares:
a) Princípio da capacidade distintiva;
b) Princípio da verdade;
c) Princípio da licitude;
d) Princípio da novidade e especialidade.
Veja-se então em que consiste cada um deles:
a) Princípio da capacidade distintiva
Os sinais, para serem marcas, hão de ser capazes de individualizar e distinguir produtos (arts. 222º e 223º/1/a) CPI).
Deste modo, não são marcas os sinais exclusivamente:
 Específicos: signos que designam uma espécie de produtos (nomes comuns dos produtos ou figuras que
comummente os exprimem) – art. 223º/1/c) CPI;
 Descritivos: signos que se referem diretamente a caraterísticas ou propriedades dos produtos;
 Genéricos: signos que designam um género de produtos onde se inclui a espécie de produto que se pretende
marcar – art. 223º/1/c) CPI;
 De uso comum (para designar certos bens) – art. 223º/1/d) CPI.
Então e se as denominações específicas, descritivas, genéricas ou de uso comum forem estrangeiras, já poderão
enquanto marca? Importa aqui distinguir:
1. São conhecidas do público português » não podem valer como marca;
2. Não são conhecidas do público português ou do círculo de clientes interessado » há que distinguir:
i) Pertencem a uma das línguas comunitário-europeias » não podem valer como marca;
ii) Pertencem a línguas exóticas ou mortas ou pouco conhecidas » podem valer como marca.
Esta destrinça compreende-se uma vez que Portugal entrega o mercado único europeu.

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Todos estes sinais sem capacidade distintiva são irregistáveis (art. 238º/1/c) CPI) como marcas quando as marcas que
se pretende registar são compostas exclusivamente por tais sinais. Já assim não será quando tais sinais sejam tão-só
um dos elementos das marcas. Excecionalmente, poderão ainda ser registáveis marcas constituídas exclusivamente
por sinais específicos, descritivos, genéricos e de uso comum quando estes, antes do registo e depois do uso e
publicidade que deles foi feito, tenham adquirido caráter ou capacidade distintiva (art. 238º/3 CPI).
Especificamente quanto às marcas tridimensionais, que são constituídas pela forma do produto ou da respetiva
embalagem (art. 222º/1 CPI), importa referir que nem todas as embalagens são suscetíveis de constituir marcas. Não
são marcas as formas natural (forma imposta pela própria natureza do produto – ex.: tesoura), funcional (forma que resulta
num aumento da utilidade ou na melhoria do aproveitamento do produto – proteção como patentes ou modelos de utilidade) ou
esteticamente (forma cujo caráter estético ou ornamental influi decisivamente no valor comercial dos produtos – proteção como
desenho ou modelo) necessárias– art. 223º/1/b) CPI. Em suma: só as formas arbitrárias ou não necessárias podem
constituir marca.
Ainda por falta de capacidade distintiva, uma única cor não pode ser marca. As cores podem ser marca se combinadas
entre si e com gráficos, dizeres ou outros elementos distintivos (art. 223º/1/e) CPI).
b) Princípio da verdade
De um modo sintético, uma marca é verdadeira se não for enganosa ou decetiva. A este respeito, dispõe o art.
238º/4/d) CPI acerca da irregistabilidade das marcas que, em todos ou alguns dos seus elementos, contenham sinais
que sejam suscetíveis de induzir o público em erro, nomeadamente sobre a natureza, qualidades, utilidade ou
proveniência geográfica do produto que a marca identifica. Outras manifestações deste princípio são encontradas no
art. 238º/6/a) e b) CPI.
De referir que o ponto relativo à “proveniência geográfica” aconselha a considerar algumas hipóteses:
1. O sinal geográfico é verdadeiro » pode ser incluído na marca (mas não pode constitui-la exclusivamente);
2. Os produtos não são originários da região ou localidade indicada pelo sinal geográfico:
a) O sinal é uma denominação de origem ou uma indicação geográfica (arts. 305º e ss. CPI) » não pode
fazer parte da marca;
b) O sinal não é denominação de origem ou indicação geográfica mas é bastante conhecido do público »
não pode fazer parte da marca;
c) O sinal, pouco ou muito conhecido, surge aos olhos do público como denominação de fantasia ou
arbitrária » pode fazer parte da marca.
No fundo, tudo dependerá da probabilidade decetiva ou enganadora do sinal.
c) Princípio da licitude
O princípio da licitude é um princípio residual nesta matéria e consiste, fundamentalmente, na obrigatoriedade das
marcas a constituir respeitarem, além dos princípios, as disposições legais na matéria. Assim sendo, releva, para estes
efeitos, o disposto nos arts. 238º e 239º CPI, mormente as alíneas destas normas que instituem proibições adicionais
às que decorrem diretamente dos outros princípios.
d) Princípio da novidade e especialidade
Será ainda recusado o registo das marcas que não sejam novas, distintas ou inconfundíveis, nos termos dispostos no
art. 289º/1/a) CPI. Tal novidade tem apenas que se afirmar, note-se, no âmbito de produtos idênticos ou afins.
Este princípio é excecionalmente ultrapassado no domínio das marcas de prestígio, porque aqui o escopo deixa de ser
a salvaguarda da novidade ou especialidade (a garantia da inconfundibilidade), e passa a ser a proteção da função
atrativa excecional, a qual determina que se impeça o registo de marcas idênticas mesmo quando relativas a atividades
ou produtos distintos.
O registo de uma marca deverá ser recusa por desrespeito pelo princípio da novidade nos seguintes casos:
 A marca cujo registo se requer é idêntica a uma marca anteriormente registada e os produtos respetivos são
também idênticos;
 As marcas são idênticas e os produtos, embora não sejam idênticos, são afins;
 As marcas, não sendo idênticas, são semelhantes e os produtos são idênticos;
 As marcas são semelhantes e os produtos respetivos são afins.
Neste contexto, o cerne do problema consiste em saber quando existe afinidade entre os produtos, semelhança entre
marcas e risco de confusão. Veja-se então que situações poderão estar em causa:
 Afinidade entre produtos: são afins ou semelhantes os:

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 Produtos com natureza ou caraterísticas próximas e finalidades idênticas ou similares (ex.:
esferográficas e canetas);
 Produtos com natureza marcadamente diversa mas com finalidades idênticas ou semelhantes (ex.:
fios de linho e fios de seda para confeções);
 Produtos não intermutáveis ou substituíveis (concorrentes) mas que o público destinatário crê
razoavelmente terem a mesma origem (exs.: fios de lã e vestuário de lã; aguardentes e vinhos; etc.).
 Semelhança entre marcas: as semelhanças pode ter:
 Natureza gráfica e fonética: sobretudo nos casos de marcas nominativas, constituídas por letras ou
números e de marcas mistas em que prevaleçam estes elementos;
 Natureza figurativa: sobretudo entre marcas figurativas e tridimensionais, que se traduzem numa
figura com dada configuração;
 Natureza sonora: sobretudo na hipótese de marcas auditivas;
 Natureza ideográfica ou conceitual: para quaisquer tipos de marcas.
No juízo sobre a similitude, devem as marcas ser apreciadas global ou sinteticamente, não se devendo
proceder à sua dissecação analítica a fim de excluir do exame elementos ou segmentos designadamente os
que não têm ou têm pouca capacidade distintiva.
 Risco de confusão: não existe risco de confusão sem que exista ou identidade do sinal–afinidade dos produtos,
ou semelhança do sinal–identidade de produtos, ou semelhança do sinal–afinidade os produtor, mas o inverso
nem sempre se verifica (pode haver semelhança ou afinidade sem que haja risco de confusão). Note-se ainda
que o risco de confusão deve ser compreendido em sentido lato, abarcando tanto o risco de confusão em
sentido estrito ou próprio (os consumidores podem ser induzidos a tomar uma marca pela outra e um produto
pelo outro), como o risco de associação (os consumidores, distinguindo embora os sinais, ligam uma marca à
outra e um produto ao outro). O risco de confusão depende de vários fatores:
 Tipo de consumidores: os consumidores a considerar são, em primeiro lugar, aqueles a quem os
produtos assinalados com as marcas em causa se destinam; em segundo lugar, considerar-se-á o
consumidor-médio;
 Grau de semelhança: quanto maior a semelhança entre as marcas e os produtos, maior o risco de
confusão (sendo que uma e outra podem estar correlacionadas);
 Força e notoriedade da marca registada: quando a marca já registada é muito conhecida, a marca que
se pretende registar tem que apresentar maior dissemelhanças a fim de não induzir o público em erro.
A “força” da marca registada haverá ainda que aferir-se pela sua capacidade distintiva.
3.3 Conteúdo e extensão do direito sobre a marca
3.3.1 Registo
Para que se constitua um direito de propriedade sobre uma marca é preciso que a mesma seja registada – art. 224º
CPI. O processo normal de registo é regulado pelos arts. 233º e ss. CPI.
Tem direito de prioridade para o registo quem primeiro apresentar regularmente o respetivo pedido (art. 11º CPI). No
entanto, quem tiver apresentando pedido regularmente em qualquer país da União de Paris ou da OMC gozará, para
apresentar o mesmo pedido em Portugal, do direito de propriedade durante seis meses (art. 12º CPI). Também aquele
que usar marca livre ou não registada durante período inferior a 6 meses tem, durante esse prazo, direito de prioridade
para efetuar o registo, podendo reclamar contra o que foi requerido por outrem (art. 227º/1 CPI).
Os direitos conferidos pelo registo de marca no nosso país são eficazes apenas no território nacional (art. 4º/1 CPI); o
titular de marca registada que pretenda a proteção da marca noutros países haverá que requerer o registo nesses
Estados. Só não o terá que fazer em relação aos Estados partes do Acordo de Madrid relativo ao Registo Internacional
de Marcas ou do Protocolo relativo a esse acordo. Nestes casos, o titular da marca pode requerer, por intermédio do
INPI (Instituto Nacional da Propriedade Intelectual), o registo da marca na Secretaria Internacional da Organização
Mundial da Propriedade Intelectual.
As “marcas comunitárias” são registadas unicamente num organismo da Comunidade (Instituto de Harmonização do
Mercado Interno) e produzem efeitos em todos o espaço comunitário.
O titular de uma marca registada goza da propriedade exclusiva (art. 224º/1 CPI) dela, pelo que poderá usá-la para
assinalar os seus produtos, utilizá-la na publicidade, transmiti-la e cedê-la em licença de exploração, etc. Pode ainda
reclamar contra pedido de registo feito por outrem de marca idêntica ou semelhante (arts. 236º e 237º CPI); propor
ação de anulação de registo concedido numa hipótese como a referida (art. 266º/1 CPI); requerer judicialmente

