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DIREITO COMERCIAL I

ANO LECTIVO 2015/2016


INTRODUÇÃO
Concepção de direito comercial

Evolução história do direito mercantil

O Direito Comercial em sentido próprio, enquanto corpo normativo autónomo, tendo por
função regular a actividade mercantil, surgiu na época medieval, no século XII, nas cidades
italianas como Florença, Génova, Milão e Veneza, por comerciantes. Era uma época de fraco
poder político central e de forte ressurgimento do comércio, e os comerciantes, organizados
em corporações, passaram a constituir a classe económica e politicamente dominante.

Fontes desse direito “especial” eram os costumes mercantis, os estatutos das corporações dos
mercadores e a jurisprudência dos tribunais “consulares”. Assim se desenvolveram regras,
institutos e princípios jurídicos como a liberdade de forma na conclusão de contratos, o
reforço do crédito mercantil, a ilicitude da venda de bens alheios quando feita por
comerciante, os auxiliares de comércio, o estabelecimento comercial e sinais distintivos, a
escrituração mercantil, as letras de câmbio, os seguros marítimos, a sociedade em comandita,
a sociedade em nome colectivo.

Foi portanto o direito comercial italiano um “direito de classe”, um ius mercatorum, um


direito criado pelos mercadores, auto-normativo, para regular as suas actividades
profissionais e por eles aplicado, auto-jurisdicional: foi um direito de cariz subjectivo.

Nos inícios do século XVII começam a surgir germes “objectivistas”, pois os membros das
corporações foram sujeitos à jurisdição consular por qualquer acto relativo ao comércio que
efectuassem, e admitiu-se que os não-comerciantes demandassem os comerciantes nos
tribunais consulares causa et occasione mercaturae. O direito comercial começa portanto a
preocupar-se com certos actos, independentemente de quem os pratica. Além das comunas
italianas, também regiões como a Catalunha e a França contribuíram para a formação e
desenvolvimento do direito comercial medievo.

Em Portugal, naquela altura, não se formou um autónomo ramo jurídico regulador das
relações comerciais, e não foram muitas as normas especialmente destinadas ao comércio,
regulado por costumes, forais, algumas disposições do código visigótico e de direito
canónico. Contudo, deve ser realçado o papel do Portugal medieval no desenvolvimento dos
seguros marítimos. Algumas das razões por que não se registou a autonomização do direito
comercial prendem-se com uma centralização estatal-régia bastante forte.

Na época moderna, com a centralização monárquica, a classe dos mercadores deixa de ser a
fazedora directa do direito comercial, passando o controlo das corporações dos comerciantes
e dos tribunais para o controlo do Estado. É a época da estatização-nacionalização do direito
comercial.

Este direito continua a ser de carácter subjectivo, mas a francesa ordonnance du comerce
consagra já alguns actos puramente objectivos. Fruto desses tempos foram as companhias
coloniais privilegiadas, que nasceram na Holanda, e caracterizavam-se já pela limitação da
responsabilidade dos sócios e a divisão do capital social em acções transmissíveis.

Em Portugal, o desenvolvimento do comércio externo provocado pelas descobertas marítimas


não foi acompanhado por significativo movimento legislativo-comercial.
O Code de Commerce francês de 1807 marca o início da etapa contemporânea na evolução
do direito comercial. Realizava os valores da liberdades e da igualdade, não sendo compatível
com o velho subjectivismo da Idade Média de direito de casta, qualificando o código como
comerciantes aqueles que fizessem da prática de actos de comércio a sua profissão, sem ser
precisa a inscrição numa corporação.

O código francês influiu bastante nas codificações mercantis oitocentistas europeias, e os


códigos comerciais portugueses, o de 1833 de FERREIRA BORGES e o de 1888 de VEIGA
BEIRÃO, filiam-se também no referido sistema objectivo. No entanto o código alemão de
1987 ainda vigente, adoptou novamente a concepção subjectivista do direito mercantil.

As correntes que têm impacto no início do século XX são as correntes empresarialistas, que
ainda hoje têm relevância: o que caracteriza o direito comercial e permite afirmar a sua
autonomia é a ideia de que o direito comercial está orientado para a prática de actos em
massa, sendo que é a empresa que o permite.

No século XX, houve legislações que consagraram um pensamento unitarista: o direito civil
e direito comercial deveriam ser o mesmo. Isto porque houve vários mecanismos do direito
comercial que acabaram por se generalizar para o direito civil, pondo em causa a autonomia
do direito comercial. Na Suíça, surge o código das obrigações, que abrange matéria
mercantil; em Itália, o Codice Civile abrange o regime das empresas. Isto não significa que,
materialmente, não haja diferenças, ainda que formalmente tenhamos um código unitário.

Esta discussão, acerca da autonomia do direito comercial, mantém-se ainda hoje, sobretudo
entre nós, onde se justifica uma reforma legislativa.

Na última centúria diversas codificações internacionais de âmbito universal têm unificado os


sistemas jurídico-mercantis nacionais em sectores específicos, como as convenções de
Genebra de 1930 e 1931 em matéria de letras e livranças.

Nos últimos decénios o movimento de uniformização tem-se acentuado no campo das


relações comerciais internacionais. Têm sido celebradas convenções internacionais
estabelecendo um regime uniforme para aquelas relações, onde assumem grande relevo a
UNCITRAL e a UNIDROIT, duas organizações internacionais que criam regras
internacionais em direito comercial. Tem-se desenvolvido um direito uniforme de origem não
estadual, feito de usos e costumes do comércio internacional, por vezes reduzidos a escrito e
compilados: é o caso dos “Incoterms”.

A tendência para a auto-normação sente-se na internacionalização: por exemplo, no


transporte internacional de mercadorias têm relevo os usos e costumes, assim como na
actividade petrolífera. Há organizações internacionais de operadores nestas áreas que
procuram uniformizar as relações entre operadores de várias áreas, surgindo costumes.

Também existe uma tendência para a auto-jurisdição: cada vez mais assistimos ao emergir do
recurso à arbitragem para resolver litígios entre operadores de mercado do comércio
internacional. É muito frequente chamar para árbitros pessoas que tenham tido experiência
profissional naquele ramo, direito marítimo. Há, assim, certos fios condutores que se mantêm.
No plano das fontes internacionais, temos ainda de contar com as directrizes e regulamentos
da União Europeia, principalmente no direito das sociedades.
Noção de direito comercial português

Não existe um conceito unitário de direito mercantil com valia universal. Atendendo ao
sistema jurídico português, podemos definir o direito comercial como o sistema jurídico-
normativo que disciplina de modo especial os actos de comércio e os comerciantes.

O artigo 1 CCom diz que a lei comercial rege os actos do comércio, sejam ou não praticado
por comerciantes, temos portanto um ponto de partida objectivista. Todavia, a lei mercantil
regula fenómenos que não são actos comerciais nem seus efeitos directos, por exemplo,
obrigações especiais dos comerciantes (firmas, escrituração mercantil) e organização interna
das sociedades. Por outro lado, a mesma lei, apesar de apresentar como ponto de partida uma
concepção objectivista, visa sobretudo os comerciantes: discrimina-os, artigos 13 e seguintes
CCom, estabelece o seu estatuto, artigos 18 e seguintes CCom, traça a organização
respectiva.

Embora o nosso direito tenha uma componente fortemente objectivista, este objectivismo não
é assim tão objectivo quanto isso. Há fronteiras de incerteza claras no regime da compra e
venda mercantil, um contrato central. Há quem diga que o comércio é a interposição das
trocas: o artigo 463 CCom regula esta figura, “compra de coisas móveis para revender”.
Parece muito objectivo, mas se é para revender estamos a olhar para a finalidade do acto: isto
é tudo menos objectivo.

O critério a seguir será objecto de muita discussão, mas a marca-de-água parece ser realmente
a existência uma empresa. É um direito que tem mais sentido dirigido aos contratos em torno
da empresa. Isto não significa que sejam apenas actos que se dirijam às empresas.

Coloca-se a questão de saber se, em vez de direito dos actos de comércio e dos comerciantes,
não será preferível definir o direito comercial como direito das empresas. A concepção
empresarialista do direito comercial foi cunhada por WIELAND e MOSSA e continuada por
HECK, RADBRUCH e LOCHER, e teve grande repercussão nas legislações e doutrinas
europeias dos anos vinte.

Porém, o empresarialismo “estrito”, o direito comercial como simples direito das empresas,
entrou em crise a partir dos anos cinquenta, porque essa concepção tendeu a restringir em
demasia o espaço do direito mercantil. Contudo, na Alemanha, reputados autores como
RAISCH e SCHMIDT, continuam defender uma concepção empresarialista: por eles no centro
do direito comercial está não o comerciante, mas a empresa. Podemos encontrar quer um
empresarialismo estrito, quer um menos estrito: neste sentido, mais que das empresas o
direito mercantil será à volta das empresas, pois não exclui certos actos ocasionais de
comércio, no domínio dos títulos de crédito e das operações de bolsa.

Pode dizer-se, na verdade, que o núcleo do direito mercantil está na empresa comercial,
constituindo ela o “princípio energético” a que todas as legislações, integráveis nos sistemas
subjectivo, objectivo ou misto, prestam homenagem.

É defensável que o nosso direito comercial reformado deve ser um direito à volta das
empresas, um direito do estatuto dos empresários singulares e colectivos, dos direitos e
negócios sobre as empresas e da tutela destas, dos negócios jurídicos de organização das
empresas. E não parecem ser obstáculos intransponíveis a esta defesa as imprecisões que se
vêm manifestando na determinação das empresas, nem o facto de haver empresas não
comerciais, empresários não comerciantes e até comerciantes não empresários.

Todavia, o direito comercial português actual, além de admitir comerciantes não empresários,
regula actos esporádicos ou ocasionais que não têm que ver com empresas mercantis e cuja
disciplina não poderá dizer-se, globalmente, determinada por interesses ligados à
empresarialidade. É exemplo a fiança, artigo 101 CCom.

Embora estes sejam fenómenos marginais, uma definição rigorosa do direito comercial
vigente não pode desconsiderá-los. Por isso preferimos defini-lo como direito dos actos de
comércio e dos comerciantes, embora actos e sujeitos em regra ligados às empresas
comerciais.

O problema da autonomia do direito comercial

Fala-se de autonomia de um ramo jurídico em diversas acepções: formal ou legislativa,


substancial, científica, didáctica. O problema da autonomia do direito comercial é sobretudo
uma questão de autonomia formal, substancial, isto é, material.

Desde o século XIX vem-se manifestando um forte movimento doutrinal em prol da


unificação do direito privado, cuja tradicional separação seria contrária à “unidade essencial
da vida económica”, pois é evidente a generalização de institutos tradicionalmente jurídico-
mercantis, como as letras de câmbio, as sociedades, os seguros e a falência ou insolvência,
institutos que não são exclusivos do comércio.

É visível que esta tendência jurídico-positiva para a unificação denota o que se vem
chamando comercialização do direito privado. Vão-se incorporando no direito civil regras e
características ou princípios tradicionais do direito mercantil, como o reforço do crédito o a
maior protecção da confiança, o a celeridade nas operações negociais. Tal comercialização
representa o triunfo do direito comercial e, ao mesmo tempo, a morte substancial do mesmo
direito. Mas a unificação do direito privado ao nível do direito das obrigações não afasta a
necessidade de uma disciplina especial para os empresários comerciais, como confirma o
Codice Civile de 1942. Uma disciplina subjectiva especial do tipo da italiana não parece
bastante para afirmar a autonomia substancial do direito mercantil, e já vimos que também ao
nível dos empresários se vem verificando uma progressiva unificação. Por outro lado ainda a
disciplina tradicionalmente aplicável a empresários vai-se estendendo a alguns não
empresários. Assim um direito comercial baseado nas empresas não tem de ser
tendencialmente autónoma, embora a autonomia didáctica e científica esteja salvaguardada.

Recentemente, vários autores têm defendido que se tem vindo a assistir a uma reafirmação da
autonomia substancial do direito comercial enquanto direito privado da empresa, baseados
no fenómeno do recurso aos contratos comerciais como contratos de empresa. Tal afirmação
apoia-se na “redescoberta” dos contratos comerciais como “contratos de empresa” e,
podemos dizer, que é aceitável a concepção do direito comercial como direito basicamente
das empresas. Os contratos comerciais não podem ser identificados como os contratos de
empresa, pois existem contratos comerciais sem que nenhuma das partes seja empresário no
exercício da respectiva actividade. Ou ainda, nos contratos de consumo contraparte do
consumidor é normalmente um empresário, mas não necessariamente.
Posto isto, e pese embora o elevado grau de unificação do direito privado patrimonial, e a
consequente redução do círculo de autonomia substancial do direito comercial, não somos
obrigados a reconhecer a insubsistência da autonomia substancial do direito comercial. As
nossas leis mantêm ainda um regime especial comum aplicável aos actos de comércio em
geral; existem algumas regras específicas para os actos de comércio em especial; e os
comerciantes têm um estatuto algo diverso dos não comerciantes.

Seria aconselhável promover uma maior unificação do direito das obrigações e deveria
consolidar-se a harmonização do estatuto dos empresários diversos, sem prejuízo de algumas
diferenciações de regime.

Fontes do direito comercial português

Nas fontes do direito mercantil podemos distinguir entre fontes internas e fontes externas.

Entre as fontes externas destacamos as convenções internacionais e os regulamentos e


directivas da União Europeia, artigos 288 TFUE e 8 n° 3 CRP. Embora de valor infra-
constitucional, as normas da generalidade das convenções internacionais e as citadas normas
de direito supranacional prevalecem sobre a lei ordinária interna.

Entre as fontes internas avultam as leis em sentido amplo, de modo a incluírem actos
legislativos e regulamentos. A Constituição contém algumas regras atinentes ao direito
comercial, como os artigos 61, 81 al. f), 82, 85, 86, 99, 100 e 293. Mas as principais fontes do
direito comercial são as leis ordinárias, em particular o Código Comercial. Também a
jurisprudência e a doutrina são fontes do direito comercial, pois as decisões judiciais
participam na criação do direito, interpretando e concretizando a normatividade jurídica. A
doutrina releva enquanto dogmaticamente complementar e antecipaste do direito
jurisprudencial. Temos ainda os usos e os costumes que, apesar de serem hoje menos
significativos, são ainda de alguma importância, mesmo não sendo contemplados no artigo 3
CCom.

Aplicação da lei civil a matéria mercantil

A lei civil é aplicável a questões comerciais, como resulta do artigo 3 CCom,


subsidiariamente enquanto direito privado comum, não se transformando em lei especial-
comercial nem manifestando direito especial-comercial.

O direito comercial apresenta-se como um ordenamento especial e fragmentário, aberto


portanto ao recurso directo ao direito comum na disciplina das situações e relações mercantis.
PARTE I:

ACTOS DE COMÉRCIO, COMERICANTES,


EMPRESAS, SINAIS DISTINTIVOS
DOS ACTOS DE COMÉRCIO EM GERAL

Introdução

O direito comercial começou por ser um direito de comerciantes, para depois, a partir do
momento em que se estadualizou, ser retirado da esfera privativa dos mercadores
comerciantes, objectivando-se. Certos actos, por estarem previstos na lei, deveriam ser
qualificados como actos de comércio, sujeitos a uma jurisdição especial.

Hoje, temos um direito misto, composto por regulação de actos e comerciantes. Assim,
justifica-se que estudemos os actos de comércio e os comerciantes, pois ainda existe um
regime especial para os actos de comércio. O regime especial comum aos actos de comércio
em geral revela-se no seguinte: nas obrigações resultantes de actos mercantis, os co-
obrigados são solidários, artigo 100 CCom; segundo o artigo 15, as dívidas dos comerciantes
casados derivadas de actos mercantis presumem-se contraídas no exercício dos respectivos
comércios; o artigo 102 estabelece um regime com uma outra particularidade para os juros
relacionados com actos comerciais. A qualificação como comerciais de actos em geral
importa ainda para qualificar de mercantis outros actos que daqueles sejam acessórios, bem
como para qualificar sujeitos como comerciantes, artigo 13.

O artigo 102 CCom refere-se a juros convencionais e legais, remuneratórios ou moratórios.


Os juros comerciais legais são devidos nos casos previstos no CCom ou em outras leis desde
que, nesta última hipótese, estejam também em causa actos comerciais. Quando sejam
devidos juros comerciais e a taxa respectiva não seja fixada pelos intervenientes no acto de
comércio, vale a taxa legal supletiva. Se for outra a taxa querida tem de ser fixada por escrito.
Pelo artigo 102 § 2 CCom, aplica-se aos juros comerciais o disposto nos artigos 559-A e
1146 CC, é proibido, portanto, estipular taxa de juro que exceda a taxa de juros legais
aplicável em mais de 3% ou 5% para os juros remuneratórios, ou em mais de 7% ou 9% para
os juros moratórios. O artigo 102 n° 3 determinada ainda que a taxa supletiva dos juros
moratórios relativos a créditos de que sejam titulares empresas comerciais, é fixada em
portaria conjunta dos ministros das finanças e justiça. Ainda, por força dos artigos 4 n° 1 e 5
n° 1 e 5 do Decreto-Lei 62/2013, o regime dos juros moratórios previsto no artigo 102 n° 3 e
5 CCom é igualmente aplicável a créditos de que sejam titulares empresas não comerciais.

É esta mais uma manifestação da atenuação das especialidades do direito comercial dos
contratos ou obrigações.

Noção de actos de comércio

Norma delimitadora básica dos actos de comércio é o artigo 2 CCom:

“Serão considerados actos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente


regulados neste Código, e, além deles, todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que
não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar”.

A primeira parte refere-se aos actos de comércio objectivos, apesar de a comercialidade


objectiva não se esgotar nos actos especialmente regulados no Código, enquanto que a
segunda parte prevê os requisitos dos actos de comércio subjectivos.
Resulta desde logo que o artigo é insuficiente, pela impossibilidade de um conceito unitário,
homogéneo ou genérico de acto de comércio. Há actos considerados mercantis por estarem
previstos, segundo critérios heterogéneos, na lei comercial, e actos considerados mercantis
por serem praticados por comerciantes e, além disso, serem conexionáveis com o comércio e
estarem conexionados com a actividade mercantil dos autores. Temos portanto actos de
comércio objectivos, e ainda podem ser comerciais os actos subjectivos, e isto não significa
que haja exclusão, ou seja, um acto de comércio pode ser subjectivo ou objectivo.

Ao longo dos tempos têm sido defendidos conceitos unitários de acto de comércio. Para isso
foram usados principalmente três critérios: a finalidade especulativa, a interposição nas
trocas ou na circulação das riquezas, a existência de uma empresa.

Um dos autores mais esforçado neste sentido foi ALFREDO ROCCO, segundo o qual haveria
duas grandes categorias de actos comerciais: os actos de comércio constitutivos ou pela sua
natureza intrínseca, e actos comerciais por conexão ou acessórios. O acto de comércio seria
portanto definível como todo o acto que realiza ou facilita uma interposição na troca.

Hoje recusamos a possibilidade de algum destes critérios dar origem a uma noção unitária.

Quanto ao primeiro critério, existem atividades normalmente exercidas com intuito


especulativo ou lucrativo e nem por isso qualificadas como comerciais, como a agricultura, a
maioria das indústrias extractivas, o artesanato, as actividades profissionais liberais,
qualificadas pela lei como civis. Não existe uma conexão entre lucro e comercialidade.
Existem actos comerciais que não são lucrativos, o Estado pode praticar actos de comércio
sem tais finalidades, e ainda, o artigo 404 CCom admite actos de comércio sem qualquer
escopo especulativo. Também entidades como as cooperativas ou as empresas públicas,
exercem actividades comerciais sem fins lucrativos ou sem que tenham de prosseguir fins
lucrativos.

Relativamente ao segundo critério, o da interposição nas trocas, é também insuficiente. O


CCom considera comerciais certos actos que não têm de realizar ou facilitar interposições nas
trocas, por exemplo, na fiança, na conta corrente, no penhor. Quanto às empresas, não parece
que a sua qualificação como comerciais assente no facto de elas poderem ser vistas como
actos de interposição na troca do trabalho. Além disso nem em todas as empresas comerciais
haverá a referida intermediação na troca do trabalho, nem todas as empresas comerciais têm
de funcionar com assalariados.

Finalmente, quanto ao terceiro critério, a existência de empresa e empresarialidade não são


critérios servíveis para a construção de um conceito unitário de acto de comércio. Podemos
ter uma empresa que pratica actos que não são comerciais.

O mais importante não é definir uma noção unitária, mas perceber quais os modos de
manifestação de comercialidade objectiva. Não existe um critério único, temos aqui uma
categoria heterogénea. A comercialidade económica, interposição nas trocas, não esgota a
comercialidade jurídica.

Os actos de comércio são sobretudo contratos mas, além dos negócios jurídicos bilaterais,
podem ser actos mercantis negócios jurídicos unilaterais, como os negócios cambiários e os
negócios constituintes de sociedades comerciais unipessoais.
Fora do domínio dos negócios temos ainda simples actos jurídicos como actos comerciais,
por exemplo, as interpelações e avisos efectuados por sociedades mercantis a sócios
remissos, artigos 203 n° 3 e 204 CSC, e o protesto no domínio cambiário, artigo 44 da Lei
Uniforme das Letras e Livranças.

Os próprios factos jurídicos ilícitos não estão excluídos da qualificação como actos
comerciais, desde logo quando estejam previstos na lei mercantil, como a abalroação culposa
de navios, artigos 665 e seguintes CCom, ou os artigos 235, 236, 238, 245, 253, e 264 CC, ou
ainda a responsabilidade civil societária dos administradores e gerentes, artigos 72 e
seguintes CSC.

Já os factos jurídicos não voluntários ou naturais aprecem não qualificáveis como actos de
comércio, como o decurso do tempo fundamento de prescrição, artigos 79 LULL e 174 CSC.

São actos de comércio os factos jurídicos voluntários especialmente regulados em lei


comercial e os que, realizados por comerciantes, respeitem as condições previstas no final do
artigo 2 CCom.

Actos de comércio objectivos e subjectivos

Os actos de comércio aparecem-nos como objectivos, “todos aqueles que se acharem


especialmente regulados neste Código, ou subjectivos, “todos os contratos e obrigações dos
comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto
não resultar”, artigo 2 CCom.

Actos de comércio objectivos

• Interpretação da 1ª parte do artigo 2 do CCom

A 1ª parte do artigo 2 CCom dispõe que “serão considerados actos de comércio todos aqueles
que se acharem especialmente regulados neste Código”. É uma definição de actos de
comércio objectivos por enumeração ou catálogo por enumeração implícita. O Código
estabelece disciplina específica para muitos actos, como a fiança, o mandato ou as empresas,
mas também existem outros actos comerciais que não regula e que ficam à mesma sujeitos às
regras comuns aos actos de comércio em geral, como as operações de banco ou o aluguer,
que são actos de comércio por “se acharem especialmente regulados neste Código”.

São actos de comércio objectivo apenas os especialmente regulados no Código Comercial?

Esta formulação faria algum sentido em 1888, não é, contudo, razoável petrificar um catálogo
de actos num código datado, há-de ser possível leis posteriores preverem novos actos
comerciais. Por isso a expressão “neste Código” deve ser interpretada de modo a abarcar
outras leis comerciais.

– O primeiro modo de manifestação da comercialidade objectiva deriva da interpretação


literal do artigo 2 CCom, compreendendo os actos de comércio enumerados e previstos no
próprio Código Comercial. Em muitos casos temos o homólogo no direito comercial para o
mesmo acto ou contrato previsto na lei civil, como é o caso do mandato comercial ou da
conta corrente.
– Uma lei pode em segundo lugar ser qualificada de comercial quando substitui normas do
CCom. Este modo de manifestação de comercialidade objectiva deriva de uma interpretação
extensiva do preceito legal. O artigo 4 da Carta de Lei de 28 de Junho de 1888 diz que toda a
modificação que de futuro se fizer sobre a matéria contida no Código Comercial será
considerada como fazendo parte dele e inserida no lugar próprio. Portanto são objectivamente
comerciais os actos constituintes das sociedades comerciais previstos no CSC, ou os negócios
respeitantes às letras, livranças e cheques regulados hoje nas LULL e LUCh.

No entanto, nem todas as leis substitutas de artigos do CCom serão comerciais e, por isso,
qualificadoras de actos mercantis. É o caso do capítulo II do Decreto-Lei 231/81 de 28 de
Julho, relativo ao contrato de associação em participação, que veio revogar o regime da
conta em participação, artigo 224. Não se exige agora que o associante seja comerciante nem
que a actividade dele seja comercial. Por outro lado, o regime estabelecido no Decreto-Lei é
unitário e não parece ser de direito privado especial, mais: o artigo 22 n° 1 estatui que sendo
várias as pessoas que se ligam, não se presume a solidariedade dos débitos. Por conseguinte a
associação em participação não é acto objectivo de comércio podendo, porém, ser acto
subjectivo de comércio.

Outro exemplo discutível é o seguro mercantil. Em 2008, surgiu o regime geral do contrato
de seguro, previsto no Decreto-Lei 72/2001. Para COUTINHO DE ABREU, este regime é uma
lei substitutiva; porém, para RICARDO COSTA, este parece ser um regime geral que não tem
especialidade suficiente para qualificar como acto de comércio, por isso temos de ir antes pela
terceira via.

– Terceiro modo de manifestação de comercialidade objectiva, que também deriva de


interpretação extensiva, é quando a lei auto-qualifica-se comercial, qualifica actos como
comerciais. Se uma lei visar prosseguir interesses de comércio, ou seja, se tiver objecto
mercantil, podemos identificar o contrato nela previsto como comercial. Temos de atender ao
objecto de regulação da lei, para depois vermos se podemos qualificar o acto como acto de
comércio.

Existem várias leis que a doutrina reconhece como pacífico que podem servir como
expediente qualificador de actos de comércio. O Código Civil, nos artigos 1108 e seguintes,
contém disposições especiais do arrendamento para fins não habitacionais, nomeadamente o
comércio, regulando a locação e o trespasse de estabelecimentos comerciais. Estes devem
considerar-se actos de comércio objectivos especialmente regulados em lei comercial.
RICARDO COSTA defende ainda que o arrendamento para fins comerciais pode ser visto como
acto de comércio objectivo através da regulamentação relativa ao transporte aéreo, ao
contrato de agência, à locação financeira, à actividade portuária entre outras.

Quanto à actividade seguradora, para RICARDO COSTA, podemos ir antes pela terceira via.
Assim, temos leis que qualificam o contrato de seguro indirectamente como mercantil: o
Decreto-Lei 94-B/98. A actividade seguradora só pode ser exercida por sociedade anónima,
logo o objecto destas sociedades é comercial. Assim, o diploma está a qualificar
indirectamente esta actividade comercial, logo a celebração do contrato de seguro é comercial
(abrange os contratos de seguro e os contratos paralelos). Mesmo nas actividades de
mediação de seguros ou de reseguros, regula o Decreto-Lei 144/2006, e também aí os
mediadores, a serem sociedades, só podem ser sociedades por quotas ou anónimas. A
actividade conexa à actividade seguradora também é comercial.
Em relação ao contrato de agência, impõem-se mais algumas notas quanto à sua
qualificação: se a actividade de agenciamento for exercida através de uma empresa, então a
qualificação como acto de comércio é feita pelo artigo 230 § 3. Se o contrato de agência não
for celebrado por um empresário, então temos ainda dois modos que cumulativamente
servem para qualificar o contrato como acto de comércio objectivo: a analogia juris, e o
diploma 178/86.

– O quarto modo de manifestação de comercialidade objectiva é a analogia. Na maioria dos


casos as leis não se auto-qualificam explicitamente como comerciais, parecendo necessário
ver se elas disciplinam matéria análoga à disciplinada no CCom ou em outras leis
classificadas como comerciais.

Tradicionalmente, não era permitido o recurso à analogia, por várias razões. A letra da lei do
artigo 2 falava em “especialmente regulados” e “além deles”, logo parecia excluir a analogia.
Por uma razão histórica, pois este artigo se inspira no “Código de Comercio” espanhol, que
admite a analogia. Se o Código Comercial português não a menciona, é porque a exclui.
Finalmente, os defensores desta tese convocam razões de certeza e segurança jurídicas.

Entendemos que estes argumentos não são pertinentes: a letra da lei não é concludente, não
diz que são actos de comércio apenas aqueles, e hoje temos uma concepção subjectivista do
argumento histórico, em função dos critérios previstos no artigo 9 CC. A segurança e certeza
jurídicas são importantes, mas o valor da justiça, adequação e razoabilidade podem ser mais.

Assim, admitimos a analogia, seja a analogia legis, artigo 10 n° 1 e 2 CC, seja a analogia
juris. A primeira implica que se recorre a uma concreta norma legal, que considera como acto
comercial um acto análogo ao acto omisso; a segunda é mais complexa, pois implica
identificar princípios normativos gerais de qualificação, que traduzem uma espécie de
teleologia. COUTINHO DE ABREU é o principal defensor da analogia juris, defendendo o
princípio mercantil segundo o qual os contratos e actos de prestação de serviços são actos de
comércio objectivo, logo, tudo o que é prestação de serviços é acto comercial. Fazemos uma
indução de princípio.

• Significado do artigo 230 do CCom no quadro dos actos de comércio

O artigo 230 CCom enquadra-se no primeiro modo de manifestação da comercialidade


objectiva e é um artigo muito discutido. Desde logo, refere-se a empresas comerciais, e
enumera uma série de actos e factos, que as caracterizam como comerciais: a actividade
transformadora; os contratos de fornecimentos, em primeira linha géneros alimentícios; o
agenciamento de negócios; a exploração de espectáculos públicos; a actividade editorial; a
edificação ou construção; o contrato de transporte. Na segunda parte do artigo, exclui, pelo
contrário, determinadas actividades.

Qual o alcance de a lei qualificar estas empresas de comerciais?

Uma corrente doutrinária entende que as empresas aí previstas significa o mesmo que
“comerciantes”, e assim as empresas seriam as pessoas, singulares ou colectivas, que se
propusessem praticar os actos de comércio enumerados no artigo.
Existe depois uma visão de uma empresa em sentido objectivo. Temos um empresário, mas o
artigo qualifica-o objectivamente, em função do objecto das suas actividades.

Para outra corrente, que se estabilizou mais tarde, tais empresas não são mais que séries ou
complexos de actos comerciais objectivos. Trata-se aqui de actos reiterados, e que traduzem
a exploração da empresa, passando o artigo a ter uma interpretação objectiva de acto e não
subjectiva de comerciantes. É a visão adoptada, que vê as empresas do artigo 230 como um
conjunto ou séries de actos de comércio objectivos, ainda que enquadrados numa empresa, ou
seja, integrados numa organização. O artigo 230 integra-se no artigo 2 e serve para qualificar
os actos de comércio objectivos. Apesar de o enunciado normativo e de a interpretação literal
favorecer o sentido de pessoa ou empresário para empresa, outros elementos de interpretação,
o histórico, sistemático e teleológico, favorecem esta tese.

Mas quais actos objectivos são abrangidos? Só os contratos em que o exercício da empresa
tipicamente se traduz ou todos os actos praticados na exploração dessas organizações
empresárias?

Para COUTINHO DE ABREU devemos fazer uma interpretação extensiva: o artigo 230
abrange não só os actos em que tipicamente se traduzem a actividade, mas também todos os
actos, contratos e negócios praticados na exploração destas empresas.

O artigo parece basear a tipificação de algumas empresas em factos não jurídico-negociais: as


empresas transformadoras, as empresas de espectáculos públicos, e até as empresas
construtoras. Seria pois difícil delimitar os actos objectivamente comerciais dos actos
subjectivamente comerciais. Por outro lado, a visão orgânica dos diversos actos em que o
exercício das empresas se traduz favorecerá igualmente esta tese, tal como o facto de as
empresas referidas no artigo 230 poderem ser exploradas por não comerciantes, não havendo
lugar para os actos subjectivamente comerciais.

• Qualificação de actos de comércio por analogia

Um problema que tem dividido a doutrina é o de se a enumeração implícita dos actos de


comércio do artigo 2, 1ª parte, é exemplificativa ou taxativa, e se os actos não regulados
legislativamente ou previstos em leis cujo carácter não seja declarado podem ser qualificados
comerciais por analogia com actos previstos em lei mercantil.

Os defensores da inadmissibilidade da qualificação actos mercantis por analogia invocam


três argumentos principais.

Primeiro: a letra da lei, que apenas permitiria como actos comerciais os especialmente
regulados em lei mercantil.

Segundo: razão histórica, sendo que a 1ª parte do artigo 2 foi inspirada no 2§ do artigo 2 do
Código de Comércio espanhol de 1885, que prevê explicitamente a analogia, parte que foi
deliberadamente afastada da lei portuguesa.

Terceiro: certeza e segurança jurídicas. Dado o regime especial e as implicações dos actos de
comércio, seria atentar contra o valor jurídico da segurança permitir a analogia na
determinação de actos materiais.
É uma argumentação insubsistente por várias razões: porque a letra do artigo 2 não é
concludente; porque está permitida desde há muito a concepção subjectivista-histórica da
interpretação das leis; e porque o argumento da certeza jurídica já pesou muito mais do que
agora, sendo que há-de prevalecer o valor da justiça ou razoabilidade.

É portanto admissível o recurso à analogia legis, já quanto à analogia juris, esta significa a
disciplina dos casos omissos através da aplicação de princípios gerais obtidos através de
induções lógico-generalizadoras de uma série de normas legais. Quem defenda a existência
de um conceito unitário de acto de comércio coerentemente defenderá o recurso à analogia
juris contudo, mesmo rejeitando um conceito unitário de acto comercial, COUTINHO DE
ABREU entende seja possível extrair princípios gerais de grupos de normas qualificadoras de
diversos actos de comércio, possibilitando a analogia juris.

– O artigo 230 n° 6 CCom refere-se às empresas de construção, somente, de casas, mas não
há razões de negar a comercialidade às empresas construtoras de edifícios no mais amplo
sentido, bem como de outras obras. COUTINHO DE ABREU entende que a norma deva ser
estendida analogicamente por meio de analogia legis àquelas outras empresas de construção.
Segundo RICARDO COSTA teremos antes uma interpretação extensiva.

A locação financeira é um contrato em que se associam prestações próprias da compra e


venda e da locação. A compra e venda de coisas móveis feita pelo locador financeiro para as
alugar e as revender, é acto de comércio objectivo, artigo 463 n° 1 CCom. A venda dessas
coisas é também ex artigo 463 n° 3 CCom acto comercial, e o aluguer de tais coisas é
igualmente mercantil, artigo 481 CCom. As compras e revendas de coisas imóveis são
comerciais quando aquelas, para estas, houverem sido feitas,a artigo 463 n° 4 CCom, mas o
artigo 463 já não prevê a compra de coisas imóveis para serem arrendadas, e o aluguer do
artigo 481 incide sobre móveis. Não obstante, afigura-se razoável estender analogicamente a
norma do artigo 481 à locação de imóveis no leasing. Portanto, o contrato de locação
financeira, globalmente considerado, é um acto de comércio objectivo.

– O artigo 230 n° 2 CCom trata das empresas que fornecem, em épocas diferentes, géneros,
quer a particulares, quer ao Estado, mediante preço convencionado. Esta norma tem sido a
mais fértil fonte para, através de interpretação extensiva ou de integração por analogia legis,
se reconhecer a comercialidade de uma série de espécies empresariais. Tem-se entendido
serem comerciais as empresas fornecedoras de água, gás ou electricidade, tal como uma
multiplicidade de empresas de fornecimento de serviços, como as empresas hoteleiras, de
publicidade, de informações comerciais, de gestão de bens, de tratamentos de beleza.

Estamos no âmbito muito lato de fornecimento de serviços, uma vez que se entende que o
que levou o legislador a qualificar de comerciais as empresas mencionadas no n° 2 foi a de
haver aqui um certo risco, originado pelo facto de interceder um período de tempo entre o
momento da fixação do preço e o dos múltiplos actos sucessivos de fornecimento. Os
contratos de serviço caracterizados por esta nota temporal e contratual são os contratos de
fornecimento de serviços, e distinguem-se dos contratos de prestação de serviços.

Devem ser abrangidas por aquela disposição todas as empresas que, apesar de não serem de
fornecimento de géneros, se traduzam no exercício de uma actividade económica
desenvolvida dentro do condicionalismo referido. Os contratos de fornecimento de serviços
são qualificados como actos de comércio objectivos por analogia legis do artigo 230 n° 2.
Mas a actividade de muitas das empresas atrás apontadas não se desenvolve no referido
condicionalismo: os respectivos empresários não se obrigam a sucessivas prestações de
serviço contra um preço previamente fixado, falhando aqui a analogia legis. Podemos porém
qualificar essas empresas de prestação de serviços pelo recurso à teleologia imanente ao
sistema legal mercantil, ao seu espírito, à analogia juris. O facto de a lei, quer no CCom,
artigos 230 n° 2, 3 , 4, 5, 7 e 403, quer em diplomas ulteriores, considerar comerciais várias
empresas de serviços conduz-nos a esta conclusão.

Portanto, podemos definir actos de comércio objectivo os factos jurídicos voluntários, ou


simplesmente os actos, previstos em lei comercial e análogos.

Actos de comércio subjectivos

Conforme o artigo 2, 2ª parte CCom, actos de comércio subjectivos são “todos os contratos e
obrigações de comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário
do próprio acto não resultar”.

– Os actos subjectivos de comércio começam por ser actos dos comerciantes que, ex artigo 13
CCom, são as pessoas que, tendo capacidade para praticar actos de comércio, fazem deste
profissão, e ainda, as sociedades comerciais. O artigo 2 fala também de contratos e
obrigações dos comerciantes, que não è a melhor formulação uma vez que nem todos os
actos dos comerciantes são contratos, e as obrigações não são actos mas sim consequências
dos actos. Seria mais coerente referir-se o enunciado a “todos os actos dos comerciantes”.

Porém, a referência às obrigações pode ter algum efeito útil, pois nem todas as obrigações
dos comerciantes derivam de actos comerciais e a afirmação da comercialidade de tais
obrigações pode conduzir à aplicação, por exemplo, do artigo 15 CCom.

– Para serem subjectivamente comerciais, os actos dos comerciantes não podem ser de
natureza exclusivamente civil. É o requisito mais discutido pela doutrina, e segundo o
entendimento tradicional seriam de natureza civil os actos apenas regulado na lei civil.

COUTINHO DE ABREU rejeita esta tese. O preceito refere-se a actos que não forem de
natureza exclusivamente civil, não a actos que não estejam regulados exclusivamente na lei
civil, e podem haver actos regulados na lei civil mas de natureza não civil. Por outro lado, o
artigo 2 já contempla na sua 1ª parte os actos expressamente previstos no Código Comercial,
e teria pouca utilidade a 2ª parte ter o mesmo sentido. Além disso há actos omissos, não
regulados nem na lei civil nem na lei comercial, aos quais pode não repugnar a
comercialidade. Por outro lado ainda é razoável que o preceito pretenda sujeitar ao regime do
direito comercial actos conexionáveis com o comércio profissional, ainda que não previstos
na lei mercantil.

Em consonância com a doutrina italiana que se ocupou do artigo 4 do Codice di Commercio,


COUTINHO DE ABREU defende serem actos e obrigações de natureza exclusivamente civil os
que, por sua natureza ou essência, não são conexionáveis com o exercício do comércio, não
se concebendo juridicamente nem dirigidos a auxiliar, promover ou levar a cabo o exercício
do comércio, nem a deste dependerem. É um requisito averiguado em abstracto: o acto tem
uma conexão, em abstracto, com o comércio?
São actos exclusivamente civis os actos de natureza extrapatrimonial como o casamento, a
perfilhação e a designação de tutor pelos pais.

Há determinados actos que, por lhes faltar natureza exclusivamente civil, podem ser actos
subjectivamente comerciais desde que praticados por comerciantes e em conexão com o
comércio: doações; rendas perpétuas e vitalícias; factos ilícitos geradores de responsabilidade
extracontratual.

– Por fim, um acto de natureza não exclusivamente civil de comerciante é subjectivamente


comercial se o contrário do próprio acto não resultar. Assim, se do próprio acto resulta a
ligação com o comércio, o acto é comercial; se do próprio acto não resulta a não ligação, o
acto é igualmente comercial; se do próprio acto resulta a não conexão com o comércio, o acto
não é comercial. Próprio acto significa não apenas o facto jurídico em si, mas também as
circunstâncias concomitantes que auxiliem na sua compreensão.

A ligação é apenas resultante das conclusões que retirarmos do acto, ou seja, das cláusulas
negociais. Porém, temos também de atender às circunstâncias envolventes que auxiliem a
compreensão do próprio acto, por exemplo, as declarações feitas no momento do negócio
mas que não ficaram escritas. Esta é uma forma de alargar o âmbito dos actos comerciais.
Não podemos atender às circunstâncias supervenientes.

Por exemplo, o merceeiro convida um agricultor a fazer-lhe uma proposta de venda de uma
furgoneta, e propõe que o contrato de compra e venda se realize através de escrito particular,
artigo 223 n° 1 CC, e o agricultor aceita. Aquando da conclusão do negócio, o merceeiro
comunica necessitar do veículo para o utilizar como caravana, mas do escrito não consta
qualquer declaração relativa à projectada utilização da viatura. Se entendêssemos ao acto
negocial só, às declarações negociais das partes, concluiríamos tratar-se de um acto
mercantil. Todavia, porque devemos atender às circunstâncias concomitantes, no caso ao
projecto de utilização dado a conhecer pelo comerciante, o acto há-de qualificar-se civil.

Como é que estas circunstâncias vão ser atendidas? Através dos critérios gerais de
interpretação do negócio jurídico, artigo 236 n° 1 CC, teoria da impressão do destinatário.
Significa isto que as circunstâncias que vão ser analisadas são as conhecidas ou cognoscíveis
por um declaratário normal e diligente, colocado na posição do declaratário real. Também
aqui se aplica o artigo 236 n° 2: se ambos conheciam a vontade real, é essa que vale.

Como acontece em Itália a propósito do artigo 4 do Codice di Commercio, também em


Portugal se tem discutido se a 2ª parte do artigo 2 contém ou não uma presunção legal.
Segundo alguns autores a norma revela uma presunção, iuris tantum para uns e iuris et de
iure para outros, enquanto que segundo outros autores a norma é imperativa. COUTINHO DE
ABREU entende a norma como imperativa, pois as presunções são as ilações que a lei ou o
julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, artigo 349 CC. Do
facto de se saber que determinado sujeito é comerciante não se conclui que os actos por ele
praticados são comerciais.

Actos de comércio subjectivos são os factos jurídicos voluntários, ou os actos só, dos
comerciantes conexionáveis com o comércio em geral e de que não resulte não estarem
conexionados com o comércio dos sujeitos.
Actos de comércio autónomos e acessórios

São actos de comércio autónomos os qualificados de mercantis por si mesmos,


independentemente da ligação a outros actos ou actividades comerciais. São actos de
comércio acessórios os que devem a sua comercialidade ao facto de se ligarem ou
confeccionarem a actos mercantis.

O CCom prevê alguns actos acessórios: a fiança, artigo 101; o mandato, artigo 231; o
empréstimo, artigo 394; o penhor, artigo 397; o depósito, artigo 403. Estes actos tanto podem
ser acessórios de actos de comércio objectivos e autónomos, como de actos de comércio
objectivos mas acessórios, como de actos subjectivamente comerciais.

De acordo com a teoria do acessório qualificam-se como comerciais os actos de não


comerciantes não especialmente regulados na lei mercantil mas acessórios de actos
objectivamente comerciais: todo o acto de um não comerciante efectivamente confeccionado
com acto objectivamente mercantil é acto de comércio.

A doutrina dominante, de que COUTINHO DE ABREU participa, rejeita esta teoria. Dada a
índole destes actos, não parece legítimo afirmar um princípio geral segundo o qual todo e
qualquer acto de não comerciantes seria mercantil quando confeccionado com actos
objectivos de comércio. Não há aqui lugar para analogia iuris. Não obstante, já nos parece
legítimo qualificar de comerciais certos actos de não comerciantes por serem análogos a actos
acessórios de comércio previstos na lei, havendo aqui lugar para analogia legis.

Actos formalmente comerciais e substancialmente comerciais

Actos formalmente comerciais são os esquemas negociais que, utilizáveis quer para a
realização de operações mercantis, quer para a realização de operações económicas que não
são actos de comércio nem se inserem na actividade comercial, estão contudo especialmente
regulados na lei mercantil, merecendo a qualificação de actos de comércio. O exemplo típico
é o dos negócios cambiários, considerados ao contrário por ORLANDO DE CARVALHO
substancialmente comerciais, que rejeita esta classificação proposta por COUTINHO DE
ABREU.

Actos bilateralmente comerciais e unilateralmente comerciais

Os actos bilateralmente comerciais são actos cuja comercialidade se verifica em relação a


ambas as partes-sujeitos. O acto é objectivamente comercial para ambas as partes, por
exemplo, A produz automóveis e vende 20 automóveis ao seu concessionário. A venda é acto
de comércio e a compra é acto de comércio.

São unilateralmente comerciais os actos cuja comercialidade se verifica só em relação a uma


das partes. Por exemplo, A compra um automóvel a um stand de automóveis, para fins
pessoais. A compra não é acto de comércio, mas é venda comercial. Embora a compra seja
civil, o acto, no seu conjunto, é unilateralmente comercial.

Qual o regime jurídico dos actos unilateralmente comerciais? A lei, no artigo 99 CCom,
estabelece que nos actos de comércio unilaterais o regime aplicável a ambos os contraentes é
o regime comercial, salvo as normas que só se apliquem àquele em relação ao qual o acto é
comercial, ficando, porém, todos sujeitos à jurisdição comercial. Os actos unilateralmente
comerciais estão em regra sujeitos à disciplina mercantil, excepto os que só forem aplicáveis
àquele por cujo respeito o acto é mercantil, e o único preceito nestas condições é hoje o artigo
100 CCom: nas obrigações comerciais os co-obrigados são solidários, salvo estipulação
contrária. Esta disposição não é extensiva aos não comerciantes quanto aos contratos que, em
relação a estes, não constituírem actos comerciais. Se dois comerciantes comprarem a dois
artesãos peças de artesanato, este acto é unilateralmente comercial e os artesãos não são
devedores solidários quanto à entrega das peças.

Quando o acto unilateralmente comercial seja contrato de consumo, aplicam-se a ambos os


contratantes as regras especiais das relações de consumo.
DOS COMERCIANTES

Introdução

Os sujeitos dos actos de comércio e das relações jurídico-mercantis podem ser comerciantes e
não-comerciantes, pois os sujeitos com capacidade civil de exercício possuem igualmente
capacidade comercial de exercício, artigo 7 CCom.

Porém, os actores determinantes no direito mercantil são os comerciantes, e possuem um


estatuto próprio.

Os actos dos comerciantes são considerados subjectivamente comerciais ex artigo 2, 2ª parte


CCom. As dívidas comerciais dos comerciantes casados pressupõem-se contraídas no
exercício dos respectivos comércios, artigo 15 CCom, e serão em princípio da
responsabilidade dos comerciantes e seus cônjuges, artigo 1691 n° 1 al. d) CC. A prova de
certos factos em que intervêm comerciantes é facilitada, artigo 396 CCom. Prescrevem no
prazo de dois anos os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja
comerciante ou os não destine ao seu comércio, artigo 317 al. b) CC. Nos termos do artigo 18
CCom, os comerciantes estão sujeitos a certas obrigações, como a de adoptar uma firma.

