Você está na página 1de 109

Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Direito Comercial I

O Direito Comercial é o direito do comércio e dos comerciantes. Em si, é um direito privado especial em relação
ao direito civil e, em termos práticos, faz um “apanhado” de várias disciplinas. Diz-se que é um direito privado,
uma vez que integra uma área normativa dominada por vetores de igualdade e de liberdade.

» Evolução do Direito Comercial

◊ Génese e Direito Romano

O aparecimento do comércio terá, provavelmente, decorrido da própria hominização. Enquanto atividade


autónoma e organizada, ele documenta-se desde a Antiguidade mais recuada, acompanhando o uso da escrita
em cuja origem terá, por certo, tido papel decisivo.

Logo que surgiu, o comércio teve regras: encontramos normas comerciais na Mesopotâmia, no antigo Egito,
na Fenícia e na Palestina e na Grécia. O Direito Comercial surgiu então com a invenção da escrita e com os
registos feitos dos atos e trocas comerciais.

A existência de um Direito Comercial em Roma dá azo a alguma controvérsia. Roma teve, na origem, relações
comerciais complexas que se estabeleceram entre a Ertrúria e a Magna Grécia. A existência, desde o início, de
regras legitimadoras foi inevitável, e esse facto foi intensificado com a expansão romana.

Para além de institutos especializados claramente comerciais, o Direito romano, principalmente após a criação
dos bonae fidei iudiciae, nos finais do séc. II a.C., justamente em obediência às necessidades do comércio,
dotou-se de contratos consensuais, flexíveis, equilibrados e acessíveis a cidadãos romanos e a estrangeiros.
Assim, podemos afirmar que todo o Direito romano, designadamente no campo das obrigações e dos
contratos, era Direito comercial.

◊ Do Ius Mercatorum às Leis Comerciais Modernas

Com a queda do Império Romano, caíram também em decadência as trocas comerciais, até que em Itália, pela
época do renascimento, surgiu a necessidade de criar regras mais ajustadas – é aí que surge o Ius Mercatorum.
Os mercadores, por via consuetudinária ou através dos seus organismos, criaram e aperfeiçoaram normas
próprias para reger a sua profissão e os seus interesses.

O Direito romano não tinha, pelas circunstâncias práticas – e pelo menos logo nos sécs. XIII XIV – condições
para reger a vida comercial. Houve que fixar regras: algumas mais não faziam do que retomar posições
romanas, como as que impunham o respeito pela boa fé e pela palavra dada; outras, como as referentes às
aquisições a non domino, correspondem a novas necessidades económico-sociais.

É importante compreender os esquemas histórico-culturais que permitiriam, ao ius mercatorum, surgir nos
Estados modernos. Em primeira linha, ele foi incluído nas fontes doutrinárias, através de uma adequada
integração nos quadros semânticos. Chegou-se, assim, a um Direito “comum” europeu comercial, assente
numa crescente Ciência do Direito comercial.

Decisiva seria, porém, a recuperação que, dos estatutos e regras hanseáticas, fizeram os grandes Estados
territoriais dos sécs. XVII e XVIII. Adotando-os e aperfeiçoando-os, os Estados lograram preservar o fundo
sócio-cultural que o ius mercatorum representava, evitando a sua diluição no Direito comum.

Foram justamente as leis comerciais dos Estados modernos, com um relevo especial para as ordenações de
Luís XIV, que permitiram conservar, como corpo autónomo, o ius mercatorum medieval. Os juristas

1
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

mantiveram o hábito de lidar de modo separado com o Direito civil e com o Direito comercial. Preservou-se a
cultura comercialística, dando-lhe uma base moderna: o poder soberano do Estado.

Após o Renascimento, surgem então os movimentos nacionalistas. Primeiro em França, com Luís XIV e Colbert,
criador da Marinha Mercante. É apenas com Napoleão que surge o Código do Comércio, em 1807. O Código
de Napoleão traz a classe comerciante, que é eliminada com a Revolução Francesa, passando o Código a adotar
um sistema objetivo, isto é, a debruçar-se sobre os atos do comércio, em lugar da classe dos comerciantes.

A codificação comercial francesa implicou ainda uma outra opção de fundo, que seria marcante em toda a
evolução subsequente: optou pela natureza privada da regulação do comércio.

As grandes descobertas na área do Direito Comercial foram feitas no séc. XIX:

 Liberdade de constituir sociedades e empresas.


 Chegou-se à conclusão de que, na verdade, a liberdade é autodestrutiva – leva a que as empresas
menos fortes não consigam competir no mercado e acabem por sair, restando apenas as maiores ou
a maior, deixando aí de haver liberdade. Surgem, neste contexto, as primeiras leis da concorrência.

◊ O Séc. XX e a Unificação do Direito Privado

No séc. XX, o Direito Comercial atravessou uma grande crise, porque muitos autores (nomeadamente os do
Código Civil da Suíça) iniciaram a moda de unificar todos os ramos do direito privado num só direito, o que
acabou por acontecer igualmente em Itália, onde se disse que o Direito Comercial seria para as sociedades
corporativas.

Vivante, um autor italiano, defendendo o exemplo suíço, afirmava que a existência de um Direito comercial
como corpo normativo autónomo fazia sentido quando o comércio era exclusivamente exercido por
comerciantes inscritos em corporações. Numa sociedade moderna, os atos de comércio são acessíveis a
qualquer interessado, seja ele comerciante, seja ele um interessado ocasional. Assim sendo, o Direito
comercial torna-se parte do Direito privado.

Ou seja, o Direito comercial “antigo” era visto como um direito retrógado, uma vez que se dizia que beneficiava
os comerciantes em detrimento dos restantes cidadãos.

É também no séc. XX que o Direito Comercial se expande, dando origem a diversas disciplinas autónomas.

» A Experiência Portuguesa

◊ Das Origens ao Séc. XVIII

As relações comerciais referentes à Terra Portucalense datam desde a Fundação, tendo-a antecedido. E desde
cedo surgiram leis nacionais tendentes a defendê-las e a regulá-las. Entre as mais antigas, conta-se uma lei
atribuída ao primeiro ano do Reinado de D. Afonso II.

Todavia, já anteriormente surgiam, em certos forais, normas relativas ao tráfego naval. Nos restantes aspetos,
ocorriam medidas tendentes a proteger o comércio, designadamente em face de abusos cometidos por
nobres.

No tempo de D. Afonso III havia já corretores. O fretamento de navios encontra regras lusófonas desde o
princípio do séc. XIV.

2
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Datam ainda do período inicial as primeiras regras sobre seguros. D. Fernando instituiu, em Lisboa e no Porto,
uma bolsa para a qual contribuíam todos os navios com mais de 50 tonéis e que serviria para acudir em caso
de naufrágio.

Mais tarde, as Ordenações vieram também regular determinados aspetos das regras comerciais,
nomeadamente diversos aspetos do estatuto de comerciante e contratos comerciais. Regularam ainda os
“mercadores que quebrão”, isto é, a falência.

◊ As Reformas Comerciais de Marquês de Pombal

No séc. XVIII, o Direito lusófono apresentava uma feição pouco animadora. Disperso entre as Ordenações, há
muito desatualizadas, as múltiplas leis extravagantes, as decisões dos tribunais e o Direito romano, o sistema
português não oferecia a diferenciação harmónica e a previsibilidade que se requeriam a qualquer
ordenamento moderno.

Na tradição das Ordenações, o comércio era uma atividade degradante: estava mesmo vedado às classes
nobres. Decorria, daí, uma cultura contrária ao desenvolvimento, que o Marquês de Pombal tentou contrariar.
O alvará de 7/06/1755, que estabeleceu a Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão, determinou que o
comércio a ela inerente não prejudicaria a nobreza herdada e seria mesmo meio próprio para alcançar a
nobreza adquirida. Numa lei de 30/08/1770 obrigava-se ao registo na Junta do Comércio de todos os
comerciantes; para alcançarem a matrícula, era ainda necessário que obtivessem a aprovação na Aula do
Comércio.

» Os Códigos Comerciais Oitocentistas

◊ Antecedentes: a Lei da Boa Razão

A complexidade das fontes do Direito, em vigor no séc. XVIII, requeria uma simplificação radical. Não estando
ainda reunidas as condições jurídico-científicas para uma codificação de fundo, procedeu-se a uma arrumação
abstrata da matéria.

Tal foi o papel da Lei da Boa Razão de 18/08/1769, criada por Marquês de Pombal, que procedeu à
reorganização das fontes e do Direito subsidiário.

Em matéria de Direito mercantil, a Lei da Boa Razão vem mandar aplicar direito estrangeiro onde não se possa
aplicar a lei nacional. Isto é muito progressista.

Decorridas algumas décadas de vigência de tal esquema, os litigantes haviam-se tornado hábeis na citação de
leis estrangeiras, sem se atender à falta de unidade daí decorrente e à pura e simples inadequação de muitas
delas. A situação era tanto mais gravosa, quanto é certo que, nos domínios comerciais, é muito importante a
previsibilidade das decisões jurídicas.

Nestas condições, o advento do liberalismo tornou premente a reforma do Direito comercial.

◊ O Código Ferreira Borges (1833)

O primeiro Código Comercial, feito pelo jurista José Ferreira Borges, surgiu em 1833. O Código Ferreira Borges,
num total de 1860 artigos, ocupava duas partes, relativas, respetivamente, ao comércio terrestre e ao
comércio marítimo.

Este Código foi censurado por conter múltiplas regras civis e por se preocupar com definições de compêndio.
Contudo, há resposta: faltava um Código Civil e uma ciência jurídico-mercantil, pelo que assim cabia ao

3
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

legislador suprir ambas as falhas. Mais delicada foi, na altura, a censura à inadaptação da administração
comercial nele prevista.

Como vantagens deste Código, temos:

1) A liberdade comercial consagrada;


2) O fim do arbítrio ocasionado pela Lei da Boa Razão;
3) A explicitação dos direitos e deveres dos comerciantes;
4) Precisão do foro mercantil;
5) Habituou, desde cedo, os juristas portugueses a trabalharem, em separado, com os Direitos civil e
comercial.

Como desvantagens, temos:

1) O casuísmo;
2) O excesso de definições e de repetições;
3) A falta de clareza;
4) A consagração de soluções antiquadas;
5) Presença de contradições, derivadas da multiplicidade das leis usadas.

◊ O Código Veiga Beirão (1888)

O Código Comercial de 1888 ficou dotado de trabalhos preparatórios, através dos quais é possível seguir a
génese de muitas das suas soluções. Paradoxalmente, esta facilidade veio incentivar uma interpretação
exegética, de tipo subjetivista, que marcou a comercialística subsequente, deixando curiosos rastos até aos
nossos dias.

Quando foi aprovado este Código, pretendia-se que abrangesse, em definitivo, toda a matéria do comércio.
Este preceito não foi cumprido. E assim, com o tempo, verificou-se uma acumulação considerável de diplomas
extravagantes.

Dos 749 artigos que, inicialmente, tinha o Código Comercial, foram revogados mais de 450 artigos,
encontrando-se, dos remanescentes, vários alterados. Este estado de coisas deve-se, todavia, ao facto de o
legislador ter optado por dispersar a matéria comercial em diplomas extravagantes, em vez de, como se
impunha, ir alterando o Código sempre que necessário.

4
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Coordenadas Atuais do Direito Comercial

A discussão clássica de saber se o Direito comercial haveria de reger os comerciantes (sistema subjetivo)o ou
os atos de comércio (sistema objetivo), encontra-se materialmente superada. Existe uma implicação evidente
entre as duas noções, de tal modo que ao regular os comerciantes, o Direito regerá a sua atividade e os seus
atos, enquanto ao tratar destes, versa a atividade comercial e, logo, os comerciantes.

O Código Veiga Beirão enveredou por um sistema misto, pensadamente ambíguo. No seu art. 1º fez uma
profissão de fé objetivista, proclamando reger atos de comércio, sejam ou não comerciantes as pessoas que
neles intervenham. Mas logo no art. 2º vem considerar como comerciais, além dos atos regulados
especialmente no Código, os praticados pelos comerciantes, nessa qualidade. O subjetivismo é então patente.

Haverá, pois, que procurar uma ideia substantiva de comercialidade. Temos três hipóteses:

a) Ou partir de uma ideia material de comerciante – o comerciante é a pessoa que pratica os atos
jurídicos patrimoniais em termos profissionais, isto é, que dirige a sua atividade económica nesse
sentido: esta é a noção do art. 13º/1. Ora, num sistema aberto, qualquer pessoa o poderá fazer,
ocasional, sazonal, duradoura ou permanentemente. Não é possível fixar fronteiras. Além disso,
estaríamos a escamotear o essencial: o comerciante seria o profissional do comércio, continuando
tudo por definir. Fica-nos, pois, como hipótese, a formalização do conceito: comerciante é aquele que,
como tal, se encontre inscrito no registo comercial. Chegaríamos, por esta via, a um verdadeiro
estatuto profissional de tipo corporativo, o que parece inaceitável.

b) Assim, dadas as dificuldades em partir da noção de comerciante, surgiu a solução que remonta a Heck
de que aquilo que distinguiria os atos comerciais que são praticados pelos comerciantes dos
praticados pelo cidadão comum seria o modo como são praticados – o ato ato comercial define-se
por ser pensado e modelado como ato de massa, isto é, como parte de um procedimento destinado
a ser repetidamente levado a cabo. Contudo, esta teoria tem uma falha: os atos em massa são
regulados pela Lei das Cláusulas Contratuais Gerais (LCCG), para além de que através desta solução
não obtemos um conceito operacional: temos atos de massa não-comerciais e atos comerciais
pensados para operar isoladamente.

c) Não se podendo progredir com base no modo como se apresente certa atividade humana, fica-nos a
forma como são preparados – os atos comerciais que importariam seriam aqueles que são preparados
por empresas, que são o conjunto organizado de meios materiais e humanos com uma direção e que
é gerido de acordo com regras de racionalidade económica. Contudo, esta teoria cria um problema
relativo à autonomia, uma vez que sendo preparados por empresas, o objeto do Direito comercial
passaria a ser não os atos comerciais, mas sim a atividade das empresas.

o O problema da autonomia

Por tudo isto, segundo MC, não conseguimos, em termos lógicos, apontar um conceito dogmático claro de
“comercialidade”, autonomizar o Direito comercial. A autonomia do Direito comercial é uma autonomia
baseada na cultura, na tradição, uma vez que este foi ganhando, ao longo dos tempos, um tratamento
diferenciado e que se manteve.

Entre nós, o problema da autonomia do Direito comercial pôs-se aquando da preparação do Código Civil de
1966. A aprovação do Código Civil consagraria então, em definitivo, a autonomia legal do Direito comercial.

5
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

A autonomia do Direito comercial parece ser ontologicamente inegável, mas é uma autonomia ditada pela
tradição e pela cultura: não por postulados científicos.

o A especialidade

À partida, a especialidade deveria ser constatada em cada regra. Apenas uma operação de comparação entre
uma norma “geral” e a possível norma “especial” permitirá descobrir uma relação de especialidade.