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medidas inibitórias contra violações do seu direito (arts. 338º-I e 338º-N CPI), bem como indemnizações (art. 338º-L
CPI). Ademais, o direito do proprietário é ainda protegido criminal e contra-ordenacionalmente (arts. 323º, 324º e
336º CPI). A este respeito, dispõe o ainda o art. 258º CPI que é proibido o uso de sinais confundíveis com a marca
registada no exercício de atividades económicas.
Estes efeitos decorrentes do registo sofrem, todavia, limites, nomeadamente:
 O titular de marca registada não tem o direito de impedir que terceiros usem na sua atividade económica os
signos daquele titular, embora não como marcas, mas sim com mera função descritiva (art. 260º/a) e b) CPI)
– ex.: cápsulas de café que compatíveis com uma máquina específica, associada a uma marca;
 O titular de marca registada não tem também o direito de impedir que terceiros usem na sua atividade
económica essa mesma marca, quando tal uso não viole práticas honestas em matéria profissional e seja
necessário para indicar o destino dos produtos (art. 260º/c) CPI) – ex.: peça sobressalentes para automóveis;
 Os direitos conferidos pela marca esgotam-se relativamente aos produtos colocados no mercado pelo titular
da marca ou por terceiro com o seu consentimento (ele não pode querer exercer esses direito perante um
sub-adquirente já distante ou a quem recomercializa os bens) – princípio do esgotamento (art. 259º CPI).
3.3.2 Proteção das marcas não registadas
As marcas de facto, livres ou não registadas, além de poderem gozar do referido direito de prioridade para o registo
(art. 227º CPI), podem ainda ser protegidas por efeito do disposto no art. 239º/1/e) CPI – deve ser recusado o registo
de marca idêntica ou confundível com marca de facto quando se reconheça que o requerente pretende fazer
concorrência desleal.
De proteção especial gozam as marcas de facto notoriamente conhecidas (art. 241º CPI): deve ser recusado o registo
de marca que constitua reprodução ou imitação de marca de facto notoriamente conhecida. O conhecimento notório
haverá que se verificar em Portugal e nos meios interessados, nos círculos dos consumidores ou utilizadores dos
produtos em causa. O titular de uma marca de facto notoriamente conhecida pode reclamar contra o requerimento
de registo de marca que a imite ou reproduza, desde que efetue previamente pedido de registo da marca notória (art.
241º/2 CPI). E se o INPI proceder ao registo, poderá o titular da marca de facto notória pedir a anulação desse registo
(art. 266º/1 e 2 CPI). Ademais, fica o terceiro que a use, contrafaça ou imite sujeito a responsabilidade criminal, mesmo
antes do registo da marca notoriamente conhecida (arts. 323º/d) e 324º CPI). Igual proteção é conferida às marcas de
prestígio não registadas (arts. 242º, 266º/1 e 2, 323º/e) e 324º CPI).
3.4 Transmissões e licenças
O sistema hoje generalizado é o da transmissibilidade das marcas independentemente da transmissão das respetivas
empresas. Este sistema não é, todavia, absoluto. A propriedade de marca registada é transmissível a título gratuito ou
oneroso independentemente do estabelecimento, desde que tal não seja suscetível de induzir o público em erro
quanto à proveniência do produto ou quanto aos carateres essenciais para a sua apreciação (art. 262º/1 e 3 CPI).
Nestes termos, exemplificativamente, será ilícita a transmissão de marca que contenha o nome ou a firma do
transmitente (este fator é, sem dúvida, suscetível de induzir o público em erro).
Como ficou já exposta, a marca acompanha o estabelecimento quando este é transmitido, quer definitivamente – por
trespasse –, quer temporariamente – por locação.
A transmissão inter vivos das marcas quando não integrada em negócio sobre o estabelecimento, deve ser provada
por escrito (art. 31º/6 CPI), só produzindo efeitos em relação a terceiros depois do respetivo averbamento no INPI
(art. 30º/1/a) e 2 CPI).
Refira-se que as marcas de facto (não registas), por não serem objeto de direito de propriedade, não podem ser
autonomamente transmitidas; podendo ser, somente, transmitidas enquanto elementos das empresas.
É também hoje generalizada a admissibilidade das licenças de uso ou exploração em matéria de marcas. Assim sendo,
através de contrato, gratuito ou oneroso, pode o titular da marca registada cedê-la a terceiro. A licença pode ser total
ou parcial, destinada a certa zona ou a todo o território nacional, vigente por todo o tempo do registo ou período
inferior, exclusiva ou não exclusiva (art. 32º/1, 5, 6 e 7 CPI). O contrato de licença está sujeito a forma escrita (art.
32º/3 CPI) e só produz efeitos em relação a terceiros depois de averbado no INPI (art. 30º/1/b) e 2 CPI). No que diz
respeito aos poderes do licenciado, dispõe a lei que ele goza, em regra, das faculdades conferidas ao titular do direito
objeto da licença (art. 32º/4 CPI), mas não lhe reconhece, salvo estipulação em contrário, o poder de conceder
sublicenças sem consentimento escrito do licenciante (art. 32º/8 e 9 CPI). A lei não prevê, então, o poder-dever de o
licenciante controlar a qualidade dos produtos com a sua marca assinalados pelo licenciado, nem o dever de o
licenciado respeitar quaisquer critérios de qualidade. Isto não obsta a que o contrato específico regule estas matérias,

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e que, em caso de incumprimento, o licenciante invoque esse aspeto para fazer valer os direitos que lhe advêm do
registo contra o licenciado (art. 261º CPI) ou como fundamento para a caducidade do registo da marca (art. 269º/2/b)).
Aparentado com o contrato de licença é o contrato de “merchandising de marca”, através do qual o titular de marca
registada de prestígio concede a outrem o direito de usar o signo para distinguir produtos não idênticos nem afins dos
produtos para que ela foi registada. Apesar de não tipificado legalmente, este contrato deve ser considerado lícito.
3.5 Extinção do registo das marcas ou de direitos dele derivados
A extinção do registo das marcas pode decorrer segundo quatro formas:
a) Nulidade;
b) Anulação;
c) Caducidade;
d) Renúncia.
Vejam-se, então, o que distingue estes modos de extinção:
a) Nulidade
Segundo o art. 265º/1 CPI, o registo da marca é nulo nos casos previstos no art. 33º/1 CPI, e quando na sua concessão
tenha sido desrespeitado o disposto nos nºs 1, 4, 5 e 6 do art. 238º CPI (proibições absolutas de registo).
A declaração judicial de nulidade é requerível a todo o tempo, por qualquer interessado ou pelo Ministério Público
(arts. 33º/2 e 35º/1 e 2 CPI). A nulidade opera retroativamente, mas não afeta os efeitos enunciados no art. 36º CPI.
b) Anulação
É anulável o registo de marca quando na sua concessão tenha sido infringido o disposto nos arts. 239º a 242º CPI (art.
266º/1 CPI). As ações de anulação podem ser propostas pelo Ministério Público ou por qualquer interessado dentro
do prazo de 10 anos a contar da data do despacho que concessão do registo (arts. 35º/1 e 2 e 266º/4 CPI). Não
prescreve, todavia, o direito de pedir a anulação de marca registada de má fé (art. 266º/4 CPI).
c) Caducidade
O registo da marca caduca independentemente da invocação de causa de causa nos seguintes casos (art. 37º/1 CPI):
 Quando tiver expirado o seu prazo de duração;
 Por falta de pagamento de taxas.
Ademais, o registo da marca caduca mediante invocação pelos interessados e de correspondente declaração pelo INPI
nos seguintes casos (arts. 237º/2 e 270º CPI):
 Se a marca não tiver sido objeto de uso sério durante 5 anos consecutivos sem justo motivo (art. 269º/1 CPI);
 Se a marca se tiver transformado em designação usual no comércio do produto para que foi registada, em
consequência da atividade ou inatividade do titular (art. 269º/2/a) CPI);
 Se a marca se tiver tornado decetiva (art. 269º/2/b) CPI).
No que diz respeito ao “uso sério” da marca, entende-se que a marca deve ser usada de forma a assinalar produtos
colocados no mercado de modo estável e não esporádico e em quantidades significativas ou não irrisórias. No fundo,
pretende verificar-se uma utilização que não é meramente simbólica. Quanto ao “justo motivo” para a falta desse uso
sério, haverão que se verificar circunstâncias independentes da vontade do titular que tal imponham (ex.: casos de
força maior, medidas de autoridades públicas, etc.).
O preceituado na alínea a) do nº 2 do art. 269º CPI, acerca da transformação da marca em designação habitual do
produto no mercado, reconduz-se ao fenómeno da chamada “vulgarização” de marca. Há aqui uma transformação da
marca em nome comum ou signo específico do produto (os signos específicos não podem ser marcas, como
supramacionado, porque identificam uma espécie de produtos). Esta conversão pode realizar-se por iniciativa do
titular da marca, dos seus concorrentes, dos distribuidores ou comerciantes, dos consumidores, etc. Por isso mesmo,
não bastará o uso generalizado de uma marca como designação específica do produto para que o registo seja caduco;
exige ainda a lei que a vulgarização seja consequência da atividade (o próprio titular promove a utilização da marca
como nome comum do produto) ou inatividade do titular (outros iniciam ou promovem essa utilização sem que o
titular reaja).
d) Renúncia
Por declaração unilateral receptícia (dirigida ao INPI), pode o titular de marca renunciar (total ou parcialmente) ao seu
direito de propriedade sobre ela (art. 38º/1 e 2 CPI). Porém, a renúncia não prejudica os direitos derivados desse
registo, nos termos do art. 38º/5.
4. Denominações de origem e indicações geográficas
4.1 Noção

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Maria Paixão Direito Comercial I – 2017/2018
Os sinais distintivos que ora nos ocupam podem assumir duas denominações:
Denominação de origem VS Indicação geográfica
» nome de uma região, local determinado ou país (em » nome de uma região, local determinado ou país (em
casos excecionais) que serve para designar um produto casos excecionais) que serve para designar um produto
originário dessa zona, cuja qualidade ou caraterísticas originário dessa zona cuja reputação, determinada
gerais se devem essencial ou exclusivamente ao meio qualidade ou caraterísticas podem ser atribuídas a essa
geográfico e que é produzido, transformado ou origem geográfica e que é produzido, transformado ou
elaborado nessa área geográfica (art. 305º/1 CPI) elaborado nessa área geográfica (art. 305º/3 CPI)
 O meio geográfico determina a qualidade global ou  O meio geográfico é responsável pela fama ou
caraterísticas do produto caraterísticas específicas do produto
(o produto, globalmente considerado em si mesmo, só é (o produto pode ser produzido noutras zonas, mas com
produzido naquele meio geográfico) algumas caraterísticas distintas)
Exemplo de uma denominação de origem é a expressão “vinho do Porto” (este produto só é produzido naquele local,
sendo que qualquer outro tipo de vinho tem caraterísticas globais distintas, sendo um produto distinto); exemplo de
uma indicação geográfica é a expressão “maçã da Cova da Beira” (este produto – maçã – é produzido noutros locais,
com qualidade similar, mas a sua produção nesta zona imprime-lhe certas particularidades, pelo que não falamos de
um produto distinto mas antes de um produto com caraterísticas especiais).
As denominações de origem e indicações geográficas visam, como se compreende, distinguir produtos, à semelhança
do que vimos quanto às marcas. Todavia, não devem confundir-se as duas categorias de sinais distintivos:
Denominação de Origem/Indicação Geográfica Marca
 Os seus elementos constitutivos têm que ser  Os seus elementos constitutivos possíveis são muito
nominativos, consistindo quase sempre em nomes de vastos (palavras, desenhos, letras, números, áudios,
zonas geográficas; figuras tridimensionais, etc.);
 São propriedade comum dos residentes ou  São propriedade de sujeitos determinados (pessoas
estabelecidos, de modo efetivo e sério, na localidade, singulares ou coletivas);
região ou território demarcados (art. 305º/4);  Distinguem produtos com base nas suas
 Distinguem produtos originários de certas áreas caraterísticas, podendo ou não estar em causa a sua
geográficas. origem geográfica.
5. Recompensas
As recompensas definem-se como:
“prémios e títulos de distinção oficiais ou oficialmente reconhecidos concedidos a empresários por mor da
bondade dos respetivos estabelecimentos e/ou produtos”.
Estão aqui em causa condecorações, medalhas, diplomas, atestados, etc. Estas recompensas constituem “propriedade
sua” (art. 273º CPI), independentemente de registo. O registo das recompensas terá, segundo o ponto de vista
propugnado, mera função publicitária, e não função constitutiva. O registo de recompensa é anulável quando se prove
que a mesma não foi concedida ao sujeito mencionado no registo, ou quando o título da recompensa for anulado (art.
280º CPI). Tal registo caduca com a revogação ou cancelamento da concessão da recompensa (art. 281º/1 CPI),
podendo ainda o respetivo titular a ele renunciar (art. 38º CPI).