Sujeitos qualificáveis como comerciantes

Pessoas singulares

Nos termos do artigo 13 CCom são comerciantes as pessoas que, tendo capacidade para
praticar actos de comércio, fazem de profissão.

Discute-se se a capacidade exigida é a capacidade jurídica ou a capacidade de exercício de


direitos, entendendo a doutrina dominante referir-se a norma à capacidade de exercício. A
prática de actos de comércio e a profissão mercantil hão-de referir-se à capacidade de agir,
não à mera idoneidade para ser titular de direitos e obrigações, artigo que deve ser conjugado
com o 7, relativo à capacidade de exercício para a prática de actos de comércio.

Sendo assim, os incapazes nunca poderiam ser comerciantes, mas não é assim, pois o
requisito da capacidade do artigo 13 tem de ser entendido com algumas restrições.

O artigo 1889 n° 1 al. c) CC permite aos pais, enquanto representantes do filho, e desde que
autorizados pelo Ministério Público, adquirir estabelecimento comercial ou industrial ou
continuar a exploração do que o filho haja recebido por sucessão ou doação.

O mesmo é permitido ao tutor representante de menor, artigo 1938 n° 1 al. a) e f) CC, ou de


interdito, artigo 139 CC.

O inabilitado assistido por curador pode não só continuar a exploração de estabelecimento


que vinha explorando antes da inabilitação, mas também adquirir empresa e explorá-la, artigo
153 CC.

O curador administrador dos bens do inabilitado, artigo 154 CC, pode, com autorização do
Ministério Público, continuar a exploração de empresa já explorada pelo inabilitado antes da
inabilitação, bem como adquirir empresa ou continuar a exploração da que o inabilitado haja
recebido por sucessão ou doação, artigo 156 CC.

Os incapazes que exerçam o comércio através de representantes legais devidamente


autorizados pelo Ministério Público são considerados comerciantes. Não são os
representantes comerciais dos incapazes que são comerciantes, são os próprios incapazes.

Para serem comerciantes, as pessoas com capacidade para praticar actos comerciais têm de
fazer do comércio profissão. Há consenso relativamente ao que pode ser considerado
profissão, mas o mesmo não se pode dizer quanto ao “comércio”.

O comércio em sentido jurídico vai para lá do comércio em sentido económico, sendo


jurídico o referido no artigo 13 n° 1 CCom. Este comércio significa actividade qualificada por
lei como comercial. Todavia, não é a prática, ainda que habitual ou sistemática, de quaisquer
actos de comércio que faz do respectivo sujeito comerciante. Estão fora de causa os actos de
comércio subjectivos, os actos formalmente comerciais e, segundo a doutrina dominante, fora
de causa estão também os actos de comércio acessórios, se bem que na visão de COUTINHO
DE ABREU podem em alguns casos qualificar como comerciante o sujeito, como do outro
lado quaisquer actos de comércio objectivos, substanciais e autónomos não qualificam
automaticamente a pessoa como de comerciante. É o que sucede com a conta corrente,
artigos 344 e seguintes, e com as compras de participações sociais não destinadas à revenda
ou as vendas de participações sociais não adquiridas com intuito de revenda, artigo 463 n° 5.

A profissionalidade não exige que a profissão comercial seja a única exercida pelo sujeito,
nem que seja a principal, nem que a respectiva actividade seja exercida de modo contínuo ou
ininterrupto.

Deve acrescentar-se que as pessoas que exercem profissionalmente uma actividade comercial
só são comerciantes quando exerçam em nome próprio: é comerciante a pessoa que exerce
pessoalmente e a título profissional o comércio em cujo nome ele é exercido.

A qualidade de comerciante implica a de empresário? Apesar de isto ser tendencialmente


correcto, não é inteiramente: há comerciantes que o são sem explorar uma empresa, é o caso
típico do vendedor ambulante. Por outro lado, uma pessoa pode ser considerada comerciante
mesmo antes de criar a sua empresa.

A partir de que momento é que se retira a qualidade de comerciante? Entende-se que esse
início se determina quando se pratica o acto ou conjunto de actos que revela o propósito e a
intenção de a pessoa se dedicar ao exercício reiterado de uma actividade comercial. Por
exemplo, um sujeito que quer ser concessionário contrata trabalhadores e arrenda um espaço.

A questão apresenta maior relevo a propósito dos comerciantes-empresários: tem-se


entendido entre nós que, a partir do momento em que temos actos preparatórios e
preliminares da constituição de uma empresa futura, basta isto para termos comerciantes. Ou
seja, quando se cria a empresa ou se denota a intenção de vir a explorar uma.

Isto é importante pois a partir deste momento os actos podem ser qualificados como
subjectivamente comerciais, para a aplicação do estatuto.
Pessoas colectivas

• Sociedades comerciais

Prescreve ainda o artigo 13 n° 2 CCom que são comerciantes as sociedades comerciais. Nos
termos do artigo 1 n° 2 CSC “são sociedades comerciais aquelas que tenham por objecto a
prática de actos de comércio e adoptem o tipo de sociedade em nome colectivo, de sociedade
por quotas, de sociedade anónima, de sociedade em comandita simples ou de sociedade em
comandita por acções.

As sociedades de que tratamos adquirem a qualidade de comerciantes pelo menos a partir do


momento em que adquirem personalidade jurídica, artigo 5 CSC. Não é necessário que
pratiquem primeiro quaisquer actos de comércio compreendidos no seu objecto.

• Outras pessoas colectivas

Além das sociedades comerciais outras pessoas colectivas podem ser comerciantes.

Quando a lei fala em pessoas, não exclui as positivas nem restringe às singulares. A própria
legislação comercial emprega o substantivo “pessoas” para abranger também pessoas
colectivas, artigos 68 n° 1, 75, 344 e 368 CCom; e artigo 7 n° 2, in fine, conjugado com o
artigo 488 n° 1 CSC.

Há aqui uma referência à profissão, que remete para pessoas singulares, mas profissão aqui
deve significar exercício de actividade de pessoas jurídicas, “profissão” enquanto exercício de
comércio. Está em causa a profissionalidade, sistematicidade, no exercício do comércio.

Diz-se ainda que profissão implica o lucro. Mas entendemos que o lucro não é pressuposto
essencial da profissão do exercício comercial, numa interpretação objectivo-actualista que
tenha em consideração a teleologia e as novas realidades económico-empresariais.

Outras pessoas colectivas qualificadas como comerciantes são as entidades públicas


empresariais, EPE. As entidades empresariais do Estado devem e podem ser qualificadas
como comerciantes, desde que a sua actividade seja considerada como comercial, têm
capacidade para praticar actos de comércio, artigos 25 e 27 do RSEE. As EPE estão reguladas
no Decreto-Lei 133/2013, sendo que a sigla “EPE” faz obrigatoriamente parte da
denominação das entidades públicas empresariais, artigo 57 n° 2 do Decreto-Lei 133/2013.
Nas empresas locais, reguladas pela Lei 50/2012, o problema não se coloca porque as
empresas locais são obrigatoriamente sociedades comerciais.

Os agrupamentos complementares de empresas, ACE, e os agrupamentos europeus de


interesse económico, AEIE, não são sociedades por não terem escopo lucrativo, artigo 3 n° 1
da Lei 4/73, mas são comerciantes quando tenham objecto comercial. Esta asserção, apoiada
na interpretação do artigo 13, é hoje apoiada pelo artigo 3 n° 2 do Decreto-Lei 148/90.

Por fim, as cooperativas quando tenham por objecto a prática de actividades ou actos
comerciais.
Sujeitos não qualificáveis como comerciantes

Não são comerciantes os que exercem actividades não comerciais, e entendemos assim que
empresarialidade não equivale a comercialidade. Esta tese é sustentada com argumentos
legais, que assentam na exclusão de certas actividades empresariais do âmbito da
comercialidade.

Não são comerciantes as pessoas que exercem uma actividade agrícola, valendo um conceito
amplo de tal actividade. A lei exclui a agricultura dos domínios do comércio, artigo 230 § 1 e
2. No parágrafo 1, inclui-se o explorador agrículo que reserva parte dos seus produtos, por
exemplo, para fazer compotas. É uma actividade acessória: a indústria transformadora é
secundária da indústria agrícola, entendendo-se que isto não chega para qualificar a
actividade no seu todo como comercial. Outro argumento vem do artigo 464 n° 2 e 4: se a
venda de produtos agrícolas não é comercial, a actividade de base também não é. Existe
depois um conjunto de legislação sobre as sociedades de agricultura de grupo e agrupamentos
de exploração agrícola: os Decreto-Lei 336/89 e 339/90. São reguladoras de formas de
exploração de actividade agrícola sob a forma societária, sendo que ambos os diplomas
dizem que só podem ser sociedades civis sob a forma de sociedade por exercida através de
uma empresa. Entendemos que não é a empresarialidade que qualifica a comercialidade, mas
sim a lei. De jure condendo, é defensável que as empresas agrícolas são comerciais, mas não
é esse o nosso estado.

Também não são comerciantes os artesãos, os produtores qualificados que, podendo embora
servir-se de máquinas, utilizam predominantemente o seu trabalho manual e, como
instrumentos, ferramentas. Os artigos 230 § 1, 2ª parte, e 464, n° 3, excluem do comércio a
actividade artesanal industrial-transformadora, exercida directamente pelos artesãos (oleiros,
sapateiros, costureiras). Por sua vez, há também os chamados serviços artesanais que, para
este efeito, entram no conceito de artesão apesar de serem prestações de serviços, e quando
exercidas directamente pelos artesãos: cabeleireiro, costureira, sapateiro. Estas actividades
não são comerciais, uma vez que não se encontram especialmente reguladas na lei comercial
e são análogas às actividades do artigo 230 § 1. O Decreto-Lei 41/2001, artigo 12, veio dizer
que esta actividade podia ser exercida através de uma sociedade comercial. Entendemos que
a lei se quis referir à sociedade civil sob forma comercial, em nome da unidade do sistema
jurídico, fazemos uma interpretação restritiva.

Os profissionais liberais, pessoas singulares que exercem de modo habitual e autónomo


actividade primordialmente intelectuais, susceptíveis de regulamentação e controlo próprios,
bem como os sujeitos colectivos cujo objecto consista numa actividade profissional-liberal,
também não são comerciantes. Além de os actos típicos das actividades respectivas não
serem qualificados legislativamente de mercantis, a asserção é confirmada por diversos actos
normativos: o Decreto-Lei 229/2004 e o Decreto-Lei 487/99.

Próximos destes encontram-se uma série de trabalhadores autónomos igualmente não


comerciantes: escultores, pintores, escritores, cientistas, músicos, qualificação reforçada pelo
artigo 230 § 3.

Para além disto, nem todos os exercitantes de actividades comerciais são comerciantes. O
artigo 17 diz que as pessoas colectivas territoriais (Estado, regiões autónomas, autarquias
locais) não podem ser comerciantes, ainda que pratiquem actos de comércio de forma
reiterada e sistemática. Este artigo deve ser interpretado extensivamente, para incluir nesta
impossibilidade de serem comerciantes as pessoas colectivas públicas de tipo institucional e
associativo, com excepção das EPE.

O § único do artigo 17 acrescenta que as associações e fundações de direito privado com fim
desinteressado ou altruísta podem, no limite das suas atribuições, praticar actos de comércio,
mas não podem adquirir a qualidade de comerciantes.

Sujeitos legalmente inibidos da profissão de comércio

Entidades colectivas

O artigo 14 CCom diz que “é proibida a profissão do comércio às associações ou corporações


que não tenham por objecto interesses materiais”. Tais associações têm capacidade de
exercício para praticar actos mercantis, artigos 7 e 17 § único CCom. O preceito quis vedar o
estatuto de comerciante às citadas associações. Ainda que exerçam o comércio, ele não
deverá ser exercido a título de profissão.

As associações de fim desinteressado ou altruístico não podem ser comerciantes, pois não
têm por objecto interesses materiais, como também as associações de fim interessado ou
egoístico mas ideal, como as associações culturais ou desportivas, mas podem praticar actos
comerciais e exercer comércio. Das associações de fim interessado ou egoístico de cariz
económico não lucrativo, como as de empregadores, já não podemos dizer não terem por
objecto interesses materiais. Mas não serão comerciantes quando exerçam actividade
comercial, pois as actividades comerciais por elas desenvolvidas são acessórias das
actividades e finalidades principais.

Imaginemos que uma associação extravasa o seu objecto e começa a ter um escopo
comercial, pode ser qualificada como comerciante? Não: a actividade fica fora da capacidade
de gozo, artigo 160 n° 1 CC e os actos praticados são nulos, sendo que não podemos basear a
qualificação como comerciante em actos nulos. A associação deve ser extinta.

Pessoas singulares

• Incompatibilidades

O artigo 14 CCom estabelece que é proibida a profissão do comércio aos que por lei ou
disposições especiais não possam comerciar, estabelecendo as incompatibilidades para ser
comerciante. Incompatibilidade é a impossibilidade legal do exercício de comércio por
sujeito que desempenhe certas funções ou se encontre em determinada situação jurídica.

Temos as incompatibilidades de direito privado, todas relativas, isto é, removíveis mediantes


autorização de certos sujeitos ou órgãos, e parciais, sendo proibida só a actividade comercial
concorrente, e não qualquer uma. Por exemplo, os sócios de uma sociedade em nome
colectivo não podem exercer actividade concorrente, artigo 180 n° 1 CSC; e o mesmo vale
para os gerentes e para os gerentes de sociedades por quotas, artigos 253 CCom e 254 n° 1
CSC; para os administradores de sociedades anónimas, artigos 398 n° 3 e 428 CSC; ou ainda
para os sócios comanditados de sociedades em comandita simples, artigo 477 CSC.
Existem também incompatibilidades de direito público, absolutas e gerais. Incluem-se aqui
diversas profissões com estatutos próprios, como a dos magistrados judiciais, dos magistrados
do Ministério Público, dos militares, dos membros de órgãos de soberania e de cargos
públicos e equiparados.

No caso em que uma pessoa proibida por lei de comerciar viole a proibição, é preciso saber
se será qualificada ou não como comerciante. A doutrina divide-se, sendo que COUTINHO DE
ABREU afirma que sim, que pode ser comerciante quem violar a incompatibilidade, porque
tem capacidade, faz disso profissão e, acima de tudo, estes actos não são inválidos nem
ineficazes. As referidas incompatibilidades visam possibilitar ou potenciar o desempenho
efectivo e eficiente de certos cargos ou funções. Por isso as sanções cominadas para a
violação das proibições legais não afectam a eficácia do exercício do comércio, são de outra
ordem: responsabilidade civil, destituição com justa causa, penas disciplinares, perda de
mandato entre outras.

• Insolvência e inibição para o exercício do comércio

O processo de insolvência visa satisfazer conjuntamente os credores de um devedor. Dispõem


os credores de duas vias principais para aproveitarem as forças patrimoniais do devedor: ou
vão pela liquidação dos bens integrantes da massa insolvente e consequente repartição dos
resultados distribuíveis, ou se decidem por um plano de insolvência onde regulam
autonomamente o modo por que serão satisfeitos os seus interesses.

ARTIGO 1 DO CIRE

No artigo 1 CIRE estas duas vias principais apareciam como alternativas sem ordem de
precedência, mas a nova redacção que vigora desde 2012 coloca alguns problemas.

O artigo dá agora a ideia de que o processo de insolvência exige sempre um plano de


insolvência, quer para a recuperação, quer para a liquidação, no entanto não existe plano de
insolvência para as pessoas singulares não empresárias ou titulares de pequenas empresas,
artigos 249 e 250 CIRE. Os sujeitos legitimados para apresentar plano de insolvência não
têm, em geral, o dever de apresentá-lo, artigo 193; só há plano de insolvência se ele for
aprovado pelos credores, artigos 209 e seguintes, e a liquidação da massa insolvente
processa-se nos termos previstos na lei, artigos 156 e seguintes, salvo se existir plano de
insolvência regulando essa liquidação, artigo 192 n° 1.

Em relação à 2ª parte do artigo, o plano de recuperação aparece numa posição privilegiada


em relação ao plano de liquidação. A versão anterior era mais liberal e os credores é que
decidiam a modalidade.

O teor deste artigo resulta da ideia de que, em ambiente de crise, recuperar tem outras
vantagens, nomeadamente a manutenção de postos de trabalho e diminuição das despesas do
Estado com desempregados. Porém, nada na lei obriga os credores a aprovarem planos de
recuperação, ou seja, continuam livres de optar pela liquidação, e a mesma coisa se passa em
relação ao papel do juiz quando vai controlar o plano.

Relativamente ao conteúdo do plano de insolvência, pode ser muito variado, a lei não prevê
um elenco taxativo de medidas. Pode ser um plano de recuperação, de liquidação, e ainda um
plano misto. É possível, em relação ao mesmo devedor, ter um plano de liquidação e de
recuperação. Note-se que a liquidação prevista no plano de insolvência pode conter desvios
às regras legais do CIRE em matéria de liquidação.

ÂMBITO SUBJECTIVO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA, ARTIGO 2 CIRE

O artigo 2 CIRE define o âmbito subjectivo do plano de insolvência, ou seja, quem pode ser
sujeito a uma declaração de insolvência, sendo possível compor três grupos.

Entram no primeiro quaisquer pessoas singulares ou colectivas.

O segundo grupo reúne entidades ou sujeitos de natureza coletiva mas não personalizados,
por exemplo, associações sem personalidade jurídica.

No terceiro grupo temos a herança jacente, o estabelecimento individual de responsabilidade


limitada e quaisquer outros patrimónios autónomos.

As várias alíneas do artigo prevêem realidades que não são sujeitos, falando o próprio corpo
do artigo não em sujeitos mas sim em objecto, havendo aqui alguma incoerência. Os sujeitos
passivos da declaração de insolvência não têm de ser comerciantes, como também não têm
de ser empresários. Inclusive o plano de insolvência não pressupõe a existência de empresa
na massa insolvente, se bem que há aspectos do regime da insolvência dependentes da
existência ou inexistência de empresa, por exemplo, não têm o dever de apresentação à
insolvência as pessoas singulares que não sejam titulares de empresa, artigo 18 n° 2.

O artigo 2 n° 2 exclui do âmbito do processo de insolvência várias entidades. Note-se a al. b),
que diz que estas entidades estão excluídas “na medida em que seja incompatível com os
regimes especiais previstos para tais entidades”, é o que sucede, por exemplo, com as
instituições de crédito.

Quanto aos sujeitos activos da declaração de insolvência, a insolvência de um determinado


devedor pode ser requerida desde logo, pelo próprio devedor e em certos casos tem mesmo o
dever de apresentação à insolvência, artigo 18, com a excepção do n° 2. O artigo 20 prevê
outros legitimados a requerer a apresentação à insolvência: quem for legalmente responsável
pelas dívidas do devedor, por exemplo, sócios, numa ideia de “não deixar crescer a bola de
neve”; qualquer credor, ainda que condicional (é muito discutido saber se um credor titular de
um crédito litigioso pode ou não requerer); e o Ministério Público.

Há aqui um conjunto de circunstâncias que têm de estar verificadas para estes sujeitos terem
legitimidade. A jurisprudência entende que as várias alíneas do artigo 20 n° 1 constituem
factos indiciários que permitem presumir uma situação de insolvência. A al. h), por exemplo,
revela a importância do depósito das contas.

ARTIGO 3 CIRE: FORMAS DE INSOLVÊNCIA

– Pressuposto objectivo para alguém ser declarado insolvente é a situação de insolvência ou


situação equiparada. É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre
impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. A impossibilidade de cumprimento
há-de assentar essencialmente na falta de meios de pagamento ou bens de liquidez, e as
obrigações não cumpridas hão-de estar já vencidas e representar, se não a totalidade das
obrigações do devedor, pelo menos parte essencial das mesmas.
Um devedor com activo superior ao passivo pode, por falta de liquidez, encontrar-se
impossibilitado de cumprir a generalidade das suas obrigações.

– O artigo 3 n° 2, prevê uma segunda forma de insolvência, identificando um conjunto de


obrigações em que, ao contrário da insolvência actual, se faz a comparação entre o passivo e
o activo dos devedores. Assim, as pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas
dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente são consideradas
insolventes quando o passivo seja manifestamente superior ao activo, segundo as normas
contabilísticas aplicáveis.

Esta forma de insolvência só se aplica, como tal, a certo tipo de devedores, apenas para certas
pessoas colectivas e certos patrimónios autónomos, quando nenhuma pessoa singular
responda pessoal e ilimitadamente pelas suas dívidas. Por exemplo, na sociedade por quotas a
responsabilidade dos sócios não é uma responsabilidade pela dívida da sociedade, uma vez
que é limitada pelo valor de entrada, é apenas uma responsabilidade perante a sociedade e
não perante os seus credores. Já numa sociedade em nome colectivo, podemos ter como
sócios pessoas singulares, e estes vão responder pelas dívidas da sociedade.

Note-se que o artigo 3 n° 2 não diz que se tem de chegar à conclusão segundo o último
balanço aprovado, pode ser um balanço ad hoc, é importante para relacionar o artigo 3 com o
artigo 20. A legitimidade pode-se basear no último balanço aprovado. al. h), logo pode-se
fazer um pedido de declaração de insolvência com base neste plano e, entretanto, a situação
alterar-se e o devedor provar que o activo é manifestamente superior ao passivo. Chega-se a
este resultando aplicando as normas contabilísticas comuns.

– Nos termos do artigo 3 n° 3, pode-se afastar a declaração de insolvência se, na realidade, se


conseguir demonstrar que o activo é superior ao passivo aplicando outros critérios de
avaliação que não tenham sido respeitados de acordo com as normas contabilísticas
aplicadas. Nomeadamente, são consideráveis outros elementos para além dos constantes no
balanço, pelo seu justo valor, al. a).

É preciso notar que as normas do n° 2 vão-se alterando, logo podem fazer aplicar já o n° 3.

JOÃO LABAREDA entende que este regime favorece o infractor, pois o sujeito que não incluiu
no balanço um determinado elemento estaria a violar as normas contabilísticas aplicadas.
SOVERAL MARTINS entende que, se o elemento não estava incluído, é porque não devia estar.
Se as normas do n° 2 foram aplicadas, já constavam todos os elementos que tinham de
constar. Por outro lado, só conduzirá a resultados diferentes se, ao abrigo das normas
aplicáveis, não se recorra ao justo valor.

– O artigo 3 n° 4 estabelece que se equipara à situação de insolvência actual a que seja


meramente iminente: é a insolvência iminente. Apesar de o preceito não definir a situação de
insolvência iminente, entende-se que existe esta situação quando se antevê como provável
que o devedor não terá meios para cumprir a generalidade das suas obrigações no momento
em que se vençam. Note-se que apenas o devedor tem legitimidade para apresentar o pedido
de insolvência com base na insolvência iminente, o que pretende evitar que os credores
coloquem sob pressão um devedor ainda não insolvente. Porém, em certos casos, credores e
outras entidades têm legitimidade para requererem a declaração de insolvência quando há
apenas um risco de insolvência iminente, por exemplo, artigo 20 n° 1 al. d) e h).
Este artigo coloca uma dificuldade, a de saber se a insolvência actual é a do n° 1 ou também a
do n° 2.

A insolvência iminente não é aquela em que o devedor tenha apenas um receio; mas sim
aquela em que um juízo de prognose permita dizer que o devedor muito provavelmente não
estará em condições de cumprir as suas obrigações vencidas.

Há aqui vários aspectos duvidosos.

Quanto é que podemos dizer que é provável que no futuro o devedor não possa cumprir as
suas obrigações?

SOVERAL MARTINS propõe que se recorra a um critério, usado pela doutrina alemã, que tem
em conta o grau de probabilidade de conseguir cumprir as suas obrigações e o grau de
probabilidade que não consiga fazê-lo. Temos de comparar estes dois graus. A doutrina aqui
divide-se, havendo quem exija mais de 50% ou 75%, sendo que SOVERAL MARTINS entende
que apenas tem de ser superior.

Falámos em obrigações que se vencerão no futuro, mas qual é o lapso temporal que o juízo
de prognose terá em conta?

Saber qual é o período de tempo que devemos ter em conta depende de cada devedor, logo
será o julgador a encontrar o período de tempo que ache mais adequado.

Não há dúvidas que vamos ter em conta as obrigações que já existem.

E as que não existem?

SOVERAL MARTINS entende que devemos ter em consideração as obrigações não existentes
mas que se prevê que seja necessário contraí-las no período de tempo considerado.

Numa situação de insolvência iminente, pode-se afirmar um dever de apresentação da


declaração de insolvência, artigo 18 n° 1?

Este artigo parece dizer que é nos casos do artigo 3 n° 1; apesar isso, no CIRE comentado por
CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, defende-se que esta valoração vale também
para o os casos de insolvência iminente. Há uma equiparação para efeitos de afirmação deste
dever, sendo que SOVERAL MARTINS defende o contrário: o n° 1 afirma ser relevante a
situação de insolvência tal como descrita; e a insegurança em torno do que é a insolvência
iminente já justificaria também que a remissão se considere apenas feita para o artigo 3 n° 1.

PROCESSO DE INSOLVÊNCIA

– Vimos que o processo de insolvência se pode iniciar por um pedido apresentado pelo
devedor ou por um dos sujeitos do artigo 20, o que terá consequências no andamento
processual, o artigo 25 só se aplica aos outros legitimados; no artigo 28, é dito que a
apresentação à insolvência por parte do devedor implica o reconhecimento, por este, da sua
situação de insolvência, e essa insolvência é decidida no terceiro dia seguinte. Note-se que
este Código contém várias afirmações contraditórias: nem sempre acontece o disposto no
artigo 28. O artigo 201 prevê justamente a possibilidade de o devedor apresentar-se à
insolvência com um plano, o artigo 255 diz que, se o devedor pretende que seja aprovado o
plano, pode haver uma suspensão do processo de insolvência. A aprovação do plano está
prevista nos artigos 209 e seguintes, e pode demorar muito mais do que os 3 dias úteis do
artigo 28.

– Supondo que não há indeferimento liminar do requerimento, feito por outro sujeito que não
o devedor, o natural é o devedor ser citado para se pronunciar, artigo 29. O artigo 12, no
entanto, vai permitir que, verificadas certas circunstâncias, a audiência do devedor possa ser
dispensada, e mesmo a própria citação. O n° 3, porém, diz que o disposto no n° anterior se
aplica ao administrador do devedor, alargando o âmbito de aplicação às pessoas colectivas.

– Segue-se a possibilidade de o devedor deduzir oposição, artigo 30. O n° 2 diz que o


devedor tem de juntar com a oposição a lista dos seus cinco maiores credores, sob pena de
não recebimento da oposição sendo que há jurisprudência que entende que este preceito é
inconstitucional. Entende-se que o juiz deve dar um tempo para aperfeiçoamento da oposição
para que seja junta a lista.

E se o devedor não apresentar oposição?

O n° 5 diz que se consideram confessados os factos alegados na petição inicial.

– O artigo 35 prevê uma audiência para discussão e julgamento. Se, no decurso do processo,
o juiz concluir que existe uma situação de insolvência, decreta a insolvência. Mais uma vez,
apenas na hipótese de o requerimento ter sido apresentado por outra entidade que não o
devedor.

– O artigo 36 refere-se à sentença de declaração de insolvência e sua impugnação, prevendo a


possibilidade de deduzir recurso e embargos. Em matéria de legitimidade para recurso e
embargos, e de notificação da sentença, existem diferenças de regime.

O artigo 44, quanto à sentença de indeferimento do pedido de declaração, diz que esta é
notificada apenas ao requerente e devedor, não foi o devedor a apresentar o pedido. Esta
solução prende-se com a salvaguarda da imagem do devedor. Nestes casos, apenas o
requerente pode interpor recurso.

O artigo 40 n° 1 diz que apenas o devedor em situação de revelia absoluta pode deduzir
embargos, o que se prende com os fundamentos para que sejam deduzidos embargos. O
embargante tem de alegar factos ou deduzir meios de prova que não tenham sido tidos em
conta para o devedor.

O recurso vem previsto no artigo 42.

EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA

A declaração de insolvência tem vários efeitos, substantivos e processuais.

O artigo 91 diz que a declaração de insolvência origina o vencimento imediato das


obrigações do devedor, o que permite o chamamento de todos os credores, e facilita ao credor
a possibilidade de vir ao processo reclamar o seu crédito, permitindo uma certa estabilização
do passivo.
O artigo 81 n° 1 é um artigo importante, que prevê que a declaração de insolvência priva o
devedor dos poderes de administração e disposição dos bens em massa, sendo os poderes
transferidos para o administrador da insolvência.

O que sucede se esta transferência não for respeitada e o insolvente dispor de um objecto da
massa?

O n° 6 diz que são ineficazes os actos do insolvente, a não ser que se verifique a excepção,
para a qual se prevê requisitos cumulativos das alíneas a) e b). Esta ineficácia não é apenas
em relação à massa insolvente, logo são ineficazes de forma absoluta, também entre as partes.

INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA

“Na sentença de declaração de insolvência ou em momento posterior pode o juiz declarar


aberto o incidente de qualificação da insolvência, artigos 36 n° 1 al. i), 188 n° 1, 36 n° 4, a
fim de apurar se ela é culposa ou fortuita”. Para além disto, num momento posterior à
sentença, SOVERAL MARTINS entende que o artigo 188 não impede o juiz de, oficiosamente,
declarar aberto o incidente se entretanto o processo tiver elementos para o fazer. Se, num
momento ainda prematuro, a sentença, o juiz já pode abrir o incidente, por maioria de razão,
se todos os elementos do processo formarem uma opinião ainda mais forte, o juiz também o
pode fazer.

Neste incidente, o juiz decide se a insolvência é culposa ou não, sendo que segundo o artigo
186 n° 1 a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada, com dolo
ou culpa grave, pelo devedor ou seus administradores nos três anos anteriores.

Se o juiz não abre o incidente, é necessário ter em atenção o regime do encerramento do


processo de insolvência, artigos 230 e seguintes.

Quais os efeitos do encerramento?

O artigo 233 n° 6 diz que a insolvência vai ser qualificada como fortuita.

Se a insolvência é qualificada como culposa, isso vai ter efeitos muito significativos, artigo
189. O juiz deve, desde logo, identificar as pessoas afectadas pela qualificação, al. a).
Interessa-nos a al. c) do artigo 189 n° 2: o juiz deve declarar essas pessoas inibidas para o
exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos.

Assim, se um sujeito foi declarado insolvente, e se foi aberto o incidente e nesse incidente a
insolvência foi considerada culposa, segue daí a inibição para o exercício do comércio. A al.
a) diz que o juiz deve identificar as pessoas afectadas pela qualificação, sendo que não é
necessariamente apenas o devedor, pode ser também os seus administrados, ROC, TOC,
entre outros.

Todos estes sujeitos podem ser abrangidos pela qualificação da insolvência como culposa e
afectados por essa qualificação, ficando assim inibidas para o exercício do comércio.

Se estas pessoas praticarem actos de comércio no período de inibição, terão a qualidade de


comerciante?
A leitura que parece preferível é a de que, se a inibição existe para defender os credores, as
pessoas afectadas pela qualificação representam um risco para o comércio e para o crédito
associado ao comércio, faz sentido não adquirir a qualidade de comerciante.

O artigo 186 diz que, para qualificar a insolvência como culposa, se deve atender ao devedor
e aos seus administradores. Porém, o artigo 189 permite abranger outras pessoas por esta
qualificação.

A questão que se coloca é: devemos ler o artigo 186 à luz do artigo 189?

COUTINHO DE ABREU entende que sim; SOVERAL MARTINS discorda. Compreendem-se as


hipóteses do artigo 186: se for o devedor a actuar com culpa grave ou com dolo, a sua
insolvência deve ser qualificada como culposa; o mesmo se dizendo para a actuação dos
administradores. Porém, no caso do TOC, ROC, ou outros sujeitos, não se compreende que a
sua actuação acarrete a qualificação da insolvência do devedor como culposa. Mas se o TOC
ou ROC excederem o âmbito normal da sua actuação e passarem a ser administradores de
facto, já se aplica o artigo 186 e não há necessidade de o ler à luz do artigo 189.

Estatuto dos comerciantes

O artigo 18 enumera uma série de obrigações dos comerciantes.

Firmas e denominações

• Noção e campo de aplicação

Diz-se habitualmente que a firma é o nome comercial dos comerciantes, o sinal que os
individualiza ou identifica, mas esta noção é insuficiente. Além de identificar os
comerciantes, a firma individualiza alguns não comerciantes: as sociedades civis de tipo
comercial, artigo 37 RRNPC; e pode agora individualizar empresários individuais não
comerciantes, artigo 39 RRNPC. Por outro lado, alguns comerciantes são identificados não
por uma firma, mas por uma “denominação”.

O artigo 19 CCom na redacção originária contrapunha a firma à denominação, que agora se


equivalem.

O RRNPC, diploma que contém o actual regime geral das firmas e denominações, retoma a
distinção: firma é o vocábulo preferido para designar o signo individualizador de
comerciantes, artigos 37, 38 e 40; denominação designa o sinal identificador de não
comerciantes, e pode nalguns casos ser composta por nomes de pessoas, artigos 36, 42 e 43.

O que importa destacar é que todos os comerciantes devem adoptar firma ou denominação, e
que cada comerciante em nome individual só pode adoptar uma firma, princípio da unidade
da firma.

Em relação às pessoas singulares este princípio sofre uma excepção ex artigo 40: um
comerciante em nome individual pode simultaneamente desenvolver uma actividade
comercial através do e.i.r.l., adoptando para tal uma firma, e outra actividade fora do e.i.r.l.,
adoptando para tal outra firma.
• Natureza jurídica do direito à firma ou denominação

O direito ao nome, enquanto direito de personalidade, artigo 72 CC, apresenta as


características próprias desta categoria de direitos: é intransmissível, vitalício e
vocacionalmente perpétuo, não se extingue pelo não uso, é essencialmente extrapatrimonial.

O direito à firma ou à denominação é transmissível, não é vitalício nem vocacionalmente


perpétuo, extinguindo-se em circunstâncias várias, inclusive durante a vida do titular e por
não uso, e é essencialmente patrimonial.

Em Portugal, como em Itália e na França, as firmas e denominações são entendidas como


bens imateriais passíveis de ser objecto de direitos reais, designadamente do direito de
propriedade. Na Alemanha considera-se um direito de natureza mista, não puro direito de
personalidade nem puro direito patrimonial, mas sim direito conjugando ambas as feições.

• Composição

FIRMAS DOS COMERCIANTES INDIVIDUAIS

A firma de comerciantes individuais tem de ser composta pelo seu nome, artigo 38 n° 1 e 3
RRNPC, que pode ser antecedido de expressões ou siglas correspondentes a títulos
académicos, profissionais ou nobiliárquicos a que o comerciante tenha direito, artigo 38 n° 3.
Pode ainda o comerciante aditar ao seu nome alcunha ou expressão alusiva à actividade
exercida, artigo 38 n° 1. Tratando-se de um titular de um estabelecimento individual de
responsabilidade limitada, e.i.r.l., rege o artigo 40 RRNPC.

FIRMAS DAS SOCIEDADES COMERCIAIS

Relativamente às firmas de sociedades comerciais, temos de recorrer ao CSC, lido em


articulação com o RRNPC.

O artigo 10 CSC estabelece os requisitos das firmas. Há aqui alguns aspectos que importa
referir, e que afectam a composição da firma e o princípio da novidade ou exclusividade. O n
° 2 parece estabelecer requisitos adicionais no caso das firmas das sociedades que sejam
nomes. Este requisito deve ser interpretado em conformidade com o regime do RRNPC.

– Firma das sociedades em nome colectivo

Deve identificar pelo menos um dos sócios, mesmo que não identifique todos, com o
aditamento de algum elemento que permita identificar a existência de outros, artigo 177 n° 1
CSC. Isto porque, nestas sociedades, os sócios vão responder pelas dívidas, e para os
credores é útil que os devedores sejam facilmente identificáveis.

Outro problema que se coloca em relação às sociedades colectivas é o de saber se se poderá


fazer constar uma referência à actividade que constitui o seu objecto social.

COUTINHO DE ABREU defende que sim, por analogia com o artigo 38 n° 1. Já SOVERAL
MARTINS entende que não é necessário recorrer à analogia, defendendo o caminho da
interpretação a contrario do artigo 10 n° 4. A firma das sociedades não pode ser composta
exclusivamente por vocábulos que permitam identificar a actividade, logo, a contrario, é
possível compor a firma da sociedade também com esses elementos, o objecto social é a
actividade. Uma outra posição defendida é a analogia do artigo 42 n° 1, parte final; porém,
agora diz respeito às sociedades civis.

– Firma das sociedades por quotas e sociedades anónimas

Devem ser formadas pelo nome, por uma denominação particular ou pela reunião de ambos
esses elementos, artigo 200 n° 1 e 275 n° 1 CSC.

No caso da firma das sociedades por quotas, esta tem de ter o aditamento “Limitada” ou
“L.da”, artigo 200 n° 1; no caso das sociedades anónimas, “Sociedade Anónima” ou “S.A.”,
artigo 275 n° 1.

Durante muito tempo, a denominação particular integrante de firma de sociedades por quotas
ou anónimas tinha de aludir ao objecto social, o que estava previsto no artigo 10 n° 3, in fine.
Esta parte final foi eliminada pelo artigo 17 do Decreto-Lei 111/2005, que permite que se
opte por firma constituída por expressão de fantasia previamente criada e reservada a favor
do Estado.

– Firma das sociedades em comandita

Também vamos encontrar normas específicas, os artigos 467 e seguintes. Mais uma vez,
vamos encontrar a necessidade de a firma conter o nome ou firma de um dos sócios
comanditados, que respondem pelas dívidas da sociedade, e seguida do aditamento “em
Comandita” ou “& Comandita”. Para os credores e terceiros em geral, interessa saber o nome
de pelo menos um dos sócios.

O artigo 467 n° 3 estende a responsabilidade aos sujeitos que deixem que o seu nome ou
firma constem da firma, salvo nos casos em que não se justifique um regime tão pesado.
Normalmente, estes sujeitos deixam que o nome conste para reforçar o crédito que a
sociedade consiga obter.

A firma das sociedades em comandita pode ainda integrar expressões alusivas ao objecto
social.

Um aspecto importante do regime das firmas das sociedades comerciais é o que resulta do
artigo 32 n° 5: quando deixe de ser associado o sócio cujo nome conste na firma, deve tal
firma ou denominação ser alterada no prazo de 1 ano. Durante aquele ano, continua a ser
lícito utilizar a firma com o nome ou firma do sócio que saiu; a não ser que o sócio ou
herdeiros consintam na utilização, direito ao nome. Se não der o consentimento, a sociedade
tem de alterar o acto constitutivo, onde consta a firma. O que se pretende é garantir que os
terceiros não sejam de alguma forma enganados por constar da firma o nome ou firma de um
sócio que já não faz parte. Se não houver alteração, O RNPC deve declarar a perda do direito
ao uso da firma nos termos do artigo 60 n° 1; e ainda declaração de nulidade por violação da
norma imperativa do artigo 32 n° 5.

FIRMAS DOS AGRUPAMENTOS COMPLEMENTARES DE EMPRESAS

A firma dos ACE está regulada pelo artigo 3 n° 1 do Decreto-Lei 430/73.


DENOMINAÇÕES DE OUTRAS ENTIDADES COLECTIVAS

A denominação das entidades públicas empresariais deve integrar a expressão “Entidade


Pública empresarial” ou as iniciais E.P.E., artigo 24 do RSEE.

A das cooperativas deverá ser sempre seguida das expressões “Cooperativa”, “União de
Cooperativas”, “Federação de Cooperativas”, “Confederação de Cooperativa” e ainda de
“Responsabilidade Limitada” ou “Responsabilidade Ilimitada”, ou das respectivas
abreviaturas, artigo 14 n° 1 CCoop.

A denominação dos agrupamentos europeus de interesse económico deve incluir como


aditamento “ Agrupamento Europeu de Interesse Económico” ou a abreviatura “AEIE”,
artigo 5 al. a) do Regulamento2137/85 e artigo 4 do Decreto-Lei 148/90.

• Princípios informadores da composição das firmas e denominações

PRINCÍPIO DA VERDADE

Está previsto no artigo 32 n° 1 RRNPC, e diz-nos que os elementos componentes das firmas e
denominações devem ser verdadeiros e não induzir em erro sobre a identificação, natureza
ou actividade do seu titular. Uma firma ou denominação não precisa de utilizar apenas
vocábulos que correspondam à verdade, pode utilizar expressões de fantasia, mas não pode é
induzir em erro sobre a sua natureza, por exemplo, uma sociedade comercial não pode conter
na sua firma a expressão “associação” ou “fundação”, ou actividade, uma sociedade de
comércio de automóveis não pode dizer que se dedica ao comércio de electrodomésticos.

Como manifestações do princípio, COUTINHO DE ABREU aponta para a firma dos


comerciantes individuais, que deve conter o nome deles e não de outrem, e a das sociedades
deve conter o nome dos sócios e não o de estranhos. As firmas não podem conter expressões
que induzam em erro quanto à caracterização jurídica dos respectivos titulares, e não podem
incluir elementos que sugiram actividades diversas das que os respectivos titulares exercem.
Quando deixe de ser associado sócio cujo nome figure na firma, deve tal firma ser alterada. A
alteração da firma nestes casos é também requerida pela tutela do direito ao nome das
pessoas.

O artigo 32 n° 4 al. b), c) e d) não está propriamente ligado ao princípio da verdade.

PRINCÍPIO DA NOVIDADE OU EXCLUSIVIDADE

Este princípio está previsto no artigo 33 n° 1 RRNPC, e diz-nos que as firmas não podem ser
iguais ou susceptíveis de erro ou confusão, no mesmo âmbito territorial de exclusividade.
Existem três possibilidades de erros: tomar-se uma firma por outra; tomar-se um comerciante
por outro; ou pensar-se erradamente que aquelas duas entidades têm especial relação.

Os titulares de firmas ou denominações validamente constituídas e registadas definitivamente,


artigo 35 n° 1 e 4, têm um direito exclusivo sobre elas em determinado âmbito geográfico, e
as sociedades comerciais têm direito ao uso exclusivo das suas firmas em todo o território
nacional, artigo 37 n° 2. Os comerciantes individuais que só adoptam como firma o seu nome
completo ou abreviado não têm direito ao uso exclusivo, artigos 38 n° 4 e 40 n° 3.
Aparentemente, o significado do princípio da novidade ou exclusividade em relação às
sociedades comerciais é algo diverso do enunciado no artigo 33 n° 1 RRNPC.

O artigo 10 n° 2 CSC diz que “quando a firma da sociedade for constituída exclusivamente
por nomes ou firmas de todos, algum ou alguns sócios, deve ser completamente distinta das
que já se acharem registadas”. No n° 3 diz que “a firma da sociedade constituída por
denominação particular ou por denominação e nome ou firma de sócio não pode ser idêntica à
firma registada de outra sociedade, ou por tal forma semelhante que possa induzir em erro”. A
divergência é só aparente.

Este regime não exige que as firmas não tenham um único elemento comum; o que exige é
que, ainda que tenham elementos em comum, estas firmas não sejam susceptíveis de induzir
em erro ou confusão. Este artigo deve ser lido do ponto de vista de um legislador razoável: se
levássemos este artigo à letra, as firmas não poderiam ter sequer letras em comum. Deve ser
lido à luz do artigo 33, na medida em que o que interessa é a susceptibilidade de induzir em
erro ou confusão o público médio.

Mas qual é o critério para saber se as firmas são confundíveis ou induzem em erro?

Dizemos que uma firma não é nova em relação a outra quando, atendendo à grafia das
palavras, ao efeito fonético das expressões, ao núcleo caracterizante ou à forma oficiosa dos
signos, o público médio as não consegue distinguir ou crê erroneamente referirem-se a
comerciantes distintos mas especialmente relacionados.

Este princípio vale apenas no âmbito de actividades concorrentes, ou vale também fora desse
âmbito, perante comerciantes que adoptem actividades não concorrentes?

No âmbito de actividades concorrentes, não há dúvida: aplica-se. No âmbito de actividades


não concorrentes parece razoável dizer que sim, existindo fortes argumentos a favor desta
tese. Ainda que sejam actividades completamente distintas, continua a ser possível o risco de
confusão ou erro, nomeadamente naquela terceira vertente, das relações especiais entre os
comerciantes em causa. Existe ainda um risco associável ao seu bom nome, se o comerciante
que regista em segundo lugar a firma for declarado insolvente. Também o artigo 33 n° 2 diz
que a proximidade é um dos critérios, não o único, para ponderar da susceptibilidade de
confusão. Isto sobretudo quando se trate de firmas oficiosas muito conhecidas, como SIC ou
SONAE.

PRINCÍPIO DA CAPACIDADE DISTINTIVA

As firmas e denominações, enquanto sinais distintivos de comerciantes, devem ter uma


função diferenciadora. Sob pena de incapacidade distintiva, as denominações não podem
bastar-se com designações genéricas ou vocábulos de uso comum para designar actividades
ou produtos, pois tais elementos, de per si não distintivos, devem ser associados a outros, de
modo a que o conjunto seja capaz de distinguir, ex artigo 33 n° 3 RRNPC.

Além de ter uma função diferenciadora, quer impedir um monopólio injustificado sobre estes
sinais, garantindo que não se procure obter um monopólio sobre sinais sem qualquer
justificação objectiva. Isto seria prejudicial para a economia em geral.
PRINCÍPIO DA UNIDADE

A doutrina dominante na Alemanha defende a possibilidade de os comerciantes individuais


adoptarem várias firmas quando tenham várias empresas, posição defendida em Portugal por
FERRER CORREIA.

Entretanto, foi consagrado o princípio da unidade da firma para os empresários individuais,


para as sociedades e para as restantes entidades colectivas que podem ser comerciantes,
artigos 38 n° 1 RRNPC, 9 n° 1 al. c) e 171 n° 1 CSC.

O princípio admite uma excepção: um comerciante individual que exerça actividades


mercantis no quadro de uma e.i.r.l. e fora dele terá duas firmas, artigo 40 n° 1 RRNPC.
PRINCÍPIO DA LICITUDE (RESIDUAL)

É um princípio residual, e significa um conjunto de requisitos. O que não for proibido pelos
outros princípios, poderá ser proibido por este, que resulta do artigo 32 n° 4 al. c), d) e e).

• Alteração de firmas e denominações

Respeitados os princípios acima anunciados, os comerciantes podem livremente alterar as


firmas ou denominações, artigo 56 n° 1 al. a) a f) RRNPC.

Há casos em que as têm de alterar: quando o comerciante individual muda de nome, artigo
38 n° 1 RRNPC; quando deixa de ser associado ou sócio pessoa cujo nome figure na firma ou
denominação de uma pessoa coletiva e não há o exigido consentimento, artigo 32 n° 5
RRNPC; a aquisição de firma implica alteração da firma originária, artigo 44 n° 1 e 4
RRNPC; alterando-se o objecto estatutário pode ter de alterar-se a respectiva firma ou
denominação, artigos 54 n° 2 RRNPC, 200 n° 3 e 275 n° 3 CSC.