Nestas condições, não é estranho que a afirmação da natureza especial do Direito comercial seja posta em
dúvida. Isto porque, a nível de sistema, grande parte do Direito comercial não tem nenhuma correspondência
com o Direito civil. É o que sucede, por exemplo, com o Direito das sociedades comerciais ou dos títulos de
crédito.

Como regras especiais do comércio, apontam-se: a tutela da confiança, a celeridade e a desformalização.


Trata-se, porém, ou de vetores que vêm claramente do Direito civil, ou de parâmetros que ocorrem sempre
que alguém se dirige ao público.

Assim, a afirmação do Direito comercial como Direito especial só é possível a nível de sistema e como indício
de ordem geral. Sendo Direito privado, o Direito comercial é uma disciplina mais restrita e mais particularizada
do que o civil: visa, apenas, determinadas áreas sócio-económicas.

o A aplicação analógica do Direito comercial

Surge o problema da possibilidade de, por analogia, aplicar normas comerciais ao campo civil ou, em geral,
fora dos casos por elas visados.

À partida, o Direito comercial não é excecional: as suas regras não contrariam os princípios gerais do Direito
civil. Se o Direito comercial fosse entendido como uma matéria excecional, não poderia ser aplicado
analogicamente.

A possibilidade de, por analogia, aplicar normas comerciais a questões civis implicará um conjunto de
requisitos:

1) A presença de uma lacuna no Direito civil;


2) A existência de uma norma comercial que vise um caso análogo a esse;
3) A ausência de uma norma civil nas mesmas circunstâncias;
4) Um juízo de dispensabilidade do comerciante (ou do comércio) para o funcionamento da norma
comercial em causa.

Estando todos estes requisitos preenchidos, nada impede a aplicabilidade analógica de regras comerciais:
haverá, todavia que, caso a caso, norma a norma, ponderando a história e a ratio do preceito em causa,
determinar se procedem os requisitos próprios da aplicação analógica de normas.

Note-se que a aplicação analógica de normas comerciais não se confunde, em termos metodológicos, com o
recurso à analogia para qualificar uma determinada situação jurídica, em globo, como comercial. Tal operação
– caso possível – seria depois a origem da aplicabilidade de numerosas outras regras comerciais.

Em sentido contrário, o Prof. OA afirma não ser possível recorrer à analogia para qualificar um ato como
comercial sob pena de contrariar a intenção normativa de, nessa sede, indicar com precisão e pela positiva
quais os casos sujeitos a tratamento especial.

6
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

o A natureza fragmentária e a dependência científica

O direito comercial tem uma natureza fragmentária: o Direito comercial aproveita toda a matéria civil,
preocupando-se com as áreas que devem ter um tratamento diferenciado. Pode dizer-se que o Direito
comercial está cientificamente dependente do direito civil (progredindo e trabalhando usando conceitos e
construções civis), mas também contribui para a evolução do mesmo.

O Direito comercial, tomado como um todo regulativo, desenvolve-se em torno de alguns pólos, sem
preocupações de unidade. Tradicionalmente, podemos apresentar 5 vértices desse tipo:

i. O ato comercial e os deveres dos comerciantes;


ii. As sociedades comerciais;
iii. Os títulos de crédito;
iv. O comércio marítimo;
v. A falência.

o Internacionalismo e pequeno comércio

O internacionalismo do Direito comercial era uma referência constante nos manuais clássicos da
especialidade. O Direito comercial, mercê do tipo de problemas que enfrenta, teria uma forte parecença nos
diversos países, ao contrário do que sucederia no Direito civil, mais diferenciado. Contudo, sucede o contrário.

O que nos resta do Código Comercial é fortemente nacional. E na verdade, ele aplica-se ao pequeno comércio,
pouco preocupado com implicações internacionalistas. O grande comércio obedece, hoje, a disciplinas
comerciais autónomas, marcadas pela conformação de novos tipos contratuais e por elementos europeus,
muito longe dos quadros mercantis de Veiga Beirão.

As próprias tendências universalizadoras da primeira metade do séc. XX, de que as leis uniformes são o mais
conhecido exemplo, inverteram-se em manifestações nacionais.

Nas áreas que requerem efetivo internacionalismo, têm ocorrido tendências integradoras. Ainda assim, o
Direito comercial tradicional é hoje o Direito do pequeno comércio, fortemente nacional. De todo o modo,
esse papel não minimiza o interesse científico: ele faculta quadros mentais depois aplicáveis a áreas
“internacionalizadas”.

Apesar de tudo isto, é inegável uma efetiva e florescente existência de um comércio sem fronteiras. Perante
ele, o Direito comercial não poderá deixar de agir, aprontando esquemas suscetíveis de enquadrar os
problemas que surjam, propondo soluções.

É ainda verdade que surgiu um novo Ius Mercatorum, na medida em que o comércio põe em contacto agentes
de todo o Mundo, e com o objetivo de acompanhar os grandes contratos internacionais.

7
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Doutrina Comercial Geral

◊ COMÉRCIO E COMERCIANTES

DOS ATOS DE C OMÉRCIO


1- Atos de Comércio

Segundo o art. 1º, a lei comercial rege os atos de comércio.

O sistema do Código Comercial é o de regular factos jurídicos em sentido lato – abrangendo contratos,
negócios unilaterais, atos não negociais e factos stricto sensu – e, ainda, diretamente, isto é,
independentemente dos factos que os originem – efeitos jurídicos.

Tendo fixado este alcance amplo para “atos de comércio”, Código passa a referenciá-los no seu art. 2º. Recorre
aí a dois critérios distintos:

a) Um critério objetivo – o tratar-se de atos especialmente regulados neste código. Este origina atos
objetivos.
b) Um critério subjetivo – o serem atos de comerciantes. Este origina atos subjetivos.

a) Atos de comércio objetivos

São atos de comércio objetivos, nas palavras do art. 2º primeira parte, “(...) todos aqueles que se acharem
especialmente regulados neste Código”. Esta definição, contudo, coloca dois problemas:

i) São comerciais todos os atos regulados no Código?


ii) São comerciais apenas os atos nele regulados?

A resposta à primeira pergunta é negativa. A lei não diz “todos os atos regulados neste Código”, mas todos os
que sejam “especialmente”, isto é, com desvio em relação ao regime geral.

A segunda pergunta obtém igualmente uma resposta negativa. Haverá atos comerciais que não estão
regulados no Código Comercial. Assim:

- São comerciais os atos regidos por diplomas que vieram substituir normas do Código Comercial, mantendo-
se, todavia, como extravagantes (ex: Leis Uniformes ou o Código das Sociedades Comerciais).

- São comerciais os tratados em normas extravagantes que se assumam comerciais (ex: o arrendamento
comercial, antes tratado no Código Civil e no RAU).

➢ Atos comerciais por analogia?

Coloca-se a questão da possibilidade de considerar comerciais atos que não surjam nem no CCom, nem em
leis que alteraram o CCom, nem em leis que se assumam, elas próprias, como comerciais. Isso implicaria o
recurso à analogia para qualificar, como comercial, um certo ato.

A doutrina dividiu-se quanto a esta matéria:

a) Contra a analogia, pronunciaram-se, nomeadamente, Guilherme Moreira e Oliveira Ascensão.


b) A favor da mesma, pronunciaram-se nomes como Cunha Gonçalves e Coutinho de Abreu.
c) Outros autores, como Azevedo e Silva e Eduardo Saldanha, preferem falar no caráter taxativo da
enunciação dos atos de comércio objetivos, excluindo a analogia.

8
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

d) No campo oposto surge a teoria do acessório, segundo a qual seriam objetivamente comerciais,
também aqueles que sejam acessórios dos atos comerciais regulados na lei. Defende esta teoria, por
exemplo, Cunha Gonçalves.
e) O Prof. PPV vai mais longe e diz que podem ser qualificados como comerciais por analogia não apenas
os atos acessórios, mas também outros que fossem valorativamente próximos dos atos especialmente
regulados na lei comercial.

Para o Prof. Menezes Cordeiro, o problema da qualificação de certos atos como comerciais, com recurso à
analogia, representa um exercício teórico de interpretação e de construção jurídicas. Não lhe parece de todo
possível discutir a possibilidade do uso da analogia na qualificação de atos como comerciais sem antes saber
quais as implicações em jogo.

Para este, o debate da possibilidade do recurso à analogia na qualificação de atos de comércio corresponde a
uma inversão metodológica. A qualificação não é causal do regime; antes decorre deste, isto é, dever-se-ia
partir do regime jurídico para a qualificação e não o contrário.

Não se deve a priori e em abstrato qualificar ou não qualquer ato como comerciante. O caminho certo é o
inverso:

1º Perante um ato, há que lhe determinar o regime;


2º Conhecido este: se se tratar de um regime comercial, o ato é comercial, sob pena de inutilidade do
próprio conceito.

As regras do Direito comercial são especiais: à partida, não são excecionais. Comportam, como se viu,
aplicação analógica. Posto isto, pode assentar-se o seguinte:

- Perante um ato que não esteja “especialmente regulado neste Código” – ou situação equivalente – há que
verificar se o seu regime é “comercial e especial”; sendo a resposta positiva, o ato é comercial.

- Perante um ato lacunoso, há que lhe apurar o regime: seja pela analogia, seja pela norma que o intérprete
criaria. Na integração da lacuna, podem ser usadas normas e princípios comerciais – desde que não
excecionais – de acordo com as regras gerais aqui aplicáveis. Perante o resultado obtido, se chegarmos à
conclusão que o ato ficou como que “especialmente regulado neste Código”, ele é comercial. Um exemplo: as
obrigações resultantes da culpa in contrahendo, verificadas aquando da preparação de um contrato comercial,
serão elas próprias comerciais.

 O problema das “empresas” do art. 230º

No que toca à determinação de atos de comércio objetivos, deparamos com o art. 230º. Perante o texto deste
artigo, encontramos duas grandes linhas de interpretação: a da empresa-atividade, que entende estarem em
causa atuações ou conjuntos de atos enunciados neste artigo (seguida por Guilherme Moreira e Coutinho de
Abreu); e a da empresa-organização, que julga tratar-se das entidades singulares ou coletivas, que
desenvolvam depois as referenciadas atividades (seguida por Cunha Gonçalves e Menezes Cordeiro).

A questão é relevante pelo facto de, na primeira hipótese, o art. 230º permitiria enunciar novos atos como
objetivamente comerciais, e na segunda seriam referenciados comerciantes os autores de hipotéticos atos
comerciais, mas agora em sentido subjetivo.

Existem ainda opiniões mistas, como a de Oliveira Ascensão, segundo a qual a lei enunciaria empresas
comerciais – portanto: comerciantes – mas pela via de considerar comerciais as respetivas atividades.

9
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

O Prof. MC sustenta que a doutrina que vê na “empresa” do art. 230º um empresário é, em especial,
sugestionada pela referência legal a “...singulares ou coletivas”. Lê-se aí “pessoas singulares ou coletivas”.
Porém, em 1888, a expressão “pessoa coletiva” era desconhecida na doutrina portuguesa, apenas surgindo
em 1907 com Guilherme Moreira. Ou seja, o art. 230º não tinha em vista quaisquer sujeitos, singulares ou
coletivos: antes se reportava a atuações (empreendimentos) levadas a cabo por uma única pessoa – singulares
– ou concretamente por várias pessoas – coletivas.

Assim, o Prof. entende que “empresa” deve ser considerada objetivamente, consubstanciando o conjunto
organizado de meios materiais e humanos com uma direção e que é gerido de acordo com regras de
racionalidade económica.

b) Atos de comércio subjetivos

A referência aos atos de comércio subjetivos encontra-se no art. 2º segunda parte. São atos subjetivamente
comerciais aqueles que são praticados por comerciantes. Este conceito vem alargar o conceito de ato de
comercial, para além da definição dada para atos objetivamente comerciais.

Comerciantes:

“Dos comerciantes” pode, sem dificuldade, ser reportado à definição de comerciante que resullta do art. 13º.
Segundo este artigo, são comerciantes:

a) “As pessoas que, tendo capacidade, praticam atos de comércio com caráter de profissionalidade” – a
capacidade vem definida no art. 7º (que remete para as regras de capacidade do CC). Os atos de
comércio referidos neste artigo são os atos de comércio em sentido objetivo. Quanto à
“profissionalidade”, há quatro critérios para determinar uma atividade como profissional:

1) Prática habitual e reiterada;


2) Prática juridicamente autónoma – não depender de terceiros;
3) Atividade com prossecução do lucro;
4) Atividade exercida de forma tendencialmente exclusiva – este critério tem gerado discussão
doutrinária.

Sendo comerciante, os seus atos serão comerciais em sentido subjetivo, independentemente de serem
comerciais do ponto de vista objetivo.

b) “Sociedades comerciais” – são aquelas que vêm definidas como tal no art. 980º do Código Civil,
vigorando um princípio de tipicidade.

A última parte do art. 2º delimita negativamente os atos que não são comerciais (ex: um comerciante de fruta,
se for de férias e decidir ir comprar fruta à praça, não está a praticar um ato comercial), referindo-se a “atos
de natureza exclusivamente civil” e “se o contrário do próprio ato não resultar”:

- Uma doutrina tradicional, subscrita nomeadamente por Guilherme Moreira, entende que a natureza
“exclusivamente civil” assiste aos atos regulados apenas no Código Civil. Contudo, o envelhecimento do
Código de Seabra, levou a que surgisse matéria civil fora dele e, para além disso, estes estudiosos
aperceberam-se de que o próprio CC poderia ter matéria comercial. Assim, a doutrina tradicional evoluiu:
teriam natureza exclusivamente civil os atos não especialmente contemplados no CCom. Oliveira Ascensão,
numa evolução desta orientação, vem dizer que o ato exclusivamente civil é o que não possa ser regulado pelo
CCom.

10
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

- A esta orientação opõe-se uma outra que se baseia na interpretação feita pela doutrina italiana do art. 4º do
revogado Código do Comércio de 1882: seriam atos de natureza exclusivamente civil os que, pela sua natureza,
não são conexionáveis com o exercício do comércio. Esta linha de pensamento foi seguida por Cunha
Gonçalves e Coutinho de Abreu, entre outros.

- O Prof. Menezes Cordeiro entende por “ato exclusivamente civil”, os atos que, no atual momento histórico,
não estão regulados no CCom. Defende que não parece viável dar um critério universal para tais atos: caso a
caso teríamos de discutir se, perante as valorações em presença, o ato em jogo ainda se poderia submeter a
regras comerciais. O Prof. Ferreira Borges não concorda, por achar esta uma visão excessivamente restritiva.
Isto porque o art. 2º ele próprio alarga o âmbito de aplicação do Direito Comercial, ao determinar que os atos
praticados por comerciantes são atos comerciais, independentemente de o serem em sentido objetivo ou não.
Os “atos exclusivamente civis” são então uma fronteira à expansão do Direito Comercial. O que o Prof. FB
critica é que a tese do Prof. MC, ao ter como critério para determinar os atos exclusivamente civis o próprio
Direito Comercial, tira quase totalmente a relevância dos atos em sentido subjetivo.