Capítulo V – Títulos de crédito. A letra


I – Dos títulos de crédito em geral
1. Noção de título de crédito
1.1 Noção
A tarefa de elaborar uma noção de título de crédito depara-se, desde logo, com uma dificuldade: a grande variedade
de documentos aceites como títulos de crédito. Assim sendo, para que a noção tenha validade para todos esses
documentos, importa saber, antes de mais, quais os documentos que são títulos de créditos, para verificar o que eles
têm em comum. Este passo é fundamental uma vez que se não há discussão em torno da natureza de títulos de crédito
de documentos como letras, livranças, cheques, guias de transporte, extratos de fatura, etc., a verdade é que tal
discussão surge em torno de documentos como aqueles que representam ações e obrigações, títulos de capital das
cooperativas, certificados de depósito bancário, bilhetes de transporte ou para espetáculos, vales de correio,
certificados de aforro, entre outros.
A lei portuguesa não estabelece uma noção de título de crédito. Não existe sequer, entre nós, um regime geral dos
títulos de crédito. De facto, não há um regime unitário que deva aplicar-se a todos os documentos qualificados como

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títulos de crédito. Há, somente, algumas normas de caráter geral, designadamente os arts. 483º e 484º CCom., os arts.
1466º e 2262º CC e os arts. 857º e 1069º e ss. CPC.
Ora, segundo Vivante, cuja conceção aqui se acolhe, o título de crédito define-se como:
“documento necessário para exercitar o direito literal e autónomo nele mencionado”.
São três, então, as principais notas a retirar desta noção:
1. O título de crédito é um documento necessário para o exercício para o exercício do direito nele mencionado;
2. O direito mencionado no título de crédito é literal;
3. O direito mencionado no título de crédito é autónomo.
1.2 O título de crédito como documento necessário para o exercício do direito
Se o documento surge como necessário para o exercício do direito nele mencionado, então aquele documento
desempenha uma função de legitimação.
= o sujeito legitimado para o exercício do direito é aquele que detém e exibe o respetivo título.
Esta relação especial entre o direito e o documento leva alguns autores, como Cassiano dos Santos e Ferrer Correia, a
falar de uma incorporação do direito no título. O direito está, portanto, incorporado/integrado/assimilado no título. E
esta incorporação traduz-se na assunção de uma função de legitimação pelo título de crédito, já que ele não se limita
a ser o (1) meio que permite o exercício do direito, sendo ainda o (2) meio que sustenta a tutela da posição do sujeito
legitimado pelo título para esse exercício. Desta sua dupla capacidade resulta a função de legitimação do título de
crédito porquanto o sujeito detentor do título de crédito é o único legitimado para o exercício do direito, estando a
sua posição devidamente tutelada. Isto facilita a negociação do título, pois o adquirente não se preocupará em verificar
como é que o título foi parar às mãos do transmitente; ele sabe que, a partir do momento em que é portador do título,
é a seu favor que a prestação deverá ser realizada. Noutro prisma, este regime favorece ainda o devedor, que assim
sabe, a todo o momento, a quem deve pagar.
1.3 Literalidade do direito mencionado no documento
De acordo com o princípio ou caraterística da literalidade, a letra do título é decisiva para a determinação do conteúdo,
limites e modalidades do direito. Portanto, o teor verbal do documento é determinante do direito que nele é
mencionado. Esta caraterística compreende-se facilmente uma vez que o documento em causa permite a circulação
do direito; consequentemente, há que permitir que o terceiro (adquirente ou não) possa depositar confiança naquilo
que o título diz. Até porque ele não terá, em regra, possibilidade de saber o que foi combinado além do texto do título.
Porém, se a letra é decisiva, isso não significa que a letra do título tenha que dizer tudo.
Entendendo-se nestes termos a caraterística da literalidade, há quem sustente (sobretudo autores italianos) que não
terá sentido falar da mesa a propósito, por exemplo, do título de ação. é verdade que a socialidade representada no
título de ação não é só conformada pela lei, dependendo ainda do contrato de sociedade (e suas alterações). Por isso
se diz que a ação é um “título incompleto”, não contendo indicação de todos os direitos que confere. E, em linha com
esta caraterística, temos que reconhecer no título de ação uma “literalidade imperfeita”, desde logo porque não será
possível reproduzir o teor do contrato de sociedade no título da ação.
1.4 Autonomia do direito mencionado no documento
A autonomia do direito consiste no facto de se dever considerar que ele surge como que de novo na esfera do
possuidor de boa fé. De outro modo: o direito incorporado nos títulos de crédito é autónomo porque é adquirido de
modo originário pelo possuidor de boa fé, isto é, independentemente da titularidade do seu antecessor e dos possíveis
vícios dessa titularidade. Assim, a autonomia do direito mencionado no documento remete-nos fundamentalmente
para a posição do adquirente em relação a anteriores titulares: o direito por ele adquirido é independente do direito
dos anteriores titulares, sendo adquirido originariamente.
1.5 Circulabilidade
A noção exposta, elaborada por Vivante, não refere uma quarta nota caraterizadora dos títulos de crédito em geral: a
da circularidade. Com efeito, os títulos de crédito têm aptidão para circular de acordo com regras próprias.
Entendemos, porém, que esta nota caraterizadora acaba por estar pressuposta nas demais referidas: a literalidade e
a autonomia só adquirem sentido se o título de crédito circular; nas relações imediatas, elas não têm razão de ser.
2. Especiais funções dos títulos de crédito
Os títulos de crédito ganharam existência devido à necessidade de tornar mais fácil e segura a circulação dos créditos,
por comparação ao regime da respetiva cessão. Para que a circulação dos créditos não houvesse que obedecer a regras
tão rigorosas com as da cessão de créditos, mas pudesse efetuar-se, ainda assim, com segurança, entendeu-se ser
necessário instituir um instrumento que permitisse às regras a que se encontram sujeitas as coisas móveis.

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Neste contexto, pode reconhecer-se aos títulos de crédito as seguintes funções:
 Função de transmissão do direito: a transmissão do título de crédito de acordo com as respetivas regras de
circulação acarreta também a transmissão do direito nele referido;
 Função de legitimação » duas componentes:
 Legitimação ativa: o portador do título, que o tenha recebido de acordo com as regras de circulação
do mesmo, pode (tem legitimidade para) exercer o direito mencionado no documento – presume-se
que o portador do título é seu titular;
 Legitimação passiva: o sujeito obrigado a realizar a prestação mencionada no título, cumpre essa
prestação se a realizar a favor do portador.
3. Classificação dos títulos de crédito
3.1 Classificação dos títulos de crédito fundada no direito incorporado
O conteúdo da prestação incorporada nos títulos de crédito pode ser de natureza muito diversa, podendo classificar-
se esses títulos de acordo com a natureza dos direitos que eles mencionam:
 Títulos de crédito que conferem ao seu portador o direito a uma prestação em dinheiro: letras, livranças e
cheques;
 Títulos de crédito que conferem ao seu portador um direito de natureza real sobre coisas: guias de transporte,
conhecimentos de carga ou de depósito e cautelas de penhor;
 Títulos de crédito que de participação (representam uma participação numa determinada pessoa coletiva, em
regra, uma sociedade): títulos de ação relativos a uma sociedade anónima, títulos de ação dos sócios
comanditários numa sociedade em comandita por ações.
3.2 Classificação dos títulos de crédito fundada no modo normal de transmissão
Distinguem-se, quanto ao seu regime normal de circulação, três tipos de títulos de crédito:
 Títulos ao portador: transmitem-se pela simples entrega do título, não revelando, por isso, no respetivo texto
quem é o seu titular – Exs.: títulos de ação ao portador (art. 10º Cód. Valores Mobiliários - CMV);
 Títulos à ordem: transmitem-se por endosso (art. 483º CCom.), ficando a constar do título um comprovativo
da transmissão – Exs.: letra e livrança.
NOTA: estes títulos identificam o seu primeiro titular, o que torna possível estabelecer uma cadeia de endossos
 Títulos nominativos: exigem, para a sua transmissão, a intervenção do emitente, que pode ter lugar, por
exemplo, realizando um registo a favor do adquirente, contendo o documento a identificação do seu titular –
Exs.: títulos nominativos de ações (art. 97º/1/c) CMV).
[NOTA: títulos há que podem ser emitidos como títulos à ordem, ao portador ou nominativos – por exemplo, o título de
conhecimento de carga.]
3.3 Classificação dos títulos de crédito fundada nas consequências da emissão do título no direito incorporado
Os títulos de crédito podem apresentar-se como:
 Documentos constitutivo: o direito incorporado é distinto do direito resultante da relação jurídica subjacente;
 Documentos declarativos: o direito subjacente ao título surge antes dele e subsiste mesmo sem a sua
incorporação no título – Ex.: título de ação (a socialidade surge antes do título e subsiste mesmo sem a sua
incorporação neste; não é o título que a cria, pois ela já existe. O título de ação limita-se a representar um
uma participação social já constituída).
NOTA: poderá falar-se numa função constitutiva do título de ação (que é um documento declarativo) na
medida em que ele vem tornar aplicável um conjunto de regras quanto à legitimação para o exercício dos
direitos, quanto à transmissão da participação representada e quanto à tutela dos adquirentes. Ademais, o
título de ação poderá ainda dizer-se constitutivo na medida em que sem ele não há ainda valor imobiliário.
3.4 Classificação dos títulos de crédito fundada no relevo da relação fundamental
Tendo em conta a preponderância da relação fundamental subjacente ao título de crédito, podemos distinguir:
 Títulos abstratos: os negócios relativos a tais títulos são, em maior ou menor medida, independentes de causa,
isto é, independentes de uma qualquer relação obrigacional prévia que lhes tenha dado origem;
 Títulos causais: os negócios relativos a estes títulos dependem da respetiva causa, ou seja, da obrigação pela
qual o título foi assumido – Exs.: título de ação (o título depende da causa da sua emissão – o contrato de
sociedade – porquanto ele será determinado pela relação entre a sociedade o accionista nos moldes em que
ela é estabelecida nesse contrato).
4. Títulos de crédito desmaterializados (?)