• Transmissão

A firma distingue não apenas o comerciante, mas também a respectiva empresa: liga aquele a
esta. Enquanto “colector de clientela”, expressão recorrente na doutrina italiana, a firma pode
ter considerável valor económico, interessando ao titular poder realizar esse valor.

A transmissibilidade das firmas sem a transmissão das empresas dia azo a enganos no
público, obedecendo portanto a alguns requisitos.

Em primeiro lugar, a transmissão pode fazer-se a qualquer título, definitivo ou temporário,


mas tem de fazer-se com o estabelecimento comercial a que esteja ligada, artigo 44 n° 4
RRNPC.

De seguida, é necessário o acordo das partes por escrito. Quando o transmitente seja uma
sociedade cuja firma contenha nome do sócio, além da autorização daquele è ainda
indispensável a do titular do nome, artigo 44 n° 2.

– Finalmente, o adquirente deve aditar à sua própria firma menção de sucessão e a firma
adquirida, artigo 38 n° 2 RRNPC.
A solução legal vigente reforça o princípio da verdade, mas fica enfraquecida na prática a
transmissibilidade de firmas.

Para SOVERAL MARTINS, podem autonomizar-se duas questões: uma é a aquisição da firma;
outra é a possibilidade de o adquirente utilizar a firma. O artigo 44 n° 1 diz que o adquirente
pode adquirir a firma mas não a poder utilizar. Para tal, é necessária autorização. É necessária
a transmissão e a autorização para utilizar a firma. O regime do artigo 44 n° 2 refere-se
igualmente à autorização.

A transmissão da firma de comerciante individual pode dar-se também mortis causa,


possibilidade hoje explicitada no artigo 44 n° 3 RRNPC.

Apesar de o artigo 44 referir-se apenas à transmissão de firma, não há razões para que
semelhante regime se não aplique à transmissão de denominações de entes colectivos
comerciantes, sentido em que aponta o artigo 43 n° 1.

• Tutela do direito à firma ou à denominação. Firmas e denominações registadas e não


registadas

A protecção das firmas e denominações faz-se através de meios preventivos e repressivos.

Entre os meios preventivos, contam-se os certificados de admissibilidade de firmas e


denominações, emitidos pelo Registo Nacional das Pessoas Colectivas, artigos 45 n° 1 e
seguintes e 78 n° 1 RRNPC. Sem tais certificados emitidos com base no “ficheiro central de
pessoas colectivas”, artigo 2 RRNPC, que nos dá informações sobre as firmas que podem ser
adoptadas ou não, diversos actos não podem ser formalizados e registados.

Os processo de constituição de sociedades por quotas e anónimas têm regimes jurídicos


específicos, que prevê a existência de base de dados de firmas. Esta é, na verdade, uma base
de dados de expressões de fantasias que estão reservadas para o Estado. Isto evita esperar
pela emissão de certificados e a constituição de uma sociedade torna-se mais célere.

Em relação aos meios repressivos, as firmas e denominações que, apesar de registadas violem
o princípio da novidade ou exclusividade, podem ser objecto de acções judiciais de
declaração de nulidade, anulação ou revogação, e estão sujeitas a declaração pelo RNPC de
perda do direito ao respectivo uso, artigos 35 n° 4 e 60. O uso ilegal de firma ou denominação
confere aos interessados o direito de exigir a sua proibição, bem como a indemnização pelos
danos daí emergentes, sem prejuízo da correspondente acção criminal, se a ela houver lugar,
artigo 62 RRNPC.

Em certas circunstâncias, é admissível a protecção de firmas ainda não registadas. Um


sujeito que usa uma firma não registada e vê outro sujeito a usar a mesma firma, não
registada, pode reagir, artigo 317 CPI, concorrência desleal.

Outra via é a fornecida pela Convenção da União de Paris. O artigo 8 diz que o nome
comercial será protegido em todos os países da União de Paris, sem obrigação de registo. Isto
gera confusão: há pressupostos para esta protecção ser possível. Colocam-se várias questões:
é necessário que a firma tenha sido constituída validamente noutro país da União? Parece que
sim. Para merecer a tutela em Portugal, tem de ser utilizada em Portugal ou ser notoriamente
conhecida? Há jurisprudência e doutrina significativas nesta matéria. Um caso muito
conhecido foi o do El Corte Inglés, quando ainda não tinha actividade em Portugal: este
merecia a tutela do artigo 8 em Portugal, não estando cá registado? Deve entender-se que
sim.

• Extinção do direito à firma ou denominação

A cessação das atividades mercantis não implica a extinção dos respectivos sinais.

Se a actividade comercial cessa porque o comerciante falece, extingue-se logo a firma no


caso de ele não ter deixado estabelecimento comercial. Caso tenha deixado empresa
mercantil temos três hipóteses. O estabelecimento comercial é transmitido, mas sem a firma
do autor da sucessão: ela extingue-se. O comerciante transmite o estabelecimento com a
firma: ela extingue-se na medida em que se integra na firma do adquirente, havendo nova
firma constituída pela combinação das duas, artigo 44 n° 3. O estabelecimento não é
transmitido porque é liquidado: a firma extingue-se.

Se a actividade mercantil cessa porque assim o comerciante individual decidir, temos várias
hipóteses: se a pessoa tinha o estabelecimento e transmite-o com a firma, ela extingue-se
porque incorporada na nova firma do adquirente; se não tinha estabelecimento, ou tinha mas
liquida-o ou transmite-o sem firma, o direito à firma perdura a menos que o RNPC declare a
sua perda, artigo 61 n° 1 al. a), b) e 2 RRNPC.

Cessando a actividade de sociedades comerciais ou de outras entidades colectivas-


comerciantes sem que as mesmas se extingam, as respectivas firmas ou denominações
extinguem-se quando se transmitam com os estabelecimentos. Caso a transmissão não se dê
aqueles sinais podem perdurar. Se os sujeitos se extinguem, extinguem-se também as firmas
ou denominações.

Escrituração mercantil e prestação de contas

• Noção

A escrituração comercial consiste no registo ordenado e sistemático em livros e documentos


de facto relativos à actividade mercantil dos comerciantes, tendo em vista a informação deles
e de outros sujeitos.

A contabilidade não esgota a escrituração, que compreende ainda a documentação de


correspondência expedida pelo comerciante e as actas das reuniões de órgãos de sociedades e
outras entidades colectivas.

• Organização

Por mais de um século o CCom prescreveu a obrigatoriedade de quatro livros de escrituração


para qualquer comerciante: livro do inventário e balanços, diário, razão, copiador.

Todos esses livros deixaram de ser obrigatórios com o Decreto-Lei 76-A/2006. Agora, nos
termos do artigo 30 CCom, o comerciante pode escolher o modo de organização da
escrituração mercantil, bem como o seu suporte físico, sem prejuízo do disposto no artigo 31,
que obriga as sociedades comerciais a possuir livros para actas e prevê algumas formalidades
extrínsecas.

O comerciante pode determinar o número e a sistematização dos livros e pastas documentais


par a escrituração, bem como o modo mais analítico ou mais sintético e espaçado dos registos
dos movimentos patrimoniais.

Mas isto não significa o puro arbítrio do comerciante: impõe-se verdade e clareza nos registos
do que entra, do que sai e do que permanece no património mercantil. O novo artigo 29
declara que a escrituração será efectuada de acordo com a lei, e o artigo 41 confirma a
existência de organização devida e indevida, sendo portanto a liberdade de escrituração
limitada.

Fora do CCom há lei regulando a escrituração mercantil, por exemplo a lei fiscal: ex artigo
123 CIRC diversos comerciantes devem dispor de contabilidade organizada de acordo com a
normalização contabilística.

Os planos oficiais de contabilidade, o geral e os setoriais, inscrevem-se no movimento da


“normalização contabilística”, iniciado nos EUA nos anos ’30 do século passado.

• O carácter (não) secreto

A afirmação crescente das necessidades de informação de sujeitos diversos, privados e


públicos, tem vindo a acentuar o carácter não secreto da escrituração mercantil.

O Decreto-Lei 76-A/2006 veio alterar o artigo 41, que estabelecia o carácter secreto dos
livros de escrituração, agora afirmando a possibilidade de as autoridades analisarem se o
comerciante organiza ou não devidamente a sua escrituração mercantil.

O artigo 42 permite a exibição judicial por inteiro em questões de sucessão universal,


comunhão, sociedade, e insolvência. Por força do artigo 43 n° 1 CCom pode proceder-se a
exame judicial limitado nos livros e documentos dos comerciantes, a requerimento das partes
ou oficiosamente quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na
questão em que tal apresentação for exigida.

Fora do CCom várias normas prevêem a hipótese de a escrita de comerciantes e não-


comerciantes ser examinada ou publicitada, no domínio dos impostos, do direito de defesa da
concorrência, do direito de informação dos sócios. Os documentos de prestação de contas na
maioria das sociedades devem ser depositados nas conservatórias de registo comercial e
publicitados.

Inscrições no registo comercial

• Considerações gerais

O registo comercial publicita certos factos respeitantes a determinados sujeitos, tendo em


vista a segurança do tráfico ou comércio jurídico, artigo 1 Código do Registo Comercial. Os
factos e entidades sujeitos a registo são previstos na lei por força do princípio da tipicidade,
artigos 1 e 10 al. f). Nos termos do artigo 18 n° 3 CCom, devem os comerciantes fazer
inscrever no registo comercial os actos a ele sujeitos, mas por força das normas do CRCom
tal dever incumbe também a sujeitos que não são ou podem não ser comerciantes.

Nem todos os factos previstos no CRCom têm de ser registados, sujeitos a registo obrigatório
só são os mencionados no artigo 15.

Depois da reforma de 2006 há duas formas de registo: o registo por transcrição e o registo
por depósito, artigo 53-A CRCom. O primeiro consiste na extractação dos elementos que
definem a situação jurídica das entidades sujeitas a registo constantes dos documentos
apresentados. O segundo consiste no mero arquivamento dos documentos que titulam factos
sujeitos a registo.

O registo está sujeito ao princípio da instância, sendo efetuado a pedido dos interessados,
excepção feita nos casos de oficiosidade previstos na lei, artigo 28 n° 1 CRCom. A
viabilidade do pedido de registo depende do respeito do princípio da legalidade, artigo 47, e
as decisões podem ser impugnadas hierárquica e contenciosamente nos termos dos artigos
101 e seguintes.

O carácter público do registo revela-se no facto de qualquer pessoa poder pedir certidões dos
actos de registo e dos documentos arquivados, artigo 73 n° 1, sendo que alguns actos são
obrigatoriamente publicados, artigos 70 e seguintes.

• Efeitos do registo

O registo por transcrição definitivo constitui presunção de que existe a situação jurídica nos
termos em que é definida, artigo 11 CRCom, presunções ilidíveis ex artigo 350 CC.

Efeito central do registo é ser ele requisito de eficácia dos factos em relação a terceiros,
sendo que os factos sujeitos a registo mas não registados são eficazes entre as partes ou seus
herdeiros, artigo 13 n° 1 CRCom. Terceiro para efeitos do registo comercial é quem não seja
parte no facto sujeito a registo, seu herdeiro ou representante, artigos 13 n° 1 e 14 n° 3
CRCom.

Há casos em que o registo é constitutivo, é requisito de eficácia absoluta, não produzindo o


facto não registado efeitos quer em relação a terceiros quer em relação às próprias partes.

Outro é o efeito sanante, artigo 42 CSC. Relaciona-se com o acto constitutivo, que pode
sofrer de causas de invalidade. O artigo 42 vem dizer que, para as sociedades por quotas,
anónimas e em comandita por acções, depois de efectuado o registo definitivo, o contrato só
pode se declarado nulo por algum dos vícios previstos. Ou seja, com o registo, o acto só pode
ser declarado nulo por algum dos referidos nulos. Entende-se que também estão afectadas as
causas de anulabilidade. Assim, o registo sana causas de nulidade não previstas e causas de
anulabilidade.

Responsabilidade por dívidas comerciais contraídas por cônjuge comerciante

São da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas por qualquer deles no


exercício do comércio, salvo se provar que não foram contraídas em proveito comum do
casal, artigo 1691 n° 1 al. d) CC.
Por tais dívidas respondem os bens comuns do casal e, na falta ou insuficiência deles,
solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges, artigo 1695 n° 1 CC.

É um regime que tutela os interesses do comércio, porque os credores daqueles que exercem
o comércio não têm de provar que as dívidas contraídas nesse exercício o forma em proveito
comum do casal. Por outro lado, a garantia patrimonial dos credores aumenta, uma vez que
mais bens respondem pelas dívidas: isto promove a actividade mercantil, uma vez que os
comerciantes negociam com mais confiança.

O cônjuges podem sempre demonstrar que esta dívida, esta responsabilidade, não foi
contraída para benefício do casal, para o proveito comum. Porém, esta é um prova difícil. Só
em circunstâncias residuais é que esta prova pode ser feita: o mais provável é que o exercício
do comércio e a contracção de dívidas visem o proveito da família em que está integrado o
cônjuge comerciante autor da dívida. O proveito do casal é um proveito não só económico,
mas de qualquer outra ordem, por exemplo, intelectual, e afere-se tendo em conta o resultado,
a satisfação das necessidades familiares.

Decorre do artigo 1691 n° 1 al. d) CC que os credores, para irem buscar a garantia
patrimonial conjunta, teriam de provar que as dívidas foram contraídas no exercício do
comércio. Porém, isto não tem de ser assim: este artigo tem de ser articulado com o artigo 15
CCom, que diz que as dívidas comerciais do cônjuge comerciante presumem-se contraídas no
exercício do comércio, ou seja, temos uma presunção de uma dívida ser contraída no
exercício do comércio. Esta presunção permite preencher o artigo 1691 n° 1 al. d) do CC.

O credor não tem de provar que a dívida resultou do exercício do comércio concreto daquele
cônjuge, desde que prove que a dívida resulte de um acto de comércio e que o cônjuge é
comerciante.

Com isto está a reforçar-se ainda mais a tutela dos credores, uma vez que esta é uma prova
mais fácil. É mais fácil provar que um acto é comercial do que provar que esse acto foi
praticado no exercício do comércio do seu autor. Por exemplo, esta presunção do artigo 15 é
aplicável a dívidas cambiárias, resultantes da subscrição de letras e livranças, que são actos
de comércio objectivos e formais. Não há conexão necessária destes actos com o exercício do
comércio. Podemos ter uma dívida comercial que não está relacionada com o exercício do
comércio, mas ainda assim preencher a presunção e fazer aplicar o artigo 1691 CC.

Significa isto que o cônjuge não pode depois obstar à presunção?

Pode, porque esta é uma presunção ilidível, provando que a dívida, apesar de comercial, não
foi contraída no exercício do comércio do comerciante devedor, exploração empresarial
daquele cônjuge comerciante. Ao afastar a presunção, fica afastada a aplicação do artigo 1691
n° 1 al. d) CC e transforma a dívida numa dívida própria.
DAS EMPRESAS

As concepções metajurídicas e pré-jurídicas de empresa perante as concepções jurídicas

Para resolver o problema da determinação da empresa em sentido jurídico começam muitos


autores por definições da empresa em sentido meta ou pré-jurídico, da empresa como
“produto da vida” revelado pela análise económica ou sociológica. Outros já a esse nível
tentam colher o fenómeno jurídico-empresarial. COUTINHO DE ABREU rejeita este método,
porque não se traduz em algo de significativo no posterior tratamento jurídico do problema. O
direito não recebe inteiramente a hipotética definição ou significado mais correntes do signo
“empresa”, sendo reconhecida a independência da economia e do direito, como do social e do
jurídico. Inseridas no direito, as expressões correntes mudam-se em expressões jurídicas, cujo
sentido há-de ser apreendido de acordo com o respectivo contexto problemático e
sistemático-funcional.

É preferível partir dos dados jurídicos, do próprio direito, constituído pela legislação, pela
jurisprudência, pela doutrina e pelos costumes, só assim será possível delimitar as empresas
comerciais das não comerciais, bem como distingui-las consoante os respectivos sujeitos, e
ainda averiguar o que há de comum as diversas espécies empresariais.

Contudo, isto não significa que se deva atender exclusivamente às informações e indícios
jurídicos, pois o direito refere sempre a empresa a algo que existe na realidade empírica,
sendo também preciso o recurso aos dados metajurídicos, sobretudo quando no direito não
houver definições formalizadas de empresa.

Concepções jurídicas de empresa

Terminologia

Tem sido posta a questão da admissibilidade do uso sinonímico das palavras “empresa” e
“estabelecimento”. Antigamente admitia-se este uso, sendo que nos tempos mais recentes
parece dominar a posição contrária: para COUTINHO DE ABREU é legítima a utilização
sinonímica dos dois vocábulos, quer tomando em conta o espaço jurídico-mercantil, quer
outros domínios, e mesmo as leis não se opõem a tal equipolência.

“Estabelecimento” denota dominantemente algo objectivo, um instrumento ou estrutura


produtiva de um sujeito, e objecto de relações jurídicas, mas também empresa pode significar
o mesmo: “tomada, total ou parcial, de empresas agrícolas mediante contratos de
arrendamento ou de quaisquer acordos que impliquem o exercício da posse e o início da
exploração do investidor”.

“Empresa” vem sendo empregue em grande escala para significar sujeito. Por exemplo, no
artigo 38 n° 4 CRP o Estado impõe “o princípio da especialidade das empresas titulares de
órgãos de informação geral”. Mas também estabelecimento pode significar o mesmo, “a
criação, organização e funcionamento de estabelecimentos bancários com a faculdade de
emitir títulos fiduciários”, artigo 364 CCom.

A linguagem corrente também não se opõe à equivalência, preferindo COUTINHO DE ABREU


de qualquer maneira o uso de empresa, por ter um significado mais amplo.
Principais acepções de empresa

No direito, as empresas revelam-se hoje em duas acepções principais: em sentido subjectivo,


de empresas como sujeitos jurídicos que exercem uma actividade económica; e em sentido
objectivo, de empresas como instrumentos ou estruturas produtivo-económicos objectos de
direitos e de negócios. Tais acepções não se equivalem ou correspondem de modo a poder
formar-se um conceito unitário de empresa.

As empresas em sentido subjectivo evidenciam-se principalmente no direito da defesa da


concorrência.

No âmbito do direito europeu da concorrência são empresas os sujeitos jurídicos que


exercem uma actividade económica, e têm a possibilidade de restringir a concorrência e
afectar as trocas comerciais entre os Estados-membros, ou a possibilidade de explorar de
forma abusiva uma posição dominante, com afectação do comércio intracomunitário.

As empresas aparecem aqui em sentido subjectivo, como sujeitos de direitos e deveres: só os


sujeitos jurídicos se comprometem a práticas concertadas, a celebrar acordos e contratos.

Estes sujeitos jurídico, para serem empresas, têm de exercer uma actividade económica, que
não tem necessariamente de ser dirigida à obtenção de lucros, nem tem de ser suportada por
uma organização de trabalho dependente ou de outros factores produtivos.

A noção de empresa vigente no direito comunitário da concorrência influenciou bastante a


correspondente noção portuguesa de empresa, tendo o legislador português prescrito uma
noção de empresa no artigo 2 da Lei 18/2003 e no artigo 3 da Lei 19/2012.

Nesta última, “considera-se empresa qualquer entidade que exerça uma actividade económica
que consista na oferta de bens ou serviços num determinado mercado, independentemente do
seu estatuto jurídico e do seu modo de financiamento”.

As empresas são sujeitos que exercem “actividade económica que consista na oferta de bens
ou serviços num determinado mercado”.

COUTINHO DE ABREU critica amplamente esta definição: não é actividade económica


consistente na oferta de bens em um determinado a actividade de prestação de serviços
financiada por via fiscal; também aqui a noção de empresa é funcional, isto é, determinada
pelas finalidades do direito da concorrência.

Ainda, as empresas do sector privado podem ser entidades colectivas, e pessoas humanas ou
singulares, que incluem comerciantes, agricultores, cientistas que comercializem as suas
invenções. Algumas destas pessoas, “empresas”, não exploram empresas em sentido
objectivo, as actividade que desenvolvem são essencialmente pessoais.

Porém, predominante na lei é o conceito de empresa em sentido objectivo, portanto é com


este que nos vamos preocupar.
As empresas em sentido objectivo

Espécies empresariais quando ao objecto

• Empresas comerciais
O OBJECTO COMERCIAL

São comerciais as empresas cujo objecto se traduza na realização de actos ou actividades


objectivamente mercantis: actividades de interposição nas trocas, actividades industrial-
transformadoras, agenciamentos de negócios ou exploração de espectáculos públicos entre
outros.

São não comerciais as empresas cujo objecto de exploração se traduz na realização de


actividades económicas, mas não comerciais.
A EMPRESA COMO BEM JURÍDICO COMPLEXO (NATUREZA JURÍDICA) E OS “ELEMENTOS” OU “MEIOS
EMPRESARIAIS”

Diversos negócios incidindo sobre o estabelecimento comercial são reconhecidos pelas


ordens jurídicas modernas assim, além de negociável, o estabelecimento é um valor ou bem
económico patrimonial, transpessoal, duradouro, reconhecível e irredutível.

A empresa ou estabelecimento, é um bem complexo, feito por vários bens ou elementos, que
variam em função do tipo ou forma de empresa. Variam conforme os tipos ou forma de
estabelecimento, de empresa para empresa, e ainda dentro dum mesmo grupo tipológico ou
dentro do mesmo estabelecimento.

Podemos no entanto apontar as principais categorias: coisas corpóreas, como os prédios ou


as máquinas; coisas incorpóreas, isto é, as invenções patenteadas ou as marcas; os bens não
coisificáveis, as prestações de trabalho e as prestações de facto com valor económico ou
patrimonial, como o know-how.

Delimitamos portanto os elementos ou meios da empresa aos “factores produtivos” e a outros


bens que primordialmente individualizam as empresas, mas não é o pensamento geral.
Muitos autores entendem que as empresas são compostas pelas situações e relações de facto
com valor económico, por coisas, direitos e obrigações. Não parece que as citadas relações e
situações de facto com valor económico devam ser qualificadas de elementos ou meios
empresariais: a empresa exige organização, mas esta não é elemento componente da empresa,
é sim um modo de ser dos meios empresariais.

A discussão tem versado principalmente sobre a clientela, o círculo de pessoas que com essa
empresa contactam. em França a opinião dominante vê-a como elemento; em Itália é
considerada uma simples qualidade da azienda; na Alemanha é vista como elemento dela.

COUTINHO DE ABREU entende que a clientela não é elemento constituinte da empresa, por
não ser um instrumento estrutural-funcionalmente inserido na organização produtiva que a
empresa é. Mas também não é uma mera qualidade, pois existe uma ligação entre empresa e
clientela, que não pode subsistir durante muito tempo sem ela.
Quanto às obrigações, na verdade, é praticamente indiferente dizer elementos empresariais
uma máquina ou o direito de propriedade sobre ela, mas já não é o mesmo dizer elementos
empresariais a generalidade dos contratos, créditos e débitos. Os créditos de um empresário
ou sujeito de empresa ligados à exploração empresarial mas cujos objectos não sejam meios
do estabelecimento não devem considerar-se elementos empresariais. O mesmo se diga dos
contratos e dos débitos.

Como elemento empresarial é às vezes referido o dinheiro, não porque seja um bem de todo
neutro, mas por ser um bem exterior ao processo produtivo e à respectiva estrutura
empresarial sustentado. Pode contudo ser elemento de certas empresas: das empresas
bancárias e de seguros.

Os bens de que o estabelecimento é feito não são meramente agregados ou somados, estão
articulados, estruturados estavelmente, com vista à consecução de um fim.

O estabelecimento é uma organização, é um sistema, um complexo de elementos em


interacção. Além disso é um sistema aberto, em intercâmbio com o mercado, de que resultam
as relações de facto de valor económico com clientes, fornecedores e financiadores.

O estabelecimento manifesta-se como sistema auto-suficiente e autónomo, um ente com


entidade própria, como tal reconhecido no mundo económico.
SITUAÇÕES E ZONAS DE FRONTEIRA ENTRE EMPRESA E NÃO EMPRESA

É estabelecimento a organização produtiva apta a funcionar, mas que ainda não entrou em
funcionamento?

Segundo alguns autores a razão determinante da protecção jurídica do estabelecimento está


na tutela do seu aviamento. Sendo a azienda um complexo de bens organizado pelo
empresário para o exercício da empresa, esta destinação só pode rigorosamente determinada
com o início de uma autêntica actividade de impresa.

Resposta diversa foi a dada pela doutrina portuguesa, com que COUTINHO DE ABREU
concorda. Embora não funcionando ainda, um complexo de bens de produção organizados
pode ser considerado estabelecimento comercial. Se à partida já se revelar apto para realizar
um fim económico-produtivo jurídico-comercialmente qualificado, existe já um bem jurídico
novo, uma organização não redutível a bens meramente agregados. O direito não pode deixar
de vê-lo como verdadeiro estabelecimento.

Havendo já estabelecimento, há já também aviamento, e a força ou qualidade em que o


aviamento objectivo ou real se traduz deriva logo da organização dos elementos do
estabelecimento, não sendo necessária a existência de clientela efectiva, que é apenas uma
das manifestações do aviamento do estabelecimento.

É possível considerar estabelecimento comercial, como tal negociável, um complexo de bens


produtivos que ainda não entrou em funcionamento e que carece para isso de um ou mais
elementos?

Antes de funcionar, um complexo daquele tipo não possui ainda “valores de exploração”: não
foi tecida e rede de clientes e fornecedores, e por outro lado faltam-lhe bens sem os quais não
funcionará. Neste caso não existe estabelecimento, pois ele ainda está em formação.
COUTINHO DE ABREU não concorda com esta posição, pois já estamos perante um conjunto
de bens heterogéneos e complementares devidamente organizados com vista à consecução de
determinado fim. Esses elementos organizados já conseguem projectar no público a imagem
de um bem novo, a qualificar como estabelecimento comercial.

Em casos destes, qual o mínimo de bens e valores necessário para identificar a empresa?

Não é possível enumerar em abstracto os elementos do âmbito mínimo do estabelecimento


enquanto objecto negociável. Em termos gerais, esse âmbito há-de envolver os bens que,
combinados, projectem no público a imagem de uma nova organização-unidade com
potencial para actuar autonomamente no mundo da produção para a troca.

Há muitos casos de negociação de bens qualificados como estabelecimento pelas partes,


apesar de convencionada a exclusão de elementos que dos estabelecimentos faziam parte.

Significa isso não serem verdadeiras empresas os objectos de tais negócios?

Não é possível responder a priori. A própria lei admite expressamente a transmissão de


estabelecimentos desfalcados de um ou outro elemento. Mesmo assim, o conjunto dos bens
transmitidos pode ser suficiente para continuar-se em presença da organização produtiva
publicamente identificada como sendo a empresa X. Ainda, porque já funcionou a empresa
depende agora menos dos seus elementos, dos valores ostensivos, mas continua a depender
deles, o “âmbito mínimo de entrega” não pode ser postergado, não podem ser excluídos os
bens necessários para exprimir a permanência do sistema-todo diferente da soma das partes.

Um incêndio provoca a destruição total dos elementos materiais de um estabelecimento, este


subsiste?

Apesar de a actividade empresarial ter ficado suspensa, os elementos restantes continuam na


esfera patrimonial do sujeito, e o direito tutela essa continuação. Podem por exemplo restar
patentes, marcas, firmas ou contratos de trabalho,
SECÇÕES E SUCURSAIS DE EMPRESA

Um estabelecimento comercial pode integrar várias secções, mais ou menos individualizadas,


divisões ou repartições necessárias ou úteis para a realização da actividade empresarial.
Típico delas é o facto de em geral não poderem sobreviver ao ocaso da empresa.

Entre a simples secção e o estabelecimento está a sucursal, caracteriza pela dependência em


relação à empresa e, por outro lado, por uma certa independência. Dependente porque nela se
efectuam apenas negócios integrantes do objecto da empresa a que está sujeita a sua direcção.
Goza de certa independência porque, além de separada especialmente do estabelecimento
principal, possui contabilidade relativamente separada, personalidade judiciária e, quem está
à sua frente, tem certa liberdade de gestão, e competência para celebrar os negócios em que o
objecto da empresa se traduz.

Porque a sucursal goza desta relativa autonomia, pode deixar de se identificar com o todo
empresarial de que faz parte e transformar-se em autónomo estabelecimento comercial,
sobretudo quando seja alienada separadamente.
UNIDADE JURÍDICA

O estabelecimento comercial é uma unidade jurídica, um bem jurídico a se stante?

Os autores portugueses têm sustentado ser o estabelecimento mercantil uma unidade jurídica,
existindo várias normas em apoio desta tese. O actual artigo 1112 CC permite a transmissão
da posição de arrendatário sem dependência de autorização do senhorio em caso de trespasse
de estabelecimento, e diz não haver trespasse quando a transmissão não seja acompanhada de
transferência, em conjunto, das instalações. Retira-se depois de outras normas do CPI que a
transmissão do estabelecimento envolve a transmissão dos respectivos nome e insígnia,
marca e logótipo. É o facto de o estabelecimento ser objecto unitário que explica e justifica
que a sua transferência importe a dos citados bens. Outras normas, ainda, a considerarem o
estabelecimento “universalidade” consagrariam expressamente a tese da unidade jurídica.

Podemos portanto considerar o estabelecimento mercantil uma unidade jurídica. Mas a


resposta não pode advir só destes apoios normativos: a transferência dos elementos em
conjunto referida no artigo 1112 CC não significa necessariamente a transferência de um
conjunto unificado; por sua vez não é decisivo qualificarem algumas normas o
estabelecimento com universalidade. De facto, essas normas não a definem, e a doutrina está
longe de ser unânime mas, nos termos do artigo 206 n° 1 CC “é havida como coisa composta,
ou universalidade de facto, a pluralidade de coisas móveis que, pertencendo à mesma pessoa,
têm um destino unitário”.

Uma universalidade de facto será assim um objecto unitário. Só que o estabelecimento


comercial não é uma universalidade de facto pois ele não compreende, em regra, apenas
coisas móveis e homogéneas pertencendo à mesma pessoa. Alguma doutrina entende seja
uma universalidade de direito, mas não parece que o estabelecimento caiba nesta definição:
conjunto de bens que não desempenham qualquer função económica própria, mas que a lei
unifica para certos efeitos jurídicos.

Entretanto, chegou um apoio normativo da tese da unidade jurídica do estabelecimento


mercantil, pois o CPC contém um artigo sobre a “penhora de estabelecimento comercial”.

Ligado à questão da unidade jurídica está o problema de saber se o estabelecimento


comercial é uma coisa e, nomeadamente, uma coisa que possa ser objecto do direito de
propriedade e de outros direitos reais. Dado ser coisa “tudo aquilo que pode ser objecto de
relações jurídicas”, artigo 202 n° 1 CC, o estabelecimento comercial é uma coisa móvel.

No entanto, o artigo 1302 CC estabelece que só as coisas corpóreas podem ser objecto do
direito de propriedade, e parece mais correcto identificar o estabelecimento como coisa
imaterial do que como uma coisa corpórea.

O estabelecimento, integre ou não bens materiais, não é igual à soma dos seus elementos, daí
concebe-lo como uma coisa incorpórea complexa. Além de não estar verdade a hipótese no
próprio contexto do CC, certas coisas incorpóreas serem objecto de propriedade, o certo é
que diversas normas o supõem, ou afirmam mesmo, poder o estabelecimento ser objecto do
direito de propriedade: artigos 94, 1112, 1682-a n° 1 al. b), 1889 n° 1 al. c) entre outras.
• O EIRL como estabelecimento comercial especial

Os bens de um normal estabelecimento comercial pertencente a uma pessoa singular


respondem quer pelas dívidas contraídas na exploração desse estabelecimento quer por
quaisquer outras do respectivo titular. Pelas dívidas resultantes da exploração dessa empresa
tanto respondem os bens a ela afectados como outros bens do empresário.

Para possibilitar um regime diferente, o legislador criou, através do Decreto-Lei 248/86 de 25


de Agosto, o estabelecimento individual de responsabilidade limitada.

O e.i.r.l. é um património autónomo ou separado: os bens afectados ao estabelecimento


respondem apenas pelas dívidas contraídas no campo do desenvolvimento das actividades de
que ele é instrumento, artigo 10 n° 1, e por estas dívidas respondem somente aqueles bens,
artigo 11 n° 1.

O facto de o e.i.r.l. ser um património autónomo separado implica que ele não deva ser
considerado verdadeiro estabelecimento comercial?

O património separado tende a consubstanciar-se no estabelecimento, este será


simultaneamente aquele e vice-versa, e o e.i.r.l. será um estabelecimento comercial
propriamente dito, com a especificidade de estar separado do restante património do titular.

• Empresas não comerciais

A empresa não denota necessariamente comercialidade: esta é compatível com empresa e não
empresa, e também a não comercialidade é compatível com a empresa e não empresa.

– Tem-se questionado serem ou não comerciais as empresas da indústria extractiva, as de


exploração dos “recursos geológicos”. Aparentemente, o artigo 230 nem outra norma do
CCom fazem menção a estas empresas, e vale o mesmo para a legislação posterior. Quanto à
doutrina, uns dizem que tais empresas não são comerciais, pois não estão previstas em lei
mercantil, e outros afirmam o contrário.

Na opinião de COUTINHO DE ABREU, também não podem ser qualificadas desse modo por
analogia legis, nem olhando para as empresas piscatórias, cuja norma é excepcional; não
parece legítimo recorrer à analogia iuris, não se vendo disposições legais admitindo no
domínio comercial manifestações diversas de actividades industrial-extractivas. Parece
portanto existir uma verdadeira lacuna, e são, pois, empresas civis, porém, de iure condendo,
deveriam ser empresas comerciais.

– Quanto às empresas agrícolas, o artigo 230 § 1 CCom diz que “não haverá como
compreendido no n° 1 o proprietário ou explorador rural que apenas fabrica ou manufactura
os produtos do terreno que agriculta acessoriamente à sua exploração agrícola. Uma
organização industrial-transformadora de um produtor agrícola não é empresa comercial
quando se destina exclusivamente à transformação de produtos de terras por aquele
agricultadas, e essa transformação é acessória da respectiva produção agrícola.

Estas empresas não são comerciais, como resulta do facto de na legislação mercantil elas não
se acharem especialmente reguladas.
Mas quais empresas agrícolas? Tão-só as que têm por objecto uma actividade agrícola em
sentido estrito, tradicional?

Tendo em conta alguns dados legislativos, as empresas agrícolas abrangem também as


silvícolas e pecuárias, que também não são comerciais. Olhando para os dados legislativos e
as noções europeias deveriam ser agrícolas as empresas para a cultura de plantas e criação de
animais, mas estas são na realidade civis: a legislação mercantil não qualifica de comerciais
aquelas actividades

– Do artigo 230 § 1 CCom consta a noção de artesão, mas apresenta fronteiras imprecisas.
Podemos dizer que ele é um produtor qualificado que, podendo embora servir-se de
máquinas, utiliza prevalecentemente o seu trabalho manual e, como instrumentos,
ferramentas.

Pode a actividade artesanal ser organizada empresarialmente, é legítimo falar de empresas


artesanais?

Há autores que, com base no artigo 230 § 1 CCOm respondem negativamente, todavia a
norma não diz que não é empresa o artista, o industrial, diz que não é “empresa comercial”.
Se utilizar a maquinaria de forma predominante, temos uma actividade transformadora
comercial e uma empresa comercial.

O mais difícil é estabelecer a fronteira: tem de haver predomínio do trabalho manual e não da
maquinaria.

– Pode dizer-se que as profissões liberais se traduzem no exercício habitual e autónomo de


actividades primordialmente intelectuais, susceptíveis de regulamentação e controlo próprios.
São profissionais liberais os advogados, médicos, engenheiros, e, em regra, os seus escritórios
e consultórios não constituem empresas. O conjunto dos instrumentos de trabalho não tema
autonomia funcional nem identidade própria, não mantém idêntica eficiência na titularidade
de terceiro.

Verifica-se uma relativa despersonalização das actividades liberais quando elas são exercidas
no quadro de sociedades de profissionais liberais, não obstante, não devem ser considerados
empresas.

• Conceito geral de empresa em sentido objectivo: análise das suas notas e recusa da menção
ao escopo lucrativo

Dos pontos atrás mencionados, podemos concluir que a empresa ou estabelecimento


comercial em sentido objectivo é uma unidade jurídica fundada em organização de meios
que constitui um instrumento de exercício relativamente estável e autónomo de uma
actividade comercial.

O conceito de empresa apresentado não faz qualquer menção ao lucro ou ao escopo lucrativo.
Se as empresas são normalmente instrumentos para o conseguimentos de lucros, o intuito
lucrativo não é essencial à definição de diversas espécies empresariais, por exemplo as
empresas públicas, as empresas cooperativas, ou as associações e fundações.
As empresas e os seus sujeitos jurídicos

• Empresas do sector público

São as empresas públicas do Estado, as empresas pública das regiões autónomas, as empresas
locais, e os serviços municipalizados.

O “SECTOR IMPRESARIAL ESTADUAL”: ANÁLISE DO DECRETO-LEI N° 133/2013

Durante a vigência do Decreto-Lei 260/76 de 8 de Abril, o conceito de empresa pública


estadual no direito português abrangia somente entidades de natureza institucional. Deixou
de ser assim com o Decreto-Lei 558/99 de 17 de Dezembro, que estabelece o regime do
sector empresarial do Estado, incluindo as bases gerais do estatuto das empresas públicas do
Estado, EPE. A última fase da evolução legislativa das empresas públicas consta do Decreto-
Lei 133/2013, sobre o Regime do Sector Público Empresarial, RSPE.

Inspirado no direito europeu, o conceito de empresa pública compreende agora duas espécies
empresariais: certas sociedades, e as entidades pública empresariais. Nos termos do artigo 3
RSEE consideram-se empresas públicas as sociedades constituídas nos termos da lei
comercial, nas quais o Estado ou outras entidades públicas estaduais possam exercer uma
influência dominante em virtude da detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto; ou
do direito de designar ou de destinar a maioria dos membros dos órgãos de administração ou
de fiscalização.

Na opinião de COUTINHO DE ABREU, a definição apresenta pelo menos duas falhas. As


sociedades-empresas públicas não têm de ser constituídas nos termos da lei comercial, pois
podem ser constituídas por decreto-lei ou lei: há que interpretar extensivamente a norma. Em
segundo lugar, a possibilidade do exercício da influência dominante pode ser razoável com
respeito ao conselho geral e de supervisão das sociedades anónimas com estrutura
organizatória de tipo germânico, artigos 278 n° 1 al. c) e 434 e seguintes CSC, mas não é
razoável relativamente ao conselho fiscal das sociedades por quotas, anónimas ou em
comandita por acções, artigos 262, 413 e seguintes, 446 e 478 CSC: há que interpretar
restritivamente o enunciado.

Sendo sociedades natural è que a sua organização e funcionamento sejam regidos pelo direito
privado, artigos 7 n° 1 e 16 RSEE, no entanto, porque são empresas públicas, dominadas por
entidades públicas e visando finalidades públicas, naturais são algumas especialidades e
excepções. Assim, o RSEE estabelece alguma disciplina que se afasta do regime geral das
sociedades.

Além das sociedades comerciais dominadas pelo Estado, são empresas públicas as “entidades
públicas empresariais”, EPE: são pessoas colectivas de direito público criadas pelo Estado
com capitais públicos, destinados à formação de organizações de meios produtoras de bens
para a troca, com denominação parcialmente taxativo-exclusiva e que, sob superintendência
e tutela estaduais, visam prosseguir finalidades públicas.

São pois pessoas jurídicas de direito público com as correspondentes capacidade de gozo de
direitos e autonomia financeira e patrimonial. A criação de EPE é feita por decreto-lei, e o
capital inicial é atribuído pelo Estado para responder às necessidades permanentes da
empresa e pode ser aumentado ou reduzido nos termos previstos nos estatutos.
A denominação deve integrar a expressão “Entidade Pública Empresarial” ou as iniciais
“E.P.E.”, artigo 24 n° 2. A intervenção do Estado na vida delas é mais intensa do que nas
sociedades-empresas públicas, artigos 11 a 14. O Estado, através do Governo, nomeia os
membros dos órgãos de administração das EPE, exerce sobre elas tutela económica e
financeira, define os objectivos e traça o quadro geral de actuação das mesmas, artigos 15 e
27 n° 4 do RSEE e 13 e 14 do EGP.

No entanto, porque têm natureza empresarial, as EPE são regidas em boa medida pelo direito
privado e por direito aplicável às entidades privadas empresariais. Estão sujeitas a tributação
directa e indirecta, nos termos gerais, artigo 7 n° 2, e estão também sujeitas ao registo
comercial nos termos gerais, com as adaptações que se revelem necessárias, artigo 28.

As sociedades dominadas pelo Estado ou outras entidades públicas estaduais e as EPE,


pessoas jurídicas, são “empresas públicas”. Por conseguinte aparecem primariamente em
sentido subjectivo, como sujeitos jurídicos. Mas estes fenómenos empresariais não se
reduzem à dimensão subjectiva. Por norma, eles são simultaneamente instrumentos
objectivos de sujeitos, são organizações de meios produtivos, empresas em sentido
subjectivo.

Porém, as duas apontadas dimensões de empresas públicas não têm de coexistir sempre, nem
implicam necessariamente a mesma área patrimonial, nem são incindíveis. Pode suceder que
seja constituída uma sociedade ou uma EPE sem que exista ainda o respectivo substrato
empresarial, sem empresas em sentido objectivo. Por outro lado, o seu património não deve
esgotar-se no património ligado às respectivas empresas-objecto: pode haver bens fazendo
parte do acervo patrimonial dos sujeitos mas não afectados às empresas-objecto.

Têm necessariamente as empresas públicas fins lucrativos?

O quadro geral parece estar traçado no artigo 4 RSEE: “a actividade do setor empresarial do
Estado deve orientar-se no sentido da obtenção de níveis adequados de satisfação das
necessidades da colectividade, bem como desenvolver-se segundo parâmetros exigentes de
qualidade, economia, eficiência e eficácia, contribuindo igualmente para o equilíbrio
económico e financeiro do conjunto do sector público”.

As sociedades regidas basicamente pelo CC ou pelo CSC têm, por definição, finalidades
lucrativas, artigo 980 CC. Nada impõe que o escopo lucrativo seja ou possa ser postergado
pelas empresas públicas-sociedades de economia mista. Os interesses públicos podem
determinar uma sistemática actuação sem finalidade lucrativas. Também as EPE em geral
devem tentar alcançar lucros, todavia, dizer isto não é o mesmo que admitir o intuito
lucrativo como nota essencial da definição delas.

Em suma, nem todas as empresas públicas, societárias ou não, têm escopo lucrativo, este
escopo não é elemento essencial do conceito ou melhor, dos conceitos de empresas públicas.
O “SECTOR EMPRESARIAL LOCAL”: ANÁLISE DA LEI N° 50/2012

Num período de quinze anos, três leis apareceram a disciplinar sucessivamente as empresas
locais: a Lei 58/98 de 18 de Agosto, a Lei 53-F/2006 de 29 de Dezembro, e a vigente Lei
50/2012 de 31 de Agosto, RAEL.
– O RAEL estabelece o regime jurídico da actividade empresarial local e das participações
locais, artigo 1. A actividade empresarial local é desenvolvida pelos municípios, pelas
associações de municípios e pelas áreas metropolitanas através dos serviços municipalizados
ou intermunicipalizados e das empresas locais, artigo 2. As participações locais são
participações sociais detidas por aquelas entidades públicas em entidades constituídas ao
abrigo da lei comercial que não sejam empresas locais, isto é, essencialmente sociedades
comerciais com participação minoritária de autarquias locais, artigos 3 n° 4, 51 e seguintes,
61 n° 1 e 66.

Rompendo com as leis anteriores sobre a matéria, o RAEL só admite empresas locais de
natureza societária: desaparecem as empresas de carácter institucional. Nos termos do artigo
19 n° 1 são empresas locais as sociedades constituídas ou participadas nos termos da lei
comercial, nas quais as entidades públicas participantes possam exercer uma influência
dominante em razão da verificação da detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto
ou do direito de designar ou destituir a maioria dos membros do órgão de gestão, de
administração ou de fiscalização, e ainda de qualquer outra forma de controlo de gestão.

Estas sociedades devem ser de responsabilidade limitada, artigo 19 n° 6, por quotas ou


anónimas: só o património social responde para com os credores pelas dívidas da sociedade, e
os sócios limitam a sua responsabilidade ao valor das respectivas entradas.

Podem ser unipessoais, artigo 19 n° 2, ou pluripessoais, e neste caso, além das entidades
públicas referidas, podem ser sócios outros sujeitos públicos ou privados.

As empresas locais têm natureza municipal, intermunicipal ou metropolitana consoante quem


exerça a influência na empresa. As firmas devem integrar firmas da respectiva natureza: E.M.,
empresa municipal; E.I.M., empresa intermunicipal; ou E.M.T, empresa metropolitana, artigo
19 n° 5.

São disciplinadas pelo CSC e pelo RAEL; objecto destas empresas só podem ser actividades
de interesse geral, artigo 45, ou actividades de promoção do desenvolvimento local e
regional, artigo 48.

São constituídas de modo originário, e o acto constituinte é o acto jurídico-negocial


unilateral de entidade pública local ou contrato entre entidades públicas locais ou entre
entidades do poder local e sujeitos públicos e privados; ou superveniente, adquirindo as
entidades públicas locais, originária ou derivadamente, participações dominantes em
sociedade já constituídas. A constituição ou a aquisição de participações têm de ser
autorizadas pelos órgãos deliberativos das entidades públicas participantes, e estão sujeitas a
fiscalização prévia do Tribunal de Contas, artigo 32. A participação de sócios privados está
sujeita a procedimentos de selecção concursos jurídico-públicos, artigo 33.

É dever específico dos administradores das empresas locais cumprir “orientações genéricas”
definidas pelos órgãos executivos das entidades públicas participantes e reflectidas nas
orientações anuais, artigo 37, e existe também controlo financeiro, artigo 39, de que resulta
uma limitação da autonomia.

Enquanto pessoas coletivas de direito privado, artigo 19 n° 4, no domínio das relações


negociais externas, actuam prevalecentemente sob a égide do direito privado, artigo 21, e
estão sujeitas a regras aplicáveis à generalidade das empresas do sector privado. O escopo
lucrativo não deve ser considerado elemento essencial da noção de empresa local, pois a lei
exige uma gestão dirigida a assegurar a viabilidade económica, ou seja, o princípio do
equilíbrio económico-financeiro não exige o lucro, basta-se com uma gestão dirigida a
alcançar o equilíbrio entre custos e receitas da produção. Isto não significa que não possa
haver lucro.

– Os serviços municipalizados são empresas municipais, em sentido objectivo. Não têm, ao


invés das empresas locais, personalidade jurídica, antes integram a estrutura organizacional
do município, artigo 8 n° 2 RAEL, mas possuem organização autónoma no âmbito da
administração municipal, artigo 9 n° 2. Têm por objecto as actividades taxativamente
previstas na lei, artigo 10, e podem ser empresas que concorrem com as empresas públicas
societárias.