Relativamente à expressão “se o contrário do próprio ato não resultar”, a doutrina acolheu o entendimento
de que o ato praticado pelo comerciante só será comercial se não resultar de si próprio ou de circunstâncias
que o acompanhem que não tem a ver com o giro comercial. O comerciante que pratique atos que não sejam
de natureza exclusivamente civil terá pois o encargo de deles fazer constar que não se inserem no seu manejo
comercial; caso contrário, terão natureza comercial.

 Atos mistos ou unilateralmente comerciais

Na tradição comercial fala-se em “atos”. Todavia, é sabido que tais “atos” são na sua grande maioria contratos.
A razão radica na eventualidade de atos subjetivos de comércio. Nessa eventualidade, quando um ato bilateral
(contrato) seja comercial relativamente a uma das partes (comerciante) e não-comercial em relação à outra
(não-comerciante), que regime aplicar? Trata-se dos atos mistos: comerciais relativamente a uma parte e não
comerciais em relação à outra.

Por exemplo, pode haver um contrato que tem de um lado uma sociedade comercial e do outro dois
compradores que compram, em compropriedade, um automóvel. Estes últimos não são comerciantes e
compram um automóvel para o exercício de uma atividade profissional.

O Direito comercial permite cindir um contrato em dois atos, de modo a que opere como comercial apenas
para uma das partes. Haverá então que discernir, por via do art. 99º:

i) As regras que, pela sua natureza, forem aplicáveis apenas à parte comerciante, funcionam em
relação a ela; à outra parte, aplica-se o Direito comum.
ii) Não sendo possível fazer essa destrinça, ambas as partes ficam sujeitas à lei comercial.

Isto é, o art. 99º estabelece que quando o ato é misto se aplica o Direito comercial. Mas para saber que se
regime se aplica, temos de saber como se qualifica o ato. Para isso, vamos cindir o ato, com o propósito de
determinar o regime que se irá aplicar ao ato.

No exemplo que se refere, há que saber qual o regime que se aplica tanto à sociedade comercial como à dos
compradores. Ora, à sociedade aplica-se o regime comercial, e aos compradores aplica-se o regime civil.

O art. 99º, ainda que estabeleça que quando o ato é misto se aplica o Direito comercial, tem uma possibilidade
de exceção: há certas normas que circunscrevem a sua aplicação apenas àquela parte que determinou a
comercialidade do ato (neste caso, a sociedade). Ao ato como um todo aplica-se o regime comercial, mas há

11
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

determinadas normas que apenas se aplicam a esta parte que determinou a comercialidade do ato (por
exemplo, a regra da solidariedade passiva).

2- Regime Geral dos Atos de Comércio

a) Sistema de Fontes do Direito Comercial

O sistema de fontes do Direito comercial assenta no art. 3º, que diz que temos de ter em conta não só a letra
da lei, mas também o espírito da lei, o que remete para o art. 9º CC.

Não se trata apenas da letra e do espírito da lei comercial, mas simplesmente do Direito comercial diretamente
aplicável. O próprio art. 3º fala em “lei comercial” e não em Código Comercial: prova de que se deve trabalhar
com todo o conjunto das fontes comerciais.

O art. 1º, conjugado com o art. 3º parece indicar que a aplicação do Direito Comercial depende sempre da
prévia qualificação do ato como comercial. Esta metodologia funciona para os casos expressamente
qualificados como comerciais na lei. Porém, há muitos atos que não estão especialmente regulados, mas que
à luz dos critérios gerais de aplicação dos atos ao caso concreto, devem ser regulados pela lei comercial.

Então, primeiro deteta-se a lacuna e depois aplica-se, por via analógica, o Direito Comercial e, se se chegar à
conclusão de que na sua essência o ato deve ser regulado pelo Direito Comercial, então qualifica-se como ato
comercial.

A integração de uma lacuna e a sua determinação operam muitas vezes em simultâneo: justamente por uma
norma “reclamar” a sua própria aplicação fora do campo que, à partida, lhe caberia, é que podemos apurar a
presença do caso omisso.

➢ Na falta de casos análogos e antes de passar ao Direito subsidiário, poderíamos recorrer aos princípios
comerciais?

No recurso a princípios gerais já não há o estabelecimento de situações análogas, mas apenas a constatação
da presença de valorações sensíveis aos mesmos vetores jurídicos. Havendo um princípio comercial aplicável,
há que recorrer a ele antes de passar ao Direito subsidiário. Trata-se de uma interpretação atualista do art.
3º. Impõem-se, porém, duas precisões:

i. Os princípios verdadeiramente comerciais, dada a natureza fragmentária deste ramo do Direito,


serão raros e difíceis de distinguir dos princípios civis.
ii. Existe, no recurso a princípios comerciais, como na própria hipótese de analogia, sempre uma
sindicância do Direito subsidiário: o Direito civil.

b) Relação com o Direito Civil

Do art. 3º parece resultar uma exclusão do Direito civil (exceto se o Direito comercial não conseguir dar
resposta).

A visão do Prof. PPV é restritiva do Direito civil e expansiva do Direito comercial. Na perspetiva deste Prof, o
Direito comercial seria não apenas autónomo, mas teria também uma vocação expansiva de aplicação a
muitos outros casos não especialmente previstos na lei comercial.

12
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Já a visão do Prof. MC é expansiva do Direito civil e restritiva do Direito comercial. Defende que o Direito
comercial tem um conjunto de princípios que só se justificam por razões históricas que hoje já não justifica a
visão de uma divisão rígida do Direito comercial e do Direito civil. A metodologia será: ponderar que valores
estão em causa (comerciais ou civis), e depois simultaneamente detetar a lacuna e aplicar a norma. É um
processo em que os diferentes passos operam em simultâneo.

c) Princípios Materiais

Só se consegue compreender os princípios que regem o Direito Comercial se se estudar o fundamento


histórico por detrás de cada um deles. VER ARTIGO DR. EVARISTO MENDES “HISTÓRIA DO DIREITO
COMERCIAL”

Os princípios são:

1- Internacionalidade.
2- Simplicidade e rapidez – manifestam-se em regras já tradicionais do comércio, numa lógica de que
“tempo é dinheiro”. Assim, cumpre reter:

- A liberdade de escrituração, salvo quanto ao livro de atas – art. 30º;


- A liberdade de língua – art. 96º;
- A liberdade de forma do mandato geral – art. 249;
- A possibilidade de provar o empréstimo mercantil por qualquer modo – art. 396º;
- A possibilidade de celebrar penhor com entrega meramente simbólica da coisa empenhada – art. 398º.

3- Clareza jurídica, publicidade e tutela da confiança – afloram em diversos institutos, com relevo para o
valor probatório dos livros dos corretores (art. 98º), a aplicação da lei comercial aos atos apenas
unilateralmente comerciais (art. 99º), a regra da solidariedade nas obrigações comerciais (art. 100º),
etc.
4- Onerosidade – é uma regra lógica e normal no comércio: trata-se de um Direito profissional
subordinado à ideia de obtenção de lucros. Um traço típico de onerosidade no Direito comercial é o
facto de o mútuo ser oneroso, ao contrário do mútuo civil, que não o é.

Outro traço que revela onerosidade é a fixação de juros comerciais supletivos superiores aos civis: portarias
nº 262/99 e 263/99 de 12 de abril para os juros comerciais (12%) e civis (7%), respetivamente. Todavia, o DL
62/2013 veio fixar regras específicas para os juros “de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou
coletivas” (art. 102º § 3): trata-se de uma nova formulação dos juros comerciais; hoje, a portaria nº 291/2003
de 8 de abril fixa os juros civis em 4%, enquanto os juros moratórios “relativamente aos créditos de que sejam
titulares empresas comerciais”, resultantes do esquema fixado na portaria nº 277/2012 de 26 de agosto, para
o 2º semestre de 2016 estão fixados, conforme os casos, em 7% e 8%.

Tal deixa-nos uma imagem do Direito comercial como uma disciplina virada para a circulação de bens e de
serviços, mais estritamente aderente às realidades económicas. O Direito comercial tentaria, assim, diminuir
os “custos negociais das transações”, facilitando a forma dos contratos e a sua prova. Além disso, o Direito
comercial reforçaria o crédito através de garantias mais eficazes e da tutela da boa fé. Finalmente, tudo no
comércio estaria virado para o lucro.

13
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

3- Usos Comerciais

Os usos comerciais estão na origem do Direito mercantil. As exigências do comércio medieval originaram, nas
cidades italianas, e mais tarde nas do Norte da Europa, regras que serviam todos os interessados e que, por
isso, eles voluntariamente subscreviam.

Mas porquê falar em usos e não em costume? Tradicionalmente, diz-se costume a prática social reiterada,
com convicção de obrigatoriedade. O uso seria, simplesmente, uma prática social reiterada, sem esse
elemento subjetivo. O Prof. MC entende que esta conceção deve ser abandonada, uma vez que a convicção
de obrigatoriedade só surge depois de haver costume.

Assim, o que distingue efetivamente o costume dos usos, é que o costume traduz normas imperativas e os
usos traduzem normas supletivas. Ou seja, só adere a um uso quem pretender beneficiar do que ele comporte;
em compensação, o costume traduz uma conduta imperativa, sob cominação de sanções.

Em que casos que se devem observar os usos? Quando uma lei para eles remete, desde que não sejam
contrários à boa fé, sendo que a boa fé é o conjunto dos valores fundamentais do sistema.

 Os usos no Código Comercial e no Direito mercantil:

No Direito comercial, os usos não têm grande papel. Isto porque se existe um verdadeiro uso, esse uso é
“transformado” em lei, e não se fica pelo uso. Assim, perante o silêncio do Código Comercial quanto a um
valor genérico dos usos, cabe recorrer ao Código Civil, que contém um pequeno subsistema regulador no seu
art. 3º.

Contudo, atente-se que no próprio CC, o essencial da remissão para os usos opera em áreas materialmente
comerciais (exs: art. 232º CCom, art. 238º CCom, art. 248º CCom).

Os usos valem ainda quando as partes, ao abrigo da sua autonomia privada, para eles remetam. Nessa altura,
terão a força vinculativa dos próprios contratos.

Os usos têm particular relevo nos tipos sociais de contratos: contratos que não estão tipificados na lei, mas
que traduzem composições equilibradas e experimentadas, podendo então dizer-se que estão tipificados nos
usos gerais. É o caso dos contratos de abertura de conta bancária e de concessão comercial.

Os tipos sociais são, com frequência, alvo de pequenas codificações, feitas em cláusulas contratuais gerais.
Haverá, então, que proceder ao seu controlo material através da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais.

DOS C OMERCIANTES
◊ A Ideia Geral de Comerciante

A decisão de considerar uma pessoa como comerciante tem relevo para a determinação dos atos de comércio
subjetivos. Além disso, ela torna os visados incursos em obrigações especiais. Segundo o art. 18º, os
comerciantes são especialmente obrigados a:

a) Adotar uma firma;


b) Ter escrituração mercantil;
c) Fazer inscrever no registo comercial os atos a ele sujeitos;
d) Dar balanço e prestar contas.

14
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Apesar da linguagem legal, as “obrigações” dos comerciantes apresentam-se muitas vezes como encargos. A
sua inobservância pode não ter sanções diretas: apenas os impede de beneficiar plenamente do estatuto
mercantil.

Contudo, o estatuto de comerciante não impõe só obrigações, mas traz também vantagens/privilégios.
Quando o ato seja objetivamente comercial, o Direito a aplicar é, naturalmente, o comercial. Quando o ato
seja cindível e surja objetivamente comercial apenas por uma das partes, o regime aplicável é, ainda, o
comercial. E quando, finalmente, o ato não seja cindível e seja subjetivamente comercial para uma das partes
e não para a outra, o regime aplicável é, de novo, o comercial (art. 99º).

O comerciante pode, pois, impor a “sua” lei aos não-comerciantes.

 Comerciante e empresário:

A expressão “comerciante”, que engloba também o industrial, era a fórmula técnica correta para designar o
sujeito que atua no Direito comercial, com os atributos do art. 13º.

Na linguagem corrente, a expressão “comerciante” assume uma conotação menos relevante, se não até
pejorativa. Assim, ela tem sido substituída por “empresário”, locução prestigiada.

Sucede, porém, que “empresário” é, aparentemente, o detentor de uma empresa. A locução só se adapta a
pessoas singulares e não tem rigor jurídico: tanto é empresário o comerciante ou o industrial proprietário
direto de uma empresa, assim como o é o acionista de uma sociedade que, por seu turno, detenha a empresa,
desde que exerça funções de administrador.

Além disso, o comerciante pode não deter qualquer empresa e, por isso, a expressão empresário não lhe
poderia ser aplicável.

◊ O Comerciante Pessoa Singular

Por força da CRP (arts. 47º/1 e 61º/1), qualquer pessoa pode praticar atos de comércio, ser comerciante. Para
se ser comerciante, basta ter capacidade para praticar atos de comércio e façam deste profissão (art. 13º
CCom).

Quanto à questão de saber se a “capacidade” referida no art. 13º é uma capacidade de gozo ou de exercício,
pode dizer-se que hoje a maioria da doutrina diz que esta é uma capacidade de exercício, havendo apenas
uma minoria na doutrina que entendia tratar-se de uma capacidade de gozo.

O Código Comercial distingue entre a capacidade para praticar atos de comércio (art. 7º) e os requisitos para
se ser comerciante (art. 13º), sendo que apenas o primeiro artigo tem a ver com a capacidade comercial em
si.

Segundo o art. 7º, são capazes para a prática de atos de comércio toda a pessoa, nacional ou estrangeira, que
for civilmente capaz de se obrigar. Este preceito equivale a uma remissão para a lei civil (arts. 66º e 67º).

 Menores:

O art. 7º determina a aplicação, no Direito comercial, das diversas regras civis.

15
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Ora, o art. 127º CC retira aos menores a capacidade de exercício. Contudo, existem determinadas exceções
em que os menores aparecem como capazes (art. 127º CC).

Perante este preceito, verificamos que a incapacidade dos menores é aparente: as exceções são mais extensas
do que a regra.

Para além disto, um aspeto da maior importância é o regime dos atos praticados pelos menores – tais atos
são meramente anuláveis (art. 125º CC): produzem todos os seus efeitos, podendo ser impugnados apenas
pelo representante do menor ou pelo próprio menor e, mesmo então, com diversos condicionamentos.

O menor pode, pois, praticar inúmeros atos comerciais, quer por serem da vida corrente, quer por
corresponderem a uma profissão que o menor tenha sido autorizado a exercer, quer por porem em jogo
apenas bens conseguidos no exercício dessa profissão.