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Os títulos de ação têm sido encarados por grande parte da doutrina como títulos de crédito. Contudo, o CVM torna
possível a representação de ações através de registos em conta (ações escriturais). Estes registos carecem de um
suporte, o qual poderá ser em papel ou informático. Mas, sublinhe-se, o registo não se confunde com o respetivo
suporte. Por isso mesmo pergunta-se: as ações escriturais, os registos ou os suportes desses registos são títulos de
crédito? Em primeiro lugar, as ações escriturais são o próprio valor transmitido, não sendo, portanto, um título de
crédito. Depois, tanto o registo em conta como o seu suporte são “documentos”, mas eles não se transmitem
verdadeiramente, já que para cada novo titular é efetuado novo registo, o qual terá novo suporte. Consequentemente,
também eles não são títulos de crédito.

II – A Letra
1. Breves apontamentos históricos
Na Idade Média, a Europa conheceu alguns surtos de significativo desenvolvimento económico. Esse desenvolvimento
foi causa e consequência do crescimento das trocas comerciais. Para a realização dessas trocas, a circulação de valores
assumia particular relevo. Porém, as comunicações não eram fáceis nem seguras. Foi, então, para superar este
obstáculo que surgiu o cambium per litteras, que permitia efetuar pagamento de um local para outro, sem deslocação
real do numerário (valor em moeda). A letra primitiva tinha, portanto, semelhanças com o cheque atual. Inicialmente,
o documento que estará na origem da letra tinha como função a troca de moedas de diferentes praças e não circulava
à ordem. Hoje em dia, o regime da letra de câmbio é muito distinto. A letra transmite-se por endosso e é, por isso, um
título à ordem.
O regime desta figura é atualmente regulado na Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças (LULL).
2. Noção
O título de crédito que é designado por “letra” é:
“um documento em papel que contém uma ordem de pagamento de uma quantia determinada, dada pelo
sacador ao sacado, à ordem do tomador”.
Desta noção retiram-se as seguintes caraterísticas essenciais:
1. Ordem de pagamento (= “saque”);
2. Pagamento de quantia determinada;
3. Ordem dada pelo sacador ao sacado;
4. Pagamento à ordem do tomador.
Em face do que foi dito, importa, desde já, caraterizar as pessoas envolvidas:
 Sacador: credor de obrigação pecuniária de quantia certa;
 Sacado: devedor da obrigação pecuniária de quantia certa;
 Tomador: terceiro a quem o devedor deverá pagar a quantia certa em dívida.
NOTA: o saque também pode ser feito à ordem do próprio credor (sacador), que assim, será simultaneamente
sacador e tomador – art. 3º LULL. O saque à ordem do sacador justifica-se quando este não saiba ainda se quer
colocar a letra à movimentação endossando-a a um tomador ou se pretende conservá-la em carteira até à
data de vencimento.
Ora, é crucial, neste momento, distinguir a letra de figuras afins ou semelhantes:
Livrança Letra Cheque
» documento emitido por um devedor » documento emitido por um credor » documento que contém uma ordem de
(subscritor) que promete pagar uma (sacador) que ordena que o sacado pagamento dada pelo sacador (credor)
quantia ao beneficiário (credor) ou à (devedor) pague uma quantia a um sobre um banqueiro que tenha fundos à
sua ordem (art. 75º/2 LULL) terceiro (tomador) ou à sua ordem disposição do sacador e em harmonia
com uma convenção segundo a qual o
sacador tem o direito de dispor desses
fundos por meio de cheque
 Promessa da pagamento;  Ordem de pagamento;
 Beneficiário é o próprio credor (e  Tomador pode ser terceiro ou o  Ordem de pagamento;
não um terceiro). próprio sacador/credor;  Sacada sobre um banqueiro;
 Sacada sobre qualquer devedor;  Sacado tem fundos à disposição do
 Sacado é pura e simplesmente sacador.
devedor do sacador.

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Em regra, a emissão de uma letra ocorre porque existe uma relação entre o sacador e o sacado, e uma relação entre
o sacador e o tomador, as quais justificam aquela emissão – se o sacado é devedor do sacador e este, por sua vez, é
devedor do tomador, então mais fácil será que o sacado pague a dívida diretamente ao tomador.
Podemos apontar à letra as seguintes funções:
 Instrumento de crédito: a letra de câmbio permite diferir no tempo a realização de um pagamento; em vez de
pagar agora, o aceitante pagará uma quantia na data do vencimento da letra;
 Meio de circulação do crédito: a letra pode circular através do endosso (= transferência da propriedade da
letra – arts. 11º e 14º LULL), circulando com ela o crédito;
 Forma de pagamento imediato: o tomador pode obter imediatamente o pagamento através, designadamente,
do desconto;
 Título executivo: a letra permite o recurso ao processo executivo para obter pagamento (art. 46º/1/c) CPC).
Com o saque da letra de câmbio, o próprio sacador (que dá a ordem de pagamento) torna-se obrigado cambiário
perante o tomador (terceiro a quem o sacado deve pagar). Com efeito, o sacador é garante da aceitação e do
pagamento da letra perante o seu tomador e posteriores portadores (art. 9º LULL). Por isso se diz que o sacador é o
obrigado inicial – ele assume o papel de garante ab initio.
Como a ordem pode ser dada sobre o próprio sacador (art. 3º LULL), sendo ele simultaneamente sacador e sacado, é
possível que o sacador dê a ordem de pagamento a si mesmo. Se aceitar, responde perante o tomador enquanto
sacador e enquanto sacado; se não aceitar, responde apenas como sacador.
Na letra podemos encontrar os seguintes negócios cambiários:
 Saque: ordem de pagamento;
 Aceite: negócio pelo qual o sacado faz sua a responsabilidade pelo pagamento da letra (aceita a ordem de
pagamento decorrente do saque), tornando-se o obrigado principal (arts. 21º e ss. LULL);
 Endosso: transmissão da letra, ocupando o endossante (pessoa que adquire a letra) a posição de garante da
aceitação e do pagamento da letra (arts. 11º e ss. LULL);
 Aval: negócio pelo qual o avalista garante o pagamento da letra, no todo ou em parte, garantindo esse
pagamento por parte de algum dos restantes obrigados cambiários (arts. 30º e ss. LULL).
3. Requisitos externos da letra
O art. 1º LULL enumera os requisitos formais da letra. São eles:
«Art. 1.º
Requisitos da letra
A letra contém:
1. A palavra «letra» inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregada para a redacção desse título;
2. O mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada;
3. O nome daquele que deve pagar (sacado);
4. A época do pagamento;
5. A indicação do lugar em que se deve efectuar o pagamento;
6. O nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga;
7. A indicação da data em que, e do lugar onde a letra é passada;
8. A assinatura de quem passa a letra sacado.»
Vejam-se, então, estes requisitos com mais pormenor:
1. A obrigatoriedade da inserção da palavra “letra” resulta da necessidade de alertar qualquer subscritor para a
importância do ato que está a realizar. A letra, como negócio jurídico cambiário específico, tem um regime
jurídico próprio, que pode implicar consequências particularmente gravosas para o subscritor. Daí que seja
essencial que o subscritor esteja bem consciente do ato que realiza. Esta justificação implica, aliás, que a
inserção da palavra “letra” seja efetuada diretamente no texto do título e na língua empregada para a redação
desse título.
2. A ordem de pagamento (“mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada”) constitui o saque em
si mesmo, isto é, a declaração do sacador por intermédio da qual ele dá a ordem de pagamento. Esta ordem
deve ser pura e simples e deve dizer respeito a uma quantia determinada (e não apenas determinável). Daqui
decorre também a limitação imposta pelo art. 5º LULL à cláusula de juros: esta só será legal se for estipulada
pelo sacador, na própria letra e se a letra for pagável à vista ou a um certo termo de vista, pois só assim é
possível calcular logo a quantia de juros desde a data da emissão até ao vencimento.
3. O nome do sacado será o nome do sujeito a quem é dirigida a ordem de pagamento e que, mediante aceite,
se tornará obrigado cambiário. Portanto, é a esta pessoa que a letra se apresentada ao aceite. Assim sendo, o

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nome do sacado deverá ser indicado com a determinação suficiente para que se possa identificar o sujeito em
causa através do documento.
4. No que diz respeito à indicação da época do pagamento, a lei determina expressamente como ela pode ser
feita (art. 33º LULL):
a) Letra sacada à vista: pagável à apresentação (em regra, dentro do prazo de 1 ano – art. 34º LULL);
b) Letra sacada a termo de vista: pagável à apresentação após o decurso de um prazo, a contar do
momento do aceite ou do protesto (art. 35º LULL);
c) Letra sacada a certo termo de data;
d) Letra pagável num dia fixo.
5. O lugar de pagamento indicado na letra será o local onde o portador da letra deve apresentá-la a pagamento,
pelo que ele não pode ser simplesmente uma localidade, devendo consistir num concreto endereço. No caso
de a letra ser pagável no domicílio de terceiro (art. 4º LULL), teremos então uma letra domiciliada.
6. A indicação do tomador, isto é, a pessoa a quem ou à ordem de quem a letra deve ser paga é também requisito
da letra, não sendo, por isso, admitidas “letras ao portador”.
7. A indicação da data em que a letra é passada ajudará a determinar se o sacador tinha ou não capacidade no
momento em que efetuou o saque. Permitirá ainda: calcular os prazos para apresentação a pagamento das
letras à vista e a certo termo de data, e para a apresentação ao aceite das letras a termo de vista (arts. 34º e
23º LULL).
8. A indicação do lugar onde a letra é passada será necessária para encontrarmos o direito nacional que deve ser
aplicado para a resolução de conflitos que possam emergir.
9. A assinatura do sacador permitirá afirmar que foi emitida a declaração cambiária que deu origem à letra. Esta
assinatura obriga, desde logo, o sacador (art. 9º LULL).
4. Falta dos requisitos externos
Em princípio, a falta dos requisitos referidos no art. 1º LULL tem como consequência que o documento não produzirá
efeitos como letra – art. 2º LULL. Justifica-se, por isso, dizer que a letra é um título rigorosamente formal.
O art. 2º LULL estabelece, todavia, três exceções a esta consequência:
 Não indicação da época de pagamento: a letra é considerada pagável à vista (nos termos do art. 34º LULL);
 Não indicação do lugar do pagamento: vale como lugar do pagamento o que tenha sido designado ao lado do
nome do sacado (será o domicílio do sacado);
 Não indicação do lugar onde a letra foi passada: considera-se a letra passada no lugar designado ao lado do
nome do sacador.
NOTA: se estes lugares, designados ao lado do nome do sacado e do sacador, também não constarem da letra,
então o documento não produzirá efeitos enquanto tal.
5. A letra em branco ou a letra incompleta
Como ficou visto, embora a lei enumere uma série de requisitos externos da letra, alguns desses requisitos não têm
necessariamente de constar do título porque a própria lei se encarrega de suprir a sua falta. Podemos então distinguir:
Requisitos essenciais Requisitos não essenciais
» requisitos externos da letra cuja não falta não pode » requisitos externos da letra podem ter a sua falta
ser suprida nos termos da lei suprida nos termos definidos no art. 2º LULL
Já vimos como proceder no caso de faltarem requisitos não essenciais da letra (art. 2º LULL), e já vimos que a regra
nesta matéria é a não produção de efeitos do documento como letra. Todavia, impõe-se perguntar: em todos os casos
de falta de requisitos essenciais a letra não produzirá efeitos?
Falta de requisitos essenciais VS Falta de requisitos não essenciais
Há acordo de Não há acordo de Supressão da falta nos termos do art. 2º LULL
preenchimento preenchimento
Letra em branco Letra incompleta Falta dos elementos para a supressão
Poderá vir a produzir efeitos Não produz efeitos Averiguar se há ou não acordo de preenchimento
A lei admite, então, a celebração de acordos de preenchimento (art. 10º LULL) entre, desde logo, o sacador e o sacado.
Havendo um acordo de preenchimento, estamos em face de uma “letra em branco”, cuja incompletude se considera
temporária ou passageira, e que, por isso, produzirá efeitos quando preenchida.