• Empresas do sector privado

Ideia bastante divulgada, mas bastante inexacta, é a de que a propriedade de uma empresa
privada pertence a uma pessoa singular ou a uma pessoa colectiva privada.

Pertencente a mais que uma pessoa singular é a empresa bem comum dos cônjuges casados
em regime de comunhão de adquiridos ou de comunhão geral; a empresa-herança indivisa; a
empresa da sociedade pluripessoal não personalizada; a empresa de uma associação sem
personalidade jurídica.

Também podem ser titulares pessoas colectivas: os agrupamentos complementares de


empresas, ACE; sociedades; associações e fundações, que podem explorar empresas como
forma de obtenção de meios patrimoniais necessários à prossecução da actividade
directamente dirigida à realização dos fins próprios delas.

• Empresas do sector cooperativo e social (em especial, as cooperativas e o fim lucrativo; o


novo Código Cooperativo, aprovado pela Lei n° 119/2015, de 31 de Julho)

Neste sector encontramos empresas cooperativas e empresas em autogestão, empresas


comunitárias e empresas de entidades colectivas sem carácter lucrativo e com fins de
solidariedade social.

O artigo 2 n° 1 CCoop define as cooperativas como as pessoas colectivas autónomas, de livre


constituição, de capital e composição variáveis, que através da cooperação dos seus membros
visam, sem fins lucrativos, a satisfação de necessidades e aspirações económicas, sociais ou
culturais daqueles. Disto decorre a possibilidade de algumas cooperativas actuarem sem
empresas.

É correcto dizer que as empresas não têm fins lucrativos?

Em termos muito genéricos para os economistas o lucro é o excedente do preço de venda das
mercadorias sobre o preço de custo.

No direito, lucro e fim lucrativo não são unívocos: tem-se entendido que o lucro é um ganho
traduzível num incremento do património da sociedade, traduzindo-se o escopo lucrativo no
intuito de obter tal ganho a fim de ser repartido pelos sócios. Contrapõe-se o lucro social às
vantagens económicas produzíveis directamente no património dos agrupados em entidades
associativas, e às economias que os associados visam obter participando em entidades
daquele género.

– As cooperativas de consumo têm por objecto principal fornecer aos seus membros e
respectivo agregado familiar bens ou serviços destinados ao seu consumo ou uso directo. É
concebível teoricamente que uma cooperativa forneça os bens de consumo ao preço do custo
por, razões práticas impõem normalmente outra política de preços de venda, e os
cooperadores pagarão um preço superior ao preço de custa, de que surgirá um excedente das
receitas sobre as despesas. Mas a cooperativa não pretende apropriar-se desse excedente,
distribuir-lo-á entre os cooperadores. Assim, sendo um valor distribuível pelos membros da
cooperativa, não corresponde a qualquer aumento real do património dos cooperadores,
correspondendo antes à reposição nesse património de parte de uma quantia que dele havia
sido retirada.

Outro problema, é o facto de as cooperativas terem de constituir reservas, artigos 69 e 70


CCoop, insusceptíveis de repartição periódica e no termo da actividade cooperativa. Tendem
a traduzir-se em incremento “definitivo” do património das cooperativas, e os cooperadores
pagam afinal os bens a preços superiores aos do custo. Mas as reservas podem ver-se como
uma das componentes dos custos de produção das cooperativas, e parece não devem ser tidos
como verdadeiros lucros.

– Nas cooperativas “perfeitas” de produção, os excedentes distribuíveis não devem também


qualificar-se como lucros. São o equivalente do valor do trabalho prestado pelos
cooperadores, não resultando da frutificação de um capital.

– Com as cooperativas de venda visam os cooperadores substituir os intermediários-


comerciantes e evitar que parte do valor dos produtos fique nas mãos destes a título de lucros.
Pode dizer-se que os cooperadores não pretendem que a cooperativa obtenha efectivos lucros,
querem é que os seus produtos sejam por ela colocados no mercado, a fim de receberem o
montante correspondente aos preços de venda, deduzidos os custos suportados pela
cooperativa. Visam portanto possibilitar economias aos seus membros e vantagens
económicas obteníveis directamente no património deles. Também aqui os lucros são
insusceptíveis de repartição.

Podemos portanto concluir que as cooperativas não têm escopo lucrativo.

Negócios sobre as empresas

• Trespasse

NOÇÃO, FORMA

Com referência a estabelecimentos, é muito antigo na legislação portuguesa o emprego da


palavra “trespasse”, mas nenhuma das leis que o menciona contém uma sua definição, nem se
colhe um regime global do mesmo, sendo inúmeros os desencontros doutrinais e
jurisprudenciais. Contudo, COUTINHO DE ABREU retira algumas conclusões.
Objecto de trespasse é um estabelecimento, que não tem de ser comercial. O trespasse traduz
uma transmissão com carácter definitivo, é transmissão da propriedade de estabelecimento,
transmissão que pode ser efectuada através de negócios variados, tais como a compra e
venda, a troca, a dação em cumprimento e a realização de entrada social: são negócios tanto
onerosos como gratuitos. Para alguns efeitos, o trespasse traduz-se em negócios
necessariamente onerosos, como para efeitos do direito de preferência do senhorio e da
liquidação de sociedade. O trespasse aparece nas leis com o significado de negócio inter
vivos, por exemplo no artigo 1112 n° 1 CC.

Em suma, o trespasse é definível como transmissão da propriedade de um estabelecimento


por negócio entre vivos. Não representa uma específica figura negocial, antes abrange um
conjunto de figuras diversas.

Quanto à forma, durante muito tempo foi exigida a escritura pública, depois do ano 2000
passou a exigir-se simples escrito. Hoje, com o NRAU, deve entender-se que continua a ser
exigido o simples escrito, com base no artigo 1112 n° 3 do CC, apesar de este se referir à
transmissão da posição de arrendatário. Com efeito, para COUTINHO DE ABREU, devemos
fazer uma interpretação extensiva do artigo 1112 n° 3, no sentido da exigência escrita
também para o trespasse.

A transmissão de firma, que não pode ser feita sem a transmissão de estabelecimento, exige
escrito, artigos 44 n° 1 e 4 do RRNPC, assim como a transmissão de marca ou logótipo,
artigos 31 n° 5 e 6, 304-P n° 3 do CPI. Seria estranho que a transmissão destes elementos
exigisse escrito e não a transmissão do conjunto.

E sobretudo porque a comunicação da transmissão da posição do arrendatário deve ser feita


ao senhorio para que este saiba o que está na base da transmissão, e para se realizar esta
comunicação é necessária a forma escrita para o próprio trespasse.

CASSIANO DOS SANTOS entende que o NRAU deixou de exigir a forma escrita para o
trespasse: em abstracto, a transmissão do estabelecimento comercial pode fazer-se sem o
imóvel, sem a transmissão da posição do arrendatário. Também se pode conceber casos de
estabelecimentos absolutamente vinculados ao imóvel. Se não for exigida forma escrita para
um dos elementos transmitidos com o estabelecimento, CASSIANO DOS SANTOS defende que
também não é exigida forma escrita para a transmissão do estabelecimento.

ÂMBITOS DE ENTREGA

Quando um estabelecimento é transmitido por um dos negócios que o trespasse abrange, uma
questão que se coloca é a de saber o que está a ser transmitido. A este propósito, a doutrina
costuma falar dos âmbitos de entrega.

Há aqui uma questão prévia que deve ser referida, que passa por uma posição do curso que é
distinta da de CASSIANO DOS SANTOS: quando falamos em âmbitos de entrega, estamos a
pensar naquilo que só se pode transmitir por força do negócio, sem intervenção da vontade
de outrem? Por exemplo, as posições contratuais em geral: em regra, a transmissão da
posição carece do consentimento da contraparte, artigo 424.

Para COUTINHO DE ABREU, se é necessário este consentimento, não podemos falar aqui em
elementos que fazem parte do âmbito de entrega porque não podem ser transmitidos só por
força do negócio. A outra leitura, de CASSIANO DOS SANTOS, é diferente: o que interessa é
saber o que é efectivamente abrangido na negociação, ainda que não se transmita só por força
do contrato das partes. Mas uma questão é saber se as partes quiseram abranger os elementos
naquele negócio, âmbitos de entrega; outra é a de saber se, tendo as partes incluindo os
elementos no negócio, estes se transmitem efectivamente.

Devemos distinguir entre quatro âmbitos de entrega diferentes: o âmbito mínimo, o âmbito
natural, o âmbito convencional, e o âmbito legal ou imperativo.

– Gozam as partes de liberdade para excluírem da transmissão alguns elementos do


estabelecimento, todavia esta exclusão não pode abranger os bens necessários para identificar
a empresa objecto do negócio. Desrespeitando-se o âmbito mínimo de entrega, constituído,
portanto, pelos elementos necessários e suficientes para a transmissão de um concreto
estabelecimento, o trespasse fica impossibilitado, e objecto do negócio transitado serão então
singulares bens de um estabelecimento, não o próprio estabelecimento.

A averiguação dos elementos que integram o âmbito mínimo só pode, obviamente, ser feita
em concreto. O prédio, ou o direito ao prédio, não integra necessariamente o âmbito mínimo:
há casos em que pode integrar, nos estabelecimentos absolutamente vinculados, ORLANDO
DE CARVALHO. O exemplo de escola é estar um estabelecimento num dado local por só esse
ter acesso à fonte de uma água termal.

Assim, temos de ir verificar se, naquele trespasse em concreto, os elementos que vamos
considerar abrangidos naquela negociação permitem ou não dizer que foi respeitado o âmbito
mínimo. Isto vai ser determinado a partir dos outros âmbitos.

– Fazem parte do âmbito natural de entrega os elementos que se transmitem naturalmente


com o estabelecimento trespassado, os meios transmitidos ex silentio, independentemente de
estipulação ad hoc. Tais bens, não havendo cláusulas a excluí-los, entram na esfera jurídica
do trespassário. É possível enumerar diversos elementos que integram este âmbito de entrega.

Quanto aos meios empresariais cuja propriedade pertença ao trespassante, por força da lei,
temos os logótipos e as marcas, sendo o artigo 304-P n° 3 CPI claro quanto aos logótipos, e
podendo-se concluir a inclusão da marca do artigo 31 n° 5 contrario sensu.

O estabelecimento é organização de meios para o exercício de uma actividade de produção


destinada à troca, e será razoável que aqueles elementos sobre que pesa o silêncio se
transmitam naturalmente. Entre esses bens contam-se, por exemplo, máquinas, modelos de
utilidade, mobiliário, utensílios, matérias-primas, mercadorias, inventos patenteados,
desenhos.

Os prédios têm suscitado mais controvérsia: a jurisprudência entendia que na falta de


estipulação específica o trespasse não implica a transmissão do prédio; na doutrina, a
pertinência era afirmada por uns e negada por outros. COUTINHO DE ABREU entende que não
existem razões para um tratamento diferenciado do prédio em face de bens que, tal como ele,
fazem parte do estabelecimento, são seus elementos. É evidente no caso dos estabelecimentos
absolutamente vinculados, onde o peso dos imóveis na estrutura organizatório-exploracional
das empresas é determinante: nos hotéis, nos cinemas, nos pavilhões desportivos. Em outros
casos os prédios são feitos à medida das empresas respectivas.
Em relação ao imóvel, o principal problema é o da forma: a verdade, porém, é que o Código
de Registo Predial dá a entender que, respeitada a forma exigida para o trespasse, o
estabelecimento poderá envolver o prédio e este pode ser registado em nome do adquirente
do estabelecimento com o documento escrito do trespasse. Se o trespasse identificar o
estabelecimento como situado naquele imóvel, que pertencia ao trespassantes, isto é
suficiente para registar a aquisição em nome do adquirente. Claro que, na prática, devemos
seguir a via mais cuidadosa e fazer referência à transmissão da propriedade do prédio.

Por conseguinte, quando num contrato de trespasse se não faça menção do prédio e não se
conclua, por interpretação do negócio, que ele foi excluído, deve concluir-se que a
propriedade do mesmo foi naturalmente transmitida.

O trespasse coenvolve naturalmente a transmissão da propriedade de todos os elementos que


a esse título pertenciam ao trespassante, quando não haja norma legal em contrário ou
cláusula expressa.

Quanto aos elementos empresariais na disponibilidade do trespassante a título obrigacional,


por força de lei, as prestações laborais a que os trabalhadores subordinados se haviam
obrigado perante o trespassante, continuam a contar-se entre os elementos do estabelecimento
trespassado, por força do artigo 285 n° 1 CT.

Por força do artigo 1112 n° 1 al. a) CC, é permitida a transmissão por acto entre vivos da
posição do arrendatário, sem dependência da autorização do senhorio, no caso de trespasse
de estabelecimento comercial ou industrial. A menos que o prédio pertença ao âmbito
mínimo, o trespasse não implica necessariamente a transferência do prédio por via de
transmissão da posição do arrendatário ou por outra via de tipo obrigacional.

Em relação às dívidas, no caso de transmissão do estabelecimento através do trespasse, e ao


contrário do que sucede se adquirirmos participações sociais de uma sociedade, não se
transmitem: na ausência de uma disposição legal específica para o caso do trespasse, se nada
for dito pelas partes, nem sequer existe uma co-assunção das dívidas, e muito menos a
transmissão. Isto porque no caso da transmissão singular de dívidas é necessário o
consentimento do credor, ou seja, para a transmissão seria sempre necessário o consentimento
do credor, artigo 595.

Podemos acrescentar ainda, que o trespasse integra certos elementos empresariais na


disponibilidade do trespassante a título obrigacional, como as prestações laborais e a posição
de arrendatário, mas já não aqueles que careçam de consentimento para transmissão, como as
máquinas, veículos e móveis emprestados, artigo 1059 n° 2, que remete para o artigo 424.

– No âmbito convencional de entrega incluem-se os elementos empresariais que apenas se


transmitem por meio de estipulação ou convenção entre trespassante e trespassário.

Nele se integram a firma, artigo 44 n° 1 RRNPC, o logótipo e a marca quando neles figure
nome individual, forma ou denominação do titular do estabelecimento, artigo 31 n° 5 CPI.
Os créditos do trespassante ligados à exploração da empresa mas cujos objectos não sejam
meios do estabelecimento não devem considerar-se elementos ou meios empresariais.
Todavia podem ser transmitidos juntamente com o estabelecimento desde que haja acordo.
Farão então parte do âmbito convencional de entrega, artigo 577 CC.
Os contratos e os débitos ligados à exploração da empresa mas cujos objectos não sejam
elementos do estabelecimento também não devem ser considerados elementos ou meios
empresariais, mas podem igualmente ser transmitidos juntamente com o estabelecimento
trespassado. Contudo, tais posições não fazem parte de qualquer dos âmbitos de entrega. Para
os contratos valem as regras dos artigos 424 e seguintes CC. Quanto às dívidas, são
aplicáveis as regras gerais do direito civil e, na vigência do actual CC, a jurisprudência e a
doutrina dominantes negam a transmissão automática de dívidas. Por conseguinte, ainda que
num escrito se diga que o estabelecimento é trespassado “com todo o seu activo e passivo”,
esse facto por si só não significa assunção pelo trespassário das dívidas do trespassante
relativas ao estabelecimento: a transmissão exige o consentimento dos credores.

– Quanto ao âmbito imperativo-legal, vamos encontrar a sua regulação em regimes


específicos.

Excepcionalmente o trespassário pode ter de responder por dívidas anteriores ao trespasse,


como nos casos regulados pelos artigos 285 n° 1 e 2 CT, 209 n° 2 CRCSPSS, e no caso de
trespasse de e.i.r.l.

Quanto ao artigo 285 n° 2 do Código do Trabalho, sobre as dívidas resultantes do contrato de


trabalho e relativas a coimas: o transmitente responde solidariamente pelas obrigações
vencidas até à data da transmissão; mas, mais importante, transmite-se para o adquirente a
responsabilidade pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contra-ordenação laboral;
e a transmissão da posição do empregador no contrato de trabalho vai envolver as obrigações
relacionadas com essa posição. Isto é extremamente importante, e significa também que a
negociação de um estabelecimento deve ser precedida da obtenção de informações acerca da
empresa em relação a este aspecto, “due diligence”. A responsabilidade do trespassante cessa
após um ano.

O artigo 209 n° 2 do Código dos Regimes Contributivos para a Solidariedade Social, que
abrange também a cessão de exploração ou locação, diz que o cessionário responde
solidariamente com o cedente pelas dívidas à Segurança Social existentes à data da
celebração do negócio. Isto também é importantíssimo, uma vez que podem estar em causa
dívidas muito avultadas. Aqui, ao contrário do que sucede no caso anterior, a
responsabilidade do cedente não cessa passado um período de tempo: na realidade, não se
pode falar aqui em algo que pertence ao âmbito de entrega porque não há transmissão, são os
dois sempre responsáveis.

O e.i.r.l. não tem de ser um estabelecimento em sentido objectivo, mas se o é a sua


transmissão faz-se com as dívidas que integram a exploração, uma vez que tal decorre da sua
natureza enquanto património autónomo.

OBRIGAÇÃO IMPLÍCITA DE NÃO CONCORRÊNCIA

A obrigação de não concorrência é desde há muito reconhecida pela jurisprudência e doutrina


de largo número de países, tendo em Portugal apoio na lei. No caso do trespasse não resulta
directamente da lei, falando-se assim de uma obrigação implícita que vai onerar o
trespassante. O trespassante de estabelecimento fica em princípio obrigado a, num certo
espaço e durante certo tempo, não concorrer com o trespassário. Fica vinculado a não
iniciar actividade similar à exercida através do estabelecimento trespassado.
Têm sido avançados vários fundamentos para a obrigação: o princípio da boa fé na execução
dos contratos, o princípio da equidade, usos do comércio, concorrência leal, garantia contra
evicção, dever de o alienante entregar a coisa alienada e assegurar o gozo pacífico dela.

A empresa que o trespassante tem de entregar é um bem complexo, com certos valores de
organização e de exploração. Normalmente, o alienante conhece as características
organizativas da empresa e mantinha relações pessoais com financiado, fornecedores e
clientes. Seria pois perigosa a concorrência por ele exercida: essa concorrência diferencial
poria em risco a subsistência da empresa alienada, impediria uma efectiva entrega da mesma
ao adquirente.

Assim fundamentada, a obrigação implícita de não concorrência não se imporá ao


trespassante que desconheça as especificidades organizativas da empresa ou desconheça os
clientes, fornecedores e financeiros.

A obrigação implícita de não concorrência pode intervir na generalidade dos negócios


incluíveis no conceito de trespasse: na venda, troca, realização de entrada social, dação em
cumprimento, doação. A alienação de participações sociais não se identifica com a alienação
da empresa social; porém, para certos efeitos, a alienação da totalidade ou da maioria das
quotas é equiparável ao trespasse da empresa social. Para COUTINHO DE ABREU, também
para efeitos da obrigação implícita de não concorrência, uma vez que a alienação opera uma
transmissão indirecta da empresa. Se, para efeitos daquela transmissão, teve especial
significado o estabelecimento em causa, então a própria transmissão do controlo ou da
totalidade das participações poderá equivaler eventualmente ao próprio trespasse. Nestes
casos, devemos adoptar uma visão não formalista e reconhecer que o que está em causa na
realidade é a transmissão do estabelecimento.

Além do trespassante, outros sujeitos podem ficar vinculadas pela obrigação implícita de não
concorrência: é o caso do cônjuge do trespassante, dos seus filhos ou, nos casos em que o
trespassante é uma sociedade, os sócios, desde que estas pessoas tenham os conhecimentos
do trespassante relativos à organização, clientes e fornecedores.

Entre os sujeitos activos ou credores da obrigação implícita de não concorrência conta-se não
apenas o primeiro trespassário, mas também os eventuais sucessivos trespassários.

Quando falamos em não concorrência, estamos a pensar em iniciar uma actividade


concorrente. Coisa diferente é o trespassante ser explorador de vários estabelecimentos
concorrentes entre si e trespassa um deles: neste caso, não está obviamente obrigado a
encerrar os outros. Isto mostra que o estabelecimento subsistia com a existência dos restantes.

Esta obrigação de não concorrência tem limites, sob pena de violação do princípio da
liberdade de iniciativa económica, artigo 61 CRP e das regras de defesa da concorrência,
artigo 747.

Ela justifica-se apenas na medida em que seja necessária para uma entrega efectiva do
estabelecimento trespassado. Tem de ter portanto limites objectivos, espaciais e temporais.

Os sujeitos passivos da obrigação não ficam proibidos de exercer qualquer actividade


económica: não podem reiniciar o exercício de uma actividade concorrente com a exercida
através da empresa trespassada, de uma actividade económica no todo ou em parte igual ou
sucedânea. Não ficam impedidos tão-somente de adquirir estabelecimento igual, outros
comportamentos lhes são interditos, como passar a desempenhar funções de direcção ou
administração em empresa alheia e concorrente. Pode-se também defender que a invocação
da autonomia jurídica das pessoas constitui, nestes casos, um abuso de direito.

Tem depois limites espaciais e temporais: vale apenas nos lugares delimitados pelo raio de
acção do estabelecimento trespassado, e durante o tempo suficiente para se consolidarem os
valores de organização ou de exploração da empresa transmitida na esfera de um adquirente-
empresário razoavelmente diligente. Hoje, com as vendas que são feitas online, isto é muito
mais complicado, pois muitas empresas têm como mercado o mundo, e com isto torna-se
difícil saber qual o limite espacial. Note-se que é necessário que a parte essencial do
estabelecimento seja feita com uma determinada área.

Se os obrigados a não concorrerem violarem a obrigação, pode o trespassário exercer os


direitos previstos nas normas respeitantes ao não cumprimento das obrigações. Pode exigir
indemnização por perdas e danos, artigo 798 CC, ou resolver o contrato de trespasse, artigo
801 n° 2, ou intentar acção de cumprimento, artigo 817, e requerer sanção pecuniária
compulsória, artigo 829-A, ou exigir que o novo estabelecimento do obrigado seja encerrado,
artigo 829 n° 1.

Coloca-se a questão de saber se se pode intentar uma acção a pedir que se encerre o
estabelecimento, diferente de uma mera acção de cumprimento: para este efeito, podemos
invocar o disposto no artigo 829 CC?

A doutrina oferece várias leituras para este preceito, nomeadamente a leitura restritiva
segundo a qual só abrange as hipóteses de “obra”; porém, podemos contra-argumentar que o
legislador apenas falou em obra por ser esta a hipótese mais significativa. SOVERAL
MARTINS defende assim a possibilidade de invocação deste artigo, quanto mais não seja por
analogia.

A obrigação implícita de não concorrência pode ser afastada por estipulação contratual.
Apesar de esta cláusula ser válida, o afastamento da obrigação implícita de não concorrência
pode ser um indício de que não se verificou um trespasse, pois o que as partes quiseram
verdadeiramente transmitir foi meros elementos empresariais. Isto salvo certas situações: por
exemplo, nos casos de estabelecimentos altamente desvalorizados, em que o trespassário vai
ter de começar do zero; ou em que o trespassante esteve pouco tempo à frente do negócio e
não adquiriu os conhecimentos suficientes para a concorrência diferencial.

TRESPASSE DE ESTABELECIMENTO INSTALADO EM PRÉDIO ARRENDADO

– Artigo 1112 n° 1

A cessão da posição do locatário está sujeita ao regime geral dos artigos 424 e seguintes, sem
prejuízo das disposições deste capítulo, artigo 1059 n° 2 CC. Uma das disposições especiais é
o artigo 1112 n° 1 al. a), que estabelece que, em caso de trespasse de estabelecimento
comercial ou industrial instalado em prédio arrendado, o trespassante-arrendatário pode
ceder a sua posição de arrendatário ao trespassário sem necessidade de autorização do
senhorio.
É uma norma expressiva da tutela da circulação negocial dos estabelecimentos, e da própria
manutenção deles: a necessidade de autorização do senhorio conduziria muitas vezes à
quebra da referida defesa. Apesar disto, a lei consagra o direito de preferência do senhorio,
artigo 1112 n° 4, sendo necessária a comunicação dos elementos essenciais desse negócio.

Para COUTINHO DE ABREU, tutelam-se os interesses do trespassante em transmitir, sem


entraves do senhorio, estabelecimento integrado em prédio arrendado; do trespassário em
adquirir empresas o mais possível valiosas e funcionais; e o interesse económico-geral na
continuidade e desenvolvimento das empresas.

Nas palavras de RICARDO COSTA, a lei toma posição no conflito de interesses em matéria de
cessão da posição contratual do arrendatário quando trespassante: por um lado, o interesse
comercial de efectuar a transmissão global da empresa, em princípio mais valorizada com a
manutenção do direito imobiliário; por outro lado, o interesse civilístico de “controlar”, no
limite, vedar, a mudança do arrendatário propiciada pela “viragem” do contrato de
arrendamento com o trajecto da empresa. A lei vem dar prevalência ao primeiro.

– Artigo 1112 n° 2 al. a)

Interpretando à letra a al. a) do artigo 1112 n° 2, concluir-se-ia que o trespasse de um


estabelecimento exige a transferência de todos os seus elementos, bastando a falta de um
deles para que não exista o trespasse: prevê um controlo da existência de um verdadeiro
trespasse. Assim a cessão da posição de arrendatário seria ilícita sem o consentimento do
senhorio e fundamento de resolução do contrato de arrendamento, artigo 1083 n° 2.

O estabelecimento existe e como tal se transmite quando existem e se transferem os


elementos do seu âmbito mínimo: não como infirmar, por aí, o trespasse. Portanto, para que o
n° 1 não tenha aplicação, não é suficiente que o senhorio prove não ter sido transmitido um
ou mais elementos componentes do estabelecimento. Terá de provar que sem esses elementos
não subsiste aquele concreto estabelecimento, que o mesmo não pode ter sido efectivamente
negociado, tendo havido antes simulação de trespasse. Entendemos que a al. a) está a
desenvolver uma função de alerta para a necessidade de se transmitir verdadeiramente o
estabelecimento, prevenindo os casos de simulação da transmissão do estabelecimento apenas
para transmitir a posição do arrendatário.

CASSIANO DOS SANTOS tem uma posição diferente, entendendo que é necessário que o
estabelecimento seja transmitido com a extensão do negócio à essencialidade dos elementos.

– Artigo 1112 n° 2 al. b)

A al. b) diz que não há trespasse quando a transmissão vise o exercício, no prédio, de outro
ramo de comércio ou indústria ou, de um modo geral, a afectação a outro destino. A intenção
de mudança de destino pode ser revelada logo por declarações constantes no escrito do
negócio ou por declarações externas concomitantes. Mas isto é muito difícil de provar, uma
vez que se prende com intenções, o mais provável é ela ser revelada por factos posteriores.

Aqui, a mudança objectiva do estabelecimento, em especial, dentro de um fim comercial ou


em geral, para um fim não comercial ou habitacional, interessa enquanto reflexo da vontade
das partes no momento da celebração, de como não quiseram realizar efectivamente um
contrato de trespasse mas sim a cessão do gozo do próprio imóvel, furtando-se à regra da
autorização do senhorio. O objectivo da lei é a prevenção e detecção de acordos simulatórios.

Assim, a mudança de destino pode ser feita em condições tais, nomeadamente após o decurso
de algum tempo após o trespasse, que indica que o trespassante e trespassário quiseram
mesmo realizar o contrato de trespasse.

Em suma, não haverá trespasse se o objecto do negócio foi o imóvel e não o estabelecimento,
sendo que, para surpreender esta simulação, é necessário, segundo RICARDO COSTA,
denunciar a vontade real dos intervenientes ao tempo da transmissão do estabelecimento, que
pode ser expressa nas declarações, ou de outras cláusulas indiciadoras da fraude à lei, por
exemplo, o preço do trespasse em relação ao valor do estabelecimento; ou afirmar a
expressão da vontade real dos intervenientes numa situação ocorrida após a transmissão do
estabelecimento, não só a mudança do destino, mas também outros actos que exprimam o
decaimento dos valores de exploração e organização da empresa, por exemplo, a venda dos
bens significativos e o encerramento do estabelecimento.

Declarada a simulação, a autorização do senhorio era necessária, artigos 1038 al. f), 1059 n°
2 e 424 n° 1 e, por falta dela, pode o senhorio resolver o contrato, artigos 1083 n° 1 e 2 al. e)
e, se for caso disso, pedir indemnização por perdas e danos decorrentes do incumprimento
contratual, artigos 1038 al. f) e 798.

Note-se que SOVERAL MARTINS e RICARDO COSTA não têm a mesma posição que
COUTINHO DE ABREU. Eles defendem que tanto o trespassante como o adquirente têm de ter
a mesma intenção, enquanto que COUTINHO DE ABREU defende que basta que o adquirente
tenha esta intenção. Isto porque senão estaríamos estar a pôr nas mãos do adquirente o
destino do trespassante, que poderia, por exemplo, ser alvo de uma acção de resolução por
cessação ilícita pelo senhorio.

– Artigo 1112 n° 5

O n° 5 diz que o senhorio pode resolver o contrato quando seja dado outro destino ao
prédio. Considerou-se que este regime mais favorável aos interesses do comércio só se
justificaria se se mantivesse aquele ramo do comércio. A mudança objectiva do destino do
prédio parece ser assim uma causa de cessão ilícita, sancionando-se automaticamente este
comportamento, independentemente da vontade genética das partes.

Esta norma é bastante criticada, havendo divergência na doutrina quanto à questão de saber
se a norma cria ou não um fundamento autónomo de resolução. Com efeito, parte da doutrina
entende que esta não é uma causa autónoma.

Certos autores defendem que é uma confirmação do artigo 1112 n° 2 al. b): a transformação
posterior é um indício de uma vontade genética. Apenas vem trazer alguma certeza a esta
manifestação.

Outros defendem que o que está em causa é a violação da finalidade do contrato de


arrendamento, artigo 1083 n° 2 al. c), logo este n° 5 é desnecessário. A fórmula “dar outro
destino” é absorvida na alteração do fim convencionado.
Entre nós, entendemos que é fundamento autónomo de resolução: mas como interpretar?

RICARDO COSTA faz uma interpretação restritiva, segundo o qual o n° 5 apenas vale para
mudança de mercantil para não mercantil ou mercantil para habitacional, não valendo quando
haja mudança de ramo comercial, protegendo desta forma a conversão dentro das actividades
mercantis. Esta até poderia ser uma interpretação declarativa, uma vez que apenas fala de
mudança de destino e a al. b) usa esta expressão para mudança de mercantil para não
mercantil ou de mercantil para habitacional.

O autor critica a solução deste artigo, avançando três argumentos que suportam a
interpretação restritiva: é uma solução prejudicial ao interesse da tutela da conservação do
estabelecimento. É depois um poder desmedido do senhorio, comparado com o direito de
resolução a que lhe assiste com base em incumprimento do fim convencionado. Mesmo
quando se reserva o imóvel para um fim específico, aceita-se que são permitidas pela cláusula
contratual as actividades que lhes estejam próximas, com o objectivo de limitar a intromissão
do senhorio. Finalmente, é uma opção atrofiante os interesses empresariais. Visa-se a
protecção da livre circulação dos estabelecimentos comerciais, sem entraves colocados pelos
senhorios. Ora, se a empresa não estiver a funcionar bem e não puder ser alterada, podemos
nunca ter um estabelecimento susceptível de ser negociado.

CASSIANO DOS SANTOS defende também a interpretação restritiva, mas deve ser feita em
função do tempo que demora a conversão: a mudança após a transmissão tem de ser imediata,
porque isto é que é censurável, transpondo o juízo da al. b), segundo o qual uma mudança
imediata é indício de simulação.

COUTINHO DE ABREU distingue o n° 5 do n° 2 al. b): uma coisa é aferir a vontade genética,
outra a mudança objectiva. Assim, o n° 5 esvazia o n° 2 al. b), pois o senhorio não precisa de
ir averiguar a fraude.

De qualquer forma, entendemos sempre que o n° 5 é independente da vontade genética, ao


contrário da al. b), que concentra a averiguação no momento genético. Objectivamente,
houve uma mudança objectiva de destino, que pode, independentemente da vontade genética
das partes, constituir fundamento de resolução. Para RICARDO COSTA, apenas vale quando a
mudança do prédio for para fora do círculo empresarial.

No artigo 1112 n° 2 al. b), havendo trespasse simulado e cessão não autorizada, temos uma
ilicitude e pode haver responsabilidade civil por factos ilícitos; enquanto que, no n° 5, se não
houver cumulação com a al. b), não há lugar à responsabilidade civil. Não temos aqui
qualquer cessão ilícita.

Assim, o n° 5 distingue-se da al. b) e ainda do artigo 1083 n° 2 al. c), é independente da


questão do fim contratual, mas estas causas de resolução podem-se cruzar: podemos ter
várias causas de resolução ao mesmo tempo. Por exemplo, muda o destino e ao mesmo
tempo viola o fim do contrato de arrendamento. Podemos até ter as 3 causas de resolução ao
mesmo tempo.

Outra questão é a de saber se o artigo 1112 n° 5 depende do funcionamento da cláusula do


artigo 1083 n° 2. Com efeito, o artigo 1083 depende do funcionamento da cláusula de
gravidade do n° 2: o senhorio só pode resolver o contrato com base naqueles fundamentos se
se tornar inexigível a manutenção do contrato de arrendamento. A primeira tese após 2006
era a de que todas as justas causas de resolução têm de interagir com esta cláusula; outros
autores dizem que as causas previstas no artigo 1083 presumem a gravidade, que tem de ser
ilidida pelo arrendatário; outros, que são tão graves que não é preciso ir à cláusula geral;
outros ainda que depende, tem de ser ponderado fundamento a fundamento.

O artigo 1112 n° 5, sendo uma justa causa de resolução, tem de ser ponderado à luz da
cláusula geral?

Depende da tese que adoptarmos quanto à cláusula: para RICARDO COSTA, justas causas
depende da ponderação à luz da cláusula geral, apesar de o juízo a fazer para cada
fundamento ser diferente. Há causas que são mais graves, por exemplo a violação dos bons
costumes. A gravidade de partida é diferenciada.

Assim, ainda temos de passar pelo crivo do artigo 1083 n° 2, o que será improvável uma vez
que, quando temos um prédio desvalorizado e mudamos de destino para o estabelecimento
ser viável, não é inexigível a manutenção do contrato.

Isto também é aplicável à locação, por força do artigo 1109 n° 1. Mas aqui temos uma
particularidade, que é a de que o locatário deve restituir a coisa locada tal como a recebeu, e
como tal se alterar o destino está a violar esta obrigação.

– Obrigação de comunicação

O artigo 1112 n° 3 estabelece que a transmissão da posição do arrendatário, sem


dependência de autorização do senhorio, deve ser-lhe comunicada. Esta norma repete o
disposto no artigo 1038 al. g) CC, que estabelece a obrigação de comunicação do locatário ao
locador da cedência do gozo da coisa, sendo a cessão da posição do locatário ineficaz perante
o locado no caso de violação desta obrigação, artigo 424 n° 2, para o qual remete o artigo
1059 n° 2.

Esta comunicação ao senhorio tem, segundo RICARDO COSTA, quatro funções: dar a
conhecer ao senhorio a identidade da nova contraparte; permitir o controlo da existência no
caso concreto de um verdadeiro trespasse; ficar prevenido para uma eventual afectação do
prédio a outro destino; e permitir o exercício do direito de preferência, se não se tiver feito a
comunicação do projecto do trespasse e das cláusulas do negócio, artigo 416.

Esta norma vem fechar o círculo normativo de tutela da circulação da empresa do


trespassante-arrendatário. RICARDO COSTA defende que esta comunicação deve incluir
igualmente a cópia do próprio contrato de trespasse.

O artigo 1112 n° 3 não menciona o prazo da comunicação. Existem aqui duas hipóteses: ou o
prazo é o prazo geral do artigo 1038 al. g), de 15 dias; ou é, por analogia, o prazo do regime
previsto na lei para a locação do estabelecimento, artigo 1109, de 1 mês.

Aplica-se o regime geral ou, por analogia, o regime específico?

Existem argumentos nos dois sentidos.


No sentido da aplicação do regime geral, temos dois argumentos: as regras de interpretação
das leis, aplicação do regime geral a uma lacuna do regime especial; e, por outro lado,
estamos no regime geral a ser mais exigentes quanto à obrigação de comunicação, o que faz
sentido no caso do trespasse pois o senhorio é confrontado com uma substituição de
arrendatário. Ou seja, para o senhorio, é uma situação mais grave. Na locação de
estabelecimento, o locador do estabelecimento continua arrendatário do prédio perante o
senhorio.

Assim, parece ser de aplicar o regime geral, do prazo de 15 dias, sendo esta a posição de
COUTINHO DE ABREU.

O adquirente do estabelecimento também pode fazer a comunicação, para evitar o risco da


resolução do contrato. Note-se que o n° 3 apenas fala na comunicação da transmissão, mas
claro que o que se pretende é que a transmissão seja comunicada e que se diga que esta foi
feita no quadro do trespasse.

Coloca-se ainda a questão de saber quais são as consequências do incumprimento da


obrigação.

Para COUTINHO DE ABREU, aplicamos o regime da cessão da posição, segundo o qual a


cessão da posição do locatário é ineficaz perante o locado no caso de violação desta
obrigação, artigo 424 n° 2, para o qual remete o artigo 1059 n° 2. Sendo ineficaz, isto pode
constituir fundamento para resolução do contrato, artigo 1083 al e). Porém, normalmente a
resolução não é decretada pelo simples facto de se ter ultrapassado: é necessário, como
estabelece o artigo 1083 n° 2, que o incumprimento, pela sua gravidade ou consequências,
torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.

CASSIANO DOS SANTOS tem uma outra leitura do artigo 424 n° 2, uma vez que este artigo
parte da hipótese em que é necessária prévia autorização da outra parte, no nosso caso, se
fosse exigido o consentimento do senhorio para a transmissão da posição do arrendatário.

O artigo 1048 diz que o locador não tem direito à resolução do contrato com fundamento na
violação da obrigação da al. g) quando a comunicação tenha sido feita por quem adquire o
estabelecimento. Isto mostra que não é particularmente pesada a obrigação que recai sobre o
trespassante e trespassário, este não é um.

– Contratos de duração indeterminada e trespasse

Para os contratos mais antigos, o artigo 28 n° 2 diz que não se aplica o artigo 1101 CC, que
trata dos contratos com duração indeterminada e prevê para esses a possibilidade de o
senhorio denunciar o contrato. Este artigo dá assim uma protecção a estes contratos, que não
eram em rigor contratos de duração indeterminada, mas sim de renovação obrigatória, que
escapam ao regime da denúncia do artigo 1101.

O artigo 28 n° 3 é mais importante: em relação aos arrendamentos para fins não habitacionais
(comercial), a antecedência da denúncia a que se refere a al. c) do artigo 1101 é elevada para
5 anos. Assim, nestes arrendamentos, vale o regime da denúncia, mesmo que se tratem dos
contratos que à luz do anterior regime estavam sujeitos a renovação obrigatória. Ou seja, se
tivermos um daqueles contratos mais antigos, e se houver trespasse ou locação, aquilo que
era um contrato de renovação obrigatória agora cai por terra e o adquirente do
estabelecimento vê surgir como risco a possibilidade de o senhorio pôr termo aquele contrato
de arrendamento. Com isto, o interesse de realizar trespasse pode ter diminuído um pouco, e
o problema surge também para a locação do estabelecimento.

• Locação de estabelecimento

NOÇÃO E (ALGUM) REGIME

– Noção

A locação de estabelecimento é definível como o contrato pelo qual uma das partes se obriga
a proporcionar à outra o gozo temporário de um estabelecimento, mediante retribuição. Esta
noção enquadra-se com a noção geral de locação prevista no artigo 1022 CC: assim, os
estabelecimentos podem ser locados; a locação de estabelecimento é contrato nominado tanto
na doutrina, como na lei; tal contrato também é típico, isto é, está regulado na lei.

O artigo 1109 trata da locação de estabelecimento, mas não aborda muitos aspectos: até
porque remete para as próprias regras da subsecção em que se insere, que não são dedicadas à
locação mas sim ao arrendamento para fins não habitacionais. Ora, parece estar em causa a
negociação do estabelecimento como um todo, ou seja, o prédio em conjunto com o
estabelecimento, e isto é importante porque vamos aplicar as regras da subsecção ao contrato
de cessão de estabelecimento e não apenas ao direito sobre o imóvel. Para além disto, o artigo
1109 não resolve uma coisa que estava antes prevista na lei: não temos aqui um
subarrendamento. O direito que o locatário terá é apenas o direito de utilização do prédio no
âmbito da exploração do estabelecimento cujo gozo lhe foi cedido.

O n° 2 dispõe que, havendo locação de estabelecimento, o senhorio não tem de dar


consentimento para o trespassário utilizar o imóvel onde está instalado o estabelecimento.
Apenas existe uma obrigação de comunicar, embora agora seja no prazo de um mês. O
próprio locatário pode ele mesmo fazer a comunicação, apesar de quem tem a obrigação de
comunicar é o locador. Faltando a comunicação, a cedência do gozo do prédio é ineficaz em
relação ao senhorio e este pode resolver o contrato, artigo 1083 n° 2 al. e).

– Regime

O artigo 1110 n° 1 estabelece que as regras relativas à duração, denúncia e oposição à


renovação dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais são livremente
estabelecidas pelas partes, aplicando-se, na falta de estipulação, o disposto quanto ao
arrendamento para habitação.

As partes na locação de estabelecimento estipulam livremente a duração do contrato. Porém,


se nada tiverem estipulado, não se aplica o disposto quanto ao arrendamento para habitação,
uma vez que o n° 2 acrescenta que, se nada se estipular, o contrato considera-se celebrado
com prazo certo, com o prazo de 5 anos.

Tendo o contrato sido celebrado com prazo certo, na falta de regime convencional para a
denúncia, vale o previsto no artigo 1098 n° 3 e 4 (denúncia apenas pelo locatário), excepto se
o prazo certo de duração for o supletivo (5 anos), caso em que não poderá o locatário
denunciar o contrato com antecedência inferior a um ano, artigo 1110 n° 2. Se o contrato
tiver sido celebrado por duração indeterminada, o regime supletivo da denúncia, pelo
locatário e também pelo locador, é o dos artigos 1100 e 1101.

Um aspecto importante é o de saber se, sendo o contrato de locação celebrado justamente


com o prazo estabelecido ou valendo o prazo supletivo, se, atingindo o prazo limite o
locatário é vai ser confrontado com a caducidade ou a renovação. Isto é completamente
diferente, do ponto de vista da estabilidade e das expectativas.

COUTINHO DE ABREU argumenta que, no artigo 1110 n° 1, se remete para o regime do


arrendamento para fins habitacionais quanto a duração, denúncia e oposição à renovação: não
se remete para o regime da própria renovação, nomeadamente para o regime do artigo 1096,
que diz que o contrato celebrado por prazo certo renova-se automaticamente. Qual é a
consequência disto? Vale o regime geral da locação, que é o da caducidade.

SOVERAL MARTINS, por outro lado, entende que, se se remete para o regime da oposição à
renovação, então também se remete para o regime da renovação, isto estará pressuposto.
Porém, a questão é duvidosa. Também se pode argumentar que o legislador remeteu apenas
para as regras relativas à oposição da renovação porque as partes podem prever a renovação,
e aí aplica-se o regime da oposição, e não porque pressupõe a renovação.

O artigo 1111 refere-se a obras de conservação. Na opinião de COUTINHO DE ABREU, este


artigo é inaplicável à locação de estabelecimento.

Em relação à forma, o artigo 1112 aplica-se: segundo a primeira parte do n° 3, o contrato de


locação de estabelecimento deve ser celebrado por escrito, sob pena de nulidade.

Aplica-se o artigo 1113, segundo o qual a locação de estabelecimento não caduca por morte
do locatário, podendo embora os sucessores renunciar à transmissão.

ÂMBITOS DE ENTREGA

Tal como nos casos de trespasse, a locação de estabelecimento não pode prescindir dos
elementos necessários ou essenciais para a identificação da empresa objecto do negócio: o
âmbito mínimo tem de ser respeitado.

Salvo quando outra coisa resulte da lei ou do contrato, os elementos empresariais se


transferem naturalmente para o locatário. Integra-se no âmbito natural de entrega a
generalidade dos meios empresariais pertencentes em propriedade ao locador: prédios,
máquinas, ferramentas, logótipo e marcas, artigos 31 n° 5 e 304-P n° 3 CPI. Estes artigos
supõem a transmissão do estabelecimento e a locação, enquanto transmissão temporária, não
pode deixar de ser abrangida.

Quanto aos elementos empresariais que se encontrem na esfera jurídica do locador a título
obrigacional, a posição de empregador decorrente dos contratos de trabalho para o locador
transmite-se, pelo período da locação para o locatário, artigo 285 n° 3 CT.

Quando o estabelecimento funciona em prédio arrendado, há-de entender-se que se transmite


naturalmente para o locatário da empresa o gozo do prédio. Coisa semelhante deve valer para
os bens empresariais detidos pelo locador de estabelecimento a título de locação financeira
ou de simples aluguer, e ainda para as patentes, modelos de utilidade, desenhos ou modelos e
marcas objecto de licença de exploração, artigo 32 n° 8 CPI. Quanto à firma, em face do
artigo 44 n° 1, também se integra no âmbito convencional de entrega. CASSIANO DOS
SANTOS entende que integra o âmbito natural.

Coma locação de um estabelecimento diversos elementos de propriedade do locador se


transferem para o locatário. Mas a que título?

Deve entender-se que a propriedade dos meios empresariais fica com o locador, não se
transmite para o locatário. O negócio da locação incide sobre o estabelecimento, não sobre
singulares elementos seus. Por outro lado, a propósito de um dos elementos da empresa, o
prédio, o artigo 1109 n° 1 CC não parece dar azo a hesitações ao falar de transferência
temporária do gozo do mesmo.

Com que direito, então, o locatário transforma ou aliena bens constituintes do capital
circulante e aliena bens do capital fixo que é necessário substituir?

Este poder ou direito de disposição sobre os meios empresariais não se funda no direito de
propriedade, mas sim no poder-dever de exploração do estabelecimento. O locatário tem não
apenas o direito de explorar-gozar o estabelecimento, mas também o dever de o fazer, sob
pena de a empresa sofrer diminuição no seu valor económico ou mesmo extinguir-se.

O exercício de tal poder-dever implica necessariamente os referidos consumo e alienação de


elementos empresariais.
OBRIGAÇÕES DE NÃO CONCORRÊNCIA

Enquanto durar a locação de estabelecimento, o locador está obrigado a não concorrer num
determinado espaço com o locatário, nomeadamente a não iniciar actividade igual ou
semelhante à exercida através do estabelecimento locado. Esta não é uma obrigação
implícita, uma vez que decorre expressamente de certas disposições legais, artigos 1031 al.
b) e 1037 n° 1 do CC. O artigo 1037 estabelece que o locador não pode praticar actos que
impeçam ou diminuam o gozo da coisa pelo locatário. Temos de ter aqui presente que esta
coisa é muito específica, com valores de exploração e organização, que devem ser utilizados
em paz pelo locatário.