 Proibições, incompatibilidades, inibições e impedimentos:

A profissão de comerciante está aberta a todas as pessoas (singulares). Só por exceção surgem, depois, casos
em que ela é vedada. Podemos distinguir:

a) Proibições gerais – resultam de normas que vedem a toda e qualquer pessoa singular certo tipo de
comércio. É o que sucede com o comércio bancário, uma vez que segundo o art. 14º/1 b) RGIC, todas
as instituições de crédito com sede em Portugal devem assumir a forma de sociedades anónimas,
sendo que a prática não autorizada de comércio bancário é reprimida como crime (art. 200º RGIC),
crime esse no qual incorre necessariamente qualquer pessoa singular que a tanto se abalance.
Também a atividade seguradora em Portugal só pode ser exercida por sociedades anónimas
autorizadas (art. 7º/1 a) DL 94-B/98).
b) Incompatibilidades – impedem determinadas pessoas singulares, colocadas em certas posições ou
envolvidas em determinadas situações jurídicas, de exercer o comércio. É o que sucede com os
magistrados judiciais (art. 13º Estatuto dos Magistrados Judiciais). Ocorrem esquemas similares com
os magistrados do MP, com militares, com titulares de órgãos de soberania, de outros cargos
políticos e de altos cargos públicos ou equiparados. Esta incompatibilidade não pode ser afastada por
nenhuma autorização.
c) Inibições – atingem seletivamente determinadas pessoas, por factos que elas hajam perpetrado ou
por situações nas quais se achem incursas.
d) Impedimentos – adstringem as pessoas neles incursas a não praticar determinado tipo de comércio,
salvo autorização. É o que sucede com o gerente de comércio, previsto no art. 253º. O impedimento
atinge a pessoa em virtude de um cargo, mas ao contrário da incompatibilidade, não é geral e pode
cessar com uma autorização.

◊ O Comerciante Pessoa Coletiva

1- Sociedades comerciais

O art. 13º/2 considera comerciantes as sociedades comerciais.

Sucede, todavia, que a própria sociedade comercial é definida, nessa qualidade, em função de “atos de
comércio”. Segundo o art. 1º/2 CSC, “são sociedades comerciais aquelas que tenham por objeto a prática de
atos de comércio e adotem o tipo de sociedade em nome coletivo, de sociedade por quotas, de sociedade
anónima, de sociedade em comandita simples ou de sociedade em comandita por ações”.

16
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Os “atos de comércio” aqui visados só poderão ser atos objetivamente comerciais: os restantes pressuporiam
a prévia qualificação do seu autor como comerciante.

As sociedades comerciais adquirem a personalidade no momento do registo definitivo do ato constitutivo (art.
5º CSC). Teoricamente pode, pois, haver “comerciantes” que nunca tenham praticado qualquer ato comercial:
a sua comercialidade, prevista na lei, tem o sentido de uma aptidão de princípio para os praticar.

2- Associações e fundações

A formação fragmentária do Direito privado levou a que houvesse esquemas de pessoas coletivas não
societárias, que se dedicam com mais ou menos intensidade ao comércio e que, por tradição consignada na
lei civil, não obtêm a forma societária. Para além disto, a falta no Direito comercial de tipos de pessoas
coletivas que correspondam aos interesses geridos pelas associações e pelas fundações e, mais precisamente,
de um tipo “comercial” igualitário tipo “associação” e de um tipo “comercial” fundacional, levou a que se
admitisse haver pessoas coletivas não societárias, designadamente as associações e as fundações civis que
pudessem praticar atos de comércio (objetivos).

Mas serão estas comerciantes?

i. Uma parte da doutrina (nomeadamente, Fernando Olavo e Pupo Correia) defende que o art. 13º/1
se reportaria apenas a pessoas singulares. O Prof. MC concorda com esta tese, afirmando que,
para se poder considerar “profissão”, essa tem de seguir intuitos lucrativos, não parecendo que
as associações – por não terem por fim o lucro económico dos associados – e as fundações – por
terem interesse social – possam ser comerciantes.

Contudo, o Prof. admite que, apesar de não terem fim lucrativo, as associações e fundações devem dispor de
rendimentos. Para isso, ou vivem de donativos ou têm de desenvolver atividades lucrativas. Assim se admite
que a fundação, por exemplo, possa assumir uma empresa, dando-lhe corpo e pondo-a a funcionar. Quando
isso suceda, haverá que aplicar, até onde a materialidade das situações o permita, normas comerciais.

ii. Outra parte da doutrina (nomeadamente, Oliveira Ascensão e Coutinho de Abreu) admite a
aplicação deste preceito a pessoas coletivas.

3- Pessoas coletivas públicas e entidades de solidariedade social

O art. 17º veda a “profissão” de comerciante às pessoas coletivas públicas de base territorial. Assim, segundo
o seu corpo, “o Estado, o distrito, o município e a paróquia não podem ser comerciantes, mas podem, nos
limites das suas atribuições, praticar actos de comércio, e quanto a estes ficam sujeitos às disposições deste
Código. § único. A mesma disposição é aplicada às misericórdias, asilos, mais institutos de beneficência e
caridade”.

4- Associações desportivas e suas federações

As associações desportivas ou clubes são pessoas coletivas de Direito privado e tipo associativo: não podem
ter intentos lucrativos. Também as federações desportivas não podem ter fins lucrativos.

As associações desportivas não se confundem com as sociedades desportivas (SAD), que assumem a forma de
sociedade anónima. Quanto às sociedades desportivas, a título subsidiário é-lhes aplicável o Direito das
sociedades anónimas e, por isso, são comerciantes.

17
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

5- Empresas públicas

Tem havido alguma discussão sobre a natureza comercial das empresas públicas. Na opinião de MC, não existe
nenhuma razão para as discriminar em relação às “empresas privadas”. Desde o momento que, no seu objeto,
caia, ainda que a título subsidiário, a prática do comércio, elas serão comerciantes.

6- Institutos públicos e associações públicas

Os institutos públicos pertencem à administração descentralizada do Estado. Caem no art. 17º: não podem
ser comerciantes, embora possam praticar atos de comércio (objetivos). As associações públicas caem na
mesma alçada.

◊ Pessoas Semelhantes a Comerciantes

Perante as realidades práticas e dogmáticas do Direito comercial, não é possível proceder a qualificação
rigorosas das figuras em jogo. Elas pressuporiam sempre uma análise prévia do regime aplicável, regime esse
que depende, em geral, da autonomia privada dos envolvidos. Acresce ainda que o Direito comercial não é
um todo coerente e sistemático. Além disso, as suas normas não são à partida, excecionais: podem aplicar-se
sempre que ocorram situações que o justifiquem.

Chegamos, assim, à ideia de pessoa semelhante a comerciante: uma entidade que, não sendo comerciante
em si, suscita, não obstante, a aplicação das diversas regras do Direito comercial.

Três critérios enformam as pessoas semelhantes a comerciantes, para além do facto de, naturalmente, não se
poderem considerar de imediato comerciantes, por via das categorias do art. 13º:

a) São autónomas, no sentido de não se encontrarem ao serviço de outra entidade, por via de um
contrato de trabalho;
b) Praticam, em série, atos jurídicos com fins lucrativos, a título regular;
c) Dispõem de uma organização mínima, ainda que rudimentar, figurativa de uma empresa.

Quanto às regras comerciais aplicáveis é sempre necessário ponderar cada figura, cada situação e cada norma.

São exemplo de pessoas semelhantes a comerciantes o mandatário comercial (arts. 231º, 248º e ss.) e os
profissionais liberais.

 EMPRESA E ESTABELECIMENTO

A EMPRESA
A expressão “empresa” é utilizada hoje em diversos setores normativos, e com vários sentidos. A expressão
“empresa” traduz, conforme o contexto:

(i) Um sujeito que atue e que, nessa qualidade, é suscetível de direitos e de obrigações;
(ii) Um complexo de bens e direitos capaz de suportar a atuação de interessados;
(iii) Uma atividade, sendo que esta é uma aceção tradicional que tende a cair em desuso.

Na análise histórico-comparística da ideia de empresa, cumpre distinguir a tradição germânica da tradição


francesa:

18
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

o Tradição Alemã – para os alemães, a empresa é uma realidade objetiva, capaz de substituir a ideia de
estabelecimento. Mais tarde, houve uma tendência para subjetivar a empresa, no sentido de a tornar
no objeto unitário de negócios. Contudo, o pensamento nazi veio introduzir alguns elementos,
nomeadamente a criação de “realidades intermédias”, que seria o caso das empresas, que não seriam
nem pessoas nem atividade.
o Tradição Francesa – de acordo com os franceses, a empresa será um empreendimento, uma atividade
mercantil. Acompanhando depois uma evolução semântica, no pós-guerra, a empresa veio a traduzir
já não a atividade em si, mas a própria organização necessária para o desenvolvimento da atividade.

 A empresa na experiência portuguesa:

Para nós, portugueses, o conceito de “empresa” surgou como forma de delimitar o âmbito comercial. No
Código Ferreira Borges, empresário era o detentor de fábricas, sendo equiparado a comerciante. Daí, seria
possível extrapolar a própria fábrica como empresa.

No Código Veiga Beirão, o mesmo objetivo de melhor definir o universo dos atos de comércio ou da atividade
comercial manteve-se. Este Código marca um início subjetivista.

Mais tarde, acompanhando uma imparável evolução semântica, surgiram no séc. XX orientações de tipo
objetivista, equiparando a noção de empresa a estabelecimento.

Podemos concluir que, no nosso Direito, como noutras experiências europeias, com relevo para a alemã, a
“empresa” é uma locução disponível para o legislador, sem se embaraçar com uma técnica jurídica precisa,
indicar destinatários para as suas normas, designadamente as de natureza económica. E em paralelo
documenta-se uma situação com o sentido de estabelecimento.

 A empresa e o Direito comercial português:

Uma verdadeira teoria da empresa não pode ser deduzida, em termos centrais, de umas quantas afirmações
indemonstradas, tidas por dogmas. O caminho teria de ser o inverso: estudar os diferentes institutos onde a
empresa tenha uma efetiva projeção a nível de regime e, depois, procurar reconstruir uma ideia geral.

E justamente aí reside o drama: os institutos concretos reportados às empresas, quando analisados com
alguma profundidade, decompõem-se em noções jurídicas mais precisas: sociedades, organizações
individuais, estabelecimentos e conjunções várias de meios humanos e materiais.

Com isto, o Prof. MC não nega o papel da empresa, mas ela não pode substituir os institutos dogmáticos de
base. A empresa destina-se a introduzir uma nota de realismo em organizações de meios humanos e sociais
que, de outra forma, surgiriam como somatórios desgarrados de peças soltas. Não deve converter-se num
incontrolável desenvolvimento linguístico que perca de vista esse seu papel, obnubile os institutos jurídicos
de base e constitua um pretexto para verbalizar, sem conteúdo, o ensino do Direito comercial.

 Empresa como noção-quadro:

A comercialística de diversos quadrantes aceita hoje que a empresa não é nem uma pessoa coletiva nem um
mero conjunto de meios elementos materiais. Podemos entendê-la como um conjunto concatenado de meios
materiais e humanos, dotados de uma especial organização e de uma direção, de modo a desenvolver uma
atividade segundo regras de racionalidade económica.

19
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Assim, os seus elementos poderiam agrupar-se:

a) Num elemento humano – ficam abrangidos quantos colaborem na empresa.


b) Num elemento material – fala-se em coisas corpóreas, móveis ou imóveis, seja qual for a fórmila do
seu aproveitamento e de bens incorpóreos.
c) Numa organização – todos os elementos não estão meramente reunidos ou justapostos; eles
apresentam-se numa articulação consequente, que permite depois desenvolver uma atividade.
d) Numa direção – trata-se do fator aglutinador dos meios envolvidos e da própria organização.

O Direito português, através de inúmeras leis, reporta-se a “empresa” em duas aceções:

1. Subjetiva, quando refere os direitos, os deveres ou os objetivos das empresas;


2. Objetiva, quando dirige a certas pessoas regras de atuação para com as empresas.

O ESTABELECIMENTO
A empresa surge como um conceito-quadro de grande extensão e particular versatilidade. Torna-se pouco
adequada para transmitir regimes jurídicos concretos. Compreende-se, assim, que o Direito português tenha
elaborado, a seu lado, um outro conceito particularmente apto para traduzir o objeto unitário de
determinados negócios: o de estabelecimento, uma noção mais puramente racional que a de empresa.

No CCom, o estabelecimento surge em duas aceções:

a) Como armazém ou loja – arts. 95º/2 e 263º § único;


b) Como conjunto de coisas materiais ou corpóreas – art. 425º.

A noção geral adotada de estabelecimento já não se encontra no CCom, aflorando noutros lugares normativos,
com relevo para o CC (exs: arts. 316º, 317º, 495º/2, 1559º, 1560º).

O estabelecimento traduz um conjunto de coisas corpóreas e incorpóreas devidamente organizado para a


prática do comércio. Corresponde grosso modo a uma ideia de empresa, mas sem o elemento humano e de
direção.

 Elementos do estabelecimento:

O estabelecimento comercial abrange elementos bastante variados. Em comum têm apenas o facto de se
encontrarem interligados para a prática do comércio.

No estabelecimento, pode distinguir-se entre o ativo (conjunto de direitos e outras posições equiparáveis,
afetas ao exercício do comércio) e o passivo (adstrições ou obrigações contraídas pelo comerciante por esse
mesmo exercício).

No respeitante ao ativo, o estabelecimento abrange:

(a) Coisas corpóreas – direitos relativos a imóveis, particularmente: direitos reais de gozo (como a
propriedade ou o usufruto) e os direitos pessoais de gozo (como o direito ao arrendamento). Também
direitos relativos aos móveis: mercadorias, matérias-primas, maquinaria, mobília e instrumentos de
trabalho ou auxiliares, escrituração, computadores, livros, documentos, ficheiros e títulos de crédito.
Ficam, pois, abrangidas quaisquer coisas que, estando no comércio, sejam, pelo comerciante, afetas
a esse exercício.

20
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

(b) Coisas incorpóreas – obras literárias ou artísticas que se incluam no estabelecimento, os inventos
(patentes) e as marcas. Pode ainda acrescentar-se o direito à firma ou nome do estabelecimento e
outros aspetos que, embora à partida não-patrimoniais, consintam todavia uma comercialidade
limitada. Há que incluir também os direitos a prestações provenientes de posições contratuais
(contratos de trabalho, contratos de prestação de serviços, contratos com fornecedores, contratos de
distribuição, de publicidade, de concessão comercial, de agência, de franquia e mesmo relativos a
bens vitais).
(c) Aviamento e clientela – o aviamento corresponde grosso modo à mais-valia que o estabelecimento
representa em relação à soma dos elementos que o componham, isoladamente tomados, ou seja, a
aptidão funcional e produtiva do estabelecimento. A clientela equivale ao conjunto, real ou
potencial, de pessoas dispostas a contratar com o estabelecimento, nele adquirindo bens ou serviços.