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Neste contexto, questiona-se se não haverá elementos que não podem ser deixados para preenchimento posterior,
isto é, que têm de constar desde o início da letra, mesmo havendo acordo de preenchimento. Na opinião de Soveral
Martins, a letra em brando, para ser considerada como tal, terá de conter, necessariamente, a palavra letra e a
assinatura do sacador. Esta assinatura deverá ter sido colocada com a intenção, por parte do subscritor, de se obrigar
cambiariamente.
De notar ainda que, nos termos do art. 10º LULL, o pacto de preenchimento é, em princípio, oponível apenas nas
relações imediatas. Portanto, a violação do pacto de preenchimento não pode ser oposta ao portador mediato. Esta
oposição ao portador mediato só poder ter lugar quando esse portador “tiver adquirido a letra de má fé ou,
adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave” (os conceitos de “má fé” e de “falta grave” devem ser entendidos nos
termos em que são considerados no art. 16º LULL). A este respeito é de referir ainda que se entende que o portador
de boa fé protegido por este art. 10º LULL é apenas o portador mediato que adquiriu a letra quando ela já estava
completa. É que até ao preenchimento da letra com os elementos essenciais ela não produz efeitos enquanto tal.
6. O saque. A responsabilidade do sacador
Como referido, o saque consiste na:
“ordem de pagamento que o sacador dá ao sacado”.
Pelo saque o sacador cria a letra de câmbio. Esta ordem deve ser pura e simples, não lhe podendo ser apostas
quaisquer condições – art. 1º/2 LULL. A razão de ser desta exigência é simples: a obrigação cambiária tem como
caraterística a literalidade (pois é um título de crédito e, como apontado supra, os títulos de crédito mencionam
direitos literais) e essa caraterística não se compatibiliza com imposição, ao portador mediato, do ónus de investigação
do cumprimento, ou não, das condições pelos portadores anteriores.
A ordem de pagamento em que o saque se traduz deverá dizer respeito a uma quantia determinada. Não basta, então,
que ela seja determinável, por remissão para factos exteriores ao título. Até porque, mais uma vez, não parece ser
razoável impor ao portador mediato o ónus de averiguar qual a quantia devida.
Normalmente a letra é sacada pelo sacador sobre o sacado a favor do tomador ou à sua ordem. Não obstante, a letra
poderá ser sacada sobre o próprio sacador ou a favor do sacador – art. 3º LULL. Nada proíbe, ao que parece, que o
saque seja feito sobre o sacador a favor do sacador.
Com o saque, o sacador garante também a aceitação e o pagamento da letra (art. 9º LULL). A responsabilidade do
sacador (enquanto garante) é solidária com a do aceitante, com a do avalista ou com a só endossante (art. 47º LULL).
Note-se, porém, que o sacador pode exonerar-se da garantia da aceitação (de ser garante do aceite). Só não poderá
exonerar-se, em caso algum, da garantia do pagamento (de ser garante do pagamento) – art. 9º LULL.
7. O aceite
7.1 Noção
Retira-se do art. 28º LULL ser o aceite:
“a declaração do sacado pela qual este se obriga a pagar a letra à data do seu vencimento”.
Se o sacado não aceitar a letra, não fica obrigado. Pode é dar-se o caso de se ter comprometido antes a aceitar a letra,
sendo que nessa eventualidade, não aceitando, ficará instituído na obrigação de indemnizar a pessoa perante a qual
se obrigou (em regra, o sacador).
Como o aceitante se obriga a pagar a letra na data do seu vencimento, ele é considerado o obrigado principal. Também
em virtude do conteúdo da obrigação que impende sobre o aceitante, é compreensível que a letra só possa ser
apresentada ao aceite até à data do vencimento da letra (art. 21º LULL). Após o vencimento, aquela apresentação já
não poderá ter lugar; poderá, no máximo, apresentar-se a letra ao sacado para pagamento.
A apresentação ao aceite pode ser efetuado pelo portador da letra ou por um simples detentor (art. 21º LULL). Quando
o sacado pretenda realizar alguma averiguação, pode exigir segunda apresentação ao aceite para o dia seguinte (art.
24º LULL). É no domicílio do sacado que a letra deve ser apresentada ao aceite (art. 21º LULL). Se na letra esse domicílio
não está expressamente indicado, considera-se como tal o lugar indicado ao lado do nome do sacado (art. 2º LULL).
No que diz respeito à realização do aceite, as regras a observar são as seguintes – art. 25º LULL:
 O aceite deverá ser escrito na própria letra, com a palavra “aceite” ou outra equivalente.
 O aceite deve ser assinado pelo sacado (a simples aposição da assinatura do sacado na parte anterior da letra vale
como aceite – “aceite em branco”).
 O aceite deve ser puro e simples. Porém, o sacado pode fazer um aceite parcial (limitado a uma parte da
importância sacada – art. 26º LULL).

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 O aceite não tem, em regra, que ser datado, mas deverá sê-lo quando a letra é pagável a certo termo de vista ou
se deve ser apresentada ao aceite em prazo fixado por estipulação especial (vide: arts. 23º e 22º LULL). Se o aceite
não tiver data e, tratando-se de letra pagável a certo termo de vista ou que deve ser apresentada a aceite em
prazo fixado, o portador que quiser conservar os seus direitos contra endossantes e sacador deve fazer constar
essa omissão por um protesto, feito em tempo útil (art. 25º LULL in fine). Para a letra a certo termo de vista, dispõe
o art. 35º LULL que na falta de protesto, o aceite não datado entende-se como tendo sido dado no último dia do
prazo para a apresentação ao aceite.
Em regra, a apresentação ao aceite não é obrigatória. Contudo, o sacador pode estipular o “dever de apresentação ao
aceite” (art. 22º/1 LULL). Além disso, na letra sacada a certo termo de vista, o vencimento determina-se ou pela data
do aceite ou pela data do protesto (art. 35º LULL). Por isso, que a letra a certo termo de vista deve ser apresentada ao
aceite no prazo de um ano (art. 23º LULL).
O sacador pode também proibir na letra que esta seja apresentada ao aceite (“letra não aceitável”) – art. 22º LULL.
Esta possibilidade fica excluída quando:
 A letra é pagável em domicílio de terceiro ou em localidade diferente da do domicílio do sacado – aqui o
sacado tem que estar em condições de poder tomar as diligências necessárias para que tal pagamento se
realize, pelo que deverá ter a possibilidade de recursar o aceite;
 A letra é sacada a certo termo de vista – o aceite é necessário nestes casos porque o prazo para o vencimento
da letra depende da data do aceite.
A utilidade da “letra não aceitável” revela-se nos casos em que o sacado não quer aceitar a letra, mas não se importa
de a pagar na data do vencimento. Isto porque o aceite acarreta obrigações – art. 28º LULL – às quais o sacado pode
não querer vincular-se (ainda que aceite pagar a letra na data do vencimento).
A recusa do aceite, a ter lugar, deve ser comprovada por um protesto, para que o sacado possa daí retirar as inerentes
vantagens.
7.2 A recusa do aceite
Como referido, o sacado apenas se torna obrigado cambiário através do aceite. Se, ao ser-lhe apresentada a letra para
o aceite, ele o recusar, o portador deve fazer o protesto por falta de aceite (ato formal que atesta essa recusa) – art.
44º LULL. Uma vez que a recusa do aceite implica a antecipação do vencimento da letra, o portador pode, antes do
vencimento, exercer os seus direitos de ação contra os endossantes, sacador e outros co-obrigados (art. 43º LULL).
8. O endosso
8.1 Noção
A letra de câmbio é um documento à ordem (representa um valor cujo pagamento por ser exigido pelo portador a
cada momento), sendo o seu modo normal de transmissão o endosso (art. 11º/1 LULL). Com o endosso são
transmitidos todos os direitos emergentes da letra (art. 14º LULL). Essa transmissão não necessita de ser notificada ao
aceitante, o que constitui importante diferença relativamente ao regime da cessão de créditos (vide: art. 583º/1 CC).
O endosso transmite a letra e os direitos que dela decorrem, com as consequências resultantes do regime cambiário.
Nos termos dos arts. 12º e 13º LULL, o endosso deve:
 Constar da letra ou de folha ligada à letra ou anexo;
 Ser assinado pelo endossante (a pessoa que endossa a letra) – o endosso pode consistir unicamente na
assinatura do endossante (“endosso em branco”);
 Ser puro e simples, não podendo ser subordinado a quaisquer condições ou ser realizado apenas parcialmente.
Com o endosso é dada ao sacado uma nova ordem de pagamento: é-lhe dada a ordem para pagar ao endossado (e já
não ao endossante). Por isso se diz que o endosse é, ao fim e ao cabo, um novo saque.
O primeiro endosso é realizado pelo tomador e os seguintes haverão de ser realizados pelos sucessivos endossados.
Deste forma, garante-se uma série ininterrupta de endossos. No caso de um “endosso em branco” ser seguido de
outro, presume-se que o signatário deste último adquiriu a letra pelo endosso em branco (art. 12º LULL).
O endosso pode ser efeito a favor do sacado, seja ou não aceitante, ou a favor do sacador ou de qualquer outro
obrigado cambiário, podendo qualquer um deles reendossar (art. 16º LULL).
! Um aspeto importante nesta matéria é o de que o endossante garante a aceitação e o pagamento da letra perante
posteriores portadores dessa letra, salvo tendo sido estipulada cláusula em contrário. Nesta medida, em regra, o
endossante é também obrigado cambiário – art. 15º LULL.
Importa ainda referir que o detentor de uma letra é considerado portador legítimo se justifica o seu direito por uma
série ininterrupta de endossos (art. 16º LULL). Significa isto que o portador da letra só será considerado legítimo