Outra nota importante, e que gera controvérsia doutrinal, é o que diz respeito à possibilidade
de o próprio locatário, durante o período de locação, abrir um estabelecimento concorrente
com aquele que tem em locação. Também isto não deve ser permitido, uma vez que tal
comportamento provocaria, pelo menos, uma diminuição do valor do estabelecimento locado,
e significaria portanto a violação do ‘dever de manutenção e restituição da coisa’ a cargo do
locatário, artigo 1043 CC. O locatário é obrigado a manter a coisa, e se abre um
estabelecimento concorrente pode estar a pôr em causa este dever de manutenção. Para
CASSIANO DOS SANTOS, só se admite a protecção do locador através do regime da
concorrência desleal.

Terminado o contrato, e na ausência de um possível pacto de não concorrência, fica o ex-


locatário obrigado a não concorrer com o ex-locador?

Para COUTINHO DE ABREU, a resposta é negativa, ou seja, o ex-locatário pode concorrer. O


autor avança os seguintes argumentos: o princípio é o da liberdade de iniciativa económica e
de concorrência; o ex-locatário pode aproveitar conhecimentos sobre a clientela e a
organização empresarial adquiridos durante a locação mas compete ao locador tomar em
devida conta este risco.

Estes conhecimentos, além de terem sido adquiridos pelo locatário no decurso de uma
exploração pela qual ele pagou ao locador, podem continuar a ser usados na exploração do
estabelecimento restituído pelo locador.

LOCAÇÃO DE ESTABELECIMENTO E ARRENDAMENTO

A locação de estabelecimento, mesmo quando envolve prédios, não é contrato de


arrendamento, artigo 1023 CC. Também não é um contrato misto, associando o
arrendamento de prédio ou fracção e o aluguer de estabelecimento ou dos móveis
componentes do estabelecimento. O artigo 1109 n° 1 sugere essa perspectiva. Não obstante, a
locação de estabelecimento prevista nesse artigo é negócio unitário com objecto mediato
também unitário: o estabelecimento, feito embora de elementos vários. O gozo do prédio-
elemento do estabelecimento é transferido para o locatário a título não autónomo, não há
específico negócio incidindo no prédio; o prédio não é dado em arrendamento nem
subarrendado, salvo acordo em contrário. O locador de estabelecimento e proprietário do
imóvel não passa a senhorio, o locador de estabelecimento e arrendatário do imóvel n˜åo cede
a sua posição arrendatícia nem subarrenda.

O NRAU consagrou no artigo 1109 n° 2 a desnecessidade de o senhorio autorizar a cedência


do gozo do prédio arrendado aquando da locação de estabelecimento nele instalado: antes
havia divergência doutrinais e jurisprudenciais neste ponto. Divergências também havia sobre
se era obrigação do arrendatário de prédio e locador de estabelecimento comunicar ao
senhorio a cedência do gozo do prédio integrado na locação da empresa. Também aqui o
artigo 1109 n° 2 consagrou que a transferência do gozo do prédio deve ser comunicada ao
senhorio no prazo de um mês. Faltando a comunicação no prazo a cedência do gozo é
ineficaz em relação ao senhorio, que poderá resolver o contrato de arrendamento, artigo 1083
n° 2 al. e). A falta de comunicação tem de tornar inexigível ao senhorio a manutenção do
arrendamento.
DOS SINAIS DISTINTIVOS DE EMPRESAS E DE PRODUTOS

Introdução

Os sinais que vamos tratar são os logótipos, as marcas, as denominações de origem, as


indicações geográficas e as recompensas. São sinais distintivos de empresas,
independentemente da sua titularidade; e de produtos enquanto bens e serviços que decorrem
dessa actividade.

Tradicionalmente, estes signos eram denominados por sinais distintivos do comércio, todavia,
esta designação é pouco rigorosa porque não individualizam apenas empresas mercantis e
produtos de actividade mercantil, não são actos de comércio objectivo e, ainda, não são
utilizáveis apenas por comerciantes.

Daí a sua inclusão, não no direito comercial propriamente dito, mas num outro ramo
autónomo, o direito industrial ou direito da propriedade industrial. Porém, também não
abrange apenas a indústria.

A natureza jurídica dos direitos sobre estes bens imateriais é controvertida. Para COUTINHO
DE ABREU são, enquanto bens imateriais, objecto de direito de propriedade, embora com
regime especial relativamente às coisas corpóreas ou materiais, artigo 1303 n° 1 e 2 CC.

Nomeadamente quanto aos modos de aquisição, são diferentes; mas, tal como qualquer outro
objecto de domínio, aplica-se o artigo 1305 CC,uso pleno e exclusivo dos direitos de uso,
fruição e disposição, e os artigos 1 n° 4 e 6 CPI.

A tutela dos direitos faz-se, em primeira linha, pela concessão de um juízo em face do INPI.
O CPI regula a tramitação que deve ser seguida junto do INPI, artigos 9 a 30. Nos artigos 31
a 32 regulam-se os direitos emergentes das transmissões e licenças: para gozar do sinal, não é
necessário ser transferido, basta ser licenciado.

Os artigos 33 e seguintes tratam das formas de extinção dos direitos da propriedade


industrial, a saber, a nulidade, anulabilidade, caducidade e renúncia.

Logótipos

Noção

Durante longas décadas, o direito português pôs à disposição dos interessados dois sinais
especificamente individualizados das empresas em sentido objectivo: nome de
estabelecimento e insígnia de estabelecimento.

O logótipo, enquanto sinal distintivo registável, foi introduzido no CPI em 1995, e continuou
até 2008 juntamente com os nomes e insígnias de estabelecimento. O Decreto-Lei 143/2008
veio operar uma fusão daqueles três sinais num só, o logótipo.

O logótipo é signo susceptível de representação gráfica para distinguir entidade ou sujeito e,


eventualmente, estabelecimento deste, estando regulado nos artigos 304-A a 304-S CPI.
O logótipo serve primordialmente para distinguir sujeitos (individuais ou colectivos, públicos
ou privados, artigo 304-B) que prestam serviços ou produzem bens no mercado, artigo 304-A
n° 2. Neste contexto, o logótipo tem um sujeito titular; e esse sujeito titular não tem de ser
empresário.

Quando explore empresa, é natural que se utilize o logótipo para individualizar esse
estabelecimento, por isso é que a lei diz que o logótipo pode ser utilizado, nomeadamente, em
estabelecimentos, artigo 304-A n° 2, 2ª parte. Daí que digamos que é um sinal distintivo
bifuncional: distingue sujeitos e estabelecimentos.

O mesmo sujeito, que só pode ter uma firma ou denominação, pode ter vários logótipos,
artigo 304-C n° 2: mas não é necessário ter várias empresas para ter vários logótipos, pode
haver uma mesma entidade que, tenha ou não vários estabelecimentos, tenha vários logótipos.

Composição e princípios informadores

A composição do logótipo tem de obedecer a um conjunto de regras e princípios, que


resultam da lei e são fundamentais.

• Elementos componentes

A lei condiciona em grande medida a liberdade a composição dos logótipos. A norma base é
o artigo 304-A n° 1: o logótipo tem de ser susceptível de representação gráfica, instrumento
que permite a corporização do sinal e a sua tutela jurídica.

Assim, são possíveis logótipos nominativos, compostos por nomes ou palavras, incluindo os
nomes, firmas ou denominações dos respectivos titulares; logótipos figurativos, formados por
figuras ou desenhos; e logótipos mistos, constituído por elementos nominativos e figurativos,
circunstância mais usual. Nisto aproximam-se das marcas, artigo 222 n° 1, e afastam-se das
firmas e denominações.

Note-se que podemos ter logótipos de facto, que não foram registados, e que ainda são
objecto de alguma tutela.

Os logótipos podem ainda ser constituídos por outros sinais, desde que representáveis
graficamente, por exemplo conjuntos de letras e números, combinações de cores e certos sons
e formas tridimensionais, mas não formas de produtos, pois os logótipos identificam sujeitos.

• Princípio da capacidade distintiva

Enquanto sinais distintivos de entidades, os logótipos têm de desempenhar uma função de


diferenciação e identificação dos sujeitos a que se referem, artigo 304-A n° 2.

Por falta de capacidade distintiva, não podem ser registados os logótipos constituídos
exclusivamente por sinais específicos, genéricos ou descritivos, ou que se tenham tornado de
uso comum; sinais que sejam forma natural, funcional ou esteticamente necessária de algo; ou
sejam cores simples e não combinações, artigo 304-H n° 1 al. b) e c).
Excepção ao princípio é o do segundo sentido ou secondary meaning: sempre que sinais de
uso específico, genérico ou comum adquirirem, em face do seu uso e publicidade, carácter
distintivo podem ser registados, artigo 304-H n° 2.

• Princípio da verdade

O logótipo não tem de conter indicações acerca da natureza, composições, actividade do seu
titular, pode ser inteiramente fantasioso, porém, se contiver tais indicações, tem de ser
verdadeiro: não é registável um logótipo receptivo ou enganoso.

Por exemplo, nunca podemos ter um logótipo susceptível de induzir em erro o público acerca
da actividade exercida. Deve ser recusado o registo de logótipo que contenha sinais
susceptíveis de induzir em erro o público, nomeadamente sobre a actividade exercida, artigo
304-H n° 3, al. d); a Bandeira Nacional, entre outros elementos, quando isso possa induzir o
público em erro sobre a proveniência geográfica dos produtos, ou possa levar a supor
erradamente que os produtos têm origem em entidade oficial, artigo 304-H n° 5, al. a) e b);
nomes ou retratos de pessoas sem a devida autorização, artigo 304-I, al. b); e a referência a
determinado prédio rústico ou urbano que não pertença ao requerente do registo, artigo 304-I
n° 3, al. c).

• Princípio da novidade

Para cumprir a função individualizadora, o logótipo de um sujeito deve ser distinto,


inconfundível e novo em relação aos logótipos de outros sujeitos. A principal tradução
normativa deste princípio encontra-se no artigo 304-I n° 1 al. a): é fundamento de recusa do
registo a reprodução ou imitação, no todo ou em parte, de logótipo anteriormente registado
por outrem para distinguir uma entidade cuja actividade seja idêntica ou afim à exercida pela
entidade que se pretende distinguir, se for susceptível de induzir o consumidor em erro ou
confusão.

Quais os elementos que devemos ponderar para saber se o logótipo é novo e inconfundível?

Se chegarmos à conclusão que, de acordo com a grafia, sonoridade, figuração ou ideografia,


o consumidor médio (de normal capacidade, diligência e atenção) o confundir com outro, ou
crê erroneamente referirem sujeitos especialmente relacionados, o princípio da novidade é
violado e não é registável.

Ao contrário das firmas, o princípio da novidade é aqui só exigido para actividades


concorrentes, valendo o princípio da especialidade, mas há excepções.

É fundamento de recusa do registo de logótipo o facto de ele ser confundível com um anterior
que goze de prestígio em Portugal, ainda que pertença a um sujeito exercendo actividade não
concorrente, quando o logótipo posterior pudesse beneficiar indevidamente do carácter
distintivo ou do prestígio do logótipo anterior, artigo 304-I n° 2, que remete para os artigos
240 e 242.

Também é possível excepcionar este princípio quando haja consentimento do sujeito que é
prejudicado, artigo 304-J.
• Princípio da licitude (residual)

Expressões normativas deste princípio resultam do artigo 304-I, n° 1 al. b) e c), 3, e do artigo
304-H n° 3 al. a), b) e c), 4, e 5 al. c).

Conteúdo e extensão do direito sobre o logótipo

Em princípio, o direito de propriedade sobre logótipo constitui-se pelo registo do mesmo no


INPI. O registo dura dez anos, mas é indefinidamente renovável por iguais períodos, artigo
304-L. O titular de logótipo pode usá-lo para se dar a conhecer utilizando-o na empresa,
anúncios ou impressos, artigo 304-A n° 2 e, nos termos do artigo 304-N, confere o direito de
impedir terceiros de usar, sem o seu consentimento, qualquer sinal idêntico ou confundível,
que constitua reprodução ou imitação do “seu” logótipo. Os terceiros estão impedidos de
usar, em actividade económica, signos confundíveis em função distintiva.

A protecção do logótipo registado traduz-se na legitimidade do titular para reclamar contra


pedido de registo feito por outrem de logótipo ou outros sinal não novos, artigo 17 CPI, bem
como para requerer judicialmente a anulação do registo de tais sinais, artigos 304-R n° 1, 266
n° 1 e 239 n° 1 al. b). Tem ainda direito de exigir judicialmente, inclusive em procedimento
cautelar ex artigo 338-I, que os terceiros deixem de usar os referidos sinais, artigo 304-N, e,
sendo caso disso, o indemnizem, artigo 338-L. A propriedade de logótipo é tutelada contra-
ordenacionalmente, artigo 334.

Transmissão de logótipos

Podia-se pensar que o logótipo só se transmite quando se transmite o estabelecimento, mas


esta não é a regra: a transmissão do logótipo é autónoma da do estabelecimento, artigo 304-
P, salvo quando houver possibilidade de induzir os consumidores em erro quanto à
individualização do transmissário, caso em que o logótipo tem de ser alterado primeiro. A
excepção à transmissão autónoma ocorre quando o logótipo foi utilizado no estabelecimento,
aí, só podem transmitir-se com o estabelecimento, n° 2.

O logótipo faz parte geralmente do âmbito natural, salvo nos casos do artigo 31 n° 5. Se o
logótipo contiver nome, firma ou denominação do titular, é necessária convenção.

A transmissão do logótipo por acto entre vivos deve ser provada por documento escrito,
artigo 31 n° 6, e, seja por acto inter vivos ou não, está sujeita a averbamento no INPI artigo
30 n° 1 al a). Só depois do averbamento produz a transmissão do logótipo efeitos em relação
a terceiros, artigo 30 n° 2.

Extinção do direito sobre logótipo

As causas de extinção estão previstas em geral e especial.

O registo do logótipo é nulo nas hipóteses previstas no artigo 33 n° 1, ou nos casos em que o
registo tenha sido concedido com violação do disposto no n° 1, 3, 4 e 5 do artigo 304-H. A
nulidade é invocável a todo o tempo e por qualquer interessado, e a respectiva declaração tem
de ser feita por tribunal, artigo 33 n° 2 e 35 n°1. Temos aqui proibições absolutas.
O registo é anulável quando na sua concessão tenha sido desrespeitado o disposto no artigo
304-I, proibições relativas de registo. A acção de anulação pode ser proposta pelo Ministério
Público ou por qualquer interessado, artigo 35 n° 2, no prazo de 10 anos a contar da data do
despacho da concessão do registo; mas o direito de acção não prescreve se o registo tiver sido
feito de má fé, isto é, com conhecimento da existência de proibições relativas ao registo
conhecido, artigo 304-R n° 2 e 3.

O registo do logótipo caduca quando tiver expirado o seu prazo de duração ou por falta de
pagamento de taxas, artigo 37 n° 1. Para além disto, caduca em especial nos termos do artigo
304-S, pelas causas previstas, encerramento ou liquidação do estabelecimento ou de extinção
da entidade; e falta de uso durante 5 anos consecutivos. COUTINHO DE ABREU defende,
quando a caducidade provém de encerramento, uma interpretação revogatória desta causa,
porque o logótipo distingue sujeito ou entidade e, mesmo quando distingue estabelecimento,
tem a faculdade e não a obrigação de nele usar o logótipo.

À renúncia aplica-se em geral o artigo 38.

Marcas

Noção, espécies e funções

• Noção

As marcas são signos susceptíveis de representação gráfica destinados sobretudo a distinguir


certos produtos de outros produtos idênticos ou afins.

Esta definição afasta-se um pouco do que decorre de diversos actos normativos. O artigo 222
n° 1 CPI diz que a marca pode ser constituída por um sinal ou conjunto de sinais susceptíveis
de representação gráfica que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma
empresa dos de outras empresas.

A expressão “produtos ou serviços” é redundante. Os produtos são bens que resultam da


produção, bens materiais ou corpóreos e bens imateriais ou serviços. Os bens assinalados por
uma determinada marca não têm de ser de “uma empresa”, podem ser produtos de uma não-
empresa ou de várias empresas.

Finalmente, não visam em regra individualizar certos bens de determinados sujeitos


relativamente a quaisquer bens de outros sujeitos, mas bens enquanto tal: é o princípio da
especialidade, não há uma relação com o titular.

• Espécies

Segundo diferentes critérios, podemos ter várias espécies de marcas.

Tendo em conta a natureza das actividades a que se ligam, fala-se de marcas de indústria, de
comércio, de agricultura, de serviços, artigo 225 al. a), b), c) e e).

Atendendo aos elementos componentes, pode falar-se de marcas nominativas, constituídas


por nomes ou palavras; figurativas, formadas por figuras ou desenhos; constituídas por letras,
números ou cores; mistas, que juntam elementos nominativos e figurativos; auditivas,
constituídas por sons representáveis graficamente; tridimensionais ou de forma; simples; e
complexas, artigos 222 e 223 n° 1 al. b) e e).

Olhando agora para os possíveis titulares das marcas, podemos ter marcas de empresários ou
não empresários, artigo 225. Tradicionalmente as leis da maior parte dos países permitiam a
titularidade de marcas individuais registadas somente a empresários, mas a situação é hoje
diferente, sendo geralmente admitido o registo de marcas por não empresários.

Ao lado das marcas individuais, associadas a um sujeito individual, é costume colocar as


marcas colectivas, de uma entidade colectiva, não significando que a propriedade destas seja
colectiva ou de uma pluralidade de sujeitos. De acordo com a lei, estas últimas podem ser
marcas de associação ou de certificação ou garantia, artigos 228, 229 e 230.

Quanto ao regime da protecção, temos as marcas registadas, artigo 224 n° 1, e não


registadas, de facto ou livres. Temos ainda as marcas notórias e de prestígio, que mesmo
quando não registadas gozam de protecção especial, artigos 241 e 242.

• Funções

As marcas têm por função primordial distinguir produtos, mas como?

– Segundo a concepção tradicional ou dominante, a função distintiva das marcas equivale a


uma função de indicação de origem ou proveniência. Distinguir significa apenas e só indicar
a origem e proveniência dos produtos, origem por alguns autores entendida de forma estrita,
uma empresa, e de modo alargado por outros, atendendo aos fenómenos das marcas
coletivas, de grupo e das cedidas em licença.

Porém, desde cedo surgiram vozes discordantes, negando o carácter essencial desta função de
indicação de origem. Disse-se que a marca é muitas vezes um sinal anónimo, sem referência
ao titular, e muitas vezes os titulares querem que assim seja.

VANZETTI foi durante muitos anos defensor da concepção tradicional-dominante,


justificando-a com base no ordenamento italiano, que estabelecia uma ligação incindível
entre marca e empresa desde o momento do pedido de registo, passando pelo período de vida
da marca, até ao momento terminal. Perante novos dados legislativos que apagaram aquela
ligação incindível, continuar a falar de uma função jurídica de indicação de origem é “più che
arduo, temo, impossibile”, facto acentuado ainda mais pela livre cessão das marcas, admitida
em vários ordenamentos europeus. Se a cessão é livre, não poderá a marca garantir uma
origem empresarial constante. Também o sistema português é, por força do artigo 262 n° 1 e
3, de cessão livre. Se transmitem marcas independentemente da transmissão de empresas,
portanto não faz sentido aquela posição. O titular da empresa pode ceder a marca e haver
referência a essa empresa, que não vai corresponder à proveniência. O produto pode ser feito
por várias empresas.

COUTINHO DE ABREU acrescenta que falha claramente nas marcas colectivas de certificação,
para além disto, há casos em que é legítimo dois ou mais sujeitos não ligados por quaisquer
relações jurídico-económicas usarem a mesma marca para produtos idênticos e semelhantes,
artigos 230, 243 e 267 CPI.
A função distintiva das marcas não se confunde ou identifica com a de indicação de origem e
proveniência.

Assim, podemos afirmar que a função distintiva das marcas não se esgota na indicação da
proveniência empresarial. Claro que em muitas marcas prevalece esta função, mas apenas
como parte da função distintiva.

– Além da função distintiva, as marcas, uma vez tuteladas, têm outras funções. Uma delas é a
função atractiva ou publicitária de excelência, associada às marcas de prestígio. Isto decorre
do artigo 242 n° 1.

Rompe com o princípio da especialidade, porque não se destina apenas a distinguir a marca,
prevenindo ou impedindo riscos de confusão. Já não está em causa a tutela da função
distintiva da marca, pois a distância económico-sectorial entre os produtos do titular da marca
de prestígio e os produtos de terceiro que adopte sinal idêntico ou semelhante pode ser de tal
modo grande que se torna impossível justificar a ilicitude deste segundo sinal por ele violar a
função distintiva daquela marca. Mesmo quando há produtos muito longe da marca de
prestígio, estes vão captar a função atractiva associada a esta. Segundo o artigo 242 n° 1, a
protecção especial é conferida “sempre que o uso da marca posterior procure tirar partido
indevido do carácter distintivo ou prestígio da marca, ou possa prejudicá-los”.

No entendimento de COUTINHO DE ABREU, não haverá aproveitamento ilícito quando,


designadamente, o titular da marca de prestígio nisso consinta. Tais marcas não têm de ser
super notória ou célebres, o fenómeno é não só quantitativo mas também qualitativo.

O uso da marca posterior tirará partido do carácter distintivo da marca de prestígio quando,
nomeadamente, faça supor que os produtos assinalados provêm da mesma entidade ou de
entidades relacionas, e tirará partido do seu prestígio quando se verifique uma transferência
da imagem de qualidade e de acreditamento no mercado desta marca para aquela. Por sua
vez, o uso do sinal posterior prejudicará o carácter distintivo da marca de prestígio quando
provoque o aguamento ou banalização desta; e prejudicará o seu prestígio quando
desencadeie indesejáveis associações.

– A terceira função das marcas é a função de garantia de qualidade. Tradicionalmente, há


quem entenda que esta função não deve ser reconhecida, ou pelo menos não deve ser
reconhecida de forma autónoma. É apenas uma consequência da função distintiva, sobretudo
na parte em que indica a proveniência.

COUTINHO DE ABREU tem uma posição diferente: entende que a função de garantia de
qualidade deve ser reconhecida, seja quanto às marcas colectivas de certificação, seja quanto
às marcas individuais. Quanto a estas, o artigo 269 n° 2 al. b) refere-se à caducidade do
registo das marcas e autonomiza a qualidade.

O registo da marca caduca se esta se tornar susceptível de induzir o público em erro,


designadamente quanto à qualidade do produto. O preceito não impõe uma constância
qualitativa em sentido estrito. São permitidas melhoras qualitativas, e também não são ilícitas
pioras não essenciais ou sensíveis de qualidade. Ilícitas são apenas as diminuições de
qualidade susceptíveis de induzir o público em erro, isto é, as deteriorações qualitativas
sensíveis e ocultas ou não declaradas ao público.
Daqui não se pode concluir que a tutela dos interesses dos consumidores é objectivo central
da legislação sobre marcas, uma vez que esta serve essencialmente os interesses dos seus
titulares; porém, os interesses dos consumidores são também aqui tidos em conta e
protegidos.

Constituição das marcas

• Princípio da capacidade distintiva

Os sinais, para serem marcas, hão-de ser capazes de individualizar e distinguir produtos,
artigos 222, 223 n° 1 al. a) CPI. Por falta de capacidade distintiva, não podem ser marcas os
sinais exclusivamente específicos, descritivos e genéricos.

Específicos são os signos que designam a “espécie” doas produtos, ou seja, os nomes comuns
dos produtos ou figuras que os exprimem, por exemplo, a palavra “ovo”. Os sinais descritivos
referem-se directamente a características ou propriedades dos produtos, por exemplo, à
qualidade: “Pura Lã”. Os signos genéricos designam um género ou categoria de produtos
onde se incluem os produtos que se pretende marcar com um desses sinais, por exemplo
“Refresco” para laranjadas. Também não podem ser marcas os signos constituídos
exclusivamente por sinais que se tenham tornado de uso comum para designar certos bens ou
para qualificar quaisquer produtos, por exemplo “Delux” ou “Ideal”, artigo 223 n° 1 al. d).

Quando estrangeiras, as denominações específicas, descritivas, genéricas e de uso comum


não podem ser marcas se elas forem conhecidas pelo público português ou pelo círculo de
clientes interessados. Se pertencerem a uma das línguas da União Europeia não podem ser
marcas, porque não é lícito ficarem os titulares de marcas registadas em Portugal beneficiados
em face de produtores nacionais e estrangeiros sem possibilidade de noutros países
registarem e usarem tais marcas, e sem possibilidade de com idêntica facilidade chegarem a
estrangeiros residentes ou em trânsito no País. Se as denominações pertencerem a línguas
exóticas ou mortas e pouco conhecida, então já poderão ser marcas.

Estes sinais sem capacidade distintiva são irregistáveis quando apenas eles estejam em causa,
quando se pretenda registar marcas exclusivamente compostas por tais sinais, não assim
quando eles sejam só um dos elementos, artigo 223 n° 2. São excepcionalmente registáveis
marcas constituídas por estas tipologias de sinais quando, antes do registo e depois do uso e
publicidade que deles foi feito, tenham adquirido ou carácter ou capacidade distintiva, artigo
283 n° 3. Acolheu-se a doutrina do secundary meaning, de origem anglo-saxónica.

São possíveis as marcas tridimensionais, artigo 222 n° 1, mas nem todas as formas dos
produtos ou embalagem são susceptíveis de constituir marcas. Não podem ser marcas as
formas sem qualquer capacidade distintiva nem as formas cujo carácter distintivo não releva
no campo das marcas, revelando antes noutros domínios da propriedade industrial. Não são
marcas as formas natural, funcional ou esteticamente necessárias, artigo 223, n° 1 al. b).

A “forma imposta pela natureza do produto” é a usual ou normal de que se revestem os bens
a cujo género ou espécie pertence o produto, por exemplo uma tesoura ou um parafuso.
“Forma necessária à obtenção de um resultado técnico” é a dada a um objecto de que resulta
um aumento da utilidade ou melhoria do aproveitamento do mesmo, e que poderá ser
protegida como “patente” ou como “modelo de utilidade”, artigos 51 e seguintes e 117 e
seguintes. A lei não permite que as formas funcionais sejam a apropriadas a título de marcas,
e são tuteladas a tempo potencialmente ilimitado, artigo 255. “Forma que confira um valor
substancial” ao produto é a forma cujo carácter estético ou ornamental influi decisivamente
no valor comercial dos produtos e que pode ser protegida como desenho ou modelo, artigos
173 e seguintes. Só as formas “arbitrárias” ou não “necessárias” podem ser marcas.

Também falta de capacidade distintiva uma única cor, mas é possível constituir marcas com
cores combinadas entre si ou em gráficos, artigo 223 n° 1 al. e).

• Princípio da verdade

Visa à veracidade das marcas, e a sua principal concretização encontra-se no artigo 238 n° 4
al. d) CPI, que estabelece a irregistabilidade das marcas que contenham sinais que sejam
susceptíveis de induzir o público em erro, nomeadamente sobre a natureza, qualidades,
utilidade ou proveniência geográfica do produto ou serviço a que a marca se destina.

O ponto relativo à proveniência geográfica precisa de algumas ponderações. O sinal pode ser
geográfico, com referência a uma zona, área ou região, e isto é importante porque uma
determinada área pode ter uma certa capacidade atractiva. Pode acontecer que os produtos
sejam originários da área indicada, estando respeitando o princípio da verdade; ou não ser
originário, e aí temos algumas hipóteses a distinguir. Temos três subcenários.

O sinal é uma denominação ou indicação geográfica, artigos 325 e seguintes. Nesse caso, não
é possível registar.

Não é denominação de origem ou indicação geográfica, e a proveniência é muito conhecida.


Por exemplo, inclui-se na marca o nome “cuba” para charutos fabricados em Lisboa: a marca
não pode conter o nome porque se está a enganar o público.

O nome geográfico pouco conhecido surge aos olhos do público como uma expressão de
fantasia ou arbitrária. A indicação geográfica abstrai-se e torna-se fantasiosa, pelo que é
registável.

O artigo 238 n° 6 diz que é recusado o registo de uma marca que seja constituída por
bandeira nacional em certos casos, sendo que as al. a) e b) também são manifestações do
princípio da verdade.

• Princípio da novidade e especialidade

As marcas têm de ser novas, distintas ou inconfundíveis, mas tal novidade apenas tem de
afirmar-se no âmbito de produtos idênticos ou afins, vigorando aqui o princípio da
especialidade, artigos 239 n° 1 al. a) e 245 n° 1 al. b) CPI, e ainda artigo 4 n° 1 da Directiva
89/104/CEE.

Tendo em vista estes artigos é possível identificar os casos em que o registo da marca deve
ser recusado.

A marca cujo registo se requer é idêntica e reproduz marca anteriormente registada, e os


produtos são idênticos: dupla identidade (marca idêntica, produtos idênticos).
As marcas são idênticas mas os produtos são afins, existindo risco de erro ou confusão para
os consumidores. Para que haja recusa, é necessário que haja risco de erro ou confusão.

As marcas são semelhantes e os produtos idênticos. Para que haja recusa, é necessário que
haja risco de erro ou confusão.

A marca e os produtos são semelhantes ou afins. Para que haja recusa, é necessário que haja
risco de erro ou confusão.

Quando é que existe semelhança ou afinidade entre produtos?

Quando a natureza e as características são próximas e as finalidades são idênticas ou


semelhantes (por exemplo, triciclo e bicicleta); ou quando a natureza é diversa e as
finalidades são idênticas ou semelhantes (por exemplo, fio de lã e fio de seda). Ou seja, temos
bens intermutáveis ou substituíveis, que satisfazem necessidades idênticas. Também devem
ser considerados afins os bens não intermutáveis ou substituíveis, quando o público
destinatário tenha a convicção de que os produtos têm a mesma origem, por serem
economicamente complementares (por exemplo, fios de lã e vestuário de lã).

Não se deve ir para além destas fronteiras, e a relativização deve operar a propósito do risco
de confusão, e não da afinidade dos bens.

Já no que diz respeito à semelhança entre marcas, este critério tem apoio legal, sobretudo no
artigo 245 n° 1 al. c). Os elementos essenciais para avaliar são a natureza gráfica, figurativa e
fonética. A grafia e a fonética interessam particularmente para as marcas constituídas por
letras ou números, bem como para as marcas mistas em que elementos daquele género
prevaleçam. Para as marcas figurativas e tridimensionais, interessa sobretudo atender à figura
e configuração. Quanto às marcas auditivas, a semelhança sonora é essencial. Também temos
de ter em conta a semelhança ideográfica (por exemplo, uma marca com o nome joaninha e
outra marca quer registar a marca como desenho de joaninha).

No juízo sobre a similitude, as marcas devem ser apreciadas global ou sinteticamente, e não
analiticamente, a fim de excluir do exame elementos ou segmentos que não têm capacidade
distintiva: o exame deverá recair sobre as marcas na sua totalidade. Isto não quer dizer que o
juízo deva ser “impressionístico”, não fundado em análise e ponderação das semelhanças e
dissemelhanças. É mais fácil registar uma marca com elementos de fantasia e arbitrários, pois
o risco é menor. Quando se utilizam elementos genéricos, de uso comum, o risco é maior.

Para que a marca não possa ser registada, não basta haver identidade ou semelhança com
outra marca, tem ainda de haver risco de confusão.

Este deve ser entendido em sentido amplo, para dar a maior tutela possível às marcas
registadas. Assim, temos o risco de confusão em sentido estrito, que ocorre quando os
consumidores podem ser induzidos a tomar uma marca por outra e, por isso, um produto por
outro; e o risco de associação, quando os consumidores, embora distingam os sinais, ligam
um ao outro e, consequentemente, um produto ao outro. Os consumidores crêem que se
tratam de produtos e marcas imputáveis a sujeitos relacionados entre si (por exemplo,
coligados num grupo de sociedades).
O risco de confusão depende de vários factores, nomeadamente do tipos de consumidores, do
grau de semelhança entre as marcas e entre os produtos assinalados, e da força e notoriedade
da marca registada anteriormente.

Os consumidores a considerar são, em primeira linha, aqueles a quem os produtos assinalados


com as marcas em causa se destinam. Depois, entre estes consumidores-destinatários, há que
considerar o consumidor médio, medianamente atento e razoavelmente diligente na
percepção de uma marca comunicada no mercado. Por outro lado, o consumidor médio é
aquele que é sensibilizado por certo sinal-marca e tem a capacidade de recordar uma marca
anteriormente registada e cuja imitação se questiona.

Releva ainda o grau de semelhança. O risco de confusão é tanto maior quanto maior for a
semelhança e os produtos.

Finalmente, o risco de confusão é maior quando a marca registada é uma marca forte, ou
muito conhecida. Quanto mais forte a marca, mais radicada está na memória cognitiva do
consumidor médio. Ou seja, as marcas fortes, muito conhecidas, são aquelas que mais peso
têm no registo de marcas com ela conflituantes; as marcas novas têm de ter, perante marcas
fortes, muito mais diferenças. As marcas fortes são mais condicionantes do que as marcas
frágeis ou débeis, porque as marcas pouco conhecidas são marcas que, por sua natureza, têm
pouca capacidade distintiva. O titular de uma marca expressiva há-de ter consciência de que a
opção por tal signo o expõe a riscos, pois outros sujeitos têm legitimidade para compor as
suas marcas igualmente com elementos sugestivos, artigo 223 n° 2. O risco de associação é
tanto maior quando maior for a notoriedade da marca registada.

• Princípio da licitude (residual)

Há vários fundamentos de recusa, previstos no artigo 238 n° 4 al. a), b) e c), n° 5 e n° 6 al. c)
e no artigo 239 n° 1 al. b), c), e d), n° 2 al. a) e b). Por exemplo quando usamos numa marca
expressões ligadas aos bons costumes, ou quando uma marca viola direitos de autor.
Chamamos a este princípio “licitude residual” uma vez que também o princípio da
capacidade distintiva e da verdade implicam a licitude da marca.

Conteúdo e extensão do direito sobre a marca

• Registo e direitos conferidos pelo registo

Para que se constitua um direito de propriedade sobre uma marca é preciso que a mesma seja
registada, artigo 224 CPI, e o registo é constitutivo. O processo normal de registo é regulado
pelos artigos 233 e seguintes. Para este processo, há hoje um regime especial de constituição
on-line de sociedades, que permite a simultânea aquisição de marca associada à firma da
sociedade.

Tem direito de prioridade para o registo quem primeiro apresentar regularmente o respectivo
pedido, artigo 11, mas, quem tiver apresentado em país da União de Paris ou da OMC um
pedido de registo de marca gozará, para apresentar o mesmo pedido em Portugal, do direito
de propriedade durante seis meses a partir da data do primeiro pedido, artigos 12 CPI e 4
CUP.
Os direitos conferidos pelo registo de marca são eficazes em todo o território nacional, artigo
4 n° 1. Para a tutela noutros países, terá de requisitar o registo nesses países, salvo em relação
aos Estados parte do acordo de Madrid, pois por intermédio do INPI pode requerer a
protecção da marca nesses países.

As marcas comunitárias têm carácter unitário produzindo os mesmos efeitos em toda a União
Europeia, sendo o seu registo efectuado num organismo Europeu, Regulamento 40/94, com
regulação interna no artigo 247 CPI.

O titular de uma marca registada goza da sua propriedade a título exclusivo, artigo 224 n° 1
CPI. Tem a faculdade de uso, transmissão e cessão, artigos 31, 32, 262 e 264; pode reclamar
contra pedido de registo feito por outrem de marca idêntica ou semelhante, artigos 236 e 237;
propor acção de anulação de registo concedido, artigo 266 n° 1; requerer judicialmente
medidas inibitórias contra violações do seu direito bem como indemnizações, artigos 338-I,
338-L e 338-N; o seu direito é protegido criminal e contra-ordenacionalmente, artigos 323,
324, 336 e 339.

• Limitações aos direitos conferidos pelo registo

O titular de marca registada não pode impedir que terceiros usem na sua actividade
económica o seu próprio nome e endereço ou indicações relativas à espécie, qualidade,
quantidade, artigo 260 al. a) e b). No entanto, isto só é assim quando o uso pelos terceiros
seja feito em conformidade com normas e usos honestos em matéria profissional, o que
significa que os sinais aludidos terão de aparecer em função descritiva, não como marcas.

Também não pode impedir que terceiros usem na sua actividade económica a sua marca,
quando tal uso não viole práticas honestas em matéria profissional e seja necessário para
indicar o destino dos produtos, nomeadamente no caso de acessórios ou peças sobressalentes,
artigo 260 al. c).

Outra limitação decorre do princípio do esgotamento.

Os direitos conferidos pela marca esgotam-se no momento em que coloca os produtos no


mercado, artigo 259. Por exemplo, um produtor exporta para França, em França um
comerciante compra esses produtos mais baratos e vende novamente para Portugal. O titular
da marca não pode impedir a comercialização destes produtos com base na tutela da sua
marca. Caso contrário, isto levaria ao fechamento dos mercados nacionais, a que cedo se opôs
o TJCE, corrente jurisprudencial que foi adoptada pela Directiva 84/104/CEE no seu artigo 7,
que a artigo 259 CPI reproduz.

No entanto, o esgotamento não é invocável se se verificar o n° 2 da directiva ou o n° 2 do


artigo 259: sempre que existam motivos legítimos, nomeadamente quando haja alteração do
estado das mercadorias. Um produto alterado, com a mesma marca, iria pôr em causa as
funções de indicação de origem, indicação de qualidade e atração publicitária da marca. A
mesma coisa sucede em princípio quando o sujeito apenas reembala os produtos. Só não é
assim em determinadas situações, por exemplo, quando a reembalagem não altera o estado
originário do produto (alteração da embalagem de cartão para plástico). Ou seja, a marca é
protegida quando se põem em causa as suas funções.
• Protecção das marcas de facto, livres ou não registadas

As marcas de facto, além de gozarem do direito de propriedade para o registo nos termos do
artigo 227 CPI, podem ser protegidas nos termos do artigo 239 n° 1 al. e): deve ser recusado
o registo de marca idêntica ou confundível com marca de facto quando se reconheça que o
requerente pretende fazer concorrência desleal.

De protecção especial gozam as marcas de facto notoriamente conhecidas em Portugal e no


círculo de consumidores dos produtos em causa, artigo 241 n° 1 e 2. Mesmo antes do registo
da marca notoriamente conhecida, o terceiro que a use, contrafaça ou imite está sujeito a
responsabilidade criminal. Protecção semelhante têm as marcas de prestígio não registadas,
artigos 242, 266 n° 1 e 2, 323 al. e) e 324.

Transmissões e licenças

• Transmissões

O sistema hoje é o da transmissibilidade das marcas independentemente da transmissão das


respectivas empresas, é um sistema de cessão livre. A propriedade de marca registada é
transmissível a título gratuito ou oneroso independentemente do estabelecimento, se tal não
for susceptível de induzir o público em erro, artigo 262 n° 1 e 3. A transmissão é ilícita, por
exemplo, quando a marca tiver o nome ou firma do transmitente, ou recompensas a ele
atribuída, ou quando os produtos do transmissário a assinalar com a marca sejam de natureza
diversa ou qualidade inferior às dos produtos do transmitente.

Com o trespasse do estabelecimento a título definitivo ou temporário, transmite-se


naturalmente a marca, salvo os casos do artigo 31 n° 5, sobre o âmbito convencional. A
transmissão inter vivos das marcas deve fazer-se por documento escrito, artigo 31 n° 6, e só
produz efeitos em relação a terceiros depois do respectivo averbamento no INPI, artigo 30 n°
1 al. a) e 2. As marcas de facto, por não serem objecto de direito de propriedade, não são
transmissíveis sem a empresa.

• Licenças

Actualmente, as licenças de exploração de marcas estão especialmente previstas nos artigos


32 e 264 CPI. Através de contrato oneroso ou gratuito pode o titular da marca registada cedê-
la a terceiro em licença de uso ou exploração. O contrato está sujeito a forma escrita e só
produz efeitos em relação a terceiros depois de averbado no INPI, artigo 30 n° 1 al. b) e 2.

Salvo acordo das partes, os licenciado não pode ceder a sua posição contratual nem conceder
sublicencias, artigo 32 n° 8 e 9. O licenciante não tem o poder-dever legal de controlar a
qualidade dos produtos com a sua marca assinalados pelo licenciado, nem este deve respeitar
os critérios de qualidade respeitados pelo licenciante, contudo, pode-se recorrer ao regime da
caducidade, artigo 269 n° 2 al. b). Se o contrato de licença prever algo sobre a qualidade dos
produtos fabricados ou dos serviços prestados pelo licenciado, o licenciante pode invocar
contra o licenciado que infrinja essa cláusula o regime geral do incumprimento dos contratos
e os direitos conferidos pelo registo, artigos 258 e 323 al. f).
Extinção do registo das marcas ou de direitos derivados do registo

• Nulidade

O registo de marca é nulo nos casos previstos no artigo 33 n° 1 por remissão do artigo 265 n°
1, e quando na sua concessão tenha sido desrespeitado o disposto no artigo 238 n° 1, 4, 5 e 6.
A declaração judicial de nulidade é requerível a todo o tempo por qualquer interessado ou
pelo Ministério Público, artigos 33 n° 2 e 35 n° 1 e 2. A eficácia retroactiva da declaração de
nulidade não prejudica alguns efeitos elencados no artigo 36.

• Anulação

É anulável o registo de marca quando na sua concessão tenha sido infringido o previsto nos
artigos 239 a 242, como determina o artigo 266 n° 1.

A ação de anulação pode ser proposta pelo Ministério Público ou qualquer interessado,
artigos 35 n° 2 e 266 n° 4, no prazo de 10 anos a contar da data do despacho da concessão do
registo; mas o direito de acção não prescreve se o registo tiver sido feito de má fé, isto é, com
conhecimento da existência de proibições relativas ao registo conhecido, artigo 266 n° 4. O
titular da marca perde o direito de requerer a anulação se, tendo conhecimento do facto, tiver
tolerado durante um período de 5 anos consecutivos o uso de uma marca registada posterior,
artigo 267 n°1.

• Caducidade

O registo da marca caduca quando tiver expirado o seu prazo de duração ou por falta de
pagamento de taxas, artigo 37 n° 1. Caduca em especial nos termos do artigo 269, por falta de
uso “sério” durante cinco anos consecutivo sem justo motivo, se a marca se tiver
transformado na designação usual no comércio do produto, e se a marca se tiver tornado
deceptiva.

O uso de marca é “sério” quando ela assinala produtos colocados no mercado de modo
estável ou não esporádicos e em quantidades significativas, quando a utilização não é
meramente simbólica. O uso sério poderá bastar-se com a utilização da marca em campanhas
publicitárias preparatórias da introdução dos bens no mercado.

Há “justo motivo” para o não uso de marca quando existam circunstâncias independentes da
vontade do titular que tal imponham.

O preceito do artigo 269 n° 2 al. a) CPI refere-se ao fenómeno da chamada, sobretudo em


Itália, “vulgarização” de marca. O registo da marca é passível de caducidade quando deixa de
aparecer como sinal distintivo de bens com certo nome, aparecendo como denominação
comum desses bens. Esta conversão pode realizar-se por iniciativa do titular ou explorador da
marca, dos concorrentes, dos distribuidores ou comerciantes, dos consumidores. Todavia, não
basta o seu uso generalizado como denominação específica d produto, pois a lei não perfilhou
a teste objectiva, mas a subjectiva: a caducidade só pode ser declarada quando a vulgarização
da marca seja consequência da actividade, ou inactividade, do titular, isto é, quando é ele que
inicia a utilização da marca como nome comum do produto ou quando ele não se oponha a tal
emprego.
• Renúncia

O titular da marca pode abdicar da propriedade que o registo lhe conferiu, artigo 38 n° 1 e 2.
A regra é a declaração unilateral e receptícia, dirigida ao INPI. O artigo 38 n° 5 diz que não
prejudica os direitos averbados, os contratos de licença de exploração estão salvaguardados.

Denominações de origem e indicações geográficas

Noção

Denominação de origem é o nome de uma região, de um local determinado ou, em casos


excepcionais, de um país, que serve para designar um produto originário dessa zona, cuja
qualidade ou características se devem essencial ou exclusivamente ao meio geográfico (por
exemplo, clima) e que é produzido, transformado ou elaborado na área geográfica delimitada,
artigo 305 n° 1.

Indicação geográfica é o nome de uma região, de um local determinado ou, em casos


excepcionais, de um país, que serve para designar um produto originário dessa zona, cuja
reputação, determinada qualidade ou outra característica podem ser atribuídas a essa origem
geográfica e que é produzido, transformado ou elaborado na área geográfica delimitada,
artigo 305 n° 1.

A principal diferença entre as denominações de origem e indicações geográficas está no facto


de as denominações identificarem produtos cujas qualidade global ou características se
devem essencialmente ao meio geográfico; as indicações produtos que, embora possam ser
produzidos com igual qualidade noutro local, devem a sua fama a esse local.

As denominações de origem e indicações geográficas visam sinalizar e distinguir produtos,


tal como as marcas, mas não se confundindo com elas e não podem dar origem a marcas.

As possibilidades de constituição das marcas são muito mais vastas. As marcas pertencem a
sujeitos determinados, enquanto que as denominações e indicações são propriedade conjunta
dos habitantes ou das pessoas instaladas nessa região, artigo 305 n° 4. Assim, podem ser
utilizados indistintamente por quem nessa região explora uma actividade. Ao invés da
generalidade das marcas, estes sinais distinguem sempre produtos originários de certas áreas
geográficas.

Porém, as denominações de origem e indicações geográficas têm grandes semelhanças com


as marcas colectivas constituídas por nomes indicando a proveniência geográfica dos
produtos, artigo 228 n° 2.

Protecção

A tutela das denominações e indicações exige, em regra, que as marcas estejam registadas. O
registo deve ser concedido às denominações e indicações respeitadoras dos requisitos
previstos nos artigos 305 n° 1, 2 e 3 e 308.

O registo destes sinais confere o direito de impedir o uso da palavra caraterística deles
componente, ou de signos confundíveis, para apresentar ou referir produtos idênticos ou afins
mas não provenientes das regiões demarcadas a que se reportam as denominações de origem
ou as indicações geográficas, artigo 312, n° 1 al. a), 2 e 3. Aquele uso é ainda proibido em
relação a produtos não idênticos quando a denominação ou indicação goze de prestigio em
Portugal ou na União Europeia e o seu uso vise, sem justo motivo, tirar partido do seu
carácter distintivo ou de prestígio, artigo 312 n° 4.

Pode-se ainda recorrer à responsabilidade civil nos termos dos artigos 483 e seguintes CC,
artigos 305 n° 4, 310, 316 e 338-L CPI, e à responsabilidade criminal, artigo 325.

As denominações e indicações não registadas também gozam de alguma proteção, nos termos
do artigo 310.

De protecção territorialmente alargada gozam as denominações de origem e as indicações de


proveniência objecto de registo internacional, artigo 309 CPI.

Extinção

• Nulidade

O registo é nulo quando na sua concessão tenha sido violado o disposto no artigo 308 al. b),
d) e f), artigo 313.

• Anulação

É anulável quando na sua concessão tenha sido desrespeitado o disposto no artigo 308 al. a),
c), e) e g), artigo 314.

• Caducidade

O registo caduca a requerimento de qualquer interessado, quando a denominação ou a


indicação se transformar numa designação genérica de um sistema de fabrico ou de um tipo
determinado de produtos,a artigo 315 n° 1. Parece ter sido consagrada uma concepção
objectivista, porém há alguns produtos que não ficam sujeitos à caducidade por
“vulgarização”, artigo 315 n° 2 e artigo 13 n° 2 do Regulamento 510/2006.