O critério do estabelecimento assenta em duas ordens de fatores:

(a) Fator jurídico – a dimensão jurídica explica-nos que o Direito concede ao conjunto dos elementos
referidos um regime especial. Do regime específico do estabelecimento, destaca-se:

- O direito ao arrendamento, quando se inclua no estabelecimento, pode ser transmitido, em conjunto com
este, independentemente de autorização do senhorio – art. 1112º CC;

- A transmissão de firma só é possível em conjunto com o estabelecimento a que ela se achar ligada – art. 44º
RNPC;

- A transmissão do estabelecimento implica a transferência da posição jurídica de empregador para o novo


adquirente, relativamente aos contratos de trabalho dos trabalhadores a ele afetos – art. 285º/1 CT. Contudo,
apesar de se considerar que os contratos de trabalho fazem parte do próprio trespasse (como fatores
incorpóreos), a verdade é que os trabalhadores podem opor-se a esta transmissão da entidade laboral,
fazendo cessar o seu contrato de trabalho, uma vez que o segundo empregador pode não oferecer as mesmas
condições que o primeiro empregador – art. 286º-A CT, aditado pela Lei 14/2018 de 19 de março. Assim, o
trabalhador que não queira ver o seu contrato de trabalho transmitido do empregador A para o empregador
B, vai dizer ao empregador A que não quer ver o seu contrato de trabalho transmitido ao novo empregador,
e o antigo empregador (A) vai dizer que o seu posto de trabalho está extinto e, por isso, extingue o seu contrato
de trabalho, e vai ter de pagar o valor atinente àquele despedimento.

(b) Fator funcional – apela ao realismo exigido pela própria vida do comércio. Devemos verificar como se
organiza efetivamente um estabelecimento e como ele funciona. O estabelecimento existe e é
autonomizado pelo comércio e pelo Direito precisamente por organizar as coisas corpóreas, em
conjunto com as incorpóreas, num todo coerente para conseguir angarias clientela e, daí, lucro. Assim,
só interessa para o estabelecimento o que contribua para o mesmo.

 Autonomia do estabelecimento:

A origem do reconhecimento do estabelecimento como realidade autónoma qualitativamente diferente dos


elementos que o componham reside nas leis sobre o arrendamento, que vieram a ser promulgadas ao longo
do séc. XX. E é ainda o estabelecimento que ditou boa parte da autonomia dos arrendamentos comerciais.

É importante ter presente que os estabelecimentos comerciais se desenvolveram sobretudo nas cidades,
sendo que os comerciantes instalavam os seus estabelecimentos em locais arrendados. Esses locais,
justamento quando neles exercessem comerciantes ordenados e de prestígio, viam o seu valor aumentar.

21
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Todavia, no sistema liberal do Código de Seabra, o senhorio poderia, praticamente a todo o tempo, pôr cobro
aos arrendamentos em vigor. Quando isso acontecesse, o estabelecimento teria de se transferir, o que
implicaria muitas vezes o seu desmantelamento. A mais-valia conquistada pelo comerciante perder-se-ia, em
conjunto com numerosos investimentos por ele levados a cabo. Estas e outras consideraçõea acabaram por
pesar junto do legislador.

Assim, o Decreto de 12 de novembro de 1910 veio dispor, para além de outras medidas, que o arrendatário
comerciante ou industrial que tivesse valorizado o local arrendado, teria, caso fosse despedido, o direito a
uma indemnização pela clientela. Além disso, os prédios onde estivessem instalados estabelecimentos
comerciais ou industriais poderiam ser “sublocados” – trespassados – sem autorização do senhorio.

 O regime do estabelecimento:

 A negociação unitária: o trespasse

O trespasse é a transmissão a título definitivo do estabelecimento comercial.

O ponto mais significativo do regime do estabelecimento é a possibilidade da sua negociação unitária. Estando
em causa um acervo de bens e direitos, a lei e a prática consagradas admitem que a transferência se faça
unitariamente. Trata-se de um aspeto que abrange não só as coisas corpóreas articuladas, mas também todas
as realidades envolvidas, incluindo o passivo.

Repare-se: não deixa de haver transmissão unitária pelo facto de, para a perfeita transferência de alguns dos
elementos envolvidos, se exigir o consentimento de terceiros.

O trespasse do estabelecimento que tudo englobe continua a fazer-se por um único negócio, com todas as
facilidades que isso envolve: através da transmissão unitária do estabelecimento é possível transmitir-se
coisas que de outra forma não poderiam ser transmitidas ou careceriam de consentimento.

Perante a relativa indefinição legal e dada a exigência das tais autorizações, o trespasse clássico tem vindo a
perder terreno, a favor de esquemas societários. O comerciante que pretenda fundar um estabelecimento
constituirá uma sociedade comercial mais ou menos (des)capitalizada, que irá encabeçar o acervo de bens e
de deveres a inserir no estabelecimento. Querendo alienar a sua posição, o comerciante em causa,
simplesmente, transferirá as suas posições sociais – quotas ou ações – para o adquirente.

O trespasse do estabelecimento tem de respeitar forma escrita, sendo exigida uma transmissão do
estabelecimento no seu todo ou como universalidade: é insuficiente aquela que incida sobre apenas alguns
dos seus elementos. Por certo que as partes, ao abrigo da sua autonomia privada, poderão retirar do
estabelecimento os elementos que entenderem. O trespasse não deixará de o ser até ao limite de o conjunto
transmitido ficar de tal modo descaracterizado que já não possa considerar-se um “estabelecimento” em
condições de funcionar.

Além da transmissão, o estabelecimento deve manter-se como tal. Daí o não poder passar-se a exercer, no
local, comércio diferente.

A lei especifica, a propósito da transmissão do arrendamento, que o trespasse deve abarcar “instalações”,
“utensílios”, “mercadorias” e “outros elementos” (art. 1112º CC).

22
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Perante um trepasse de âmbito máximo, que englobe o passivo, teremos de distinguir os seus efeitos internos
dos externos:

o Quanto aos internos, o trespassário adquirente fica adstrito, perante o trespassante, a pagar aos
terceiros o que este lhe devia.
o Quanto aos externos, o alienante só ficará liberto se os terceiros, nos termos aplicáveis à assunção de
dívidas e à cessão da posição contratual, o exonerarem ou derem acordo bastante.

O Prof. MC defende que, regra geral, as dívidas transmitem-se com o trespasse.

O trespasse pode operar por via de qualquer contrato, típico ou atípico, que assuma eficácia transmissiva:
compra e venda, dação em pagamento, sociedade, doação ou outras figuras diversas. O regime do trespasse
dependerá então do contrato que estiver na sua base.

Cumpre ainda dizer que existe um direito de preferência a favor do senhorio, na hipótese de trespasse por
venda ou dação em cumprimento (art. 1112º/4 CC) do estabelecimento e que o trespassante poderá ficar
investido num dever de não-concorrência em relação ao trespassário (ou seja, não pode trespassar uma
hamburgueria para depois, ao lado, abrir um negócio em tudo equivalente). O Prof. NUNO AURELIANO diz,
contudo, que esse dever de não-concorrência só existe se estiver expresso no contrato; caso contrário violar-
se-á a liberdade de iniciativa económica. Já o Prof. COUTINHO DE ABREU fala neste âmbito de uma obrigação
implícita e o Prof. MC afirma que este dever decorre do princípio da boa fé.

Quanto ao dever de não-concorrência, existem três limites apontados pela doutrina:

(a) Limite material – tem de existir uma similitude entre a atividade praticada nos estabelecimentos.
(b) Limite temporal – não se observar um prazo de consolidação do novo estabelecimento (geralmente
2/3 anos).
(c) Limite espacial – tem de existir uma proximidade geográfica entre os dois estabelecimentos, que possa
ser suscetível de atrair clientela do estabelecimento trespassado.

Basta que se viole um destes limites para que seja violado o dever de não-concorrência.

Existindo uma violação do dever de não concorrência, poder-se-á intentar um procedimento cautelar para a
cessação do estabelecimento novo por concorrência indevida e poderá dar lugar a indemnização,
reconstruindo a situação que existiria se a violação não tivesse sido consumada.

Contudo, para que se possa intentar um procedimento cautelar, é necessário que estejam preenchidos dois
pressupostos:

1. Haja indícios de que o direito de facto existe


2. Haja perigo na mora – tem de haver um risco de perda de efetivação do direito se tiver de se aguardar
pela intervenção.

Note-se que este dever de não-concorrência pode abranger pessoas relacionadas o trespassante (interposta
pessoa: marido, filhos, etc.).

O trespasse é um ato comercial objetivo, uma vez que é o que resulta de uma interpretação atualista do art.
2º/1ª parte CCom, mesmo que não esteja expressamente previsto no CCom (segundo MC).

NOTA: não há um verdadeiro trespasse se, uma loja, ainda que tenha um cartaz a dizer “Trespassa-se”, estiver
vazia, pois não se sabe o que é que se praticava nesse estabelecimento.

23
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

 A cessão de exploração e a locação de estabelecimento

Na locação de estabelecimento (art. 1109º CC), antes dita cessão de exploração, há uma cedência temporária
do estabelecimento comercial.

Em rigor, haveria que distinguir: a cessão de estabelecimento seria a transferência temporária do


estabelecimento, efetuada a qualquer título; a locação de estabelecimento implicaria a cessão titulada por
um negócio decalcado da locação, designadamente com uma obrigação periódica de pagamento de
retribuição tipo renda ou aluguer.

O interesse da autonomização da cessão de exploração é o do próprio reconhecimento do estabelecimento


como objeto de negócios:

a) Permitiria a cedência temporária do estabelecimento como um todo, sem necessidade de negociar


uma a uma todas as realidades que o componham, e viabilizando ainda o cômputo de elementos sem
autonomia, como o aviamento e a clientela.
b) Possibilitaria atender à verdadeira realidade em jogo no estabelecimento, afastando normas comuns
aplicáveis a outras figuras contratuais, como por exemplo o arrendamento.

A possibilidade de, na locação de estabelecimento, afastar o regime restritivo do arrendamento, obriga a uma
delimitação mais cuidada dos seus contornos. À partida, pode dizer-se que deve haver, como objeto do
negócio, um estabelecimento comercial: é a presença deste, com a sua lógica própria e os seus valores
particulares, que conduziu à autonomização prática e conceitual da figura.

O Prof. Antunes Varela exclui, na então cessão do estabelecimento, os esquemas injuntivos do arrendamento.
Em bom rigor, a cessão de exploração, mesmo na modalidade legalmente prevista da “locação de
estabelecimento”, é um negócio atípico: cabe às partes desenvolver o regime que entendam adotar.

A jurisprudência sobre locação de estabelecimento tem vindo a fixar os contornos da figura:

i) Desde logo, ela exige um estabelecimento, sob pena de ser um arrendamento “puro”.
ii) Quando ela envolva um local arrendado, ficou entendido não ser necessária a autorização do
senhorio: um ponto que, em 2006, passou para a lei expressa, ainda que seja necessário ser-lhe
comunicada (art. 1112º/3 CC), no prazo de 15 dias (art. 1038º/g) CC). Se a comunicação não for
feita, gera ineficácia e possibilidade de resolução.
iii) A cessão de exploração deve constar de documento escrito (art. 111º RAU e 1112º/3 CC).
iv) Finalmente, há que reconduzir esta figura à figura geral da locação.

 O usufruto do estabelecimento

Sobre o estabelecimento comercial pode recair o direito de usufruto. Nessa altura e nos termos gerais, o
usufrutuário poderá aproveitar plenamente o estabelecimento, sem alterar a sua forma ou substância – art,
1439º CC.

Os elementos corpóreos podem, por definição, ser objeto de usufruto, enquanto os incorpóreos o serão por
via dos arts. 1463º a 1467º do CC e dos princípios que deles emergem.

Tratando-se de um estabelecimento, os poderes de transformação do usufrutuário devem ser tão alargados


quanto possível. De outro modo, iriam bloquear a atualização e a renovação do estabelecimento, enquanto
durar o usufruto.

24
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

 O estabelecimento como objeto de garantia

O estabelecimento pode ainda ser dado em garantia.

O estabelecimento pode ser dado em penhor, pelo seu titular. É relevante o penhor global sobre o conjunto.
Em regra, tratar-se-á de um penhor mercantil, sendo assim suficiente, nos termos do art. 398º § único uma
entrega simbólica. O estabelecimento dado em garantia pode continuar a funcionar normalmente. Até porque
se uma pessoa pode transmitir definitivamente um estabelecimento comercial (trespasse), então também
pode empenhá-lo (quem pode o mais pode o menos).

O penhor é uma garantia real das obrigações que incide sobre determinada coisa móvel ou sobre créditos ou
outros direitos que não são suscetíveis de hipoteca. É o ato ou efeito de empenhar.

A hipoteca é também uma garantia real, que garante ao credor prioridade em ser pago naquele bem, e difere
do penhor porque tem de estar registada na Conservatória do Registo Predial.

O estabelecimento comercial pode ainda ser objeto de penhora. Trata-se de uma operação que não afeta a
relação locatícia que, eventualmente, nele se inclua e que, como em qualquer situação relativa ao
estabelecimento, o atinge, no seu conjunto.

A penhora é uma apreensão judicial dos bens e/ou rendimentos para pagamento aos credores.

 A reivindicação e as defesas possessórias

O estabelecimento não é só composto por coisas corpóreas. Ainda assim, estas, para além de poderem ter um
papel dominante, emprestam ao conjunto um teor característico. Deste modo, a doutrina e a jurisprudência
têm-se inclinado para a aplicabilidade ao estabelecimento das defesas reais.

Em primeiro lugar, o estabelecimento pode ser reivindicado. De seguida, temos as ações possessórias. Estas
assistem ao seu titular. Mas também o trespassário poderá utilizá-las para tornar efetiva a posse que tenha
recebido por via contratual.

 A natureza do estabelecimento:

À partida, devemos entender que o estabelecimento não se confunde com a empresa. Esta é um conceito-
quadro que ora se reporta a um sujeito de direitos ora abrange uma organização produtiva com a sua direção.
Já o estabelecimento surge como um conceito mais preciso, dotado de regras próprias.

O estabelecimento é, no Direito português, objeto de negócios e de direitos.

A nossa doutrina e a italiana também não admite a figura das universalidades de direito. O estabelecimento
não pode dar corpo a uma universalidade de facto, por duas razões: (i) abrange ou pode abranger o passivo e
(ii) abrange ou pode abranger coisas incorpóreas.

Se tem um conjunto de direitos e de deveres, então pode falar-se numa esfera jurídica; contudo, a esfera
jurídica é reportada a um sujeito e no caso do estabelecimento este é reportado a uma afetação. Assim, o
estabelecimento tem a natureza de esfera jurídica de afetação, sendo delimitada pelo seu titular em função
do escopo jurídico-comercial em jogo.

25
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

 Estabelecimento individual ou de responsabilidade limitada:

O exercício do comércio implica riscos. No caso do estabelecimento comercial, ele encontra-se na titularidade
de um interessado e, por isso, este responde com todo o seu património pelas dívidas ocasionadas através de
exploração comercial.