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portador se a sua posição decorre de uma cadeia de endossos sem interrupções. Nesta linha, o devedor que paga a
este portador legítimo, fica desonerado – a sua obrigação tem-se como definitivamente cumprida (art. 40º LULL).
Do que foi dito decorrem as três principais funções que podem ser apontadas ao endosso:
Endosso
Função de transmissão Função de garantia Função de legitimação
» meio de transmissão dos direitos » instituição do endossante em garante » forma de prova da legitimidade do
emergentes da letra da letra portado da letra
8.2 Endosso em branco
O “endosso em branco” pode ser (art. 13º LULL):
 Aquele que tem lugar com a declaração de endosso assinada mas sem indicação de quem é o endossado;
 Aquele que é realizado apenas com a assinatura do endossante escrita no verso da letra ou folha anexa.
Além disso, o “endosso ao portador” vale como endosso em branco (art. 12º LULL).
Ora, aquele que recebe a letra através de endosso em branco é considerado portador legítimo da letra. E se o endosso
em brando é seguido de outro endosso, presume-se que o signatário deste adquiriu a letra pelo endosso em branco.
Portanto, o endosso em branco não afeta a regularidade da cadeia de endossos (art. 16º LULL).
O portador de uma letra que a recebeu através de endosso em branco pode:
a) Manter consigo a letra, tal como ela está (art. 14º, II, 1º LULL);
b) Preencher o espaço em branco, acrescentando o seu nome (art. 14º, II, 1º LULL);
c) Preencher o espaço em branco com o nome de outra pessoa (art. 14º, II, 2º LULL);
d) Endossar em branco mais uma vez (art. 14º, II, 2º LULL);
e) Endossa a letra com a identificação do endossado (art. 14º, II, 2º LULL);
f) Entregar a letra a outrem, sem necessidade de preencher o espaço em branco e sem necessidade de endossar
a letra (art. 14º, II, 3º LULL).
Como quem recebe a letra pode fazer o mesmo (entregar a letra a outrem), a letra começará a circular
como se fosse um título ao portador.
8.3 Outros modos de transmissão da letra
A letra não se transmite apenas por endosso. Outros modos de transmissão são:
 Cessão de créditos (expressamente prevista no art. 11º LULL);
 Outra via negocial além da cessão de créditos;
 Sucessão mortis causa.
Contudo, o endosso é o modo normal de transmissão da letra. Desde logo, a transmissão da letra por endosso tem
consequências que os outros modos de transmissão não têm, designadamente em matéria de tutela do portador de
boa fé (art. 17º LULL).
9. O aval
9.1 Noção
O aval é um negócio cambiário que pode definir-se da seguinte forma (art. 30º LULL):
“negócio pelo qual o sujeito que emite a declaração garante o pagamento da letra, no todo ou em parte, nas
mesmas condições que o avalizado”.
O avalista pode ser um sujeito que não teve até aí qualquer intervenção no título de crédito, ou pode ser alguém que
é já signatário da letra (art. 30º LULL). Nesta última hipótese, o aval só terá razão de ser se agravar a responsabilidade
do signatário.
O aval deverá indicar a pessoa por quem o avalista o dá. Esta indicação, da pessoa por quem o avalista deve ser
expressa; se essa indicação não for dada, entende-se que o aval é dado pelo sacador (art. 31º LULL). Quando o letra
não saiu das relações imediata, é de grande importância saber se é possível alegar e provar que o aval sem indicação
da pessoa do avalizado foi dado por pessoa diferente do sacador. Esta questão gerou controvérsia na doutrina e na
jurisprudência nacionais:
a) Gonçalves Dias, Oliveira Ascensão, Pinto Coelho: a presunção do art. 31º LULL in fine é uma presunção absoluta
(inilidível), não sendo possível fazer prova em contrário – posição acolhida no Assento do STJ de 1/2/1966.
b) Vaz Serra, Ferrer Correria: a presunção do art, 31º LULL in fine é ilidível quanto às relações imediatas, podendo
o avalista demonstrar que o aval não foi dado pelo sacador – posição acolhida na jurisprudência mais recente.

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Portanto, a posição dominante atualmente é a de que nas relações imediatas pode fazer-se prova de que o aval sem
indicação de avalizado foi prestado a favor de outra pessoa que não o sacador. Tal prova já não será admissível nas
relações mediatas, em nome da tutela dos interesses relacionados com a circulação da letra.
A este respeito, Soveral Martins acrescenta que, nas relação imediatas, mais do que falar-se em presunção legal
ilidível, parece ser de defender que se trata da oponibilidade de uma exceção fundada nas relações causais ou
extracartulares.
O aval pode ser escrito quer na letra, quer em folha anexa à letra; podendo ser dado com a utilização das palavras
“bom para aval”, “dou o meu aval por” ou outra expressão equivalente, ou com a mera assinatura do avalista. No caso
de o aval ser dado através de simples assinatura (“aval em branco”), tal assinatura só vale como aval se constar da
face anterior da letra e se não for assinatura do sacado ou do sacador (art. 31º LULL). No caso em que são utilizadas
as expressões mencionadas, o aval deve contar da face posterior da letra ou em folha anexa (art. 31º LULL).
9.2 A responsabilidade do avalista
O avalista responde nos mesmos termos em que responde aquele por quem é dado o aval (art. 32º LULL). Deste modo,
a responsabilidade do avalista dependerá da pessoa pela qual ele deu o aval – se é o sacador, se é um endossante, se
é o aceitante. Quanto a esta última hipótese, isto significa que o avalista do aceitante continua a responder nos
mesmos termos que este último ainda quando o portador, por aplicação do disposto no art. 53º LULL, perdeu os
direitos de ação contra endossantes, sacador e outros co-obrigados.
! Sublinhe-se, todavia, que o avalista não é um fiador (apesar o teor literal do art. 32º LULL):
Avalista Fiador
 Assume uma obrigação cambiária;  Assume uma obrigação civil;
[Caraterísticas e regime próprios – arts. 30º e ss LULL] [Caraterísticas e regime próprios – arts.627º e ss. CC]
 Responde ainda quando a obrigação que garantiu é  Não responde quando a obrigação principal é
nula (salvo em caso de vício de forma). inválida;
 Responsável nos mesmos termos que o avalizado.  Responsável acessoriamente.
Quanto o avalista paga a letra, ele fica subrogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa por quem deu o
aval. Além disso, fica ainda subrogado nos direitos emergentes da letra contra os que sejam obrigados cambiários para
com a pessoa por quem deu o aval. Suponha-se, então, que o avalizado é o endossante. Pagando a letra o avalista, ele
ficará subrogado nos direitos emergentes da letra contra o próprio endossante (avalizado), bem como nos direitos
emergentes da letra contra, por exemplo, a pessoa que havia anteriormente endossado a letra ao avalizado (um
endossante anterior).
Nos termos já desvelados, se a obrigação daquele por quem é dado o aval (o avalizado) for nula, o avalista só não
responderá caso essa nulidade decorra de vício de forma; em caso de nulidade substancial, a responsabilidade do
avalista subsiste (art. 32º LULL).
10. Caraterísticas das obrigações cambiárias
10.1 A independência da obrigação cambiária
Como ficou exposto, a letra pode conter várias declarações cambiárias de que resultam obrigações para os respetivos
subscritores. Essas declarações são, em certa medida, independentes entre si. É isto que resulta, desde logo, do art.
7º LULL: os vícios mencionados que afetem uma das obrigações cambiárias não se transmitem às obrigações de outros
subscritores. Ainda que esta seja a regra, a verdade é que ficaram já expostas algumas exceções:
 O vício de forma da obrigação do avalizado repercute-se na obrigação do avalista (este deixa de responder);
 A falta de requisitos externos no saque da letra implica que o documento não valha como letra (retirando
valos às subsequentes declarações dos demais sujeitos cambiários);
 O portador pode ser considerado ilegítimo se a sua posição não resulta de uma série ininterrupta de endossos.
Não obstante, a regra é a independência das obrigações cambiárias, pretendendo-se, deste modo, garantir a
circulabilidade da letra de câmbio.
Noutro prisma, aquele que endossa uma letra deve contar com a possibilidade de antes de si se encontrarem
obrigados cambiários que, afinal, não respondem. E, contudo, esse endossante ficará obrigado perante o endossado
e posteriores portadores legítimos, a menos que proíba um novo endosso (art. 15º LULL).
10.2 A abstração da obrigação cambiária
A obrigação cambiária carateriza-se por ser abstrata. Significa isto que ela é independente da sua causa. A causa que
subjaz à obrigação cambiária é-lhe indiferente, podendo ela servir qualquer causa.