Recompensas

Noção

As recompensas são prémios e títulos de distinção oficiais ou oficialmente reconhecidos,


como condecorações, medalhas, diplomas ou atestados entre outros, concedidos a
empresários pela bondade dos respectivos estabelecimentos ou produtos, artigos 271 e
seguintes.

Propriedade e registo

As recompensas conferidas aos empresários atribuem-lhes a propriedade das mesmas, artigo


273, independentemente do seu registo. Aqui o registo parece não ser constitutivo, tem uma
função publicitária e certificadora. Serve a publicitar a titularidade das recompensas, a
garantir a veracidade e autenticidade dos títulos de concessão das mesmas e, nos termos doa
artigo 278, serve para que as pessoas que beneficiam desse registo possam indicar as
referências aí indicadas.

Extinção do registo

O registo de recompensa é anulável quando se prove que a mesma não foi concedida ao
sujeito mencionado no registo ou quando o título da recompensa for anulado, artigo 280.
Caduca quando a concessão da recompensa for revogada ou cancelada, artigo 281 n° 1, e o
titular pode a ele renunciar nos termos do artigo 38.
PARTE II:

LETRAS E LIVRANÇAS
NOÇÕES GERAIS

A evolução histórica como chave para a compreensão das particularidades da letra

Contrato de câmbio, câmbio trajectício e transporte de moeda: a “carta de pagamento”

Podemos situar o início do desenvolvimento da letra na Idade Média, em finais do século


XIII, com ligação ao contrato de câmbio e às necessidades do comércio.

Este contrato, na sua forma mais simples de câmbio manual, dava corpo à principal
actividade dos cambistas e consistia na simples troca presencial de uma moeda por outra, em
razão do seu peso, lei ou procedência, de forma não muito distinta da que ainda hoje se
emprega para a aquisição de divisas ao balcão de um banco.

A necessidade do câmbio radicava na diversidade da moeda com curso nos diferentes locais
onde os sujeitos exerciam o seu comércio, necessidade que se viu potencial na época pela
descentralização excessiva do direito de cunhagem de moeda e pela variação constante dos
seus valores relativos.

O que impulsionou a evolução para a modalidade do câmbio trajectício foram as dificuldades


associadas ao transporte de moeda causadas pela escassa segurança das vias de comunicação,
pelos custos associados ao transporte de dinheiro e pelas proibições de saída de numerário e
metais preciosos das cidades ou países. O contrato de câmbio passou assim de uma troca
presencial de moedas para uma operação que envolvia a antecipação de uma quantia em
dinheiro contra a promessa de resgatar mais tarde outra equivalente em lugar e moeda
distintos. É aqui que surge a carta de pagamento que o banqueiro emitia sobre o seu
correspondente estrangeiro e entregava ao cliente.

Nesta fase a circulação da letra era mais física do que jurídica, pois o sujeito indicado na letra
como portador não tinha a faculdade de transmitir, só ele estava autorizado a exercer o
dinheiro. A cláusula à ordem, que vem tornar possível a aquisição e exercício do direito por
sujeitos inicialmente não nomeados através do endosso, só compare no início do século XVII.

As letras associadas ao contrato de câmbio eram muitas vezes usadas só para transferir
fundos entre praças. Foram os comerciantes que perceberam o potencial da letra para fazer
um uso produtivo dos fundos enquanto estão fora, através do empréstimo desses fundos a
outrem contra remuneração, sendo o financiamento central no âmbito do contrato de câmbio.

A ligação intrínseca deste financiamento ao contrato de câmbio trajectício tornava-o


especulativo. O mercador ou banqueiro que emprestasse dinheiro nunca podia estar seguro
quando ao ganho que iria receber da transacção, pois as taxas de câmbio flutuavam entre o
momento da entrega e o da devolução dos fundos, podendo até ter uma perda. Era assim
usado para fugir à proibição canónica da usura, pois do ponto de vista externo era difícil
distinguir entre ganhos ocasionais decorrentes de flutuações de valor das moedas e ganhos
premeditados correspondentes à retribuição do uso do dinheiro.

Os agentes económicos começaram assim a utilizar a letra também como instrumento de


execução de simples mútuos onerosos, desligando-a da função de transporte de dinheiro, com
a chamada operação de câmbio fictício ou seco.
Deslocação do centro de gravidade para o plano documental

Para a letra atingir os contornos actuais e deixar de estar ligada ao contrato de câmbio a
evolução foi lenta e difícil. Implicou a deslocação do centro de gravidade para o plano
documental, ate então valorado como simples elemento de prova, e completou-se com a
concentração da disciplina jurídica sobre esse mesmo plano.

Fundamental para o desenvolvimento da letra entre os séculos XV e XVI foram as feiras,


como a de Champagne ou Lyon, que se realizavam durante o ano, tomadas como locais de
pagamento do preço titulado nas letras. A segurança e celeridade que o sistema envolvia deu
azo a um formalismo quase ritual tanto nas declarações como nos procedimentos, que
impulsionou o que hoje conhecemos por rigor cambiário e que esteve na origem dos
estereótipos legais das diversas declarações carrilares, que se bastam com a assinatura do
declarante em determinado sítio da letra.

Gradualmente diminui a importância das feiras, e a circulação física e jurídica expande-se


através do endosso. O domínio das letras deixa de ser assunto de especialistas para se tornar
ume expediente comum ao alcance do agente económico vulgar.

Entramos no período da letra como meio de pagamento, que dispensa e ocupa o lugar do
dinheiro.

A Lei Uniforme

No século XIX iniciou o chamado movimento unificador, que teve na base a urgência em
facilitar a circulação alargada de letras e livranças, fomentando a certeza, segurança e rapidez
dos seus circuitos.

Assim, em 1928, o Conselho da Sociedade das Nações convocou a Conferência, que veio
reunir em Genebra em 1930, que aprovou três convenções, uma relativa à Lei Uniforme
sobre Letras e Livranças; outra destinada a regular certos conflitos de leis em matéria de
direito cambiário; e a última respeitante ao imposto de selo sobre letras e livranças.

A Convenção de Genebra surgiu como resposta a uma necessidade de uniformização sentida


no plano internacional pelos agentes económicos, mas a harmonização não foi uniforme
como a que se pretendia. Isto porque muitos Estados ou não ratificaram as convenções, ou
fizeram algo uso das reservas que estas permitiam.

Para que servem e como são hoje utilizadas as letras e livranças

Principais funções

As letras e livranças desempenham uma função de garantia em sentido amplo ou de reforço


do crédito. Na ausência de cumprimento voluntário por parte do aceitante ou do emitente, o
credor dispõe de um meio expedito para obter a satisfação do seu direito. Não necessita de
interpor uma acção declarativa para fazer prova da existência e validade do crédito emergente
da relação fundamental, nem necessita de provar o incumprimento do devedor, basta-lhe
mover uma execução com base na letra ou livrança.
Desempenham igualmente uma função de garantia em sentido estrito, pois são utilizadas
como mecanismo de adjunção de patrimónios responsáveis a uma determinada dívida. Este
fenómeno está claro na prestação de aval ou nas assinaturas de favor, e aparece exponencial
quando na mesma posição obrigacional cambiária encontramos diversos subscritores.

Os títulos cambiários desempenham ainda uma importante função de financiamento, pois a


sua emissão cauciona a concessão de uma dilação de pagamento.

Ausente fica a tradicionalmente destacada realização do valor patrimonial da letra e livrança


através da sua transmissão por endosso, a utilização destes títulos com função de pagamento.

Tipos de utilização

Traço mais saliente do utilizo das letras e livranças é o da ausência de circulação dos títulos,
os quais não chegam a sair das mãos do tomador, sendo também constante que este coincida
com o sacador, quer dizer, que este saque à sua própria ordem. Substitui-se a trilateralidade
subjacente à emissão de letras por um contexto bipessoal, no qual se esvazia de sentido a
clássica apresentação da letra ao aceite, já que o mais vulgar é o aceite ser contemporâneo da
própria emissão da letra.

A circulação tem como destinatário habitual uma instituição bancária e processa-se no âmbito
de uma operação de desconto. Verificou-se um declínio do endosso em favor da figura do
aval com pluralidade de destinatários no domínio da vinculação cambiária das sociedades,
constituindo quase uma regra a prestação de cavalo pelos gerentes ou pelos sócios sempre
que as sociedades aceitam letras ou emitem livranças.

O recurso a letras e livranças em branco assume uma expressão muito significativa no âmbito
de prestações contratuais duradouras envolvendo uma componente financeira.

A relação jurídica cambiária

Não se confunde com o documento

O regime jurídico das letras e livranças está contido na Lei uniforme das Letras e Livranças,
aprovada por convenção internacional em Genebra em 1930 e que vigora como direito
interno português desde a sua ratificação em 1934.

As letras e livranças são documentos escritos dotados de elevado grau de formalismo, que
assumem grande importância enquanto suporte físicos infungíveis de legitimação activa e
passiva. Mas não são negócios jurídicos cambiários, nem se confundem com a relação
jurídica cambiaria que desses negócios jurídicos promana. Além da relação cambiária
propriamente dita, temos uma relação jurídica real sobre o documento em si, que em cada
momento há-de pertencer a alguém. Temos também relações obrigacionais extracartulares,
geradas pelas convenções executivas e relações fundamentais.

Conteúdo e estrutura

A relação cartular pode descrever-se como uma relação jurídica obrigacional, em cujo lado
activo encontramos um direito de crédito cujo objecto consiste numa prestação em dinheiro.
No lado passivo encontramos uma obrigação principal auxiliada por um sistema de
obrigações de garantia que impendem sobre os outros subscritores cambiários.

O accionamento desse sistema depende da concretização do risco correspondente ao


conteúdo da garantia, isto é, a ocorrência de falta de aceite ou de pagamento. Verificado esse
risco, as obrigações cambiárias comportam-se como obrigações solidárias em face do credor.
O risco garantido é o relativo à falta de pagamento, pois o aceite tende a ser contemporâneo
da própria emissão da letra.

Os negócios jurídicos cambiários

Características comuns

Os negócios jurídicos cambiários tem carácter constitutivo, pois a emissão da letra ou


livrança dá origem a uma específica relação jurídica separada e distinta de outra já existente.
Cada assinatura aposta sobre a letra, seja qual for a qualidade em que o sujeito intervém, faz
nascer contra o subscritor uma obrigação nova, substantiva e distinta de qualquer outra já
existente. Ao titular activo será reconhecido o correspondente direito de crédito cambiário. A
emissão do título funciona como pressuposto da constituição do direito, ao contrário do que
sucede nos títulos declarativos, que se limitam a declarar ou manifestar um direito existente.

Outra característica è a incondicionabilidade, o impedimento legal de que os seus efeitos


sejam submetidos a condição. A presença de uma condição retiraria a terceiros a
possibilidade de avaliar o valor real do direito através da simples leitura das inscrições
constantes da letra ou livrança. Resulta do artigo 1 n° 2 LU para o saque, do artigo 12-I para
o endosso e do artigo 26-I para o aceite, sendo que esta última imposição constitui a regra-
base para a modelação da responsabilidade cambiária de todos os obrigados de garantia
(sacadores, endossantes e avalistas).

Os negócios cambiários constituem um desvio ao princípio da necessidade de indicação da


causa: o conteúdo negocial cambiário não manifesta a causa económico-social, mas a ordem
jurídica sanciona a produção do efeito pretendido. Todavia a subscrição de uma letra ou
livrança desempenha, em cada caso concreto, uma determinada função económico-social,
portanto o negócio cambiário possui uma causa. Estamos perante uma separação analítica da
fattispecie, que faz com que a justificação da atribuição patrimonial realizada através do título
deva ser procurada fora do título. A causa pressupõe um contexto económico-jurídico
bilateral, um pacto ou um acordo extra-cartular, designado por convenção executiva, que
torna inteligível a subscrição do título por cada um dos sujeitos.

A relação jurídica cartular tem um processo de formação peculiar. No seu lado passivo
encontramos uma pluralidade de obrigados cujos vínculos se constituem em momentos
sucessivos e provêm de fontes diferentes, os vários negócios jurídicos cambiários.

A relação jurídica cambiária apresenta uma formação sucessiva, constituindo-se e


modificando-se por meio de negócios unilaterais que, além de incondicionais, se caracterizam
pela exiguidade de conteúdo. A LU, salvo no caso da declaração do sacador, limita-se a
exigir a assinatura do declarante e a sugerir a utilização de determinada fórmula, que pode
ser substituída por expressão equivalente. A origem histórica deste formalismo sincopado
remonta ao período das letras de feira, em cujo contexto se generalizou a utilização de
simples marcas ou iniciais apostas sobre as letras para indicar certos factos ou negócios.
Existe algum espaço de modelação deixado à autonomia privada nos diversos negócios
cambiários, mais ampla do lado passivo que do lado activo e, estas estipulações, assumem a
estrutura jurídica de negócios unilaterais, constituem cláusulas acessórias do respectivo
negócio cartular.

Saque

O saque é o negócio jurídico unilateral que tem por efeitos a constituição e atribuição do
direito cambiário, bem como a vinculação do sacador à garantia da aceitação e pagamento da
letra. O conteúdo da declaração negocial é fixado no artigo 1 LU, que estabelece os requisitos
essenciais da letra, que dizem respeito à declaração do sacador e constituem a sua forma,
podendo-se afirmar que “o saque cria a letra”, isto é, cria o suporte documental formal de
uma relação de crédito dotada de características próprias e sujeita ao regime especial da LU.

Além da constituição do direito cambiário, o saque determina a aquisição desse direito por
determinado sujeito, que pode ser o sacador ou terceiro, artigos 3-I e 1 n° 6 LU.

Produz também efeitos obrigacionais por força do artigo 9-I LU: o sacador, designado por
“obrigado cambiário inicial”, responde pelo pagamento da letra e pela respectiva aceitação.

Aceite

O aceite é o negócio jurídico unilateral dirigido à constituição da obrigação cambiária


principal. É o sacado quem se obriga pelo aceite a pagar a letra à data do vencimento, logo é
ao aceitante que o portador se deve dirigir para cobrar o crédito cambiário, artigo 28-I LU.

O conteúdo da declaração do aceitante não é fixado por lei, artigo 25-I LU, mas é
imprescindível a assinatura do declarante. Segundo o sistema de localização das assinaturas
constituído pela LU a assinatura do sacado é aposta na parte anterior da letra e, no caso do
aceite, deve acrescer o facto de se tratar da assinatura do sacado, porque o sacado está
sempre e necessariamente identificado, artigos 1 n° 3 e 2 LU, sob pena de não se constituir o
próprio título.

Na lógica da LU a constituição da obrigação do aceitante corresponde a um momento ulterior


ao do saque e pressupõe a realização de um acto de apresentação do aceite. Contudo, na
prática, o aceite tende a ser a primeira declaração cambiária inscrita no título, ou quando
muito contemporânea do saque.

Endosso

O endosso é um negócio jurídico unilateral cujo efeito fundamental consiste na transmissão


do direito cambiário, artigo 14-I LU, a par com a transferência da propriedade do documento.

Em simultâneo, a lei investe o endossante na obrigação de garantia da aceitação e pagamento


da letra, artigo 15-I LU. A doutrina refere outra consequência do endosso, o chamado efeito
de legitimação formal do portador da letra. De acordo com o artigo 16-I LU, o portador de
uma letra é considerado legítimo sempre que justifica o seu direito por uma série ininterrupta
de endossos. O estatuto de portador legítimo permite ao sujeito beneficiar da aplicação do
regime especial contido no artigo 16-II, suprindo falhas do nexo de derivação do direito
cambiário. Por outro lado, o devedor cambiário que realiza o pagamento ao portador legítimo
fica validamente obrigado, em conformidade com o artigo 40-III LU. O estatuto de portador
legítimo permite ao sujeito que detém a letra dispor do direito cambiário ou exercê-lo, o que
explica que desse estatuto se faça decorrer uma presunção de titularidade ou de legitimação
material.

CAROLINA CUNHA entende que não se possa considerar a legitimação formal um efeito do
endosso enquanto negócio jurídico. Semelhante legitimação surge como um efeito da
declaração escrita no título na sua mera factualidade, corresponda-lhe ou não um negócio de
endosso. Se alguém encontrar uma letra onde um sujeito figura como tomador, pode falsificar
a assinatura e a respectiva declaração de endosso a seu favor e, de seguida, endossar a letra a
outra pessoa. A legitimação formal do portador será, portanto, um efeito da aparência de
endosso documentada no título. O que releva, para apurar uma série ininterrupta, é o
conteúdo ostensivo da letra.

O negócio jurídico de endosso transmite, em simultâneo com o direito cambiário, a


propriedade da letra enquanto documento. O artigo 14-I LU, que se refere à transmissão de
“direitos”, pode ser interpretado como dizendo respeito a outro direito emergente da letra, o
direito de propriedade sobre o título. Ainda, o artigo 586 CC, sobre a cessão de créditos,
consagra uma obrigação de entrega a cargo do cedente relativa aos documentos e outros
meios probatórios do crédito. Podemos portanto dizer que, como estão em causa documentos
dispositivos, se reconhece uma verdadeira transmissão da propriedade de tais documentos,
acompanhando a cessão do direito documentado, não sendo aceitáveis as teses que dão
primazia ao perfil real no processo de transmissão do título.

Quanto à designação do beneficiário-adquirente do direito, ao lado do endosso nominativo, a


LU permite o endosso em branco. Neste caso, o portador do título poderá transmiti-lo brevi-
manu, artigo 14-II n° 3, por forma a evitar a obrigação de garantia prevista no artigo 15.

Quanto ao conteúdo da declaração de endosso, a lei não faz exigências especiais, permitindo
que, no caso do endosso em branco, seja reduzido até à mera assinatura do endossante, desde
que com uma localização precisa no documento, artigo 13-I.

O termo “endosso” é ainda utilizado para designar o endosso por procuração, artigo 18 LU, e
o endosso em garantia, artigo 19 LU, que não envolvem a transmissão do direito cartular.
Diferentes são os endossos não-translativos “encobertos”, em que a um endosso translativo,
subjaz ou um mandato para cobrança do crédito cambiário ou a constituição de uma garantia
que toma esse crédito por objecto.

Aval

A declaração de aval corresponde a um negócio jurídico unilateral através do qual o avalista


assume a obrigação de garantir o pagamento de uma letra, artigo 30-I LU. É um negócio que
respeita ao lado passivo da relação jurídica cambiária, produzindo meros efeitos
obrigacionais, característica que o aproxima ao aceite. No entanto, ao contrário do aceite, o
avalista não assume a obrigação principal, mas só uma obrigação de garantia, semelhante às
que da lei derivam para o sacador endossante.
Tanto o sacador como o endossante ingressam no círculo cambiário com um propósito
diverso da assunção de uma garantia. As suas declarações dirigem-se à criação do título, a
construir o direito e a transmiti-lo. As obrigações cambiárias surgem aí como um contrapeso
associado por lei à produção desses efeitos. São um expediente para acautelar a formação
sucessiva da obrigação principal do aceitante e para reforça o valor de circulação do título,
enquanto que o avalista assume voluntária e directamente uma obrigação de garantia, sem
qualquer nexo funcional com a criação ou transmissão do direito.

O ingresso do avalista no círculo cambiário requer a ligação ao avalizado, pois o artigo 31-IV
LU prescreve que o aval deve indicar a pessoa por quem se dá.

Qual o teor de tal ligação?

A doutrina divide-se quando à caracterização do aval: alguns consideram-o como uma


garantia subjectiva, destinada a caucionar o pagamento da letra por parte de um dos seus
subscritores, outros como uma garantia objectiva, destinada a caucionar o pagamento da letra
tout court. CAROLINA CUNHA entende não possa ser considerado uma garantia subjectiva,
porque, mesmo sendo estruturalmente uma garantia pessoal, a LU não permite tal inferência.

Falha, desde logo, a característica da acessoriedade, que consiste em a obrigação de garantia


ficar subordinada e acompanhar a obrigação garantida. Nos termos do artigo 32-II a
obrigação do avalista permanece mesmo no caso da obrigação que ele garantiu ser nula, e não
existe qualquer preceito que autorize o avalista a invocar contra o credor meios de defesa
próprios do avalizado.

Falha, depois, a característica da subsidiariedade, de acordo com a qual se concede ao


garante a faculdade de recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver executado todos os
bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito, artigo 638 n° 1 CC. O credor
cambiário na sequência da recusa de aceite ou pagamento, pode optar por accionar o avalista
ou o avalizado, artigo 47-II LU, sem que o primeiro disponha da prerrogativa de exigir a
excussão prévia dos bens do segundo.

O regime uniforme não permite portanto afirmar que o avalista garante ou cauciona a
obrigação do avalizado. Cauciona o pagamento da letra, inserindo-se a sua obrigação de
garantia na que singulariza o lado passivo da relação jurídica cambiária.

Isto não equivale a negar uma ligação entre a obrigação cambiária do avalista e a obrigação
cambiária do avalizado, pois aflora em diversos pontos da LU, como a exigência da indicação
da pessoa por quem o aval se dá, artigo 31-IV. Identificada a pessoa do avalizado, a sua
posição jurídica vai ser utilizada pela LU no contexto dos artigos 32-I, 32-II in fine, e 32-III.

O artigo 32-I permite estender subjectiva e objectivamente a obrigação do avalista, ou seja,


permite determinar perante quem responde e por que quantia responde, e a informação é
fornecida pela obrigação cambiária do avalizado.

O artigo posiciona o avalista na cadeia cambiária de regresso, permitindo determinar o


círculo de sujeitos perante os quais responde, e o posicionamento é necessário porque o
ingresso do avalista não ocorre por força da criação ou transmissão do direito. Vai responder
perante os mesmos sujeitos em face dos quais o avalizado é responsável.
Também decorre doa artigo que a configuração cambiária da responsabilidade do avalizado
vai servir de molde objectivo à responsabilidade do avalista, pois se trata de assegurar que a
responsabilidade cambiária do avalista não tenha um conteúdo mais gravoso do que
corresponde ao teor literal da obrigação cambiária do avalizado.

A ligação com a obrigação do avalizado pode relevar como causa de insubsistência da


obrigação do avalista, cuja vinculação não se mantém sempre que a obrigação do primeiro
seja nula por vício de forma, artigo 32-II. Estão em causa as situações em que o simples
exame do título permite concluir que a obrigação do avalizado não se constituiu validamente
ou não se constituiu de todo.

A posição jurídica do avalizado é utilizada pela LU para situar a pretensão do avalista que
paga a letra na ceia dos direitos de regresso, artigo 32-III. A norma posiciona o avalista na
cadeia dos direitos de regresso em simetria com o ponto de inserção da sua obrigação no
círculo cambiário.

Emissão de livrança

A emissão de livrança é o negócio jurídico unilateral através do qual o emitente constitui e


atribui direito cambiário, vinculando-se ao mesmo tempo a cumprir a principal obrigação
cambiária, sendo que o artigo 75 emprega a mesma técnica legislativa utilizada para o saque.

Na livrança, contudo, o acto de emissão constitui em simultâneo o direito cambiário e a


obrigação principal. O emitente vincula-se a pagar uma determinada soma e atribui a outrem
o correlativo direito de exigir tal pagamento. Está ausente o processo de formação sucessiva
da relação jurídica próprio das letras e produz, portanto, um efeito obrigacional, artigo 78
LU, ao mesmo tempo que cria e atribui o direito cambiário, determinando o sujeito que o vai
encabeçar, artigo 75 n° 5 LU.

Assinala-se, do ponto de vista económico-jurídico, a aproximação entre a letra e a livrança


levada a cabo pela prática através da combinação entre a frequência estática do saque à
ordem do próprio sacador e o modo através do qual se processa a criação da letra. Por outro
lado, é possível discernir uma marcada tendência para o recurso a livranças, em detrimento
das letras. Podemos concluir que o paradigma cambiário actualmente dominante em Portugal
é o que corresponde à livrança, seja pela assiduidade do recurso directo a esta categoria de
título, seja pela utilização das letras dentro de um quadro funcional coincidente.

Ao mesmo tempo, houve um afastamento do clássico contexto trilateral. Ainda que estejamos
em presença de letras, só residualmente iremos deparar com a tríade sacador/sacado-
aceitante/tomador, a qual se contraiu para dar lugar ao par aceitante/sacador à própria
ordem.

Circulação e exercício do direito cambiário

Circulação e cláusula não à ordem

Afirma-se frequentemente que a relação jurídica cambiária se caracteriza pela


indeterminação do sujeito activo, individualizando-se o credor cambiário através da posse do
título. CAROLINA CUNHA não concorda com esta posição.
Parte de um pressuposto não demonstrado, que o direito cambiário se adquire como efeito
automático da aquisição de um direito real sobre o documento, mas mesmo admitindo isto, o
credor nunca è desconhecido sendo o que, no momento em causa, se apresentar como
proprietário ou possuidor do título.

Mas a questão não se põe nestes termos. O ingresso na titularidade activa da relação
obrigacional cambiária dá-se por força de um negócio jurídico cambiário dirigido à sua
aquisição. Portanto a relação não apresenta como característica a indeterminação do credor,
este pode mudar com a circulação do título, mas é sempre e em cada momento perfeitamente
conhecido e identificado de forma directa, como decorre dos artigos 11-I e 1 n° 6 ou 75 n° 5 e
77, segundo os quais a cláusula à ordem é um elemento natural das declarações cambiárias.

O seu significado jurídico consiste essencialmente em autorizar o credor originário a


colocar um outro sujeito no seu lugar. A vinculação decorrente da subscrição do título já é
assumida no pressuposto de que poderá ter de vir a realizar o pagamento não ao sujeito que
de momento ocupa a posição de credor cambiário, mas sim “à sua ordem”. Os obrigados
devem estar cientes dos riscos que a subscrição do título os expõe em termos de perda de
excepções pessoais. Para alertar os subscritores, o documento deve conter a palavra letra.

A solidariedade passiva sui generis: vencimento e pagamento

A relação jurídica cambiária caracteriza-se pelo facto de termos uma tendencial pluralidade
de devedores. Para credor cambiário poder exercer o direito cartular contra os obrigados de
garantia, terá de comprovar a verificação do risco garantido, ou seja, a recusa do aceitante em
pagar a letra no vencimento através de um acto notarial forma o protesto, artigos 7 n° 1, al.
c), 14 e 119 a 130 Código do Notariado e artigos 44-I e IV LU.

Caso não seja lavrado protesto dentro do prazo fixado, o portador da letra perde os seus
direitos de acção contra todos os obrigados cambiários de garantia, restando-lhe unicamente o
direito de exigir o cumprimento pelo aceitante, artigo 53 LU.

Na fase que podemos chamar das “relações externas”, o artigo 47 LU estabelece a


responsabilidade solidária de sacadores, aceitantes, endossantes e avalistas, e deles o
portador pode reclamar, além da quantia inscrita no título, juros de mora e reembolso das
despesas de protesto e afins, artigo 48 LU.

A solidariedade passiva sui generis: direito de regresso

Surgem diferenças do regime-regra na fase das relações internas, no que diz respeito ao
exercício do direito de regresso do obrigado solvens sobre os restantes condevedores.

Segundo a lógica cambiária, quem deve suportar em definitivo o pagamento da quantia


inscrita no título é o aceitante da letra ou o emitente da livrança, na sua qualidade de obrigado
principal. Portanto, ou foi o aceitante/emitente quem pagou ao credor, facto que desencadeou
a extinção satisfatória de toda a relação jurídica cambiária, desobrigando todos os
condevedores, ou foi um dos garantes que efectuou o pagamento ao credor, dando início à
complexa fase de liquidação da relação cambiária.
Esta fase põe em movimento um sistema compartimentado e sequencial, em cujo interior a
responsabilidade, concretizada através do direito de regresso cambiário, se desloca num
sentido inverso ao percorrido pela circulação do título. A relação de liquidação processa-se
unicamente entre o solvens e os seus garantes, artigo 49-I LU, tipicamente, os obrigados
anteriores.

Ao mesmo tempo, o pagamento efectuado por um dos obrigados de garantia ao credor


desonera todos os obrigados posteriores, consubstanciando a rasura dos endossos
subsequentes, permitida pelo artigo 50-II LU, a tradução cartular dessa libertação. A LU
assinala ao pagamento efectuado ao credor um efeito liberatório sobre a vinculação interna de
obrigados diferentes do solvens.

As outras relações jurídicas convocadas pelo título

A convenção executiva: o “porquê” da subscrição e o exercício do direito cambiário inter


partes

Os negócios cambiários se esgotam num puro efeito de direito, seja a transmissão ou criação
do direito cambiário seja a assunção da obrigação, seja uma combinação de ambos.

Configuram um desvio ao princípio da necessidade de indicação da causa, e conteúdo


negocial não a manifesta e, não obstante, a ordem jurídica sanciona a produção do efeito
pretendido. Mas a subscrição desempenha uma determinada função económico-social, possui
uma causa, ainda que a sua localização não deva procurar-se no imediato conteúdo da
declaração unilateral emitida.

É fora do título que devemos procurar a função económico-social desempenhada por cada
negócio jurídico cambiário, e essa causa implica necessariamente uma relação, uma
bilateralidade: constitui-s sou transmite-se o direito em benefício de alguém, assume-se a
obrigação em benefício de alguém.

Existe sempre um pacto ou um acordo extra-cartular, expresso ou tácito, envolvendo o


sujeito que emite a declaração cambiária e outros sujeitos, pacto que explica a subscrição do
título e que é designado por convenção executiva.

A convenção executiva e a relação fundamental

A causa vertida na convenção executiva traduz com frequência a escolha da função


desempenhada pelo negócio cambiário em face de uma outra relação jurídica, que intercede
entre os mesmos sujeitos da convenção executiva e é conhecida pelo nome de relação
fundamental. Leva a doutrina a distinguir entre a convenção executiva enquanto causa
próxima e a relação fundamental enquanto causa remota do negócio cambiário.

O negócio cambiário surge como complementar ou instrumental em face de uma relação


jurídica ad hoc entre os mesmos sujeitos, relação susceptível de subsistir e se desenrolar
desligada de qualquer letra ou livrança. É esse nexo de instrumentalidade que vai ar conteúdo
à convenção executiva, aquela que intercede entre os sujeitos que são partes na relação
fundamental, podendo integrar o próprio negócio fundamental ou ser objecto de um acordo
posterior.
Porém, poucas vezes as partes celebram de forma expressa a convenção executiva, e quando
o fazem é frequente que o acordo celebrado se venha a revelar lacunoso quando a aspectos
essenciais.

Com muita frequência a convenção executiva corresponde a um enunciado tácito quanto à


concreta função dos negócios cambiários a que respeita e lacunoso quanto ao programa de
coordenação entre as relações cambiárias e fundamental. A função poderá ser determinada
através de inferências contextuais e aplicando o artigo 217 CC.

Às vezes a obrigação cambiária surge como executiva da obrigação fundamental: ambas


buscam a satisfação do mesmo interesse económico do credor. Dado que tal satisfação só
deve ocorrer uma vez, a relação entre ambas as obrigações é necessariamente de alternância.
Cabe às partes estabelecer o programa de coordenação na convenção executiva, algo que
raramente fazem, tornando-se por isso delicada a tarefa da interpretação e integração da
convenção, nos termos dos artigos 236 e 239 CC.

A convenção executiva na ausência de relação fundamental

Encontramos um grupo significativo de casos nos quais a função económico-social do


negócio cambiário não está ao serviço de uma relação jurídica diferente e separada entre os
mesmos sujeitos, mas diz respeito ao aproveitamento de utilidades inerentes ao instituto
jurídico das letras e livranças.

Pode nem sequer existir uma relação fundamental, só existe uma convenção executiva, que
vai estabelecer de que modo e em que termos tencionam as partes aproveitar jurídico-
economicamente as tais utilidades inerentes às subscrições cambiárias. Essas utilidades
reportam-se ao reforço da tutela do crédito pela adjunção de novos devedores, é o que sucede
no aval e nas subscrições de favor. Como o aval não é omisso quanto à causa, artigo 30-I LU,
não se torna necessário que a convenção executiva estabelece a sua função económico-social.
Nas subscrições de favor a função económico-social de garantia está estruturalmente
separada do negócio cambiário e localiza-se na convenção executiva, a convenção de favor.
Não existe uma relação fundamental ad hoc que sirva como “causa remota”, basta a “causa
próxima” plasmada na convenção de favor.

Noutro grupo de casos encontramos as situações de endosso para desconto bancário: aqui
existe uma relação fundamental, mas a sua fisionomia vai ser modelada sobre a relação
jurídica cambiária e não vice-versa. Não é ad hoc no sentido em que não subsiste
independentemente da existência da letra, é gerada por causa do endosso da letra.
ALGUM REGIME

Legitimação activa e passiva: os artigos 16 e 40 LU

As funções do documento cambiário

As relações cambiárias estão representadas num documento particular, que possui uma
imediata função probatória, artigo 376 CC.

Ainda, a redacção deste documento é exigida por lei para a válida constituição dos vínculos
jurídicos cambiários, artigos 1, 2, 75 e 76 LU, o que significa que os negócios jurídicos
cambiários são formais. Portanto, o documento escrito tem igualmente uma função
constitutiva no que diz respeito aos vínculos jurídicos cuja criação torna possível.

O que denota a importância do documento é a sua função dispositiva: a ligação entre o


documento e o direito reveste um carácter duradouro já que, mesmo ultrapassado o momento
genético, aquele concreto documento permanece fundamental para o exercício e transmissão
do direito cartular nele representado.

No que respeita ao exercício do direito, é requerida, artigo 38-I LU, a apresentação física da
letra no momento do pagamento ao sacado-aceitante, para que ele possa proceder à
verificação exigida pelo artigo 40-III LU.

Depois de pagar o sacado-aceitante tem o direito de exigir que a letra lhe seja entregue, artigo
39-I LU, faculdade de que goza qualquer dos co-obrigados que pague a letra, artigo 50-I LU.
Este poder visa, consoante o estatuto cambiário do solvens, proporcionar-lhe a segurança de
lhe não voltar a ser exigido o pagamento e o exercício do direito de regresso.

Também a transmissão do direito por via de endosso tem de constar do título, tornando a
respectiva exibição e entrega igualmente essencial à confirmação da titularidade do direito
pelo endossante e à possibilidade da sua subsequente cobrança.

Esta ligação permanente entre o direito e o papel que o documenta exprime apenas um
regime jurídico que fixa requisito de legitimação activa e passiva.

Legitimação activa e passiva: significado e fundamento legal

O conceito de legitimação activa traduz a habilitação para o exercício do direito cartular, que
pertence ao portador que justifica a sua posição cambiária por uma série ininterrupta de
endossos, artigo 16-I LU.

O conceito de legitimação passiva exprime o carácter liberatório assinalado ao cumprimento


da dívida cambiária. Fica validamente desobrigado o devedor que paga ao legitimado activo
no vencimento, artigo 40-II LU.

O efeito prático imediato destas normas é o de dispensar o portador de provar e o devedor de


averiguar a titularidade do direito cambiário, sendo excepções à regra pela qual a titularidade
do direito coincide com a legitimidade para o seu exercício, e à regra de que a prestação deve
ser feita ao credor sob pena de não extinguir a obrigação, pois o portador legítimo não é
inexoravelmente o titular do direito cartular, situação análoga à do artigo 583 n° 2 CC. O que
distingue o mecanismo cambiário da legitimação passiva é uma ideia de economia de meios:
um único e mesmo documento exibe um registo sequencial de transmissões.

A posse não vale título

Em matéria de letras e livranças não é a simples apresentação do documento que legitima o


portador-possuidor a exercitar o direito, ou que confere carácter liberatório à prestação que o
devedor realize. A legitimação é dada pela regular sucessão de endossos, o documento serve
de mero veículo ou suporte destinado evidenciar e comunicar a continuidade formal do nexo
de derivação do crédito cartular.

Segundo CAROLINA CUNHA, o decisivo não é a posse do título, meramente instrumental e


com função comunicativa, é a legitimação formal que o título ostenta. Contudo, a doutrina
dominante inclina-se para condensar a legitimação na posse do documento.

No caso de eventual dissociação entre a posse e a legitimação formal que consta do título, o
factor de legitimação formal documentada prevalece sobre o factor posse, o que permite
demonstrar onde se situa o centro de gravidade: não é correcto dizer que a legitimação
decorre da posse do título, ela resulta das declarações apostas no título, sendo a exibição o
modo de as dar a conhecer ao interessado.

Esta afirmação só não se aplica ao caso especial da letra ou livrança que circula endossada
em branco, isto porque uma tal circulação opera através de transmissões não documentadas,
consubstanciadas na simples traditio do papel no quadro do regime dos títulos ao portador.

O artigo 16-II e o “desapossamento”

A circulação do direito cambiário pode conhecer uma quebra decorrente da falta ou patologia
de um dos negócios transmissivos. O artigo 16-II permite suprir essa quebra, atribuindo o
direito cambiário a um terceiro, verificadas determinadas condições.

Constitui uma excepção à regra nemo plus iuris, com a particularidade de dizer respeito à
circulação de um direito de crédito e não de direitos reais.

Devem estar verificados dois requisitos: que o título ostente um “série ininterrupta de
endossos”, ou seja, um registo sequencial das transmissões do direito cambiário,
desembocando no terceiro; e que este não haja adquirido de má fé ou cometendo uma falta
grave, respeitando este requisito ao estado subjectivo do terceiro no momento em que adquire
a letra, reportado ao conhecimento ou cognoscibilidade da irregularidade anterior.

Basta ao portador demandado para devolver a letra exibir a cadeia de endossos exarada no
título, não tendo que fazer qualquer prova da ausência da má fé. É ao desapossado que que
cabe demonstrar essa má fé reportada ao momento da aquisição da letra. Na ausência daquela
cadeia de nada aproveita ao portador um eventual estado psicológico de boa fé.

O terceiro é protegido porque e na medida em que se confiou numa aparência de


titularidade. As expectativas e a confiança tuteladas pelo artigo 16-II são as que se fundam
objectivamente na cadeia de declarações exaradas no título, tuteladas através de uma
presunção ilidível, sendo o artigo 16-II in fine uma inversão do onus probandi. Apesar de não
ter efectivamente confiado na aparência da titularidade documentada na letra, o terceiro pode
ainda assim vir a beneficiar da atribuição do direito cambiário a non domino, basta que o
desapossado não consiga provar que a letra foi adquirida de má fé ou cometendo uma falta
grave.

Reivindicação e reforma

A LU abstém-se de disciplinar os aspectos ligados à materialidade do documento. O papel é


uma res corpórea, sujeita ao risco de se perder, de se deteriorar, de ser destruída, furtada ou
roubada. O sistema lida com a concretização deste risco em duas frentes.

Da conjugação do artigo 484 CCom com os artigos 1069 a 1072 CPC podia o proprietário
lançar mão de um processo judicial especial de reforma de documentos, de modo a obter um
“novo título”, mas este processo foi eliminado com a Reforma do CPC de 2013, pelo que a
reforma de letras e livranças seguirá agora os termos do processo comum.

Contudo, o processo judicial de reforma não é adequado aos casos em que o proprietário do
título extraviado conhece o seu paradeiro actual, isto é, sabe quem o tem em seu poder. Ai
deverá intentar uma acção de reivindicação contra esse sujeito, artigo 1311 CC.

Estes dois regimes incidem sobre o documento na sua materialidade, reconhecendo-se um


“direito sobre o papel” que deriva do regime jurídico que o torna imprescindível e quase-
infungível no plano do exercício e transmissão do direito de crédito. Por quase-
infungibilidade entende-se a genérica impossibilidade de o substituir ou de fazer valer em
seu lugar uma cópia, excepto nos casos previstos pelo artigo 51 LU, o que conduz à
necessidade de autónoma tutela jurídica do valor económico do papel, através do instrumento
jurídico do direito de propriedade, não bastando expedientes mais brandos como os previstos
nos artigos 575 e 576 CC para a cessão de créditos.

O artigo 17 LU e a inoponibilidade de excepções ao portador mediato

Relações imediatas e relações mediatas

A abstracção é uma técnica jurídica: opera uma cisão entre os efeitos jurídicos e a respectiva
causa, pois os efeitos jurídicos produzem-se com abstracção da sua causa e, portanto, com
abstracção das vicissitudes que possam afectar essa causa. No sistema jurídico alemão a
abstracção corresponde a uma opção legislativa de fundo aplicável a um conjunto de
situações. No sistema jurídico português não encontramos qualquer princípio da abstracção e,
quando o termo é usado em algumas situações, nem parece ser adequado.

O regime da LU encerra uma dualidade incontornável. Por um lado, as excepções ditas


causais fazem parte das excepções fundadas sobre relações pessoais, inoponíveis a um
terceiro portador da letra, nos termos da regra fundamental consagrada pelo artigo 17.

A ratio do preceito prende-se com a tutela da circulação do direito cambiário, cuja segurança
se pretende reforçar com a impossibilidade de o terceiro adquirente ver o exercício do seu
direito rechaçado mediante a invocação de vicissitudes emergentes de relações jurídicas que
lhe são estranhas. Por outro lado, a todo os ordenamentos jurídicos subjaz também ideia de
que seria excessivo e injustificado impedir semelhantes excepções causais de relevar inter
partes, isto é, sempre que o credor e o devedor cambiário que em concreto se defrontam
sejam, simultaneamente, partes na mesma convenção executiva.

Admite-se uma incontornável dualidade na posição defensiva do devedor cambiário,


consoante se encontre ou não ligado por relações pessoais ao credor cambiário que
concretamente o demanda. No plano terminológico, fala-se de “relações imediatas” e de
“relações mediatas”, coincidindo a ideia de imediatismo não com a contiguidade na
sequência cambiária mas com a participação numa mesma convenção executiva.

Como se explica e fundamenta esta dualidade na posição defensiva do devedor cambiário?

Segundo a doutrina tradicional fundamenta-se na abstracção das obrigações cambiárias e


explica-se através de um mecanismo de interruptor on/off: a abstracção só vale no domínio
das relações mediatas e “desliga-se” sempre que nos encontramos em presença de relações
imediatas.

Segundo CAROLINA CUNHA, isso não é abstracção no sentido rigoroso do termo, e não
precisamos de cunhar uma categoria de “abstracção intermitente” para compreender algo que
decorre das regras gerais das obrigações, isto é, do princípio res inter alios acta.

Inoponibilidade de excepções nas relações mediatas: princípio res inter alios acta

O princípio res inter alios acta aliis neque nocere neque prodesse potest é o núcleo
fundamentante da inoponibilidade das excepções causais ao terceiro credor cambiário, é a
ideia de que um terceiro não deve ser nem prejudicado nem beneficiado por contingências de
vínculos obrigacionais em que não tomou parte.

A relatividade é apontada como característica típica dos direitos de crédito pela generalidade
da doutrina, quer nos sentido estrutural de o direito de crédito implicar uma relação entre dois
sujeitos, quer no sentido de a sua eficácia se desenvolver exclusivamente perante o devedor:
só a ele pode ser oposto e só por ele pode ser violado. A relação obrigacional é desprovida de
eficácia externa, é irrelevante para terceiros.

É este princípio res inter alios acta que é reiterado pelo artigo 17 LU. Para estimular a
circulação dos títulos há que conferir ao adquirente do direito cambiário a segurança que
decorre da desnecessidade de averiguar relações pessoais alheias.

O artigo 585 CC permite que o devedor cedido oponha ao cessionário todos os meios de
defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com a única ressalva dos que provenham
de facto posterior ao conhecimento da cessão.

Estamos perante um afastamento do princípio res inter alios acta: o cessionário acaba
prejudicado pelos efeitos decorrentes de uma relação obrigacional alheia. A ratio apontada a
esta solução reside na tutela do devedor-cedido: não seria justo que fosse colocado em pior
situação pela mudança operada, sem a sua intervenção ou consentimento, na titularidade
activa do vínculo.
Por que motivo não merece o devedor cambiário protecção idêntica à do devedor comum, já
que também a ele não é dado intervir ou consentir na concreta transmissão do crédito
cartular?

O que justifica a radical diferença de estatutos entre o devedor-cedido na cessão de créditos e


na transmissão do direito cambiário consiste na chamada “cláusula à ordem”. Decorre dos
artigos 11-II e 1 n° 6 LU que a cláusula à ordem é um elemento naturalmente integrante das
declarações cambiárias.

O seu significado jurídico condiste em autorizar o credor originário a colocar outro sujeito no
seu lugar. A vinculação decorrente da subscrição do título cambiário já é assumida no
pressuposto de que o subscritor poderá vir a realizar o pagamento não ao sujeito que de
momento ocupa a posição de credor cambiário, mas sim à sua ordem, com as consequências
que o regime da transmissão por endosso acarreta no campo da inoponibilidade de excepções.

Assim se compreende a exigência legal de que o documento contenha a palavra letra inserta
no próprio texto do título e expressa na língua empregada para a respectiva redacção:
pretende-se alertar o subscritor para a exposição ao risco inerente à circulação do título
cambiário.

Oponibilidade de excepções nas relações mediatas: licitude da recusa de cumprimento

• Enquadramento geral do problema

As vicissitudes que afectam a relação cambiária não possuem todas o mesmo calibre, quer no
que toca às consequências que geram, quer no que toca à possibilidade de serem utilizadas
como obstáculo à pretensão de cumprimento. A determinação daquelas que o devedor
cambiário pode opor com sucesso à execução movida pelo credor imediato deverá ser levada
a cabo partindo da convenção executiva e dependerá dos contornos da situação concreta.

A simplificação procedimental inerente ao exercício do direito cambiário confere ao credor a


faculdade de exigir o pagamento de uma quantia em dinheiro com a simples apresentação do
título, nada mais tem que alegar ou provar para obter a satisfação do seu direito. Essa
satisfação pode ver-se impedida pelo êxito da oposição do devedor, mas o credor cambiário
benéfica da vantagem da inversão do ónus da prova, já que é ao devedor que cabe alegar e
provar os facto respeitantes à causa.

Esta simplificação combina-se com o estatuto de título executivo conferido às letras e


livranças pelo artigo 703 n° 1 al. c) CPC, pois servem de fundamento à instauração directa de
um processo executivo, sem precedência de processo declaratório. A invocação de excepções
causais pelo devedor terá de se acomodar no quadro processual traçado para a oposição à
execução mediante embargos, artigos 728 e seguintes CPC.

• Licitude da recusa de cumprimento da obrigação cambiária

Segundo CAROLINA CUNHA deve ser reconhecido ao devedor demandado o poder


potestativo de negar o cumprimento da obrigação cambiária, com fundamento numa
excepção de direito material atribuída pela convenção executiva. Esta figura corresponde à
“situação jurídica pela qual a pessoa adstrita a um dever pode, licitamente, recusar a
efectivação da prestação correspondente”. A sua particularidade é, no caso, de a sua fonte não
residir na lei mas sim no acordo das partes vertido na convenção executiva.

Havendo uma cisão entre o enunciado unilateral produtor do efeito jurídico (o negócio
cambiário) e a bilateralidade que o torna materialmente inteligível enquanto lhe assinala uma
função económico-social (a convenção executiva), as contrariedades surgidas ao nível da
relação fundamental não afectam “automaticamente” a existência ou a validade do direito
cambiário, pois este constituiu-se como um vínculo diferente e separado.