Constituiu um desafio clássico ao Direito comercial o apurar esquemas que, sem colocarem em risco a
segurança do comércio e a fidedignidade das transações, permitam limitar a responsabilidade individual dos
operadores. Essa preocupação foi, em grande parte, alcançada pelas sociedades comerciais de
responsabilidade limitada.

Mas e se se tratasse de um comerciante em nome individual que não desejasse associar-se? Uma primeira via,
clássica, foi a de admitir sociedades unipessoais (sociedades com um único sócio). Pelas dívidas da sociedade
responderia apenas o património desta, assim se conseguindo a procurada limitação.

Assim, como primeira tentativa limitadora, a lei portuguesa, através do DL 248/86 de 25 de agosto, veio
permitir a figura do estabelecimento individual de responsabilidade limitada (EIRL). Pelas dívidas resultantes
de atividades compreendidas no objeto do EIRL, respondem apenas os bens a este afetados, salvo se o titular
não tiver respeitado o princípio da separação dos patrimónios (art. 11º DL).

O EIRL é, de facto, um estabelecimento comercial, colocado numa situação especial, que permite a
responsabilidade limitada. Tal como o estabelecimento comercial, também o EIRL constitui uma esfera jurídica
de afetação: no fundo, este tenderia a ser uma modalidade daquele. Não bastará considerá-lo como um
património autónomo (como faz MTS), uma vez que também abrange o passivo.

Esta figura pode ser objeto de penhor.

O ESTATUTO GERAL DOS C OMERCIANTES


❖ A firma e a denominação

(1) Firma

A determinada altura, apareceram as sociedades comerciais, e era preciso conhecê-las e reconhecê-las de


alguma forma: foi preciso atribuir-lhes uma designação. Foi através destas designações que se autonomizou
a ideia de firma, distinta do nome.

O aumento do número de sociedades e a perspetiva generalizadora das pré-codificações e das condificações


levou a que a matéria da designação das sociedades fosse objeto de tratamento. As primeiras regras
referentes à firma em geral surgiram no Direito alemão.

Há ainda um outro fenómeno que tem a ver com a comercialidade: Bordas era o apelido de uma família
francesa que começou a editar livros escolares que, mais tarde, vieram a romper uns com os outros e os
membros da família que saíram da Bordas queriam impedir que continuassem a utilizar o nome deles na
sociedade. O Tribunal entendeu que o nome Bordas era já um nome comercial, que pertencia a todos os sócios
e não era já apenas o nome pessoal da família.

O progresso do Direito privado ditou o aparecimento de novos ramos dedicados aos bens imateriais. Assim
sucede com o Direito da propriedade industrial, entre nós, que tutela as marcas. A firma pode, através de um
adequado processo de registo, tornar-se uma marca. Desfrutará, então, de uma tutela mais alargada,
constituindo-se objeto de um direito privativo.

26
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

➢ Natureza da firma:

O direito à firma é, hoje, distinto do direito ao nome. O direito ao nome acentua a vertente da personalidade,
enquanto o direito à firma tende cada vez mais para o direito a um bem imaterial. Todavia, as suas conexões
são ainda suficientemente evidentes para que a doutrina o considere um direito misto: um direito de
personalidade, reportado também a bens imateriais patrimoniais.

A sua transmissibilidade é, assim, possível.

Note-se que a última reforma do Direito comercial alemão veio reforçar o afastamento do direito à firma do
Direito de personalidade.

➢ Firma no Direito Português:

Inicialmente, no Código Ferreira Borges, firma era a designação de certas sociedades comerciais que
correspondesse, total ou parcialmente, ao nome do sócio ou de um deles. Quando em 1867 saiu uma lei sobre
as sociedades anónimas, ficou esclarecido que as sociedades anónimas não tinham nenhum nome de
comerciante, ao contrário das restantes sociedades.

O Código Veiga Beirão veio reger a matéria da firma no seu art. 19º, estabelecendo o seguinte:

a) Comerciantes individuais – firmas.


b) Sociedades (que não as anónimas) – firmas.
c) Sociedades anónimas – denominação particular.

Mais tarde, em 1901, saiu uma lei a prever uma nova regulação das sociedades, em que se introduziram as
sociedades por quotas, que não estavam previstas no Código Veiga Beirão. Podíamos então ter:

i. Sociedades por quotas com firma, quando, como designação, adotassem o nome de um ou mais
sócios;
ii. Sociedades com denominação social, quando o nome fosse qualquer outro, relacionado com a
sua atividade ou de pura fantasia.

Quando chegamos aos anos 30, contudo, verifica-se que comerciantes que tinham muito êxito (ex: Espírito
Santo) começam a querer transformar-se em sociedades anónimas. Contudo, com isto, teriam que perdem o
nome (uma vez que as sociedades anónimas não podiam ter o nome de qualquer pessoa); problema: este
nome era uma mais valia e queriam mantê-lo. Então, arranjou-se uma solução: em 1931 saiu um diploma que
promulgou a previsão das sociedades anónimas com firma, substituindo a expressão “denominação
particular” por “firma”. A solução prevista para as sociedades por quotas, contudo, manteve-se igual.

Assim, a partir dessa altura, começou a haver sociedades anónimas que tinham firma, mas que em alguns
casos eram firma-nome, e noutros eram firma-denominação. Deste modo, a solução que se encontrou foi que
as sociedades que são comerciantes tivessem sempre uma firma (lato sensu, ou seja, podem ser firma ou
denominação).

Nos anos 80 houve uma série de reformas, como o Regime Nacional de Pessoas Coletivas (RNPC). A tendência
seria a de que todas as pessoas coletivas teriam que ter uma determinada designação: se for um comerciante
a título individual adota uma firma, se for uma sociedade comercial adota uma firma, se for uma realidade
que não seja comercial (ex: associação) adota uma denominação.

27
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

➢ Regime da firma

Aparentemente, o RNPC apenas indica dois princípios: o princípio da verdade e o princípio da novidade,
expressos nos arts. 32º e 33º desse diploma. Todavia, seja pela análise desses preceitos, seja pelo recurso à
doutrina mais aprofundada de outros países, seja pelo recurso ao sistema, podemos alargar a sequência dos
princípios a atender. Assim, encontramos os seguintes princípios:

1. Princípio da autonomia privada (com limitações genéricas) – uma vez que nos encontramos no
âmbito do Direito privado, existe a regra essencial da autonomia privada. Deste modo, a escolha da
firma cabe ao comerciante ou às entidades que irão constituir a sociedade comercial, quando disso se
trate. Em rigor, há uma dupla opção:
a) A decisão de assumir uma firma;
b) A concreta composição da firma em causa – podem optar entre firmas subjetivas/pessoais,
objetivas/materiais, de fantasia ou mistas.

Contudo, há certos limites à autonomia privada – 32º/4 RNPC.

2. Princípio da obrigatoriedade e da normalização – a obrigatoriedade decorre, desde logo, do art.


18º/1, onde se estabelece que os comerciantes são especialmente obrigados a adotar uma firma. O
RNPC não prescreve expressamente a obrigatoriedade de adoção da firma, mas ela resulta de
determinados preceitos, como os arts. 6º a 10º. O incumprimento desta obrigação não envolve, por
si só, a invalidade dos atos comerciais que venham a ser praticados pelo faltoso, tal invalidade só
ocorre quando a lei o diga.

Além de obrigatória, a firma deve obedecer a certos ditames que a tornem reconhecível como firma. Desde
logo, a firma deve ter uma expressão verbal, suscetível de comunicação oral e escrita. Deve também surgir em
carateres latinos. Tratando-se de uma firma de fantasia, pode assumir siglas, letras ou números, dentro dos
limites da seriedade e da ordem pública. Quando tenha algum significado, deve surgir em língua portuguesa
correta.

A normalização das firmas leva a prescrever regras próprias para as diversas categorias de comerciantes:

(i) As firmas das sociedades comerciais têm hoje um tratamento autónomo – art. 37º/1 RNPC.
(ii) Quanto aos comerciantes pessoas singulares – segundo o art. 38º RNPC, o núcleo da firma do
comerciante em nome individual deve ser composto pelo “seu nome”, “completo ou abreviado”.
O Prof. MC diz que esta solução deveria ser de iure condendo repensada, uma vez que os meios
informáticos hoje existentes permitem associar com facilidade os titulares de firmas. Assim,
deveria permitir-se que os comerciantes singulares adotassem firmas materiais ou firmas de
fantasia, seguidas de da referência “comerciante individual” (c.i.) ou equivalente.

A lei permite que, ao núcleo da firma do comerciante pessoa singular seja aditada alcunha ou expressão alusiva
à atividade (art. 38º/1).

É ainda permitido que sejam incluídos no núcleo da firma destes comerciantes individuais títulos, desde que
legítimos (art. 38º/3), sendo que a legitimidade tem de ser provada pelos requerentes (art. 49º/1).

3. Princípio da verdade (art. 32º RNPC) – a firma deve retratar a realidade a que se reporte ou, pelo
menos, não deve transmitir algo que não lhe corresponda. A lei admite firmas de fantasia: quando
isso suceda, não resultará, ou poderá não resultar, coisa nenhuma. O problema põe-se, então, quando
a firma retrate alguém ou tenha algum significado.

De acordo com o art. 32º/1 RNPC, todos os elementos da firma devem ser verdadeiros e não induzir em erro:

28
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

a) Sobre a identificação – os comerciantes pessoas singulares não podem adotar firmas pessoais com
nomes que não lhes pertençam. Quanto a pessoas coletivas, o problema coloca-se quando recorram
a “denominações”.
b) Sobre a pertença a algum grupo.
c) Sobre a natureza – um interessado não pode adotar uma firma que inculque uma natureza que não
seja a sua.
d) Sobre a atividade.

O art. 32º/2 vem referir-se ao núcleo da firma: aos seus elementos característicos. Já o art. 32º/4 vem fazer
mais especificações. O princípio da verdade manifesta-se ainda no art. 32º/5.

4. Princípio da estabilidade – este princípio não consta de modo expresso da lei portuguesa. Segundo
este princípio, a firma, quando identificada com uma empresa ou um estabelecimento, conservar-se-
ia, não podendo ad nutum ser alterada: impor-se-á sempre todo o processo constitutivo do início. Ou
seja, a firma tem de ter uma denominação estável. Se se alienar um estabelecimento de uma
sociedade comercial, a firma vai com ele – art. 44º/2. Contudo, quando se transmita a firma de
sociedade na qual figure o nome de um sócio, este deverá dar autorização para que a firma se
mantenha imutável: os aspetos de personalidade envolvidos no nome prevalecem sobre os interesses
do comércio.

Relativamente ao problema de saber se, havendo uma transmissão coerciva, a autorização do dono pode ser
dispensada. No direito português da insolvência, o CIRE, no seu art. 162º refere a alienação da empresa “como
um todo”. Logo, a firma-objeto e a firma de fantasia ficam abrangidas. Contudo, tratando-se de uma firma
pessoal, prevalece o direito ao nome, mercê da sua natureza de personalidade (com apelo ao art. 335º CC –
colisão de direitos): a autorização do próprio será sempre necessária, salvo abuso do direito.

5. Princípio da novidade e da exclusividade (art. 33º/1 RNPC) – segundo este princípio, uma
determinada firma, quando atribuída, dá ao seu titular o direito ao seu uso exclusivo em determinada
circunscrição – art. 35º/1:
(i) A firma do comerciante individual que corresponda ao seu nome, completo ou abreviado, não
dá lugar a um exclusivo. Todavia, havendo nome total ou parcialmente idêntico, ele não pode usá-
lo profissionalmente de modo a prejudicá-lo – arts. 72º/2 Cce 38º/4 a contrario RNPC.
(ii) A firma do comerciante individual que não corresponda apenas ao seu nome, dá direito ao seu
uso exclusivo desde a data do registo definitivo.
(iii) As firmas das sociedades comerciais ou civis sob forma comercial dão azo a um exclusivo em todo
o território nacional – art. 37º/2 RNPC.
(iv) As denominações de associações e fundações são exclusivas em todo o território nacional, salvo
quando o seu objeto estatutário indicie atividades de natureza meramente local ou regional – art,
36º/3 RNPC.

A firma – ou candidata a firma – mais recente deve ser distinta da mais antiga, sob pena de facultar um
enriquecimento à custa desta.

6. Princípio da unidade – de acordo com este artigo, o comerciante só poderia girar sob uma única firma.
O art. 38º/1 RNPC predispõe-no para os comerciantes em nome individual, e a doutrina encarrega-se
de alargar esse princípio às sociedades.

Aparentemente, nem sequer se tem em conta o facto de o comerciante poder deter mais de um
estabelecimento ou, mesmo, duas ou mais empresas totalmente distintas. Efetivamente, interesses
comerciais perfeitamente razoáveis podem levar a que estabelecimentos tenham designações próprias e
distintas. Esses mesmos interesses comunicam-se às firmas dos titulares respetivos. Coutinho de Abreu, no

29
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

entanto, discorda, explicando que um mesmo sujeito poder apresentar-se no comércio jurídico com vários
nomes causaria confusões várias. Na era da informática, essas confusões seriam ultrapassáveis, contudo, é
uma questão de sensibilidade.

 Aspetos processuais:

No Direito português, o direito a uma firma depende do seu registo definitivo no RNCP – art. 35º/1. Antes
disso, em particular no caso das pessoas coletivas, é necessário obter um certificado de admissibilidade da
firma ou da denominação pelo RNPC – art. 45º.

Todos os obrigados a ter firma devem requerer a inscrição (princípio da obrigatoriedade). Se não o fizerem, o
art. 12º/1 permite que ela seja feita oficiosamente, sem prejuízo do subsequente procedimento legal.

Quando violados os princípios da firma, o RNPC declara a perda do direito ao uso da que esteja em causa –
art. 60º/1.

O uso ilegal de uma firma concede aos interessados (art. 62º):

a) O direito de exigir a cessação de tal uso;


b) O direito a uma indemnização por danos emergentes;
c) O direito, eventualmente, de lançar mão de ação criminal.

Os particulares dispõem ainda de meios de proteção contra o Estado e neste caso contra o RNPC. Assim, dos
despachos que admitam ou indefiram firmas e de outros atos, cabe recurso hierárquico para o presidente do
IRN, IP, seguindo-se o prescrito no CPA (arts. 63º e 66º RNPC).

 A firma e o regime especial de constituição de sociedades (2005):

Visando enfrentar o problema da excessiva demora na constituição de sociedades comerciais, o legislador


criou o regime especial de constituição de sociedades: DL nº 111/2005 de 8 de julho, que foi alterado pelo DL
nº 247-B/2008 de 30 de dezembro.

Este regime é limitado às sociedades por quotas e às sociedades anónimas.

❖ Registo comercial

No Direito português, a inscrição de factos mercantis já era conhecida no Direito antigo. A legislação
pombalina prestou a essa matéria especial atenção.

O registo comercial moderno surgiu apenas com o liberalismo, designadamente através do Código Ferreira
Borges, que obrigava o lançamento num registo solene todos os documentos a que a lei impusesse este
requisito.