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Porque assim é, o devedor cambiário não pode invocar, perante o portador mediato do título, exceções fundadas nas
relações causais estabelecidas com anteriores portadores ou com o sacador (art. 17º LULL).
A “causa” para estes efeitos, pode ser entendida em duas aceções:
 Relação fundamental: relação entre os sujeitos, exterior à letra, que determinou o negócio cambiário (ex.:
compra e venda, mútuo, etc.);
 Convenção executiva: pacto que se destina a regular ou reforçar, através de uma letra, uma obrigação já
constituída (que decorrerá da relação fundamental).
[Ex.: A compra a B um automóvel. Uma vez que A não dispõe do montante total correspondente ao preço, acordam que A ficará
a dever parte desse valor. Nesta linha, acordam que B sacará uma letra à sua própria ordem, que A aceitará, da qual consta o
montante em dívida. Mais tarde, B acaba por endossar a letra a C, que por sua vez faz o mesmo a D. Este último vem exigir o
pagamento a A na data do vencimento. A recusa-se, contudo, a efetuar o pagamento, alegando que o automóvel que comprou a
B sofre de vários defeitos. Ora, A não pode invocar uma exceção fundada na relações pessoais com o sacador (B), uma vez que D
é portador de boa fé. Essa relação entre A e B é exterior ao negócio cambiário de que resultou a obrigação cambiária, sendo esta
independente dessa relação e, consequentemente, abstrata – abstrai-se dos eventuais vícios da sua causa.]
Logicamente o que temos vindo a dizer só tem aplicação quando a pessoa que vem invocar o vício é o portador
imediato. Neste caso, ele já poderá invocar contra o sacado as exceções causais resultantes da relação pessoal com
ele estabelecida e que esteva subjacente ao surgimento da obrigação cambiária.
O art. 17º LULL, ao prescrever esta abstração da obrigação cambiária, fixa, todavia, uma condição: o portador mediato
só poderá invocar a abstração da obrigação cambiária (obstando a que o obrigado lhe oponha vícios da relação
subjacente ao surgimento da obrigação cambiária como meio de se desonerar do pagamento) se estiver de boa fé. Aí
prescreve-se que o portador mediato não estará de boa fé quando, ao adquirir a letra, procedeu conscientemente em
detrimento do devedor. Ora, neste contexto, suscita-se a questão de saber quando é que o portador mediato
“procedeu conscientemente em detrimento do devedor”. Quanto a este aspeto, três interpretações são possíveis:
1. Atua conscientemente em detrimento do devedor aquele portador mediato que conhece um vício anterior à
aquisição da letra, mesmo não sabendo que esse vício podia ser invocado perante o endossante;
2. Atua conscientemente em detrimento do devedor aquele portador mediato que sabe que podiam ser opostas
exceções pelo devedor ao seu endossante – neste sentido: Gonçalves Dias, Ferrer Correia;
3. Atua conscientemente em detrimento do devedor aquele portador mediato que adquiriu a letra com intenção
de prejudicar o devedor – neste sentido: Vaz Serra; Cassiano dos Santos.
Aquela segunda interpretação compreende-se uma vez que atuar conscientemente em detrimento de alguém não
significa, necessariamente, que exista a intenção de prejudicar. Todavia, não nos parece ser esse o melhor
entendimento. Se propugnássemos esse entendimento das coisas, bastaria a consciência de que se estava a causa
prejuízo ao devedor. E esse prejuízo decorre logo do facto de ele não poder opor ao adquirente as exceções oponíveis
a anteriores possuidores. Ora, este é um efeito normal da letra, que decorre da sua própria natureza independente e
abstrata. Consequentemente, qualquer portador teria consciência de atuar em detrimento do devedor, pois sabe que,
existindo uma qualquer exceção que este possa invocar contra um anterior possuidor da letra, essa exceção nunca
poderá ser invocada contra ele próprio (portador mediato). Acabar-se-ia, então, por subverter o intuito do preceito,
admitindo-se como regra o afastamento do art. 17º LULL. Em ordem a não se culminar numa situação como esta,
haverá que seguir esta última interpretação.
De notar ainda que, caso um portador intermédio se encontre de boa fé, tal facto torna irrelevante a má fé de um
posterior portador da letra. Isto porque nestes casos a má fé do portador posterior não causa qualquer tipo de prejuízo
ao devedor, pois ele já teria que pagar ao portador mediato anterior que estava de boa fé (pelo que estaria tutelado
pelo art. 17º LULL).
10.3 O direito literal
O obrigado cambiário tem que respeitar o direito do portador nos termos em que tal direito é definido pelo texto da
letra de câmbio. Nesta linha, ao portador mediato de boa fé não podem ser opostas exceções que se baseiem em
acordos, celebrados entre anteriores sujeitos cambiários, que não tenham manifestação no texto da letra (art. 17º
LULL). Ademais, relembre-se que a literalidade anda a par do formalismo, no que diz respeito aos negócios cambiários:
a lei impõe requisitos formais rigorosos (por ex.: a letra tem que conter a palavra “letra”) sem os quais o obrigado
cambiário não está obrigado.
10.4 O direito autónomo

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O legítimo possuidor da letra (aquele que justifica o seu direito por uma série ininterrupta de endossos) tem um direito
sobre o título que é autónomo relativamente aos direitos dos anteriores possuidores. Nesse sentido, o direito do
legítimo possuidor da letra não é afetado por vícios dos direitos sobre a letra de anteriores possuidores (art. 16º LULL).
Endosso em branco
Saque A-B Endosso C-D Endosso D-E
B-C
Exemplo: A compra a B uma mobília de escritório e fica a dever parte do preço. B saca uma letra à sua própria ordem, no valor
restante do preço, a qual é aceite por A. Todavia, B coloca na letra um endosso em branco, pois julgava ir entregar a letra a X, seu
fornecedor a quem devia dinheiro. Todavia, a letra, deixada em cima da mesa do escritório, foi encontrada por C que a reteve.
Posteriormente, C endossou a letra a um seu credor, D. Este, por sua vez, endossa a letra a E, também com o intuito de cumprir o
pagamento de uma dívida que tinha para com ele. E vem exigir o pagamento de A na data do vencimento. A isto não pode opor-
se B, não lhe sendo legítimo exigir a restituição da letra. E justifica o seu direito por uma série ininterrupta de endossos, ainda que
nessa série se identifique um vício (C não tinha verdadeiramente direitos sobre a letra porque a furtou); por isso, ele é portador
legítimo e o direito constante da letra é válido e eficaz (arts. 15º e 16º LULL). O direito de E é autónomo relativamente aos vícios
do direito de C sobre a letra.
Dispõe, contudo, o art. 16º LULL que este regime já não será aplicável se o portador da letra, no momento da sua
aquisição, estava de má fé ou se, adquirindo-a, cometeu uma falta grave. Mas, então, o que se deverá entender por
“má fé” e por “falta grave” do portador?
 Má fé do portador: o portador sabe que o endossante não tem uma posse regular, mesmo ignorando que essa
irregularidade é consequência de um anterior desapossamento;
 Falta grave do portador: o portador, ao adquirir a letra, ignora a posse irregular do endossante mas,
atendendo às circunstâncias, atuou com falta grave, pois era-lhe exigido esse conhecimento (ele não atuou
com a diligência mínima exigível).
Note-se que aqui, ao invés do acima exposto, o que releva é a relação do portador (E) com o seu endossante (D) –
pergunta-se se ele sabia ou devia saber que esse endossante não era portador legítimo. Isto porque aqui já damos
como assente que o portador é um portador legítimo, pois estamos no domínio de aplicação do art. 16º LULL. Quando
acima versámos acerca da questão de saber se o portador é ou não um portador legítimo, situando-nos no âmbito do
art. 15º LULL, a relação a considerar é entre o portador (E) e o devedor (A) – pergunta-se se ele, ao aceitar a letra, teve
a intenção de prejudicar este último.
Ora, face a este regime, importa saber qual o tratamento a dar aos casos em que o portador está de má fé ou cometeu
falta grave, mas em que se prova que um portador intermédio estava de boa fé. [No caso acima, imagina-se que E estava
de má fé, por saber que a posse de D não era regular, mas que D desconhecia por completo a irregularidade da posse de C ]. A
proteção do portador intermédio implica que a sua boa fé como que se “estenda” ao portador atual, em termos de
não se exigir deste último a restituição da letra. De facto, como se compreende, ao exigir-se ao portador atual a
devolução da letra, estar-se-ia a prejudicar o portador intermédio, que com a entrega da letra cumpriu uma dívida e
que, em virtude da sua devolução, volta a estar em dívida.
11. O vencimento
11.1 Modalidades
As modalidades do vencimento das letras de câmbio vêm identificadas no art. 33º LULL. Nos termos deste preceito
uma letra pode ser sacada:
a) À vista: letra pagável à apresentação, isto é, letra que deve ser paga quando é apresentada para tal – o
portador pode exigir o pagamento do sacado a qualquer momento, desde que dentro do prazo de 1 ano se
outro não for estipulado pelo sacador ou endossantes (art. 34º LULL);
b) A um certo termo de vista: letra que se vence decorrido certo prazo a contar da data do aceite ou da data do
protesto por falta de aceite (art. 35º LULL);
c) A um certo termo de data: letra que se vence decorrido certo prazo a contar da data da sua emissão (portanto,
da data em que a letra foi passada);
d) Pagável no dia fixado: letra que indica o preciso dia em que a letra é pagável.
11.2 Exigência do pagamento antes do vencimento
A lei (art. 43º LULL) prevê casos em que o pagamento pode ser exigido antes do vencimento que teria lugar segundo
as regras gerais – os direitos de ação do portador podem ser exercidos antes do vencimento se:
a) Houve recursa, total ou parcial, de aceite;

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b) Teve lugar a declaração de falência do sacado, a suspensão de pagamentos do mesmo (constatada ou não por
sentença) ou a promoção de uma execução contra os bens do sacada que não teve resultado;
c) Foi declarado falido o sacador de letra não aceitável.
NOTA: quanto a estas duas alíneas, relembre-se que atualmente o CIRE não prevê a figura da “falência”, pelo
que deveremos ler no seu lugar a expressão “insolvência”.
12. O pagamento
O pagamento pode ser exigido pelo portador legítimo da letra. Esse portador pode ser a pessoa que o sacador indicou
como sendo aquela a quem ou à ordem de quem a letra deve ser pagar; mas essa pessoa também pode ter endossado
entretanto a letra e o sujeito a quem ela foi endossada poderá ter feito o mesmo. O portador atual será portador
legítimo se justifica o seu direito por uma série ininterrupta de endossos (art. 16º LULL). E isso deve ser verificado por
aquele que paga a letra (art. 40 LULL), que também deve verificar a identidade do portador da letra.
O pagamento da letra no vencimento liberta das suas obrigações aquele que paga, salvo se houve da sua parte fraude
ou falta grave (art. 40º LULL).
Se a letra pagável em dia fixo ou a certo termo de data ou de vista não é apresentada a pagamento no dia em que é
pagável ou num dos dois dias úteis seguintes (art. 38º LULL), qualquer devedor pode depositar a importância junto de
autoridade competente, à custa do portador e sob responsabilidade deste (art. 42º LULL). Por sua vez, as letras
pagáveis à vista devem ser apresentada a pagamento dentro do prazo de 1 ano, a contar da sua data (art. 34º LULL).
A apresentação a pagamento é, em regra, feito ao sacado, pois é a este que o sacador dá a ordem de pagamento
contida na letra. O sacado que paga pode exigir a entra da letra e a quitação correspondente (art. 39º LULL). Poderá
inclusivamente realizar um pagamento parcial, que o portador não pode recusar (art. 39º LUL), sendo que neste caso
não pode exigir a letra, mas tão-só exigir que se faça a menção do pagamento parcial na letra e a entrega de quitação.
Também qualquer dos co-obrigados que foi ou pode ser demandado e que pagou pode exigir a entrega da lera com o
respetivo protesto e um recibo (art. 50º LULL).
A letra deve conter a indicação do lugar do pagamento. Na falta de indicação, o lugar do pagamento será o que vier
designado ao lado do nome do sacado (art. 2º LULL). Se também faltar a indicação de um lugar ao lado do nome do
sacado, o escrito não produzirá efeitos como letra.
Pode ainda suceder que o sacador indica na letra um lugar de pagamento diferente do domicílio do sacado, mas sem
identificar um terceiro para pagar a letra no respetivo domicílio. Quando assim aconteça, o sacado (que tem domicílio
em lugar diferente do lugar do pagamento), ao aceitar, pode indicar a pessoa que deve pagar no lugar do pagamento.
Mas se não fez essa indicação, o sacado/aceitante terá de pagar ele mesmo a letra no lugar indicado /art. 27º LULL).
No caso de a letra ser pagável no domicílio do sacado, este último tem ainda a possibilidade de, no ato do aceite,
indicar outro domicílio para efetuar o pagamento (art. 27º LULL).
De acordo com o art. 48º LULL, o portador da letra pode exigir ao demandado não apenas o pagamento da quantia
constante da letra e dos juros estipulados, mas ainda dos juros à taxa de 6% desde a data do vencimento (“juros
moratórios”) e as despesas mencionadas no nº 3 do art. 48º LULL. Sucede, porém, que, nesta matéria, o DL nº 262/83
veio estabelecer que o portador de letras, livranças ou cheques, quando o respetivo pagamento estiver em mora, pode
exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais. Assim sendo pergunta-se: qual das duas
soluções deve ser seguida, já que elas se afiguram como contraditórias? A este respeito os tribunais vieram
inclusivamente a questionar a constitucionalidade do referido diploma – o próprio TC pronunciou-se sobre o assunto
mais do que uma vez. No Assento nº 4/92, de 13 de Julho de 1992, decidiu o STJ que nas letras e livranças emitidas e
pagáveis em Portugal é aplicável, a cada momento, aos juros moratórios, a taxa que decorre do disposto no art. 4º do
DL nº 262/83, e não a taxa prevista no art. 43º da LULL, por se dever considerar extinta por caducidade a taxa prevista
na LULL. Parece-nos, porém, preferível a solução preconizada por Oliveira de Ascensão, o qual entende que a
legalidade e constitucionalidade do art. 4º do DL nº 262/83 é clara à luz do art. 13º do Anexo II à LULL, desde que se
entenda como dizendo respeito apenas a letras, livranças e cheques passados e pagáveis em Portugal. A taxa de juro
legal é a que resulta do exposto no art. 559º CC, conjugado com as sucessivas Portarias entretanto publicadas. A este
respeito poderia ainda perguntar-se se o portador da letra pode optar por exigir os juros à taxa prevista no art. 48º
LULL e não os juros legais (de acordo com o art. 4º do DL nº 262/83). As soluções pode ser duas:
1. Posição do STJ no Assento nº 4/92 » uma vez que a taxa estabelecida na LULL se considerou extinta por
caducidade, o portador da letra não por optar por essa taxa, devendo sempre aplicar a taxa decorrente do DL
nº 262/83;