Portanto, a faculdade de o devedor recusar a prestação ao abrigo de uma excepção de direito


material caracteriza-se por deixar incólume o direito ao qual é oposta. Não se questiona a
validade ou eficácia da respectiva constituição, nem tão pouco se faz valer a posterior a
verificação de uma qualquer evento extintivo. O direito apenas fica suspenso, através de um
efeito contrário.

Sendo as letras e livranças títulos executivos, o devedor deverá deduzir a excepção de direito
material de que dispõe no âmbito da oposição à execução que lhe for movida, carreando para
o processo as vicissitudes que acometem a relação fundamental e demonstrando que, à luz da
interpretação da convenção executiva, tais factos o legitimam a recusar licitamente o
cumprimento da pretensão cambiária, extinguindo a execução, artigo 732 n° 4 CPC.

Outras modalidades de excepções fundadas sobre relações pessoais previstas no artigo 17

O artigo 17 LU determina a inoponibilidade das vicissitudes emergentes de relações jurídicas


que envolvem o devedor demandado mas não o credor demandante: as excepções fundadas
sobre relações pessoais dele com outros sujeitos.

Além das excepções causais, que decorrem da relação fundamental, podemos ter duas outras
modalidades.

As excepções que decorrem de convenções sobre o exercício do direito cartular dizem


respeito aos impedimentos emergentes de convenções ad hoc sobre o exercício do direito
cambiário. Negócios como o pactum de non petendo regulam o modo de exercício do direito
cartular entre os dois concretos sujeitos que os celebram, sempre que venham defrontar-se
nas vestes de credor e devedor cambiários. Os obstáculos que tais negócios coloquem só
poderão ser levantados quando o direito seja exercido por aquele credor contra aquele
devedor.

As excepções que decorrem de relações obrigacionais estranhas ao título, podem dizer-se


fruto de um acaso: acontecem quando, num plano alheio à relação jurídica cartular, o devedor
cambiário é credor do sujeito que concretamente o demanda. Em tal hipótese, na medida em
que lhe seja permitido lançar mão do instituto da compensação, o devedor pode eximir-se a
desembolsar a quantia objecto da prestação cambiária, mas apenas se o credor cambiário que
lhe exige o pagamento coincidir com o sujeito que lhe deve.

Embora o artigo 17 consagre tão-só a inoponibilidade destas excepções a terceiro, a norma


também consagra, por argumento a contrario, a inoponibilidade das mesmas excepções
pessoais entre os sujeitos dessa relação jurídica, solução em conformidade com os princípios
gerais de direito das obrigações, em particular com a regra pacta sunt servanda.
A parte final do artigo 17 LU como concretização da cláusula dos bons costumes

O artigo 17 permite a oposição de toda e qualquer excepção pessoal a um portador mediato


que ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.

Trata-se de uma concretização particular da proibição do exercício inadmissível de posições


jurídicas alicerçada na cláusula geral dos bons costumes, suplantando a imunidade que a
esse exercício confere o princípio res inter alios acta vertido no primeiro segmento da norma.

A imunidade conferida pelo artigo 17 não deriva de uma boa fé subjectiva que o terceiro
credor deva exibir, mas automaticamente do funcionamento do princípio res inter alios acta.
Daí que o portador nada tenha de demonstrar quanto às circunstâncias que rodearam a sua
aquisição para beneficiar de uma automática imunidade às excepções pessoais de que o
devedor demandado disponha.

A parte final do artigo 17 justifica-se por ser conhecida a necessidade de um mecanismo


corrector de situações extremas, que impliquem a violação dos bons costumes, e que
poderiam ficar sem resposta adequada sob a cobertura formal do princípio res inter alios
acta, ao contrário das ressalvas dos artigos 10, 16, e 40, que supõem a boa fé subjectiva.

A diferença reside no facto de o artigo 17 não remeter para a violação de deveres de conduta
no quadro de relacionamentos intersubjectivos, mas sim para a imposição de um decisivo
limite externo à actuação da autonomia privada.

O artigo 10 e a subscrição em branco

O artigo 10 LU aplica-se aos casos em que uma letra incompleta no momento de ser passada
haja, entretanto, sido completada e que se encontre nas mãos de um portador. Soluciona a
desconformidade entre o preenchimento da letra e o que designa por “acordos realizados”,
dirimindo o conflito de interesses latente: o embate entre o interesse do sujeito que
subscreveu a letra “incompleta” e o interesse do sujeito que é portador da letra “completada”.

Contexto prático da utilização de títulos em branco

Num contexto prático-teleológico, a emissão voluntária de um título incompleto explica-se


como uma prestação de garantia num contexto de relativa incerteza. Supõe normalmente uma
relação fundamental que comporta um direito de crédito ainda não inteiramente definido, ou
no seio da qual se prevê como apenas eventual a constituição de um direito de crédito.

Ocorre no âmbito de relações duradouras com prestações pecuniárias como expediente para
fazer face ao espectro do incumprimento. Determinante do recurso à letra em branco é o
carácter ilíquido, futuro e incerto da dívida (por exemplo, contratos de locação financeira ou
de mútuos) O acordo de preenchimento apresenta-se geralmente como uma cláusula do
contrato escrito e o incumprimento do cliente é o factos que tipicamente desencadeia o
accionamento do título.

Estão presentes dois factores: a incerteza, derivada do carácter eventual e quantitativamente


indeterminado da responsabilidade extracambiária do subscritor, e a garantia que para o
respectivo credor apresenta a posse do título em branco. Garantia no sentido amplo de reforço
ou segurança da posição creditória, pelo acesso imediato que faculta à via executiva e porque
proporciona ao credor a segurança de ficar desde logo com o título em seu poder. Chegado o
momento, completá-lo-á segundo o convencionado, mas sem dependência de qualquer nova
manifestação de vontade do devedor.

Conflito e solução do artigo 10 LU

O artigo 10 visa resolver um conflito que se equaciona em termos simples: o portador de um


título completo pretende exercer o direito nele documentado; o obrigado cambiário
demandado opõe-se, sustentando que o título foi por si subscrito em estado incompleto e que
o preenchimento não correspondeu à vontade que então manifestou.

O interesse do subscritor da letra ou livrança em branco aponta para que a declaração


cartular valha em conformidade com a vontade por si manifestada. Interessa-lhe que os
elementos inseridos por outrem coincidam com os que indicou querer. É-lhe irrelevante que o
sujeito que preenche o título esteja a actuar em obediência a instruções suas, o seu interesse
será igualmente servido por uma inscrição, mesmo aleatória, que coincida com a sua vontade.

Quanto ao modo como o subscritor se expôs ao risco de ver o seu interesse frustado, quando
existe uma destinação ao preenchimento por outrem, a exposição ao risco deu-se de forma
deliberada. Quando é emitido incompleto por lapso, a exposição ao risco foi desencadeada
por uma actuação negligente e, portanto, culposa em sentido técnico. Nestes casos o
subscritor tem a possibilidade de afastar o risco, o que permite afirmar que a sua criação lhe é
imputável.

Quanto ao portador do título completo, o seu interesse aponta no sentido de que o título valha
conforme foi completado, mas a dignidade de tutela jurídica do seu interesse apresenta
intensidades diversas.

O título valerá conforme foi completado quando o sujeito o adquiriu já preenchido e


desconhecia efectivamente a sua “historia”, a sua incompletude, sacrificando-se neste caso o
interesse do subscritor.

Caso o portador conheça a efectiva vontade do subscritor e, apesar disso, adquiriu o título
preenchido ou adquiriu em branco completando-o incorrectamente, a sua actuação é
censurável e não merece protecção.

Preenchimento abusivo: ónus da prova e consequências

Quem voluntariamente emite uma letra incompleta suporta o risco inerente a essa sua
actuação, o risco da inserção de um conteúdo não coincidente com a sua vontade, a menos
que se verifique um particular desmerecimento na posição do portador-adquirente por a sua
actuação ser passível de um juízo de censura ético-jurídica.

O portador limitar-se-á a exercer o direito tal como está documentado no título: o ónus da
prova recai sobre o subscritor em branco. É ele quem terá de provar que a letra ou livrança foi
preenchida “contrariamente” à vontade por si manifestada e, depois, para que essa
desconformidade seja motivo de oposição ao portador, terá igualmente de provar que este
adquiriu a letra de má fé ou cometendo falta grave.
Só demonstrando a desconformidade do conteúdo e a má fé do portador o subscritor
conseguirá reconfigurar a pretensão correspondente ao conteúdo inscrito no título, uma vez
que a formulação do artigo 10 determina que, de outro modo, não pode a inobservância da
vontade manifestada ser motivo de oposição ao portador.

É unânime na doutrina a afirmação de que o ónus da prova cabe ao devedor demandado. São
admissíveis todos os meios de prova, incluindo a prova testemunhal por presunções. Não se
aplica a conjugação do artigo 394 CC com o artigo 351 CC, pois aqui não está em causa um
ataque ao valor probatório do documento, mas sim a questão preliminar da discrepância entre
a própria declaração e a vontade do subscritor.

Existe possibilidade de tutela indemnizatória do subscritor que consegue provar a


desconformidade do preenchimento com a vontade por si manifestada, mas não a má fé ou
falta grave do portador e se vê, por isso, constrangido a pagar a letra ou livrança nos termos
em que foi completada.
CASOS PRÁTICOS RESOLVIDOS
CASO PRÁTICO I

António comprou em Janeiro de 2012 a Bernardo uma fábrica de encerados de plástico,


situada na periferia de Coimbra e totalmente equipada com a mais moderna maquinaria
recentemente adquirida por Bernardo. Nessa fábrica, instalada em prédio tomado de
arrendamento a Carlos, trabalharam arduamente vinte assalariados para colocar no mercado
os encerados sob a marca registada “plasticerados”. Bernardo vendeu a fábrica porque os
contratos de financiamento celebrados com uma sociedade que desenvolve a actividade
bancária (o “Banco”) causavam-lhe grande angústia e problemas de saúde.

Diga se António é comerciante.

Resolução

Para que A seja considerado comerciante, nos termos do artigo 13 n° 1, é necessário que
estejam preenchidos 4 requisitos: tem de ter capacidade; praticar actos de comércio; fazer da
prática de actos de comércio a sua profissão; e exercício da actividade em nome próprio,
pessoalmente ou através de representante (este último é um requisito implícito).

Quanto ao primeiro requisito, está aparentemente preenchido. Note-se que o que se exige
aqui é a capacidade de exercício (aptidão para actuar juridicamente, por acto próprio ou
mediante procurador), artigo 7.

Quanto ao segundo requisito, é necessário determinar se A pratica ou não actos de comércio.


A é titular de uma empresa que fabrica encerados de plástico. A actividade de fabrico de
encerados é uma actividade comercial, uma vez que está prevista no Código Comercial como
tal (primeiro modo de manifestação da comercialidade objectiva). O artigo 230 n° 1, diz que
são comerciais as empresas que “transformem, por meio de fábricas ou manufacturas,
matérias-primas, empregando para isso, ou só operários, ou operários e
máquinas” (actividade transformadora). Note-se que, apesar de este preceito falar em
“empresas”, na verdade serve para qualificar actos de comércio, entendendo-se empresas um
conjunto de actos objectivos enquadrados numa organização. Assim, A, ao explorar uma
empresa transformadora, é comerciante.

Quanto ao terceiro requisito, A tem de se dedicar à prática de actos de comércio de forma


habitual, reiterada e sistemática, e não de forma meramente ocasional ou esporádica. Por
outro lado, não se exige que a profissão comercial seja a única exercida pelo comerciante, ou
seja, pode ser meramente secundária. No caso, sendo A titular de uma empresa que fabrica
encerados de plástico, parece haver aqui profissionalidade no comércio, ainda que esta não
seja a actividade principal que exerça.

Finalmente, A exerce o comércio em nome próprio.

Tendo em conta o que foi dito, A é comerciante.


CASO PRÁTICO II

A Sociedade “PGP – Prego no Pão, Unipessoal, Lda”, que explora um restaurante na Baixa
de Coimbra, tem vindo a atravessar algumas dificuldades financeiras. Para as enfrentar,
conseguiu um empréstimo do Banco Big, S.A., do qual ficou fiador Marcelo Alves (advogado
e único sócio da “PGP”). Assim a Sociedade poderá, nomeadamente, satisfazer os
pagamentos em dívida a “AUJSV – Agricultores Unidos Jamais Serão Vencidos, CRL”, com
quem havia celebrado um contrato de fornecimento de batatas, cebolas e hortaliças.

I – Qualifique do ponto de vista jurídico-mercantil, os sujeitos e os actos mencionados.

II – Em matéria de firmas e denominações, diga o que entende por princípio da capacidade


distintiva e aponte um exemplo da sua violação.

Resolução

I – Quanto aos sujeitos, é possível identificar: a sociedade PGP, o Banco, Marcelo e AUJSV.
Quanto aos actos, importa qualificar: o empréstimo, a fiança e contrato de fornecimento.

– Sociedade “PGP – Prego no Pão, Unipessoal, Lda”: o artigo 13 é o preceito básico na


qualificação de sujeitos como comerciantes. O n° 1 abrange, na opinião da doutrina, quer
pessoas singulares, quer pessoas colectivas. Porém, no que toca às sociedades, dispõe o n° 2
que são comerciantes as sociedades comerciais. Como tal, temos de averiguar se a sociedade
PGP é comerciante, o que, nos termos do artigo 1 n° 2 do CSC, requer o preenchimento de
dois requisitos: tem de praticar actos de comércio e adoptar uma das formas das sociedades
comerciais (sociedade em nome colectivo, sociedade por quotas, sociedade anónima e
sociedade em comandita simples ou por acções). O segundo requisito está preenchido (adopta
a forma de sociedade por quotas, como a firma denota, artigo 102 CSC), importando
averiguar o primeiro.

A sociedade dedica-se à exploração de um restaurante. A actividade de restauração é uma


actividade de prestação de serviços, sendo qualificada como comercial por analogia juris.
Com efeito, COUTINHO DE ABREU defende o princípio segundo o qual as empresas de
prestação de serviço são comerciais, recorrendo à teleologia imanente ao sistema legal
mercantil, uma vez que podemos encontrar vários preceitos, quer no CCom. (artigos 230 n°
2, 3, 4, 5, e 7, e 463 e seguintes.), quer em diplomas ulteriores, que consideram comerciais
variadas empresas de serviços.

– Banco: para ser comerciante, é necessário que preencha os dois requisitos do artigo 1 n° 2
CSC, ter por objecto a prática de actos de comércio e adoptar um dos tipos de sociedades
comerciais. O segundo requisito está preenchido, pois é uma sociedade anónima, tendo na
firma a sigla S.A., artigo 275 CSC. Quanto ao primeiro requisito, é necessário averiguar se a
actividade bancária é comercial. A resposta é positiva: as operações de banco são qualificadas
pelo CC como mercantis, artigo 362 e seguintes.

– Marcelo Alves: não é comerciante, uma vez que é um profissional liberal (advogado). Com
efeito, as profissões liberais estão excluídas da comercialidade: além de os actos típicos
destas actividades não serem legislativamente qualificados como comerciais, quando os
estatutos jurídicos dessas profissões regulam o regime societário, nunca admitem sociedades
comerciais, o que é um indício de que o legislador considera estas actividades como não
comerciais (por exemplo, artigo 1 n° 2 do Decreto-Lei n° 229/2004, e artigo 94 n° 1 do
Decreto-Lei n° 487/99).

– “AUJSV – Agricultores Unidos Jamais Serão Vencidos, CRL”: estamos perante uma
cooperativa, uma vez que contém a abreviatura CRL na sua denominação, artigo 14 CCoop.
Para saber se é comerciante, temos de saber se as cooperativas podem ser incluídas no artigo
13 n° 1 do CCom. para este efeito. Com efeito, consideramos que o artigo 13 n° 1 admite
como comerciantes não só pessoas singulares, mas também pessoas colectivas.

Esta tese é sustentada em três argumentos: desde logo, quando a lei fala em pessoas, não
exclui as colectivas nem as restringe às singulares, sendo que a própria lei empresa por vezes
o termo “pessoas” para se referir às pessoas colectivas (artigos 68 n° 1, 75, 344 e 346 CCom,
7 n° 1 e 488 n° 1 CSC. Por outro lado, apesar de a lei se referir à “profissão” e esta parecer
remeter para as pessoas singulares, devemos entender que profissão aqui significa o exercício
de actividade de pessoas jurídicas. Finalmente, diz-se ainda que profissão implica lucro;
porém, entendemos que o lucro não é pressuposto essencial da profissão de comércio, numa
interpretação actualista que tem em conta a teleologia e as novas realidades económico-
empresariais.

Assim, as cooperativas, embora não sejam hoje qualificáveis como sociedades (não têm
escopo lucrativo, artigo 2 n° 1 do CCoop,) nada impede que sejam consideradas
comerciantes, desde que tenham objecto comercial. Para que a AUSJV seja considerada
comerciante, precisa como tal de ter objecto comercial, ou seja, é necessário determinar se a
actividade agrícola é ou não comercial.

Entendemos que não é comercial, com base nos seguintes argumentos: artigo 230 § 1 e 2 (o
primeiro diz que quando a actividade agrícola tem por acessória uma actividade
transformadora, esta não chega para qualificar como comercial, e o segundo exclui da
comercialidade o proprietário ou explorador rural qua faça fornecimento dos seus produtos);
artigo 464 n° 2 e 4 (as vendas de produtos agrícolas não são comerciais); e conjunto de
legislação sobre sociedades de agricultura de grupo e outros (Decreto-Lei 336/89 e 339/90),
reguladora de formas de exploração agrícola sob a forma societária, que dizem que só podem
ser sociedades civis sob a forma de sociedades por quotas.

– Empréstimo: na perspectiva do banco, o empréstimo é um acto de comércio objectivo,


artigo 362 CCom (primeiro modo de manifestação da comercialidade objectiva).

E do lado da sociedade?

Segundo o artigo 394, é acto de comércio objectivo se o dinheiro for utilizado para financiar
uma actividade mercantil, o que é o caso. O empréstimo é, como tal, um acto bilateralmente
comercial.

Nota: mesmo que não resultasse do caso que a dívida foi contraída para financiar uma
actividade comercial, ainda assim poderia ser um acto de comércio subjectivo (não resulta do
acto a não ligação com o comércio).
– Fiança: a fiança é um acto de comércio objectivo, estando previsto no CCom como tal
(primeiro modo de manifestação da comercialidade objectiva), artigo 101. Note-se que a
fiança só é considerada um acto de comércio objectivo se a obrigação garantida for mercantil,
o que parece ser o caso.

- Contrato de fornecimento de batatas: temos de analisar o acto do ponto de vista da


sociedade PGP e da cooperativa AUSJV.

Do lado da sociedade, é um acto de comércio objectivo, uma vez que, por interpretação
extensiva do artigo 230, entendemos que todos os actos conexionados com as empresas de
prestação de serviços são comerciais. A compra de géneros para o restaurante é um acto
conexionado com a exploração do mesmo.

Do lado da cooperativa agrícola, não é um acto de comércio objectivo, uma vez que o artigo
230 § 2, exclui da comercialidade o fornecimento que produtos, pelo proprietário ou
explorador rural, das suas propriedades.

II – Todos os comerciantes devem adoptar uma firma ou denominação, artigo 18 n° 1 CCom.


A firma é o vocábulo utilizado para designar o signo individualizador dos comerciantes, mas
também pode individualizar não comerciantes (artigo 37, sociedades civis sob forma
comercial, e artigo 39, empresários em nome individual que desenvolvem uma actividade
económica não comercial). Já a denominação designa preferencialmente o sinal identificador
de não comerciantes, porém há comerciantes que têm, não uma firma, mas sim uma
denominação (é o caso das cooperativas, artigo 12 n° 1 al. c) e 13 al. a) e 14 do CCoop).

O princípio da capacidade distintiva em matéria de firmas significa que as firmas devem ter
uma capacidade diferenciadora, permitindo identificar o seu titular. Este princípio está
previsto no artigo 33 n° 3 RRNPC e 10 n° 4 CSC.

Quanto às firmas dos comerciantes individuais e às firmas-nomes e firmas mistas das


sociedades e dos ACE, parece não haver problema, estes sinais, compostos por nomes de
pessoas ou por nomes e/ou firmas de sócios ou associados, têm capacidade distintiva. Já as
firmas-denominações das sociedades por quotas, anónimas e dos ACE, quando não tenham
elementos de fantasia, suscitam mais problemas, uma vez que não podem bastar-se com
designações genéricas, vocábulos de uso comum ou indicações de proveniência geográfica.
Por exemplo, a firma de uma sociedade de comércio de material informático não pode ser
Sociedade Informática, Lda.
CASO PRÁTICO III

Alberto celebrou com a “Grafimpress - impressões e actividade gráfica, S.A.”, um contrato


pelo qual Alberto ficou obrigado a actuar como agente da “Grafimpress”. Para poder cumprir
o referido contrato, Alberto teria, entre outras coisas, que arranjar um veículo automóvel. Por
isso, Alberto celebrou com a “Autoluxuoso - aluguer de automóveis, Lda”, com sede em
Coimbra, um contrato de aluguer de um veículo comercial de mercadorias para Alberto usar
no âmbito da actividade de agente.

I – Diga se o contrato de agência é ou não um acto de comércio.

II – Suponha que Alberto está a dever á “AutoLuxuoso” uma certa quantia pelo aluguer do
automóvel acima mencionado. Alberto é casado, no regime de comunhão de adquiridos, com
Zélia. Terá a “Autoluxuoso” algum fundamento para demandar ambos os cônjuges com vista
à obtenção do pagamento da quantia em falta?

III – Maria e Norberto querem constituir uma sociedade por quotas, também com sede em
Coimbra, que se dedicará à edição de uma revista sobre automóveis clássicos italianos e
pretendem que aquela sociedade tenha a seguinte firma: “Autoluxuoso Edições, Lda”. Tendo
em conta os elementos fornecidos, poderia ser aquela a composição da firma da sociedade em
causa?

Resolução

O contrato de agência é um “contrato pelo qual uma das partes se obriga a promover por
conta da outra a celebração de contratos em certa zona ou determinado círculo de clientes, de
modo autónomo e estável e mediante retribuição”, artigo 1 do Decreto-Lei 178/86.

Se a actividade de agenciamento for exercida através de uma empresa, então o contrato de


agência é qualificado como acto de comércio objectivo pelo artigo 230 n° 3 (primeiro modo
de manifestação da comercialidade objectiva). No caso, o contrato de agência foi celebrado
por Alberto, logo o artigo 230 não serve, no caso, para qualificar o contrato de agência como
acto de comércio objectivo.

Temos, na hipótese de o contrato de agência não ser celebrado por um empresário, outros
dois modos que cumulativamente permitem qualificar o contrato de agência como acto de
comércio objectivo.

Em primeiro lugar, pode ser qualificado como tal por analogia juris. Com efeito, podemos
retirar de vários artigos do CCom um princípio geral segundo o qual as actividades de
interposição de trocas pertencem ao comércio jurídico, artigos 362 e seguintes, 463 n° 1 a 4,
480 e 481. O agente exerce uma actividade de interposição de trocas (intermediação entre a
oferta e a procura de bens), logo o contrato de agência e os actos que por virtude dele o
agente pratica são actos de comércio objectivo.

Para além disto, temos ainda o diploma n° 178/86, que permite também qualificar o contrato
de agência como acto de comércio objectivo pelo terceiro modo de manifestação. É uma lei
que, de forma directa, qualifica o contrato como acto de comércio, uma vez que esta é uma lei
que tem objecto mercantil, ou seja, visa prosseguir interesses de comércio.
II – O artigo 1691 al. d) do CC diz que são da responsabilidade de ambos os cônjuges,
quando casados sob o regime da comunhão de adquiridos e da comunhão de bens, as dívidas
contraídas por cada um deles no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram
contraídas no proveito comum. Por estas dívidas respondem assim os bens comuns do casal
e, na falta ou insuficiência destes, solidariamente os bens próprios dos cônjuges, artigo 1695
CC. Este é um regime favorável aos credores, uma vez que não têm de provar que as dívidas
foram contraídas no proveito comum do casal, al. c); e a sua garantia patrimonial aumenta.
Os cônjuges podem sempre provar que a dívida não foi contraída no proveito comum,
afastando a aplicação do artigo 1691 al. d), porém esta é uma prova difícil uma vez que o
mais provável é que as dívidas visem o proveito comum e este proveito pode ser de qualquer
ordem (que não económica, por exemplo, intelectual), aferindo-se em função do resultado.

Decorre daqui que os credores têm de provar que as dívidas foram contraídas no exercício do
comércio; porém, este artigo tem de ser articulado com o artigo 15 CCom, que diz que as
dívidas comerciais do cônjuge comerciante se presumem contraídas no exercício do
comércio. Assim, o credor apenas tem de provar que a dívida resulta de um acto de comércio
e que o cônjuge é comerciante, o que é uma prova mais fácil.

Como tal, temos de saber se Alberto é ou não comerciante, e se a dívida resulta de um acto de
comércio. Alberto é comerciante, uma vez que preenche todos os requisitos do artigo 13 n° 1,
tem capacidade de exercício; pratica actos de comércio (actos de execução do contrato de
agência); fá-lo de forma sistemática, habitual e reiterada; e em nome próprio.

Quanto à dívida, esta resulta de um aluguer de uma viatura para utilizar no desempenho das
funções de agente. Nos termos do artigo 481, o aluguer é mercantil quando a compra tiver
sido comprada para se lhe alugar o uso, ou seja, é um acto de comércio objectivo para a
Autoluxuoso. Para Alberto, não parece ser um acto de comércio objectivo; porém, pode ser
qualificado como acto de comércio subjectivo.

Para que um acto seja considerado como acto de comércio subjectivo, é necessário que
preencha os seguintes requisitos: tem de ser um acto de comerciante, de natureza não
exclusivamente civil e se o contrário do próprio acto não resultar.

O primeiro requisito está preenchido (Alberto é comerciante), assim como o segundo


(segundo COUTINHO DE ABREU, são actos de natureza exclusivamente civis os que, por sua
natureza ou essência, não são conexionáveis em abstracto com o exercício do comércio, por
exemplo, actos de natureza extrapatrimonial como o casamento e a perfilhação).

Quanto ao terceiro, assenta numa averiguação em concreto do acto com o comércio do autor
desse acto, e pode desdobrar-se em três hipóteses: o requisito está preenchido se do acto
resulta a ligação com o comércio ou se não resulta a não ligação. No caso, parece resultar a
ligação, pelo que o requisito está preenchido.

Assim, a Autoluxuoso pode servir-se da presunção do artigo 15, demandando Alberto e Zélia.
Note-se que esta é uma presunção ilidível, pelo que estes podem provar que a dívida, apesar
de comercial, não foi contraída no exercício do comércio do cônjuge comerciante, o que não
parece ser porém o caso.
III – Está em causa o princípio da novidade ou exclusividade em matéria de firmas e
denominações, previsto nos artigos 33 n° 1 RRNPC e 10 n° 2 CSC. Segundo este princípio,
as firmas não podem ser iguais ou susceptíveis de erro ou confusão, no mesmo âmbito
territorial de exclusividade. Assim, se alguém obtém o registo da sua firma, tem o direito ao
uso exclusivo da mesma. Neste caso, tratando-se de sociedades comerciais, têm direito ao uso
em todo o território, artigo 37 n° 2.

O critério para saber se as firmas são susceptíveis de erro é o de saber se, atendendo à grafia
das palavras, ao seu efeito fonético, ao núcleo caracterizante ou à forma oficiosa dos signos,
público médio as não consegue distinguir ou crê que estão relacionadas. Ora, parece ser o
caso, uma vez que as firmas, recorrendo ambas à expressão “autoluxuoso”, são susceptíveis
de erro ou confusão pelo público médio, pelo menos crendo que se encontram especialmente
relacionadas.

Porém, uma vez que se tratam de actividades não concorrentes, pode colocar-se a questão de
saber se este princípio também vale. Aqui, há uma divergência doutrinal: para certos autores,
entre os quais NOGUEIRA SERENS, este princípio só valerá quando estejam em causa
actividades concorrentes, uma vez que aqui só aqui haverá risco de confusão e o artigo 33 n°
2 RRNPC manda atender à afinidade ou proximidade das actividades; porém, COUTINHO DE
ABREU tem o entendimento contrário. Para o autor, este princípio vale igualmente no âmbito
de actividades não concorrentes, apoiando a sua tese nos seguintes argumentos: continua a
ser possível e risco de confusão; existe ainda risco associável ao bom nome; e o artigo 33 n°
2 não diz que o critério da proximidade é o único critério, mas sim um dos.

Sendo assim, parece que há violação deste princípio no caso.

A tutela do direito à firma é feita através de uma tutela preventiva: certificados de


admissibilidade de firmas e denominações, emitidos pelo Registo Nacional das Pessoas
Colectivas, artigos 1, 45 e seguintes e 78 n° 1 RRNPC, que são necessários para a
constituição da sociedade, artigo 55 n° 1 al. b); e tutela repressiva, é possível intentar acções
judiciais que levem à revogação do registo, o artigo 60 prevê a competência do RRNPC para
declarar a perda do direito ao uso de firmas e denominações, e o artigo 62 confere aos
interessados o direito de exigir a proibição da utilização da firma, bem como uma
indemnização.
CASO PRÁTICO IV

Em 2009, A, desempregado em consequência da insolvência da sociedade de que fora


trabalhador, tomou de arrendamento a B um prédio situado na Rua da Sofia, em Coimbra,
para ali instalar uma oficina de reparação de material eléctrico. A, graças aos seus
conhecimentos e habilidade, alcançou rapidamente clientela numerosa, atraída pela
possibilidade de não ter que trocar de electrodomésticos. Em consequência disso, em Março
de 2010 A teve que contratar vários electricistas e empregados de balcão, ao mesmo tempo
que adquiriu maquinaria moderna e sofisticada. A passou então a dedicar-se
fundamentalmente ao exercício de funções comerciais. Em Dezembro de 2010, A,
aproveitando a boa imagem criada em torno da sua oficina, vende esta última à “Eléctrica
Popular - Reparação de Electrodomésticos, Lda”.

Diga se A é ou não comerciante.

Resolução

Devemos distinguir dois momentos – antes e depois de Março de 2010.

Antes de 2010, A, na qualidade de explorador de uma oficina de reparação de material


eléctrico, não é comerciante, uma vez que não se verifica o requisito da prática de actos de
comércio. Com efeito, o artigo 230 § 1, 2ª parte, exclui da comercialidade os artesãos, ou
seja, os produtores que utilizam predominantemente o trabalho manual e, como instrumentos,
ferramentas.

O Decreto-Lei 41/2001 veio introduzir algum ruído neste domínio, dizendo que a actividade
artesanal podia ser exercida através de uma empresa comercial, porém, devemos fazer aqui
uma interpretação restritiva em nome da unidade do sistema jurídico e entender que a lei se
quis referir a à sociedade civil sob forma comercial. Para além dos artesãos, encontramos os
serviços artesanais, que são actividades artesanais situadas no âmbito da prestação de
serviços e exercidas directamente pelos artesãos. Estas também não são comerciais, uma vez
que não se encontram especialmente regulados na lei e são análogos às actividades do artigo
230 § 1. A actividade de reparação de material eléctrico integra-se neste último domínio, não
sendo qualificável como comercial.

A partir de Março de 2010, , a actividade deixa de ser qualificável como não comercial, uma
vez que já não corresponde a um serviço artesanal, exercido directamente pelo artesão com
recurso ao trabalho manual, recorrendo antes a “maquinaria moderna e sofisticada”. Teremos,
como tal, uma actividade de prestação de serviços qualificável como comercial por analogia
juris. Com efeito, de vários preceitos normativos do CCom, artigos 230 n° 2, 3, 4, 5 e 7, e
463 e seguintes, e outros diplomas podemos retirar o princípio segundo o qual as empresas de
prestação de serviços são comerciais.

A partir de que momento é que A adquire a qualidade de comerciante? Precisamente a partir


de Março de 2010, uma vez que se entende que os sujeitos adquirem a qualidade de
comerciantes a partir do momento em que praticam o acto ou conjunto de actos que revelam
o propósito e a intenção de se dedicarem ao exercício reiterado de uma actividade comercial.
CASO PRÁTICO V

Alzira é dona e exploradora de um estabelecimento situado na Baixa de Coimbra no qual se


dedica pessoalmente ao arranjo de unhas, aproveitando ainda o espaço para revender
artesanato chinês que compra em Lisboa. Em 10 de Julho de 2010, Alzira, para se deslocar a
casa de algumas clientes mais idosas, comprou um pequeno carro utilitário à “CO2 – Alta
Velocidade, Comércio de Automóveis, Lda”, concessionária de uma marca oriental de
veículos automóveis.

I – Diga se o contrato de compra e venda do automóvel atrás mencionado é ou não um acto


objectivamente comercial.

II – Diga se Alzira é ou não comerciante.

Resolução

I – O contrato de compra e venda do automóvel é comercial da perspectiva da sociedade


CO2, mas não do lado de Alzira. Da perspectiva da sociedade CO2, trata-se da venda de uma
coisa móvel comprada com o intuito de revender, pelo que se trata de um acto de comércio
objectivo uma vez que está previsto no CCom enquanto tal, compra e venda comercial, artigo
463 n° 3 (primeiro modo de manifestação da comercialidade objectiva).

E do lado de Alzira?

Não se trata de uma compra e venda comercial, artigo 463 n° 1, uma vez que o automóvel
não se destina à revenda. Também poderíamos pensar que se pode ser qualificado como
comercial uma vez que se enquadra no exercício da sua actividade de esteticista (é um acto
acessório à sua actividade). Porém, tal só seria possível por interpretação extensiva do artigo
230, ou seja, se qualificássemos a actividade de esteticista como comercial por este preceito
normativo, o que não é o caso (apesar de ser uma prestação de serviços, está excluída da
comercialidade, por ser um serviço artesanal análogo ao art. 230 § 1 2ª parte).

II – A actividade principal de Alzira é a de esteticista, dedicando-se acessoriamente à


revenda de artesanato chinês. Para ser comerciante, é necessário o preenchimento de quatro
requisitos, artigo 13 n° 1 (capacidade de exercício; prática de actos de comércio; de forma
reiterada e sistemática; em nome próprio ou através de representante).

Quanto à actividade de esteticista, esta é não comercial e não possibilita a qualificação de A


como comerciante. Integra-se nos serviços artesanais (actividades artesanais, ou seja, que
recorrem predominantemente ao trabalho manual, situadas no âmbito da prestação de
serviços e exercidas directamente pelos artesãos), que são qualificados como não comerciais
por serem análogos ao artigo 230 § 1, 2ª parte.

Quanto à actividade de revenda de artesanato chinês, já é considerada actividade comercial,


artigo 463 n° 1 e 3, possibilitando a qualificação como comerciante. Com efeito, a revenda
traduz-se na prática de actos de comércio, sendo que o facto de esta ser uma actividade
secundária não impede a qualificação de comerciante. Não se exige que que seja uma
actividade principal, apenas que seja exercida de forma reiterada e sistemática.
CASO PRÁTICO VI

Em Maio de 2012 a “Mais Luz, CRL” celebrou um contrato com “Construções e Reparações
Veja, Lda” pelo qual esta se obrigou a fazer reparações no edifício onde aquela explora um
estabelecimento de (?), mediante contrapartida de 30.000€. As obras foram concluídas no
final de Agosto desse ano. Em 1 de Setembro seguinte, a “Construções e Reparações Veja,
Lda” apresentou a factura. “Mais Luz, CRL” pagou parte do preço somente em Maio do ano
corrente, pedindo desculpa pela demora “devida a atrasos no pagamento de propinas dos
alunos . . . é a crise sabe . . .”.

I – Em Outubro do ano corrente “Construções e Reparações Veja, Lda” comunicou à “Mais


Luz, CRL” que esta lhe deve 2.500€ a título de juros moratórios calculados nos termos
previstos no artigo 102 CCom. “Mais Luz, CRL” respondeu que nem ela nem a “Construções
e Reparações, Lda” são empresas comerciais não sendo portanto aplicável.

II – Há dias “Construções e Reparações Veja, Lda” pediu judicialmente a declaração de


insolvência da “Mais Luz, CRL”, com fundamento “no facto de esta não pagar os juros de
mora devidos, devendo pois ser afastada do exigente mundo do comércio”.

Quid iuris?

Resolução

I – O regime dos juros moratórios comerciais está previsto no artigo 102 CCom, sendo que,
para que este seja aplicável, é necessário o preenchimento de dois requisitos: tem de se tratar
de uma dívida comercial (isto é, proveniente de um acto de comércio); e ainda o credor tem
de ser titular de uma empresa comercial. No caso, o credor, “Construções e Reparações Veja,
Lda”, é titular de uma empresa comercial (em sentido objectivo), ou seja, de uma estrutura
económico-produtiva dirigida à actividade mercantil (a actividade de reparações e
construções é uma actividade de prestação de serviços, qualificável como comercial por
analogia juris).

Não sabemos se o devedor é ou titular de uma empresa comercial (explora um


estabelecimento de (?). Porém, uma vez que estamos uma empresa, aplica-se o cenário do § 3
e 5: o § 5 remete para o Decreto-Lei 63/2013, que alarga o âmbito de aplicação do regime dos
juros comerciais, uma vez que apenas fala em actividades económicas, logo, o devedor pode
ser uma empresa comercial ou não, ou uma entidade pública, artigo 3 al. b). Para além disto,
o Decreto-Lei 63/2013 também não diz que o credor tem de ser uma empresa comercial, logo
o regime dos juros moratórios previsto no par. 5.o aplicar-se-ia também se o credor fosse uma
empresa não comercial, desde que esteja em causa o fornecimento de bens e prestação de
serviços (artigo 3 al. b) do Decreto-Lei n° 63/2013).

A taxa de juro aplicável é, assim de, 8,15% - ver Portaria 277/2013; e Aviso n° 8266/2014
(relativo ao 2° semestre de 2014).

Sendo o devedor não fosse uma empresa, mas, por exemplo, um consumidor não empresário,
aplicava-se antes o regime do § 4 e a taxa de juro seria de 7,15%. Não se aplicando nenhuma
destas situações, aplicar-se-ia o regime do supletivo civil (artigo 559), cuja taxa é de 4%
(Portaria 291/2013).
II – Quanto aos requisitos de legitimidade activa e passiva, estes estão verificados: “Mais luz,
CRL” pode ser sujeito a uma declaração de insolvência (pessoa colectiva, artigo 2 n° 1 al.a)
do CIRE); e “Construções e Reparações Veja, Lda” é credor (artigo 20 n° 1).

Porém, para que um devedor seja declarado insolvente, tem de estar numa situação de
insolvência ou equiparada. Segundo o artigo 3 n° 1, “é considerado em situação de
insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações
vencidas” (insolvência actual). Assim, não basta um mero atraso, é necessária a
impossibilidade generalizada de cumprir as obrigações vencidas, pelo que o pedido não tem
fundamento.

Para além da insolvência actual, encontramos ainda duas outras formas de insolvência. A
forma prevista no artigo 3 n° 2, que ocorre quando o passivo seja manifestamente superior ao
activo e o devedor seja uma pessoa colectiva ou património autónomo por cujas dívidas
nenhuma pessoa singular responsa pessoal e ilimitadamente (não é o caso, tratando-se de uma
sociedade por quotas); e a insolvência iminente, prevista no artigo 3 n° 4, que está igualmente
excluída por apenas o devedor ter legitimidade para apresentar o pedido de insolvência com
este fundamento.
CASO PRÁTICO VII

Célia Santos, dona de uma loja de artigos para o lar, vendeu à Associação Recreativa e
Desportiva dos Olivais cinco serviços completos de chávenas de café (para a Associação
utilizar na pequena cafetaria aberta ao público que explora). Contraiu também um
empréstimo junto do “BLT - Banco Leva Tudo, S.A.” para enfrentar dificuldades de
tesouraria no pagamento a fornecedores, empréstimo do qual ficou fiador o seu genro Bruno
Baptista, advogado.

Qualifique, do ponto de vista jurídico-mercantil, os sujeitos e os actos mencionados.

Resolução

Sujeitos: Célia; Associação Recreativa e Desportiva dos Olivais; “BLT – Banco Leva Tudo,
S.A.”; Bruno Baptista.

Actos: venda dos serviços de chávena; empréstimo; fiança.

– Célia Santos: é comerciante, por preencher todos os requisitos do artigo 13 n° 1


(capacidade de exercício; prática de actos de comércio; fazer dessa prática profissão;
exercício da actividade em nome próprio). Com efeito, Célia dedica-se profissionalmente à
prática de actos de comércio, mais concretamente, a compras e vendas comerciais, actos em
que se traduz a exploração da loja de artigos para o lar (artigo 463 n° 1, compra de coisas
móveis para revender, e n° 3, venda de coisas móveis quando a aquisição houvesse sido feita
no intuito de as revender). A compra e venda comercial é um acto de comércio objectivo por
estar regulado no CCom (primeiro modo de manifestação da comercialidade objectiva).

– Associação: não é comerciante, uma vez que é um sujeito legalmente inibido da profissão
de comércio. O artigo 14 diz que não podem ser comerciantes as associações sem interesses
materiais. Note-se que o intuito deste preceito é o de excluir as associações da qualificação
como comerciante, não o de impedir que pratiquem actos de comércio. Assim, a associação
não é comerciante ainda que explore a cafetaria (empresa de prestação de serviços,
qualificável como comercial por analogia juris pelo princípio geral segundo o qual as
empresas de prestação de serviços são comerciais, artigo 230 n° 2, 3, 4, 5 e 7 e 463 e
seguintes). A exploração da cafetaria será um a forma de obter rendimentos (artigo 160 CC).

– Banco BLT: é comerciante. Segundo o artigo 13 n° 2, são comerciantes as sociedades


comerciais, sendo que as sociedades comerciais, nos termos do artigo 1 n° 2 CSC, devem
preencher dois requisitos, ter por objecto a prática de actos de comércio e adoptar uma das
formas das sociedades comerciais. O segundo requisito está preenchido, pois é uma
sociedade anónima (tem na firma a abreviatura S.A., artigo 275 CSC). Quanto ao primeiro,
está igualmente preenchido, uma vez que a actividade bancária é uma actividade mercantil,
estando prevista no CCom, artigos 362 e seguintes.

– Bruno Baptista: não é comerciante, uma vez que os comerciantes estão excluídos da
comercialidade. Além de os actos destas actividades não estarem qualificados na lei como
comerciais, os regimes jurídicos destas actividades nunca admitem sociedades comerciais, o
que é um indício de que o legislador entende que esta é uma actividade não mercantil (para as
sociedades de advogados, artigo 1 n° 2 do Decreto-Lei 229/2004).
– Compra e venda das chávenas: é necessário analisar o acto do lado da Célia e da
Associação. Do lado da Célia, é um acto de comércio objectivo por se traduzir numa venda
comercial (artigo 463 n° 3, primeiro modo de manifestação da comercialidade). Já da parte da
Associação, é igualmente um acto de comércio objectivo.

Com efeito, está em causa uma empresa de prestação de serviços, como vimos, sendo que
podemos devemos qualificar como comerciais não só os actos em que tipicamente o exercício
da empresa se traduz, mas também todos os actos enquadrados na exploração dessa empresa
(interpretação extensiva do artigo 230, que abrange todas as empresas de prestação e
fornecimento de serviços). É o caso da compra das chávenas para a cafetaria.

Note-se que o facto de a associação estar legalmente excluída da qualificação como


comerciante pelo artigo 14 não impede que pratique actos de comércio.

– Empréstimo: do lado da Célia, é um acto de comércio objectivo uma vez que a dívida é
contraída para o exercício da actividade comercial, artigo 394. Do lado do banco, é
igualmente um acto de comércio objectivo, estando previsto no artigo 362. Temos assim um
acto bilateralmente comercial.

– Fiança: é um acto de comércio objectivo, estando previsto no artigo 101 CCom (acto
acessório do empréstimo).
CASO PRÁTICO VIII

“BelaVida – Organização de Eventos, Lda”, celebrou com Ana Silva, João Gomes e Lúcia
Reis um contrato relativo à organização de uma grandiosa festa de formatura para estes três
recém-licenciados em Direito, festa que decorreu com pompa e circunstância no primeiro
fim-de-semana de Setembro. Para fazer face a despesas relacionadas com o exercício da sua
actividade, a BelaVida contraíra, em Julho, um empréstimo junto do banco “Banca Tudo,
S.A.”

I – Os três recém-licenciados ainda não pagaram o valor em dívida e um deles, João Gomes,
emigrou entretanto, pelo que a BelaVida pretende saber se pode exigir a Ana Silva e Lúcia
Reis a totalidade do preço. Responda-lhe.

II – A BelaVida não pagou a última prestação do empréstimo e o banco pretende exigir a


quantia em falta “com juros comerciais”. Pode fazê-lo?

Resolução

I – Está em causa saber se a responsabilidade de Ana, João e Lúcia é ou não solidária, isto é,
se se aplica a regra da solidariedade nas obrigações comerciais, prevista no artigo 100 CCom.

No caso, temos um contrato de prestação de serviços. Este é um acto objectivamente


comercial, sendo qualificado como tal através de analogia juris de vários preceitos
normativos do CCom, artigo 230 n° 2, 4, 5 e 7o e 463 e seguintes, e outros diplomas
podemos retirar o princípio geral segundo o qual as empresas de prestação de serviços, e os
actos praticados no âmbito da sua exploração, são comerciais.

Porém, este acto é comercial apenas do lado da BelaVida, ou seja, é um acto unilateralmente
comercial, a comercialidade refere-se apenas a um lado da relação. Ora, a lei, no artigo 99,
estabelece que nos actos de comércio unilaterais o regime jurídico aplicável a ambos os
contratantes é o regime comercial, com excepção das normas que só se apliquem aquele em
relação ao qual o acto comercial. O único preceito precisamente nestas condições é o artigo
100, ou seja, a solidariedade dos co-obrigados só respeita às partes em relação às quais o acto
seja mercantil.

Como tal, do lado da Ana, João e Lúcia a responsabilidade é conjunta e BelaVida só pode
exigir a cada um deles a sua parcela da dívida.

II – O regime dos juros moratórios comerciais está previsto no artigo 102 CCom, sendo que,
para que se aplique, é necessário que se verifiquem dois requisitos: tem de se tratar de uma
dívida comercial, ou seja, proveniente de um acto de comércio (corpo do artigo); e o credor
tem de ser uma empresa comercial (§ 3; empresa aqui é em sentido objectivo). Porém, é
necessário distinguir no artigo 102 dois cenários: o primeiro é dado pelo § 3 e 5, e o segundo
pelo 3 e 4.

Quanto ao primeiro, o § 5 remete para o Decreto-Lei 63/2013, que traz para o regime dos
juros comerciais situações de empresas não comerciais, ou seja, aplica-se aos casos em que o
credor é empresa comercial e o devedor é empresa comercial ou não, ou entidade pública
(artigo 3 al. b). Note-se que este Decreto-Lei alarga ainda o seu regime às situações em que o
credor é titular de uma empresa não comercial, podendo estar em causa uma empresa não
comercial, desde que se trate de prestação de serviços e fornecimento de bens (artigo 3 al.b).
Nestes casos, a taxa de juros comerciais é de 8,15% - ver Portaria 277/2013; e Aviso n°
8266/2014 (relativo ao 2° semestre de 2014).