O Código Veiga Beirão retomou a matéria, sem inovar grandemente. De todo o modo, este Código era muito
parco em regras sobre o registo comercial. O essencial constava do Regulamento de 15 de novembro de 1888,
que vigoraria por 70 anos. Este Regulamento remetia a matéria do registo comercial, supletivamente, para o
registo predial.

Já o Código do Registo Comercial (1966) pretendeu dar lugar a um verdadeiro “código” e, portanto, algo que
assumisse “um caráter sistemático e sintético que legitime a sua designação”. Para o efeito, retomou no seu

30
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

corpo uma série de normas que constavam do Código do Registo Predial, que deixou de ser considerado
diploma subsidiário. Atente-se que o CRC veio a ser sucessivamente alterado.

o Reforma do registo comercial de 2006

a) Aspetos gerais:

O DL nº 76-A/2006 de 29 de março, primacialmente virado para as sociedades comerciais, alterou


profundamente o CRC, republicando-o em anexo. Recorrendo ao preâmbulo, encontramos diversas medidas
relevantes para o registo. Assim:

▪ A possibilidade de praticar atos de registo on-line;


▪ A certidão permanente on-line;
▪ A redução e a clarificação dos custos da prática dos atos;
▪ A eliminação da competência territorial das conservatórias do registo comercial;
▪ A supressão de atos e práticas que não acrescentem valor, designadamente: reduzindo o número de
atos sujeitos a registo e adotando a possibilidade de praticar atos através de um registo “por
depósito”;
▪ A criação de um novo regime de registo de transmissão de quotas.

b) A eliminação da competência territorial das conservatórias:

Para efeitos do registo comercial, o país estava dividido em áreas encabeçadas por conservatórias. Cada uma
delas tinha competência para a prática de atos. A supressão da competência territorial das conservatórias é
tornada possível pela criação de uma base de dados nacional (art. 78º-B): esta centraliza toda a informação
relativa às entidades sujeitas a registo, de tal modo que se torna indiferente o ponto concreto de recolha de
informação.

c) Registo por transcrição e por depósito:

Ponto-chave do novo registo comercial é a contraposição entre o registo por transcrição e o registo por
depósito (art. 53º-A/1):

- No registo por transcrição, o conservador procede à extratação dos elementos que definem a situação
jurídica das entidades sujeitas a registo constantes dos documentos apresentados;

- No registo por depósito procede-se ao mero arquivamento dos documentos que titulam factos sujeitos a
registo.

No Direito anterior, a regra era a do registo por transcrição.

d) Processo do registo:

O processo do registo, no formato resultante da reforma de 2006, percorre o seguinte caminho:

1º O pedido de registo é formulado verbalmente, quando efetuado por pessoa que tenha legitimidade
para o efeito (art. 4º/1). Nos restantes casos, é feito por escrito, em modelo adequado (art. 4º/2).
2º Os registos por transcrição seguem a metodologia regulada nos arts. 8º a 13º. Assim:
3º A matrícula deve conter o número, a natureza da entidade, o nome ou firma do comerciante individual
ou a firma ou denominação da pessoa coletiva (art. 8º);

31
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

4º O extrato das transcrições compreende certas menções gerais (art. 9º) e, eventualmente, especiais
(art. 10º);
5º Os averbamentos são explicitados (art. 11º).

Quanto aos registos por depósito, há a salientar:

i. Menções gerais: data, facto, nome ou denominação (art. 14º);


ii. Menções especiais elencadas na lei (art. 15º).

6º Finalmente, o art. 16º determina que as notificações sejam efetuadas por carta registada.

e) Papel da informática, apresentação por notário e documentos:

No novo regime, a informática tem um papel decisivo – arts. 58º/1, 59º, 70º/2, 75º/3, 75º/5, 77º/3e 78º-B a
78º- L.

O pedido de registo é feito pelo interessado, ou apresentado diretamente pelo notário, na conservatória
competente (art. 27º-A). Tratando-se de sociedade, apenas esta tem legitimidade para o pedido (art. 29º/5),
podendo, quando ela não o faça, qualquer pessoa solicitar junto do conservador a sua promoção (art. 28º-
A/1).

Quanto aos documentos, a novidade é a de que podem ser aceites, sem tradução, quando escritos em inglês,
francês ou espanhol, quando o funcionário competente domine essas línguas (art. 32º/2).

f) A impugnação de decisões:

O sistema da impugnação das decisões foi alterado, no sentido da eliminação dos passos inúteis e demorados.
Assim, foi suprimida a figura da reclamação para o próprio conservador. Da decisão de recusa da prática do
ato de registo cabe (art. 10º/1):

- Recurso hierárquico para o diretor-geral dos Registos e do Notariado;

- Impugnação judicial.

Impugnada a decisãoo, o conservador profere, em 10 dias, despacho a sustentar ou a reparara decisão (art.
101º-B/1).

Sendo o recurso hierárquico improcedente, pode ainda o interessado impugnar judicialmente a decisão: tem
20 dias (art. 104º/1).

Em 2007, 2008 e 2009 houve mais reformas, com alterações que visaram:

(i) Adaptar a terminologia à reforma de 2006, em pontos que então escaparam ao legislador;
(ii) Resolver aspetos práticos, entretanto detetados;
(iii) Harmonizar melhor as novas soluções.
➢ Âmbito e princípios do registo comercial

Âmbito:

O registo comercial é um esquema que visa dar publicidade a certos atos, à situação jurídica dos comerciantes
individuais, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob forma comercial e dos estabelecimentos
individuais de responsabilidade limitada, tendo em vista a segurança do comércio jurídico (art. 1º/1 CRC).

32
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

O art. 1º/2 alarga a publicidade comercial a entidades semelhantes a comerciantes: cooperativas, empresas
públicas, agrupamentos complementares de empresas, agrupamentos europeus de interesse económico e
outras pessoas singulares ou coletivas a ele sujeitas.

Quanto a comerciantes individuais, estão sujeitos a registo (art. 2º CRC):

a) O início, alteração e cessação de atividade do comerciantes individual;


b) As modificações do seu estado civil e regime de bens;
c) A mudança de estabelecimento principal.

As sociedades comerciais e as sociedades civis sob forma comercial têm numerosas situações sujeitas a
inscrição comercial (art. 3º/1 CRC), sinteticamente:

i. O próprio contrato de sociedade;


ii. A situação jurídica das quotas das sociedades por quotas;
iii. A designação e cessação de funções dos administradores, gerentes ou diretores;
iv. As modificações societárias.

São ainda, grosso modo, esses mesmos fatores que devem ser publicitados no tocante a sociedades anónimas
europeias (art. 3º/2 CRC), a cooperativas (art. 4º CRC), a empresas públicas (art. 5º CRC), a agrupamentos
complementares de empresas (art. 6º CRC), a agrupamentos europeus de interesse enconómico (art. 7º CRC)
e a estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada (art. 8º CRC).

Estão ainda sujeitas a registo as ações que possam interferir nas situações que devam ser inscritas, de acordo
com a renumeração do art. 9º CRC. O art. 10º CRC submete também a registo comercial situações como o
mandato comercial.

→ Os atos sujeitos a registo constituem uma tipicidade fechada. Podemos admitir que outras leis
submetam certos atos a registo comercial; podemos também aceitar que algumas formulações legais
admitam interpretação extensiva. Não é, porém, possível, por analogia ou com recurso a princípios,
ampliar a lista considerada.

Paralelamente, há que recusar a redução teleológica da lista, de modo a retirar dela factos que, atentos os
fins das normas em jogo, já nada ganhem com a inscrição comercial. Por exemplo, poderia ser desejável
submeter a registo comercial o contrato de concessão comercial ou o contrato de franquia; todavia, e a menos
que, em concreto, seja possível estabelecer que esses contratos envolvem no seu núcleo essencial uma
situação de agência, não há base legal para um dever de registo.

Princípios:

Os princípios do registo comercial são:

1) Princípio da instância (art. 28º CRC) – o registo efetua-se a pedido dos interessados, ou seja, o registo
é passivo. Apenas há registos oficiosos nos casos previstos pela lei. O registo pode ser pedido pelos
próprios, pelos representantes legais ou pelas pessoas que nele tenham interesse (art. 29º CRC). O
registo pode ainda ser solicitado por “mandatário com procuração bastante”, por quem tenha poderes
para intervir no respetivo título e por advogado ou solicitador cujos poderes de representação se
presumem (art. 30º/1 CRC).
2) Princípio da obrigatoriedade – o registo é obrigatório. Trata-se de um princípio que comporta duas
vertentes:

33
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

- Obrigatoriedade direta – casos referidos no art. 15º/1 e 2 CRC. Os notários devem remeter às conservatórias
competentes, todos os meses, a relação dos documentos que titulem factos sujeitos a registo obrigatório (art.
16º CRC). O incumprimento do dever de requerer a inscrição é punido com as coimas do art. 17º CRC.

- Obrigatoriedade indireta – para todos os atos sujeitos a registo. Estes só produzem efeitos perante terceiros
depois da data da respetiva inscrição (art. 14º/1 CRC) ou depois da data da publicação, quando estejam
sujeitos a registo e a publicação obrigatória (art. 14º/2 CRC). Quanto às ações sujeitas a registo, o essencial
delas não tem seguimento, após os articulados, enquanto não for feita prova de ter sido requerida a
competente inscrição (art. 15º/4 CRC).

3) Princípio da competência (só até 2007) – foi surprimido em 2006. Este princípio determina que o
registo se efetive na conservatória com cuja circunscrição territorial o facto a inscrever tenha uma
conexão relevante. As regras da competência constam dos arts. 24º e ss. CRC. A sua observância é
fundamental: de outro modo, os interessados não saberão onde se dirigir para alcançar as
informações que pretendam. O desrespeito deste princípio é punido com a inexistência (art. 21º CRC)
– o Prof. MC defende que a sanção deveria ter sido a da nulidade.

O registo deve ser recusado nos casos elencados no art. 48º/1 CRC.

4) Princípio da legalidade.
5) Princípio do trato sucessivo.

➢ Efeitos do registo

Se existe um serviço público providenciado pelo Estado, que cumpre regras, hierarquias, etc, para dar
publicidade a determinados atos, então há que retirar daqui algumas consequências:

a) Eficácia presuntiva do registo (art. 11º CRC) – o interessado que apresente certidão de determinado
facto inscrito fica exonerado de demonstrar a sua ocorrência e os seus contornos; inversamente, o
contra-interessado terá de fazer prova em contrário, impugnando ainda o registo que considere
erróneo. A presunção derivada do registo comercial, de acordo com a regra geral do art. 350º/2 CC,
pode ser ilidida mediante prova em contrário (presunção iuris tantum).

E tem efeito constitutivo? No caso do registo predial, há a situação da hipoteca que tem eficácia constitutiva.
No âmbito comercial, os atos produzem efeitos logo que tenham sido praticados, tenham ou não sido
registados (ainda que possam ter uma eficácia mais reduzida, caso não tenham sido registados – art. 13º/1
CRC) e, por isso, à partida, o registo comercial não produz efeitos constitutivos. Todavia, há certos casos em
que parece haver eficácia constitutiva dos atos comerciais, nomeadamente no domínio das sociedades
comerciais: estas só adquirem personalidade pelo registo (art. 5º CSC).

b) Publicidade negativa (art. 14º/1 CRC) – se o ato não for registado, não produz determinados efeitos.
O art. 14º/1 CRC determina que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros
depois da data do respetivo registo. Este preceito complementa o do art. 13º/1 CRC, que determina
que os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias
partes ou seus herdeiros.

Assim, poderíamos construir a situação daqui emergente de uma de duas formas:

(i) Ou entendendo que os atos sujeitos a registo são atos de produção sucessiva complexa, de tal
modo que estariam incompletos antes do registo – teoria da compleitude;

34
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

(ii) Ou aceitando que tais atos estão perfeitos; simplesmente cedem perante o silêncio do registo. Ou
seja, o ato está completo, mas não produz efeitos até ser registado – teoria da publicidade.

Assim, para a teoria da compleitude, o ato pura e simplesmente não está completo e, por isso, ele é incapaz
de produzir efeitos perante terceiros, seja qual for a situação. Já para a teoria da publicidade, o ato é por si
oponível erga omnes; simplesmente, dada a proteção da aparência, os terceiros que acreditem no silêncio do
registo são protegidos, mas apenas se estiverem de boa fé.

O Prof. MC adere à teoria da publicidade negativa:

- Os atos produzem os efeitos previstos na lei logo que intrinsecamente completos;

- O registo nulo produz efeitos, em certos termos, perante terceiros de boa fé (art. 22º/4 CRP);

- Em geral, só se justifica a proteção de quem aja de boa fé, isto é, sem contundir, conscientemente, com
regras jurídicas ou posições alheias.

c) Publicidade positiva – o registo comercial assume um efeito indutor de eficácia, com publicidade
positiva, sempre que um terceiro se possa prevalecer de um facto indevido, ou incorretamente
registado. Algo que não existe, mercê da fé pública registal, irá produzir efeitos apenas com base no
registo.

Na sequência de diversas vicissitudes que marcaram a transposição de regras do registo predial para o
comercial, a lei veio a tratar esta matéria a partir das nulidades do registo. De acordo com o art. 22º CRC:

“1 - O registo por transcrição é nulo:

a) Quando for falso ou tiver sido feito com base em títulos falsos;
b) Quando tiver sido feito com base em títulos insuficientes para a prova legal do facto registado;
c) Quando enfermar de omissões ou inexactidões de que resulte incerteza acerca dos sujeitos ou do
objecto da relação jurídica a que o facto registado se refere;
d) Quando tiver sido assinado por pessoa sem competência funcional, salvo o disposto no n.º 2 do artigo
369.º do Código Civil, e não possa ser confirmado;
e) Quando tiver sido lavrado sem apresentação prévia.”

Os registos nulos só podem ser retificados nos casos previstos na lei e isso se não estiver registada a ação de
declaração de nulidade (art. 22º/2 CRC). Além disso, a nulidade de registo só é invocável depois de declarada
por decisão judicial transitada (art. 22º/3 CRC).

Perante outros vícios que não originem nulidade, o registo é considerado simplesmente inexato (art. 23º CRC).
Em princípio, a inexatidão dará lugar à retificação (arts. 81º e ss. CRC).

Havendo nulidade, nos termos do art. 22º/4 CRC, “a declaração de nulidade do registo não prejudica os
direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior
ao registo da acção de nulidade”.

Assim, temos:

(a) Um registo nulo (que se tenha envolvido nalgum dos vícios do art. 22º CRC) não corresponde à
realidade substantiva;
(b) Um terceiro que, com base nele, adquire direitos;
(c) A título oneroso;
(d) De boa fé;
(e) E que registe, ele próprio, os correspondentes factos antes de ter sido registada a ação de nulidade.