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2. Posição adotada (Oliveira de Ascensão) » poderá sustentar-se a possibilidade de aplicação da taxa de juros
fixada na LULL, em determinados termos.
13. Protesto por falta de aceite ou protesto por falta de pagamento
O protesto por falta de aceite ou por falta de pagamento consiste no:
“ato formal de comprovação de recusa de aceite ou de pagamento”.
A importância deste ato é evidente no art. 53º LULL – são várias as hipóteses aí previstas que conduzem à perda de
direito de ação contra endossantes, sacador e outros co-obrigados, á exceção do aceitante (e do seu avalista). Uma
das hipóteses referidas é a de o portador não realizar, nos prazos fixados, o protesto por falta de aceite ou por falta
de pagamento. Os referidos prazos encontram-se enunciados nos arts. 44º LULL e 121º e 122º do Código do Notariado.
O prazo para o protesto por falta de aceite é o prazo da apresentação do aceite. Este último pode ser:
 Letras sacadas a certo termo de vista: devem ser apresentadas ao aceite dentro do prazo de 1 ano a contar
das respetivas datas;
 Letras sacadas a certo termo de data e com data certa: devem ser apresentadas ao aceite até ao vencimento.
Quanto ao protesto por falta de pagamento, o prazo para o mesmo se realizar pode ser:
 Letras pagáveis em dia fixo, a certo termo de data ou a certo termo de vista: o prazo é de dois dias úteis
seguintes àquele em que a letra é pagável (art. 44º LULL);
NOTA: o art. 121º/1/c) do Código do Notariado dispõe que o prazo para o protesto é o de dois dias úteis
seguintes àquele ou ao último daqueles em que a letra é pagável. Entende-se, portanto, o prazo para o
protesto por falta de pagamento só começa a contar no final do prazo em que a letra é apresentável a
pagamento – 2 dias úteis (art. 38º LULL).
 Letras pagáveis à vista: o prazo é o da apresentação a pagamento, ou seja, o prazo de 1 anos a contar da sua
data (art. 44º LULL).
Ainda que não sejam respeitados os prazos para apresentação a protesto, tal não é fundamento de recusa do mesmo
(art. 123º LULL). O apresentante pode ter interesse em obter meio de prova da falta de aceite ou de pagamento.
14. Desconto bancário da letra de câmbio
O tomador da letra que não pretende mantê-la consigo até à data do vencimento pode procurar obter o desconto da
letra junto de uma instituição bancária. Nesse caso, poderá endossar a letra à referida instituição, que pagará ao
endossante (tomador) o montante da letra. Todavia, a entidade bancária retirará ao montante da letra um valor que
resulta da aplicação de uma taxa de juro pelo período que falta decorrer entre a data em que tem lugar o pagamento
ao endossante e a data do vencimento, bem como as comissões devidas. Esta valor que é retirado pela instituição
bancária corresponde ao “desconto bancário”.
Nestes termos, o endossante (tomador da letra) recebe mais cedo (antes do vencimento) o dinheiro a que tem direito,
mas receberá um valor inferior ao valor da letra. Depois o sacador pagará à instituição bancária o valor total da letra.
A diferença entre o valor da letra e o valor entregue ao tomador/endossante é retida pela instituição bancária.
Deste modo, no desconto bancário de uma letra temos um:
“contrato pelo qual um banco (descontante) antecipa a um seu cliente (descontário) a importância
correspondente a um crédito ainda não vencido que esse cliente detém sobre terceiro, sendo deduzido, no ato de
antecipação, o juro devido pelo tempo que falta para o vencimento do crédito e as comissões a que houver lugar, sendo
o crédito transmitido para descontante salvo boa cobrança”.
Este contrato é uma operação de banco, ao abrigo do art. 362º CCom.
Refira-se que no caso de o aceitante não cumprir, o banco que descontou a letra pode exigir a quem lha endossou o
pagamento do crédito (pois, relembre-se, o endossante assume a posição de garante do pagamento).
[Imagine-se que A (sacador) saca uma letra à ordem de B (tomador), sobre C (sacado), no valor de 10.000€. B celebra
com a instituição bancária D um contrato de desconto bancário. As operações a ter lugar seriam as seguintes:
 D (instituição bancária) adianta a B, imagine-se, 8.000€;
 C (sacado) paga a D (instituição bancária) os 10.000€;
 D (instituição bancária) retém um valor de 2.000€ (10.000€ pagos por C – 8.000€ adiantado a B).]
15. A ação cambiária e a ação extracambiária
A emissão ou a transmissão da letra não extinguem, só por si, o débito proveniente da relação fundamental ou
subjacente. Desse modo, a relação fundamental subsiste, com os seus prazos de prescrição, como subsistem também
as suas garantias. Só assim não será se, nos termos do art. 859º CC, for expressamente manifestada a vontade de que
a obrigação cambiária substitua a obrigação decorrente da relação fundamental ou subjacente.

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Em regra, só após ser verificada a falta de aceite ou de pagamento é que o credor pode optar entre a ação causal e a
ação cambiária. Esta opção, contudo, só existe quanto à relação fundamental.
Veja-se, então: A vende um carro a B. A saca à sua ordem uma letra que B aceita, relativa ao montante restante do
preço ainda não pago. Na falta de pagamento, A pode optar por intentar uma ação cambiária ou a ação causal, relativa
à relação fundamental – compra e venda do carro –, quer será, neste caso, uma ação de incumprimento contratual.
Suponha-se, em alternativa, que A endossou a letra a C, que, subsequentemente, a endossou a D. Na falta de
pagamento, D poderá somente intentar uma ação cambiária, respeitante à obrigação cambiária a cargo de B enquanto
sacador, pois ele não é parte da relação fundamental de compra e venda (não lhe sendo legítimo intentar a ação de
incumprimento contratual).
16. Ação direta e ação de regresso
Se o aceitante, obrigado principal, não paga quando devia, o portador da letra tem contra ele uma ação cambiária – a
“ação direta”. Esse direito de ação subsiste ainda que se verificando uma das situações previstas no art. 53º LULL, que
levam à extinção do direito de ação contra os obrigados cambiários aí identificados.
Além deste, o portador da letra têm ainda um outro direito de ação: o direito de ação contra endossantes, sacador e
outros co-obrigados (ex.: avalistas) – “ação de regresso”.
Os aceitantes, endossantes, sacador e avalistas são solidariamente responsáveis entre si para com o portador da letra.
Este pode accioná-los a todos, um a um ou coletivamente (art. 47º LULL).
NOTA: a responsabilidade solidária aqui em causa não se confunde com aquela que é regulada nos arts. 512º e ss. CC:
Responsabilidade solidária cambiária Responsabilidade solidária civil
 Se um dos signatários da letra que não seja o  Se um dos devedores solidários paga a dívida, ele
aceitante paga a letra, ele pode accionar o pode accionar os restantes exigindo de cada um
aceitante, o sacador os anteriores endossantes e os dos condevedores apenas a parte que lhes
avalistas ou todos eles para exigir a soma integral compete (presumindo-se que eles participam na
do que pagou (art. 49º LULL); dívida em partes iguais) (arts. 516º e 524º CC);
 Os obrigados cambiários respondem por obrigações  Os devedores solidários respondem por uma única
distintas, já que cada obrigação assumida é obrigação, participando nela em partes, iguais ou
autónoma relativamente às restantes. diferentes.
17. A prescrição da ação cambiária
O aceitante de uma letra é o obrigado principal. Ademais, o portador da letra não perde os seus direitos de ação contra
o aceitante (e seu avalista) quando são ultrapassados os prazos do art. 53º LULL. Contudo, mesmo as ações contra o
aceitante prescrevem no prazo de 3 anos a contar do seu vencimento (art. 70º LULL).
Já as ações do portador contra endossantes e sacador (obrigados de garantia), prescrevem no prazo de um ano, a
contar do protesto feito em tempo útil, ou da data do vencimento, se se trata de letra contendo cláusula “sem
despesas” (art. 70º LULL).
Se alguns dos obrigados de garantia paga a letra, pode também exigir o pagamento dos seus garantes (art. 49º LULL).
Também esta ação está sujeita a um prazo de prescrição de 6 meses a contar do dia em que o endossante pagou a
letra ou em que ele próprio foi accionado (art. 70º LULL).
No que diz respeito à interrupção da prescrição, parece que devem ser consideradas aplicáveis as disposições do
Código Civil sobre a matéria. No entanto, é de referir que o art. 71º LULL dispõe que a interrupção da prescrição apenas
produz efeitos em relação à pessoa para quem a interrupção é feita.
Questiona-se, a este respeito, se a interrupção da prescrição em relação ao avalizado também se aplica ao respetivo
avalista. A este respeito a doutrina divide-se:
a) Soveral Martins: uma vez que o avalista responde nos termos em que responde o avalizado, entende-se que
a interrupção da prescrição relativamente ao avalizado também se estende ao avalista;
b) Vaz Serra: de acordo com o teor literal do art. 71º LULL, a interrupção da prescrição relativamente ao avalizado
não pode abranger também o avalista (eles não são a mesma “pessoa).
Importa ainda referir que, extinto o direito de ação cambiária, por prescrição, tal não significa que se extinga pela
mesma razão o crédito decorrente da relação fundamental subjacente. Obviamente, este crédito só subsiste entre os
sujeitos parte dessa relação, e não já quanto aos demais obrigados cambiários.

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