É o caso. Em primeiro lugar, a dívida resulta de um acto de comércio objectivo, o


empréstimo. É comercial quer do lado do Banco (artigo 362), quer do lado da BelaVida
(artigo 394, empresa de prestação de serviços). Para além disto, o credor é titular de uma
empresa comercial, o Banco (a actividade bancária é comercial nos termos do artigo 362); e o
devedor é igualmente titular de uma empresa comercial. O Banco pode assim exigir a
totalidade da quantia em falta, acrescida de juros comerciais à taxa de 8,15%.

O cenário do § 4 aplica-se a todos os restantes casos, em que o devedor não é uma empresa
comercial, designadamente consumidores não empresários. Neste caso, a taxa é mais baixa,
de 7,15%.
CASO PRÁTICO IX

Armindo Barbosa é proprietário de uma fábrica de portas fortes e cofres. Fornece há muitos
anos a “Loja de Chaves da Areosa, SA”, no Porto, dedicada à comercialização de
equipamentos de segurança. Esta ficou a dever a Armindo o pagamento de 3 portas para
apartamento e 20 cofres de parede (fornecidos em Junho de 2011). A dívida venceu-se em
Agosto. Confrontado com o adiamento sistemático desse pagamento, Armindo pretende
exigir judicialmente o pagamento da dívida e os juros correspondentes. Tendo em conta que
não existe qualquer acordo entre as partes, qual a taxa de juro que se aplica à pretensão de
Armindo?

Resolução

Resposta semelhante às de cima.

A dívida emerge de um acto de comércio objectivo. Do lado de Armindo, é um acto de


comércio objectivo uma vez que está em causa a venda de bens de indústria transformadora
(primeiro modo de manifestação da comercialidade objectiva).

A doutrina (COUTINHO DE ABREU) entende que os actos abrangidos pelo artigo 230 são, não
apenas os actos e contratos em que o exercício da empresa se traduz, mas todos os actos e
contratos conexionados com a actividade de exploração da empresa, numa interpretação
extensiva (argumentos: o artigo 230 parece basear a tipificação de algumas empresas em
factos não jurídico-comerciais; a visão orgânica dos diversos actos em que a empresa se
traduz favorece esta tese; e as empresas referidas no artigo podem ser exploradas por não
comerciantes, não havendo assim lugar para os actos subjectivamente comerciais). Do lado
da “Loja de Chaves da Areosa, S.A.”, é igualmente um acto de comércio objectivo, compra
comercial, artigo 463 n° 1 (compra de coisas móveis para revender).

Por outro lado, Armindo é titular de uma empresa comercial (em sentido objectivo: unidade
jurídica fundada em organização de meios que constitui um instrumento de exercício
relativamente estável e autónomo de uma actividade comercial). Sendo o devedor igualmente
titular de uma empresa comercial, aplica-se o par. 5.o e a taxa de juros é de 8,15%.
CASO PRÁTICO X

Adozinda era dona e exploradora de um estabelecimento situado em Coimbra. Nesse


estabelecimento, instalado em prédio tomado de arrendamento a Bártolo, Adozinda explorava
há mais de 50 anos uma retrosaria. Como Adozinda tem já uma avançada idade, vendeu no
dia 1 de Outubro a César a sua retrosaria. César celebrou aquele negócio com a intenção de
eliminar a retrosaria e montar no mesmo espaço um estabelecimento em que pretende
dedicar-se à colocação de piercings e realização de tatuagens, o que Adozinda e Bártolo
desconheciam. Hoje, Bártolo apercebeu-se que César já retirara tudo o que Adozinda
mantinha no prédio arrendado e tem o seu novo estabelecimento montado e pronto a abrir
portas ao público, o que sucederá amanhã.

I – César é comerciante?

II – César pediu dinheiro emprestado ao Banco X e, para garantia do pagamento da quantia


em dívida, aceitou uma letra sacada pelo referido Banco. O saque e o aceite referidos são atos
de comércio objetivos?

Resolução

I – César não é comerciante, uma vez que a sua actividade é qualificável como não
comercial. Quanto à actividade que exerce, é trata-se da exploração de uma empresa de
prestação de serviços, que à partida seria qualificável como comercial através da analogia
juris (princípio segundo o qual todas as empresas de prestação de serviço são comerciais).
Porém, uma vez que a actividade que exerce recorre predominantemente a trabalho manual e
é exercida directamente pelo sujeito, estaremos ante perante uma prestação de serviços
artesanal, excluída da comercialidade por se tratar de actividades análogas à do artigo 230 §
2.

Note-se que o facto de a empresa ainda não ter aberto as portas ao público não impede que
não tenhamos já uma empresa (em sentido objectivo). A empresa ou estabelecimento em
sentido objectivo é uma unidade jurídica fundada em organização de meios que constitui um
instrumento de exercício relativamente estável e autónomo de uma actividade económica,
comercial ou não. Um estabelecimento com valores de organização (i.e., organização dos
elementos empresariais para dar origem a uma organização nova), mas sem valores de
exploração (valores que surgem com o relacionamento da empresa com o exterior – clientes,
fornecedores, financiadores, etc.), é uma empresa? A resposta é positiva: desde que tenhamos
valores de organização, minimamente aptos a realizar um fim económico- produtivo que lhe
garanta clientela, temos empresa, uma vez que temos já um bem jurídico novo, não redutível
á mera soma dos elementos agregados.

II – Sim, são actos de comércio objectivos, uma vez que estão previstos na LULL, uma lei
que veio substituir o CCom e que é, como tal qualificador de actos comerciais. Com efeito, o
artigo 4 da Carta de Lei de 28 de Junho de 1888 diz que tudo o que é substitutivo ou
revogatório faz parte do Código, legitimando como tal este modo de manifestação da
comercialidade. O artigo 2 n° 1 deve assim ser interpretado extensivamente, para abranger
este modo.
CASO PRÁTICO XI

A sociedade “ABC – Aprender Bem Conta, Lda.”, que explora um colégio na cidade de
Coimbra, tem vindo a atravessar algumas dificuldades financeiras. Para as enfrentar,
conseguiu obter um empréstimo do Banco CrediPouco, S.A., para garantia do qual a “ABC”
aceitou uma letra em branco avalizada (em benefício da aceitante) por Soraia Neves
(psicóloga e sócia maioritária da “ABC”) e sacada pelo Banco à sua própria ordem. Com o
financiamento obtido, poderá (nomeadamente) a ABC satisfazer os pagamentos em dívida a
“CarpinTudo, Fabrico Artesanal de Móveis, CRL”, a quem recentemente adquiriu
equipamento para renovar as salas de aula.

Qualifique, do ponto de vista jurídico-mercantil, os sujeitos mencionados.

Resolução

– Sociedade ABC: é comerciante (sociedade por quotas; com objecto comercial, prestação de
serviços, analogia juris).

– Banco: é comerciante (sociedade anónima; com objecto comercial – actividade bancária,


artigos 362 e seguintes).

– Soraia Neves: não é comerciante (profissional liberal). O facto de ser sócia maioritária não
a torna comerciante, uma vez que comerciantes são as próprias sociedades (artigo 13 n° 2).

– CarpinTudo: não é comerciante. Sendo cooperativa (artigo 14 CCom, denominação), é


comerciante se tiver objecto comercial (artigo 13 n° 1). Se fosse fabrico industrial de móveis,
a resposta seria positiva pelo artigo 230 n° 1; porém, tratando-se de fabrico artesanal, estará
excluída do comércio. Os artigos 230 § 1, 2ª parte e 464 n° 3, excluem do comércio a
actividade artesanal industrial-transformadora.
CASO PRÁTICO XII

Alberto, gerente único da “Lavibem – Lavandarias do Centro, Lda”, com sede em Coimbra,
comprou um automóvel para seu uso pessoal, tendo para o efeito aceitado duas letras sacadas
pelo concessionário da marca. De seguida, Alberto, actuando na referida qualidade de
gerente, comprou para a “Lavibem” uma máquina de limpeza a seco para instalar num dos
estabelecimentos daquela sociedade, compra essa que teve como vendedora a própria
fabricante da máquina.

I – Diga se os actos atrás referidos são ou não objectivamente comerciais.

II – A “Lavibem – Lavandarias do Centro, Lda” verificou que várias anos após a sua
constituição foi registada a firma da “Lavibem – Limpezas de Instalações Industriais do
Centro, Lda”, com sede em Leiria. Alberto procura um advogado para saber se pode reagir
contra o uso desta segunda firma, pois entende que é confundível com a da sociedade que
gere. O advogado diz-lhe, no entanto, que «não vale a pena sequer pensar nisso pois a
actividade das lavandarias nada tem a ver com as limpezas a que se dedica a sociedade de
Leiria». Será assim?

Resolução

I – Actos: compra e venda do automóvel; aceite e saque de letras; compra de uma máquina de
limpeza a seco.

– Compra e venda do automóvel: do lado de Alberto, não é um acto de comércio objectivo


uma vez que se trata de uma compra de uma coisa móvel para uso pessoal do comprador
(artigo 464 n° 1). Do lado do concessionário da marca, é um acto de comércio objectivo, uma
vez que se trata de uma venda de coisa móvel que foi adquirida com a intenção de revenda.

- Aceite e saque das letras: são actos de comércio objectivos, uma vez que estão regulados na
LULL. A LULL é uma lei que veio substituir a regulação do CCom. nestas matérias; ora, o
artigo 4 da Carta de Lei de 1888 diz que as leis substitutivas fazem parte. Este é um segundo
modo de manifestação da comercialidade, conseguido através de interpretação extensiva do
artigo 2 n° 1 do CCom.

- Compra e venda da máquina de limpeza: do lado da Lavibem, é um acto objectivamente


comercial. A actividade da Lavibem é uma actividade comercial, é uma empresa de prestação
de serviços (analogia juris, designadamente com o artigo 230; princípio geral segundo o qual
todas as empresas de prestação de serviços são comerciais). Os actos abrangidos pelo artigo
230 são, não apenas os actos em que tipicamente a exploração da empresa se traduz, mas
também todos os actos conexionados com ela: assim, a compra da máquina, enquanto acto
conexionado com a exploração, é comercial. Do lado do fabricante, é igualmente um acto de
comércio objectivo. A actividade de fabrico das máquinas é uma actividade comercial, artigo
230 n° 1, sendo que o artigo 230 deve ser objecto de uma interpretação extensiva para
abranger todos os actos conexionados com a exploração das empresas previstas. Assim, a
venda de bens da indústria transformadora é também um acto comercial.

II – Está em causa o princípio da novidade ou exclusividade em matéria de firmas e


denominações, previsto nos artigos 33. n° 1 RRNPC e 10 n° 2 do CSC, e que nos diz que as
firmas podem ser iguais ou susceptíveis de erro ou confusão, no mesmo âmbito de
territorialidade. Assim, se alguém obtiver o registo da sua firma, tem o direito ao uso
exclusivo da mesma, sendo que os comerciantes individuais (que não adoptam como firma
apenas o seu nome, artigo 38 n° 4) apenas têm direito ao uso exclusivo no âmbito do
concelho onde se encontra o seu estabelecimento principal (artigo 38 n° 4); enquanto que as
sociedades têm direito ao uso em todo o território nacional (artigo 37 n° 2). Note-se que,
apesar de o artigo 10 n° 2 CSC dizer que, quando a firma das sociedades for constituída por
nomes ou firmas de todos ou alguns sócios esta deve ser completamente distinta das que já se
acharem registadas, o que se pretende aqui é que estas firmas não sejam susceptíveis de
induzir em erro ou confusão.

Qual é o critério para saber se as firmas são confundíveis ou induzem erro? Isto sucederá
quando o público médio, atendendo à grafia das palavras, ao seu efeito fonético, ao núcleo
caracterizante ou à forma oficiosa dos signos, crê erroneamente que se trata do mesmo
comerciante ou de comerciantes distintos mas especialmente relacionados.

No caso, contendo ambas as firmas a expressão “Lavibem”, parece que são susceptíveis de
erro ou confusão, nos termos acima mencionados. Porém, a questão que se levanta é a da
saber se este princípio vale apenas no âmbito de actividades concorrentes, ou vale também no
âmbito de actividades não concorrentes. Quanto a este último aspecto, existe uma divergência
doutrinal: alguns autores, entre os quais NOGUEIRA SERENS, defendem que o princípio se
aplica apenas a actividades concorrentes, uma vez que o risco de confusão entre firmas nestes
casos é inexistente ou quase; e o artigo 33 n° 2 RRNPC manda atender à afinidade ou
proximidade entre as actividades. Porém, para outros autores, entre os quais COUTINHO DE
ABREU, o princípio vale igualmente no âmbito de actividades não concorrentes, recorrendo
aquele autor aos seguintes argumentos: ainda que sejam actividades diversas, continua a
existir o risco de erro ou confusão, principalmente o de crer que existem relações especiais
entre os comerciantes em causa; existe um risco associável ao bom nome, nomeadamente se
o comerciante que regista em segundo lugar a firma for declarado insolvente; e o n° 2 do
artigo 33 diz que a proximidade é um dos critérios, não o único, para ponderar a
susceptibilidade de confusão.

Assim, de acordo com a última posição, que é a que parece mais razoável e a que
perfilhamos, o direito ao uso exclusivo da firma “Lavibem – Lavandarias do Centro, Lda” foi
violado. Como tal, Alberto, enquanto titular da firma, pode reagir através dos meios de tutela
repressiva: pode intentar acções judiciais que levem à anulação, declaração de nulidade ou
revogação do registo; e pode ainda exigir a proibição da utilização da firma, bem como uma
indemnização, nos termos do artigo 62 RRNPC. Para além disto, a firma registada em
segundo lugar está sujeita à declaração, pelo RNNPC, de perda do direito ao respectivo uso
(artigo 63 RRNPC).
CASO PRÁTICO XIII

Antónia de Sousa Janeiro, licenciada em Direito desde 1990, é desde 2000 dona de uma
empresa de comercialização de mobiliário doméstico com sede em prédio de Coimbra dado
em arrendamento por Beatriz Abril. Carlos Maio é agente comercial, com escritório aberto ao
público, de Antónia.

I – Em Outubro de 2008, Antónia estava em mora perante Carlos e o Banco Tudo Boa Gente,
S.A. por dívidas contraídas na exploração da referida empresa. Têm esses credores direito a
juros comerciais?

II – Que firma Antónia de Sousa Janeiro podia ou tinha de adoptar? Adiante duas hipóteses.

Resolução

I – Para que se aplique o regime dos juros comerciais, é necessária a verificação de dois
requisitos: a dívida provir de um acto de comércio e o credor ser uma empresa comercial.

Quanto a Carlos, este é titular de uma empresa comercial (actividade de agenciamento


exercida através de uma empresa, artigo 230 n° 3), e a dívida, à partida, provém de um acto
de comércio. Do lado de Antónia, será um acto de comércio subjectivo: os actos
conexionados com a exploração da empresa só são objectivamente comerciais quando a
empresa seja qualificada como comercial pelo artigo 230, sendo possível a via da
comercialidade subjectiva uma vez que Antónia é comerciante (dedica-se a compras e vendas
comerciais, artigo 463 n° 1 e 3). Assim sendo, aplica-se o artigo 102 § 3 e 5 e a taxa de juro é
de 8,15%.

Quanto ao Banco, este é igualmente titular de uma empresa comercial (a actividade bancária
é comercial, artigos 362 e seguintes CCom); e a dívida provém de um empréstimo, que do
lado de Antónia é um acto de comércio objectivo pelo artigo 394. Aplica-se também a taxa
do § 5 de 8,15%.

II – Segundo o artigo 18 n° 1, todos os comerciantes devem adoptar uma firma ou


denominação. Os comerciantes individuais, como Antónia, devem adoptar uma firma nos
termos do artigo 38 n° 1 RRNPC.

Este artigo 38 prevê as regras que devem ditar a composição das firmas dos comerciantes
individuais: tem de ser composta pelo nome, completo ou abreviado (n° 1); o nome pode ser
antecedido de expressões ou siglas correspondentes a títulos académicos ou profissionais (n°
3); pode ser aditada ao nome alcunha ou expressão alusiva à actividade exercida (n° 1); e o
comerciante não pode abreviar o nome de forma reduzir a um só vocábulo, a não ser que haja
outros elementos que o tornem individualizador (n° 3).

Assim, duas firmas possíveis seriam: “Antónia Janeiro, Comerciante de Móveis” e


“Engenheira Antónia de Sousa Janeiro”.
CASO PRÁTICO XIV

A Mondego Mondeguinho, Lda., dedicada à limpeza de estradas, foi constituída no início de


2006 por António Abrantes e Bernardo Belo (sócios-gerentes). Em Fevereiro desse ano
celebrou dois contratos: um de empréstimo com a Estradas de Portugal, E.P.E., de quem
obteve a cedência de 250.000 euros; outro de associação em participação com Carlos
Carvalho, que contribuiu com 100.000 euros.

I – Qualifique as duas pessoas colectivas e os contratos referidos.

II – A Mondego Mondeguinho não restituiu no prazo estipulado o valor do empréstimo e dos


juros respectivos. A Estradas de Portugal, E.P.E. exigiu no mês passado esse valor acrescido
de juros moratórios legalmente comerciais. Aquela sociedade defendeu-se dizendo que quem
emprestou não é uma empresa comercial. Quid juris?

Resolução

I – Mondego Mondeguinho, Lda: é comerciante por preencher os dois requisitos das


sociedades comerciais (artigo 13 n° 2 do CCom e 1 n° 2 CSC): adopta uma das formas
comerciais, sociedade por quotas (firma, artigo 200 CSC); e tem objecto comercial (empresa
de prestação de serviços, analogia juris).

– Estradas de Portugal, EPE: no artigo 13 n° 1, incluem-se pessoas colectivas (referir


argumentos). As EPEs podem assim ser qualificadas como comerciantes, desde que a sua
actividade seja considerada como comercial. Assumindo que se dedica à construção de
estradas, temos uma actividade comercial pelo artigo 230 n° 6. Apesar de se referir apenas a
casas, devemos alargar o seu âmbito de aplicação a outras empresas de construção por
analogia legis. Como tal, é comerciante.

– Contrato de empréstimo: do lado da Mondego, é comercial desde que seja contraída para o
exercício da actividade (artigo 394). Do lado da Estradas de Portugal, também é acto de
comércio objectivo pelo artigo 362.

– Contrato de associação em participação: do lado de Carlos, não é acto de comércio


objectivo, uma vez que não está regulado na lei e o Decreto-Lei 231/81, que veio revogar o
regime do CCom da conta em participação, não pode atribui a qualidade de acto comércio
(não é uma lei substitutiva, conforme defende COUTINHO DE ABREU, uma vez que já não se
exige que o associante seja comerciante nem que a sua actividade seja comercial; e o regime
não é unitário e não parece ser de direito privado especial). Como tal, só poderá ser
subjectivamente comercial. Do lado da Mondego, é um acto de comércio objectivo uma vez
que todos os actos conexionados com a exploração das empresas previstas no artigo 230 são
comerciais (interpretação extensiva).

II – Requisitos do regime dos juros moratórios: a dívida provir de um acto de comércio; e o


credor ser uma empresa comercial (em sentido objectivo).

Vimos que os dois requisitos estão preenchidos: a dívida provém de um acto de comércio
(empréstimo); e a Estradas de Portugal é titular de uma empresa comercial em sentido
objectivo, ou seja, de uma unidade jurídica fundada em organização de meios que constitui
um instrumento relativamente estável e autónomo de exercício de uma actividade comercial.
Assim, aplica-se o § 3 e 5 e a taxa de juros moratórios é de 8,15%.
CASO PRÁTICO XV

Em Janeiro de 2007, a “Confecções Belaroupa, Sociedade de produção têxtil, Lda” celebrou


com Salvador, empreiteiro da construção civil, um contrato para a construção de uma nova
fábrica. Em Fevereiro do mesmo ano, a “Confecções Belaroupa, Sociedade de produção
têxtil, Lda” vendeu a Tiago, empresário, que explora vários circos em Portugal, um lote de
roupas destinado a trapezistas, palhaços e outros artistas de circo.

I – O contrato celebrado entre a Confecções e Salvador é acto objectivamente comercial?

II – Os três sujeitos são comerciantes?

Resolução

Do lado da Confecções, uma empresa comercial por se dedicar à actividade industrial-


transformadora (artigo 230 n° 1), o contrato é comercial uma vez que está conexionado com a
exploração da empresa (interpretação extensiva do artigo 230, com 3 argumentos: tipificação
das empresas com base em factos não jurídico-negociais, pelo que seria difícil delimitar os
actos objectivamente comerciais dos actos subjectivamente comerciais; visão orgânica dos
diferentes actos em que a empresa se traduz; e as empresas referidas no artigo podem ser
exploradas por não comerciantes, não havendo lugar para os actos subjectivamente
comerciais).

Do lado de Salvador, é igualmente um acto de comércio objectivo, uma vez que as empresas
de construção (não só de casas, mas também de outros edifícios e estruturas, por analogia
legis) são comerciais nos termos do artigo 230 n° 6. Note-se que estes actos apenas são
comerciais quando enquadrados organizatoriamente numa empresa, logo este acto só será
comercial se Salvador for titular de uma empresa (em sentido objectivo).

II – Confecções: é comerciante. Preenche os dois requisitos das sociedades comerciais


(artigos 13 n° 2 e 1 n° 2 CSC): adopta forma comercial (firma, artigo 200) e tem objecto
comercial (actividade industrial- transformadora, art. 230.o, n.o 1o).

– Salvador: é comerciante se for titular de uma empresa, como já vimos acima (caso
contrário, não pratica actos de comércio e não estão preenchidos os requisitos do artigo 13 n°
1).
CASO PRÁTICO XVI

Em Janeiro de 2005, A tomou em locação a “B, Lda” um ecógrafo para equipar a sua clínica
médica, a qual veio a abrir em Março do mesmo ano. “B, Lda” é uma sociedade cujo objecto
consiste no fabrico de moldes e que ficara com o referido ecógrafo no âmbito de uma acção
de execução por dívidas de um cliente seu, o que levou aquela sociedade a locar o
equipamento por um valor praticamente simbólico. Posteriormente, em Março, A contraiu
um empréstimo num Banco para financiar a aquisição de diversos outros equipamentos
necessários para a clínica.

Qualifique os actos e sujeitos.

Resolução

– A: é dono de uma clínica médica. As profissões liberais, entre as quais a profissão médica,
estão excluídas da comercialidade (actos em que se traduzem não estão qualificados
legislativamente como comerciais + estatutos jurídicos, quando prevêem o regime societário,
não admitem sociedades comerciais). Assim, em princípio a exploração de uma clínica
médica não é considerada uma actividade comercial. Porém, se a clínica desenvolver também
actividades de prestação de serviços (exemplo: casa de saúde), pode ser considerada uma
empresa comercial por analogia juris, e nesse caso A é também comerciante.

– “B, Lda”: é comerciante pelo artigo 13 n° 2, sociedade por quotas (artigo 200) e
desenvolve uma actividade comercial (industrial-transformadora, artigo 230 n° 1).

– Banco: desenvolve uma actividade comercial (artigos 362 e seguintes). Será comerciante se
adoptar uma das formas das sociedades comerciais.

– Locação do ecógrafo: do lado de A, em princípio não é acto de comércio, só o podendo ser


se a clínica for considerada prestação de serviços (nesse caso, é acto de comércio por
interpretação extensiva do artigo 230: os actos conexionados com a exploração de empresas
de prestação de serviços são comerciais). Do lado de B, sendo este uma empresa de prestação
de serviços, a venda é comercial por interpretação extensiva do artigo 230 (não temos um
aluguer mercantil uma vez que a coisa não foi comprada com o intuito de se lhe alugar o uso,
artigo 481).

– Empréstimo: é acto de comércio objectivo dos dois lados (artigos 362 e 394).
CASO PRÁTICO XVII

António, dono de uma fábrica de componentes de automóveis, adquiriu a Beltrão, agricultor,


um imóvel rústico para aí edificar um armazém. Entretanto, António contratou Carlos,
arquitecto, para elaborar o projecto do referido armazém e, ainda, de uma moradia de férias
que António iria construir.

I – A, B e C são comerciantes?

II – A compra de A a B é objectivamente comercial? Justifique.

III – O contrato celebrado entre A e C é subjectivamente comercial? Justifique.

Resolução

I – António: é comerciante, uma vez que explora uma fábrica de componentes de


automóveis, a actividade de fabrico de componentes é qualificável como comercial pelo
artigo 230 n° 1.

– Beltrão: não é comerciante, uma vez que a actividade a que se dedica, a agricultura, está
excluída da comercialidade (artigo 230 § 1 e 2 + 464 n° 2 e 4 + conjunto de legislação sobre
sociedades de agricultura de grupo, etc. que apenas admitem sociedades civis, Decreto-Lei
336/89 e 339/90).

– Carlos: não é comerciante, por se tratar de um profissional liberal (os actos não são
qualificados legislativamente de comerciais + os regimes jurídicos destas actividades nunca
admitem sociedades comerciais).

II – Segundo o artigo 463 CCom, as compras e revendas de bens imóveis só são comerciais
quando as compras tiverem sido feitas com intenção de revender, o que não é o caso. Assim,
do lado de B, a venda não é comercial.

Quanto à compra, ou seja, do lado de A, apesar de não ser uma compra comercial por se
destinar à construção de um armazém, é um acto objectivamente comercial porque se
encontra conexionado com a exploração da empresa (interpretação extensiva do artigo 230).

III – Do lado de C, não é subjectivamente comercial uma vez que C não é comerciante. Do
lado de A, é necessário analisar o contrato na parte em que se refere ao projecto do armazém
e na parte em que se refere à moradia de férias.

Para que um acto seja subjectivamente comercial, é necessário que preencha os seguintes
requisitos (artigo 2, 2ª parte): acto de comerciante; não pode ser de natureza exclusivamente
civil (tem de haver uma conexão em abstracto com o comércio); e se o contrário do próprio
acto não resultar. Os primeiros dois requisitos estão preenchidos, interessando-nos o último,
que assenta numa averiguação em concreto da conexão do acto com o comércio do autor
desse acto.

Este requisito pode desdobrar-se em 3 hipóteses: se do próprio acto resulta a ligação com o
comércio, está preenchido; se não resulta a não ligação, está igualmente preenchido; se
resulta a não ligação, não está preenchido. No que toca ao projecto para o armazém, o
requisito está preenchido (resulta a ligação: no entanto, o acto é absorvido pela
comercialidade objectiva uma vez que é um acto conexionado com a exploração da empresa);
porém, no que toca ao projecto para a moradia, resulta a não ligação e não pode ser
qualificado como subjectivamente comercial.
CASO PRÁTICO XVIII

O advogado António Leite aceitou em Janeiro de 2004 uma letra de câmbio, sacada por
“Bernardo Pereira, Unipessoal Lda.” para pagamento de equipamento informático que esta
revende e que aquele comprou. Ainda naquele mês de Janeiro, “Bernardo Pereira, Unipessoal
Lda” contratou Albino Teixeira como seu concessionário comercial e celebrou com a
“Imagitec – Publicidade e Marketing, S.A.” um contrato para a realização de uma campanha
de publicidade para tornar ainda mais conhecida a “Bernardo Pereira”.

Qualifique os sujeitos e actos referidos.

Resolução

– António Leite: não é comerciante (advogado, profissional liberal, excluído da


comercialidade com base nos 2 argumentos).

– Bernardo Pereira, Unipessoal Lda: comerciante, sociedade comercial (sociedade por


quotas, artigo 200 + actividade comercial, compra a venda de materiais informáticos, 463 n°1
e 3).

– Albino Teixeira: comerciante, dedica-se à prática de actos de comércio objectivos –


execução do contrato de concessão comercial. O contrato de concessão comercial é um
contrato pelo qual o concedente se obriga a vender sucessivamente bens por si produzidos e
distribuídos ao concessionário, obrigando-se este a promover, nas condições adequadas e em
nome e por conta própria, a respectiva venda. Não chega a compra e venda para qualificar
como comercial, uma vez que a concessão é um contrato diferente (duradouro; não se
confundindo com as compras e vendas sucessivas; e é mais complexo). Assim, é qualificado
como comercial por analogia juris com o princípio segundo o qual actos de interposição nas
trocas são comerciais (a concessão é pressuposto necessário da interposição nas trocas).

– Imagitec: comerciante, sociedade comercial (sociedade anónima, artigo 275 + objecto


comercial, actividade de prestação de serviços qualificada como comercial por analogia
juris).

– Aceitação e saque da letra de câmbio: actos de comércio objectivos, segundo modo de


manifestação da comercialidade, previstos na LULL que é uma lei substitutiva do CCom.

– Compra e venda do equipamento: do lado de António, não é comercial uma vez que o
material ao uso na sua actividade. Do lado de Bernardo Pereira, é uma venda comercial uma
vez que a sua compra foi feita com intuito de revenda (artigo 463 n° 3).

– Concessão: acto de comércio objectivo.

– Contrato para realização de publicidade: do lado da Imagitec, é um acto de comércio


objectivo, uma vez que se trata de um acto em que se traduz o exercício da empresa de
prestação de serviços (analogia juris). Do lado de Bernardo Pereira, não é acto de comércio
objectivo (só o poderia ser, enquanto acto conexionado com a exploração da empresa, se a
empresa fosse qualificada como comercial pelo artigo 230), só podendo ser acto
subjectivamente comercial (estão verificados todos os requisitos).
QUESTÕES TEÓRICAS
Diga o que entende por empresa em sentido objectivo e por empresa em sentido
subjectivo. Qual dos conceitos prevalece no direito de defesa do consumidor?

Podemos falar de duas acepções da empresa: em sentido objectivo e em sentido subjectivo.


Em sentido subjectivo, a empresa é vista como o sujeito jurídico que exerce a actividade
económica. Já em sentido objectivo, a empresa é o instrumento ou estrutura económico-
produtiva objecto de direitos e de negócios, ou seja, é uma unidade jurídica fundada numa
organização de meios que constitui um instrumento de exercício relativamente estável e
autónomo de uma actividade económica. São cinco as notas caracterizadoras de empresa em
sentido objectivo: bem complexo, formado por vários elementos; uma organização de
elementos, com vista à prossecução de um fim; um sistema aberto; e um bem jurídico
autónomo.

No direito da concorrência, a noção que prevalece é a de empresa em sentido subjectivo: são


empresas os sujeitos jurídicos que exercem uma actividade económica e que têm a
possibilidade de, em cooperação, de restringir a concorrência e afectar as trocas comerciais
entre os EM; ou a possibilidade de explorar, de forma abusiva, uma posições dominante, com
afectação do comércio intracomunitário. As empresas são tidas em sentido subjectivo pois só
estas podem celebrar contratos e acordos (artigos 101 e 102 TFUE), são passíveis de sanções
(artigos 23 e 24 do Regulamento no 1/2003), etc.

Porém, o conceito de empresa predominante na nossa lei é o de empresa em sentido


objectivo.

Em matéria de firmas e denominações, diga o que entende por princípio da capacidade


distintiva e aponte um exemplo da sua violação.

Todos os comerciantes devem adoptar uma firma ou denominação, artigo 18 n° 1 do CCom.


A firma é o vocábulo utilizado para designar o signo individualizador dos comerciantes, mas
também pode individualizar não comerciantes (artigo 37, sociedades civis sob forma
comercial, e artigo 39, empresários em nome individual que desenvolvem uma actividade
económica não comercial). Já a denominação designa preferencialmente o sinal identificador
de não comerciantes, porém há comerciantes que têm, não uma firma, mas sim uma
denominação (é o caso das cooperativas, artigos 12. n° 1 al. c) e 13 al. a) e 14 CCoop).

O princípio da capacidade distintiva em matéria de firmas significa que as firmas devem ter
uma capacidade diferenciadora, permitindo identificar o seu titular. Este princípio está
previsto no artigos 33 n° 3 RRNPC e 10 n° 4 CSC. Quanto às firmas dos comerciantes
individuais e às firmas-nomes e firmas mistas das sociedades e dos ACE, parece não haver
problema. Estes sinais, compostos por nomes de pessoas ou por nomes e/ou firmas de sócios
ou associados, têm capacidade distintiva. Já as firmas-denominações das sociedades por
quotas, anónimas e dos ACE, quando não tenham elementos de fantasia, suscitam mais
problemas, uma vez que não podem bastar-se com designações genéricas, vocábulos de uso
comum ou indicações de proveniência geográfica. Por exemplo, a firma de uma sociedade de
comércio de material informático não pode ser Sociedade Informática, Lda.
“Todos os deveres previstos no artigo 18 CCom são exclusivos dos comerciantes – os
não comerciantes não têm qualquer dever semelhante” Comente

A qualificação de um sujeito como comerciante releva, designadamente, na medida em que


os comerciantes estão sujeitos a um conjunto de obrigações, previsto no art. 18.o. Porém, se
estas obrigações eram tradicionalmente restritas a comerciantes, têm sido alargadas a não
comerciantes, numa manifestação do esbatimento da autonomia substancial do direito
comercial.

Em primeiro lugar, quanto à obrigação de adoptar uma firma ou denominação,


tradicionalmente definia-se firma como o nome comercial dos comerciantes, o sinal que os
individualiza e identifica. Porém, há não comerciantes que têm firma – art. 37.o (sociedades
civis sob forma comercial) e artigo 39 (empresários individuais que desenvolvem actividade
económica não comercial) RRNPC. Já a designação designa preferencialmente não
comerciantes, apesar de existirem certos diplomas que prevêem a adopção de denominações
para comerciantes (por exemplo: cooperativas, artigos 12 n° 1 al. c), 13 al. a) e 14 CCoop).

Também a obrigação de escrituração mercantil se estende a não comerciantes – o SNC


(Sistema de Normalização Contabilística), aprovado pelo Decreto-Lei 158/2009, aplica-se a
comerciantes e não comerciantes, que devem elaborar e apresentar demonstrações financeiras
respeitadoras de vários princípios e regras (artigos 3 e 10). O mesmo se passa com a
obrigação de registo comercial. Pela análise dos artigos 1 a 10 CRCom, estão sujeitos ao
registo sujeitos que não são ou podem não ser comerciantes, designadamente as sociedades
civis sob forma comercial, cooperativas, EPEs, EELs, ACEs e AEIEs sem objecto comercial.

“A prática de actos formalmente comerciais e de actos de comércio acessórios jamais


conduz à aquisição da qualidade de comerciante”

Os actos formalmente comerciais são esquemas negociais que são utilizáveis por
comerciantes e não comerciantes, para a realização de actos de comércio ou não, estando
contudo especialmente regulados na lei comercial e merecendo, como tal, a qualificação
como actos de comércio. O exemplo típico é o dos negócios cambiário, como a emissão de
uma letra de câmbio, regulados na LULL.

Já os actos acessórios são actos que devem a sua comercialidade ao facto de se conexionarem
a actos comerciais (os actos autónomos). São exemplos de actos autónomos a fiança (artigo
101), o mandato (artigo 231), o empréstimo (artigo 394), o penhor (artigo 397) e o depósito
(artigo 403).

Não dão qualificação como comerciantes nem os actos formalmente comerciais, nem os actos
acessórios. Os actos formalmente comerciais estão excluídos uma vez que a sua prática pode
ser utilizada ou não para a realização de operações mercantis, e a sua prática não pode
denotar o exercício de uma profissão. Já os actos acessórios também não conduzem à
qualificação como comerciantes. Por exemplo, só as instituições de crédito e sociedades
financeiras podem exercer a título profissional actividades que se traduzam na prestação de
fianças ou penhores mercantis. Porém, esta possibilidade existe: por ex., uma pessoa que
explora um armazém onde são depositadas mercadorias destinadas a ser revendidas pelos
depositantes (artigo 403).
Nem todos os titulares de empresas comerciais são comerciantes e nem todos os comerciantes
são titulares de empresas comerciais”. Comente.

A afirmação é verdadeira. Em primeiro lugar, importa distinguir empresa, comercialidade e


comerciante. Podemos falar de duas acepções de empresa, em sentido subjectivo (enquanto
sujeito jurídico que exerce a actividade económica) e objectivo (instrumento ou estrutura
económico-produtiva), interessando-nos aqui a última. Em sentido objectivo, a empresa
comercial é uma unidade jurídica fundada numa organização de meios que constitui um
instrumento de exercício relativamente estável e autónomo de uma actividade comercial. São
quatro as notas que caracterizam a empresa comercial: é um bem complexo, formado por
vários elementos; é uma organização de elementos e meios empresariais, com vista à
prossecução de um fim económico; é um sistema aberto, um centro de interacções com o
exterior; e ainda um bem jurídico autónomo.

Quanto à comercialidade, interessa-nos aqui também a comercialidade objectiva, que nos


remete para o conceito de acto de comércio objectivo. Como COUTINHO DE ABREU aponta,
não é possível avançar uma noção unitária de comercialidade objectiva, mas apenas
apreender os seus modos de manifestação, artigo 2 n° 1. Como a doutrina defende, é
necessário interpretar este artigo extensivamente, chegando assim a quatro modos de
manifestação da comercialidade objectiva (actos de comércio enumerados e previstos no
CCom; leis que substituíram ou revogaram o CCom; que, indireta ou directamente,
qualificam o acto ou contrato como acto de comércio; e a analogia). Já no que toca aos
comerciantes, são pessoas singulares ou colectivas que preenchem os requisitos do artigo 13
n° 1 e 2.

É verdade que nem todos os titulares de empresas comerciais são comerciantes e nem todos
os comerciantes são comerciantes. Com efeito, há sujeitos que podem explorar empresas
comerciais sem adquirir a qualidade de comerciantes: é exemplo as pessoas colectivas
territoriais e as associações sem interesses materiais, nos termos dos artigos 17 e 14 CCom.
Por outro lado, há sujeitos que são comerciantes, por se dedicarem profissionalmente à
prática de actos de comércio, e todavia não exploram empresas (comerciais) – por ex., o
vendedor ambulante, o agente, etc.

Assim, podemos concluir que a comercialidade não implica a empresarialidade: apesar de


geralmente os actos de comércio serem praticados no quadro da exploração de uma empresa,
nem sempre assim sucede. A comercialidade não implica empresarialidade (existem
comerciantes não empresários; e o CCom regula actos de comércio esporádicos ou ocasionais
que prescindem da empresarialidade, com os actos acessórios); e a empresarialidade não
significa comercialidade (existem empresas civis, como as que se dedicam à actividade
agrícola, por nós consideradas como comercialidade).

Comente a seguinte afirmação: “Tem-se verificado a “generalização” ou “comunização”


de institutos tradicionalmente jurídico-mercantis, indiciadora da unificação do direito
privado”

A afirmação é verdadeira. Com efeito, a homogeneização do sistema sócio-económico levou


à generalização de institutos tradicionalmente jurídico-mercantis – são exemplos as letras de
câmbio, as sociedades, os seguros, os sinais distintivos do comércio e a falência ou
insolvência; também as obrigações de escrituração e inscrição no registo comercial não são
exclusivas dos comerciante. Por outro lado, a comercialização do direito privado também se
tem manifestado na incorporação no direito civil de princípios tradicionais do direito
mercantil, como o do reforço do crédito, o da maior protecção da confiança, o da celeridade
nas operações negociais e o da presunção de onerosidade.

Esta comercialização, nas palavras de COUTINHO DE ABREU, “representa simultaneamente o


triunfo do direito comercial e a sua morte. Para além do direito das obrigações, há
progressiva unificação ao nível dos empresários e a disciplina a estes aplicável estende-se a
não empresários. Porém, nos últimos tempos vários autores têm defendido que se está a
verificar uma reafirmação da autonomia substancial do direito comercial, enquanto direito
privado da empresa. Para COUTINHO DE ABREU, embora seja aceitável a concepção do
direito comercial enquanto direito das empresas, isto tem de ser entendido com algumas
ressalvas: a empresa como fenómeno unitário ou unívoco não existe; no direito comercial
português actual entram sujeitos e actos que não têm de entrar no domínio empresarial; e nem
todas as empresas nele são acolhidas.

Significa isto que se tenha de afirmar a insubsistência da autonomia substancial do direito


comercial? Não: o direito comercial mantém autonomia substancial, embora reduzida, que
encontra as seguintes manifestações: existe um regime comum para os actos de comércio em
geral os actos de comércio em especial estão sujeitos a algumas regras divergentes das que
vigoram para os homólogos actos civis; e os comerciantes têm um estatuto próprio.

Numa perspectiva de reforma, o que se pode dizer? Será aconselhável promover uma maior
unificação do direito das obrigações; e deverá consolidar-se a harmonização do estatuto dos
empresários e das espécies comerciais. O direito comercial reformado deve ser, assim, um
direito à volta das empresa.

Comente a seguinte frase: “Gerentes de comércio, auxiliares e caixeiros de comerciantes


podem ser qualificados de comerciantes”

A afirmação é falsa, não são comerciantes. Os gerentes, auxiliares e caixeiros estão previstos
no CCom nos artigos 248 e seguintes. Os gerentes são aqueles que, em nome e por conta de
um comerciante, tratam do comércio deste (artigos 248, 250 e 251); os auxiliares são as
pessoas encarregadas pelo comerciante do desempenho constante de algum ou alguns ramos
do tráfico a que o comerciante se dedica (artigo 256); e os caixeiros são empregados do
comerciante encarregados de funções várias (artigos 257 e seguintes).

Apesar de estes serem qualificados pelo CCom. como mandatários comerciais com
representação, esta é uma qualificação hoje insubsistente e assenta na velha ideia de que os
poderes de representação voluntária tinham de assentar num contrato de mandato.
Actualmente, isto não sucede, sendo que os poderes de representação voluntária podem
resultar de outros negócios jurídicos, nomeadamente do contrato de trabalho. Ora, é
precisamente o caso dos gerentes, auxiliares e caixeiros: estes devem, em geral, ser
qualificados como trabalhadores subordinados e não como mandatários, e como tal não são
comerciantes uma vez que apenas o são aqueles que exercem a actividade de comércio em
nome próprio, pessoalmente ou através de representante (requisito implícito no artigo 13 n°
1).
Justificando, diga se são comerciantes os seguintes sujeitos: Entidades Públicas
empresariais; cooperativas; arquitectos; poetas; associações culturais; gerentes de
sociedades por quotas

– EPEs: podem ser comerciantes, se se dedicarem ao exercício de uma actividade comercial.


Com efeito, entendemos que o artigo 13 n° 1, quando se refere a pessoas, abrange quer
pessoas singulares, quer pessoas colectivas (argumentos: a lei não restringe a pessoas
singulares e usa mesmo a expressão pessoas para designar pessoas colectivas; a expressão
profissão deve ser entendida como exercício de actividade por pessoas jurídicas; e, apesar de
se dizer que profissão implica ainda lucro, entendemos que o lucro não é pressuposto
essencial do exercício comercial, numa interpretação objectivo-actualista que tenha em
consideração a teleologia e as novas realidades económico-empresariais). As EPEs são assim
qualificadas como comerciantes quanto tenham por objecto uma actividade comercial (têm
capacidade para o exercício do comércio, artigos 26 e 27 RSEE).

– Cooperativas: são comerciantes quando tiverem objecto comercial (mesma argumentação


que EPEs).

– Arquitectos: não são comerciantes (profissionais liberais, exclusão da comercialidade, 2


argumentos).

– Poetas: não são comerciantes, uma vez que não praticam actos de comércio. Incluem-se
numa categoria de trabalhadores autónomos, cuja actividade está próxima da das profissões
liberais, e que devem ser qualificados como não comerciantes, pois as suas actividades em
nenhum lugar são qualificados como comerciais; sendo que podemos também convocar um
argumento de analogia com o artigo 230 § 3.

– Associações culturais: não são comerciantes, artigo 14 (não são comerciantes as


associações sem fins materiais). Podem no entanto obter receitas como meio instrumental.

– Gerentes de sociedades por quotas: são comerciantes, desde que não exerçam uma
actividade concorrente com a da sociedade (artigo 254 n° 1 CSC), incompatibilidade de
direito privado. Porém, se violarem a proibição e exercerem uma actividade comercial
concorrente, adquirem o estatuto de comerciantes, uma vez que os actos praticados são
válidos (a incompatibilidade apenas dá origem à aplicação de sanções).

As firmas-denominações das sociedades têm de aludir ao objecto social?

As firmas das sociedades não têm de aludir ao objecto social, mas podem fazê-lo. A
justificação varia consoante o tipo de sociedade.

Tratando-se da firma de uma sociedade em nome colectivo ou de uma sociedade em


comandita, COUTINHO DE ABREU defende que pode fazer referência ao objecto social, por
analogia com o artigo 38 n° 1. Já SOVERAL MARTINS entende que não é necessário recorrer à
analogia, defendendo o caminho da interpretação a contrario do artigo 10 n° 4: a firma das
sociedades não pode ser composta exclusivamente por vocábulos que permitam identificar a
actividade, logo, a contrario, é possível compor a firma da sociedade também com esses
elementos.
Quanto à firma das sociedades por quotas ou anónimas tinha de aludir ao objecto social, o
que estava previsto no artigo 10 n° 3, parte final. Esta parte final foi eliminada pelo artigo 17
do Decreto-Lei 111/2005, que permite que se opte por firma constituída por expressão de
fantasia previamente criada e reservada a favor do Estado.

Comente a veracidade da afirmação: “Os interesses dos credores dos comerciantes e do


comércio não merecem uma tutela especial nas relações jurídico-mercantis em que o
devedor é casado”

A afirmação é falsa. O artigo 1691 n° 1 al. d) do CC diz que são da responsabilidade dos
cônjuges, quando casados sob o regime da comunhão de adquiridos, as dívidas contraídas por
cada um deles no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram as dívidas
contraídas no proveito comum. Por estas dívidas respondem os bens comuns do casal e, na
falta ou suficiência destes, solidariamente os bens próprios dos cônjuges (artigo 1695).

Ora, este é um regime que tutela os interesses do comércio e dos credores dos comerciantes,
uma vez que estes não têm de provar que as dívidas foram contraídas no proveito comum do
casal, al. c), que é uma prova mais difícil; para além disto, a garantia patrimonial dos
credores aumenta, uma vez que mais bens respondem pelas dívidas. Isto promove a
actividade mercantil, uma vez que os comerciantes negoceiam com mais confiança. Os
cônjuges podem demonstrar que esta dívida não foi contraída no proveito comum do casal;
porém, esta é uma prova muito difícil (o proveito do casal pode ser de qualquer ordem, que
não necessariamente económica).

Acresce a isto que o artigo 15 CCom vem reforçar ainda mais esta tutela, dizendo que as
dívidas comerciais dos cônjuges comerciantes presumem-se contraídas no exercício do
comércio. Os credores não têm de provar que a dívida foi contraída no exercício do comércio
do autor, mas apenas que a dívida resulta de um acto de comércio e que o cônjuge é
comerciante. Isto reforça a tutela dos credores uma vez que é uma prova mais fácil: é mais
fácil provar que um acto é comercial do que esse acto foi praticado no exercício do comércio;
aliás, podemos ter uma dívida comercial que não está relacionada com o exercício do
comércio mas ainda assim preenche a presunção.

Note-se que esta é uma presunção ilidível: os cônjuges podem provar que a dívida, apesar de
comercial, não foi contraída no exercício do comércio do comerciante devedor.

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