35
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Uma vez que a eficácia da aparência é uma vantagem concedida aos terceiros, estes poderão ou não aproveitá-
la, consoante lhes convenha. Nestas condições, ocorre a Teoria das Passas: pode o terceiro, num complexo
não registado, escolher alguns dos aspetos que lhe convenham, remetendo os outros para a realidade
substantiva? O Prof. MC diz que não deve haver uma resposta genérica, uma vez que as situações podem ser
muito diversas: o terceiro que tenha conhecimento de uma insuficiência registal não é obrigado a conhecer
todas as irregularidades eventualmente perpetradas.

Quando existem várias situações de invalidade, questiona-se se essas invalidades devem ser todas invocadas
em bloco. A resposta é sim.

❖ A Insolvência

Na tradição portuguesa, a insolvência era reservada para o não-comerciante, enquanto a falência era um
instituto de comerciantes. A falência era a situação qualitativa do comerciante incapaz de honrar os seus
compromissos, enquanto a insolvência traduzia a situação quantitativa do não-comerciante cujo passivo
superasse o ativo.

No caso português, começam a aparecer algumas regras nesta matéria aquando do período das Ordenações.
Foi, mais tarde, reformada por Marquês de Pombal, mas seria apenas no período das reformas liberais que se
assistia a uma verdadeira codificação sobre o tema. Esta aparece já no Código Ferreira Borges, sendo retomada
pelo Código Veiga Beirão. O tema evolui no sentido de passar do Código Comercial para o Código de Processo
Civil, onde se tem mantido. Como grandes reformas da insolvência temos a reforma francesa de 1985, que
havia de ser depois corrigida pela reforma de 2005. Breve referência, também, à reforma alemã de 1994/2001.

 Introdução:

A insolvência traduz a situação daquele que está impossibilitado de cumprir as suas obrigações, normalmente
por ausência da necessária liquidez naquele momento, ou porque o total das responsabilidades (passivo)
excede os bens que poderia dispor para lhes fazer face (ativo). Reconhecida a legitimidade para assumir
obrigações com cumprimento diferido para o futuro, há espaço para que essas venham a não poder depois
ser cumpridas.

Assim, o Direito de Insolvência surge para regular as consequências resultantes dessa impossibilidade de
cumprimento pelo devedor. Regula, ainda, as chamadas situações de pré-insolvência – dá-nos, nestes casos,
medidas de recuperação do devedor. Pode, com isto, dizer-se que o Direito da Insolvência é o complexo de
normas jurídicas que tutelam a situação do devedor insolvente ou pré-insolvente e a satisfação dos direitos
dos seus credores.

Há quem defenda que este ramo do Direito não merece, na verdade, qualquer autonomização, visto que acaba
simplesmente por ser um conjunto de normas de diferente natureza. Para MENEZES LEITÃO, essa posição é
exagerada: embora sejam recolhidos elementos de outras áreas, o Direito da Insolvência possui dogmática
própria, sendo essencialmente direito substantivo, de natureza privada.

Este assenta sobretudo numa responsabilidade patrimonial, característica do Direito das Obrigações, tendo
também uma forte vertente processual – é exigida a intervenção do tribunal. É precisamente dessa
componente processual que resulta a redação do art. 1º CIRE.

36
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

O chamado processo de insolvência pode ser formulado de forma ampla ou de forma restrita:

➢ Formulação restrita – o processo de insolvência é uma sequência ordenada de atos, que tem início
com a apresentação da insolvência ou com o pedido para a sua declaração e que termina com o
pagamento a todos os credores (ou por alguma das demais causas de extinção do processo – art 230º
CIRE).
➢ Formulação ampla – o processo de insolvência abrange também as tramitações estruturalmente
autónomas que surgem na dependência do processo de insolvência. A formulação ampla é a que é
expressamente consagrada pelo legislador, ainda que Lebre de Freitas diga que esta é menos rigorosa
que a primeira.

A insolvência é, de facto, um processo que visa a satisfação do direito do credor sobre o património do
devedor.

Apesar de neste processo existirem várias ações declarativas, este é um processo executivo – a sua finalidade
é a obtenção da realização coativa de uma obrigação. Mais, é uma execução coletiva, pois o seu fim é a
satisfação de todos os credores de um devedor (se fosse singular, não haveria um tratamento igualitário de
todos os credores). Note-se, ainda assim, que é possível o recurso à insolvência quando apenas exista um
credor.

A insolvência é também um processo de execução universal, dado que abrange todo o património do
devedor, ainda que nem sempre seja necessária uma liquidação integral desse património – o processo de
insolvência pode acabar tão só com a aprovação de um plano de insolvência que assegura outra forma de
satisfação das dívidas aos credores.

A insolvência é, ainda, uma forma de execução para pagamento de quantia certa – o rateio do património do
devedor não é realizado em espécie, envolvendo um processo de liquidação que converte os bens do devedor
em dinheiro.

É, por fim, o processo especial, visto que se afasta do regime comum das execuções. Diferenciando-se do
processo comum, apresenta, em relação a este, alguns desvios:

o O princípio do inquisitório é aqui expressamente consagrado (art 11º CIRE), em derrogação do regime
do art 5º CPC;
o Admite-se o afastamento do princípio do contraditório, se a dispensa de audiência prévia for possível
com base no art 12º CIRE;
o Apenas existe um grau de recurso, não se admitindo regra geral o recurso de acórdão da Relação (art
14º CIRE). O processo de insolvência tem sempre carácter urgente e goza de precedência sobre todo
o serviço ordinário do Tribunal – art 9º, nº 1 CIRE. Para efeitos o processo de insolvência, o valor da
causa é fixado pelo valor do ativo do devedor indicado na petição inicial.

 A situação de insolvência:

Ser insolvente é ser incapaz de cumprir as respetivas obrigações. No entanto, essa incapacidade tem de ser
certificada, o que é feito através da declaração de insolvência (art. 36º). Para que se averigue essa
incapacidade, há que adotar certos critérios avaliativos. Estes são, essencialmente, dois:

» Critério do fluxo de caixa (cash flow) – o devedor é insolvente assim que se torna incapaz de pagar as
suas dívidas no momento em que estas se vencem, por falta de liquidez. Neste caso, é irrelevante que
o ativo seja superior ao passivo, pois que a insolvência se verifica assim que se verifica a
impossibilidade de pagar as dívidas existentes.

37
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

» Critério do balanço ou do ativo patrimonial – a insolvência resulta do facto de os bens do devedor


serem insuficientes para o cumprimento integral das suas obrigações. Aqui, apenas é insolvente
aquele cujo conjunto dos bens não chega para fazer face às respetivas responsabilidades. Este critério
tem a dificuldade de exigir que se analisem com a devida atenção os bens do devedor.

No Direito nacional, o art. 3º/1 CIRE estabelece o critério do fluxo de caixa. Este, diz MENEZES LEITÃO, deve
ser interpretado no sentido de se ter a insolvência como a impossibilidade de cumprir pontualmente as
respetivas obrigações por carência de meios próprios e por falta de crédito. Afastado o critério do balanço, a
insolvência não pode corresponder tão só à insuficiência patrimonial.

Ainda assim, a lei chega a admitir a adoção do critério do balanço – a insuficiência patrimonial funciona como
um critério acessório da definição de insolvência, aplicável às pessoas coletivas e aos patrimónios autónomos
(art 3º/2 CIRE). Aqui, o critério do balanço funciona em alternativa ao critério do fluxo de caixa, de modo a
facilitar o pedido de insolvência por partes dos credores destas entidades. Esta disposição é limitada pelo
previsto no nº3. A insolvência atual, para efeitos da lei, é equiparada à insolvência iminente, caso o devedor
se apresente à insolvência (art 3º/4 CIRE). Isto faz com que o devedor possa declarar-se insolvente ainda antes
do vencimento das dívidas, através de um juízo de prognose do qual resulta a suposição de que, nessa altura,
se verificará uma impossibilidade de cumprimento.

 Sujeitos passivos da declaração de insolvência:

São sujeitos passivos da insolvência aqueles que constam do art. 2º/1 CIRE:

a) Quaisquer pessoas singulares ou coletivas – as pessoas singulares podem sempre ser declaradas
insolventes, independentemente de serem ou não economicamente independentes ou sequer terem
capacidade jurídica. Se a pessoa singular for empresária, não haverá qualquer distinção entre o seu
património e o património da empresa – todo ele responderá pelas dívidas empresariais. Quanto à
referência às pessoas coletivas, esta engloba não só associações e fundações, mas também sociedades
comerciais, sociedades civis sob forma comercial e as cooperativas. Regra geral, a declaração de
insolvência de uma pessoa coletiva acarreta a sua dissolução.
b) A herança jacente – a herança jacente é aquela que já foi aberta, mas ainda não foi aceite ou declarada
vaga para o Estado. Esta declaração de insolvência da herança jacente não será, em princípio, de
interesse para os herdeiros, pois que estes podem ainda repudiar. Poderá, no entanto, ser requerida
por qualquer credor da herança, de modo a que esta seja liquidada. O problema que se coloca é,
depois, o de saber o que acontece em caso de aceitação da herança insolvente. Do CIRE resulta que a
aceitação da herança não extingue a autonomia patrimonial da mesma, prolongando-se essa até à
conclusão do processo. Até lá, esta é indivisa. Note-se que, mesmo após a aceitação da herança, esta
pode ser declarada insolvente.
c) As associações sem personalidade jurídica e as comissões especiais – aqui, as pessoas singulares que
as compõem respondem ilimitadamente pelas dividas que estas contraírem. No entanto, sendo essa
responsabilidade subsidiária, a declaração de insolvência abrange antes diretamente essas entidades.
d) As sociedades civis.
e) As sociedades comerciais e as sociedades civis sob a forma comercial até à data do registo definitivo
do contrato pelo qual se constituem.
f) As cooperativas, antes do registo da sua constituição.
g) O estabelecimento individual de responsabilidade limitada – o CIRE veio revogar uma disposição do
DL 248/86, de 25 de agosto. Agora, a insolvência do estabelecimento individual não afeta

38
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

automaticamente o seu titular, se não se verificar em relação a ele o requisito da impossibilidade de


cumprimento das suas obrigações vencidas.
h) Quaisquer outros patrimónios autónomos – aqui, a insolvência não diz respeito ao devedor, mas sim
a uma parte específica do seu património, sujeita a um regime especial de responsabilidade por
dívidas.

O art. 2º/2 CIRE vem excluir do regime comum da insolvência as pessoas coletivas públicas e as entidades
públicas empresariais. Também empresas de seguros, as instituições de crédito e sociedades financeiras são
excluídas, sempre que o regime geral for incompatível com o regime especial que a essas entidades são
sujeitas. A exclusão total de aplicabilidade do CIRE surge perante as pessoas coletivas públicas e as entidades
públicas empresariais.

i. Pessoas coletivas públicas – aqui se integram pessoas coletivas públicas de base territorial, bem como
associações públicas e institutos públicos.
ii. Entidades públicas empresariais – incluem-se as pessoas coletivas de direito público com natureza
empresarial criadas pelo Estado (DL 133/2013, de 3 de outubro). Já quanto à aplicabilidade
condicionada à inexistência de disposição especial, esta afeta empresas de seguros, instituições de
crédito e sociedades financeiras, empresas de investimento que prestem serviços que impliquem a
detenção de fundos ou de valores mobiliários de terceiros e, ainda, organismos de investimento
coletivo.

 A massa insolvente:

A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias
dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de
insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. Os bens isentos de
penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a
impenhorabilidade não for absoluta (art. 46º CIRE).

De acordo com o art. 120º, podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente, os atos prejudiciais à
massa, praticados dentro dos 2 anos anteriores à insolvência.

Devem considerar-se integrados na massa insolvente os bens dos responsáveis legais das dívidas do
insolvente (pessoas que respondam pessoal e ilimitadamente pela generalidade das suas dívidas, ainda que a
título subsidiário – art 6º/2). Se o insolvente for casado em regime de comunhão geral ou de comunhão de
adquiridos, a massa insolvente também engloba a meação dos bens comuns. Se o outro cônjuge não for parte
no processo de insolvência, este ganha o direito de separar os seus bens da massa insolvente e a sua meação
nos bens comuns – art. 141º/1 b).

 A classificação dos créditos:

Correspondendo a situação de insolvência a uma situação de desequilíbrio entre o ativo e o passivo do


insolvente, cabe determinar que bens e direitos integram de facto o elemento ativo, bem como quais as
obrigações que integram o passivo, ou seja, que o ativo pode ser chamado a satisfazer. O passivo representará,
assim, o conjunto de créditos que podem ser exercidos contra o insolvente, sendo suposto que a massa
insolvente responda por todos eles. Ainda assim, visto que esta se destina primordialmente a satisfazer as
suas próprias dívidas, primeiro satisfazer-se-ão as dívidas da massa insolvente (art. 51º CIRE), e só depois se
os chamados créditos sobre a insolvência (arts 46º e ss. CIRE).

39
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

a) Dívidas da Massa Insolvente

As dívidas da massa insolvente são aquelas que resultam da própria situação de insolvência. O art. 51º CIRE
procede a uma enumeração das dívidas consideradas dívidas da massa insolvente, às quais se poderão juntar
outras assim classificadas ao longo do CIRE (p.e. alimentos ao insolvente e aos trabalhadores – art 84º; dívida
relativa a custas judiciais do autor e exequente – art. 140º/3; crédito resultante da perda da posse de um bem
a restituir pela massa – art. 142º/2).

As dívidas da massa insolvente são sujeitas a um regime mais favorável ao seu pagamento, uma vez que são
satisfeitas antes da satisfação dos créditos sobre a insolvência. Estas não estão sujeitas ao processo de
verificação e graduação de créditos, não tendo por isso de ser reclamadas – arts. 128º e ss. Assim, os seus
credores podem exigir diretamente o seu pagamento ao administrador da insolvência. Se a massa insolvente
não chegar, o administrador será presumivelmente responsável por essas dívidas. A sua responsabilidade é,
no entanto, ilidível, através da demonstração de que a insuficiência da massa insolvente era imprevisível (art.
59º/2 CIRE).

b) Créditos sobre a Insolvência

Os créditos sobre a insolvência são aqueles que impendem sobre o insolvente e que tenham natureza
patrimonial, ou sejam garantidos por bens integrantes da massa insolvente e cujo fundamento seja anterior
à declaração de insolvência ou surja no decurso do processo.

Os créditos sobre a insolvência são:

o Garantidos – aqueles que beneficiam de uma garantia real ou de privilégios especiais. Em causa estão,
então, créditos que beneficiam de consignação de rendimentos, penhor, hipoteca ou direito de
retenção. As garantias pessoais não relevam para esta classificação. O seu pagamento é feito depois
de serem pagas as dívidas da massa insolvente. A penhora, apesar de ser uma garantia real das
obrigações, não faz parte dos créditos garantidos para efeitos do processo de insolvência. O mesmo
se passa com a hipoteca judicial. Tenha-se em atenção que há garantias que se extinguem com a
declaração de insolvência (art. 47º CIRE), situação na qual os respetivos titulares deixarão de integrar
a classe dos credores garantidos.
o Privilegiados – aqueles que beneficiam de privilégios creditórios gerais, os quais não constituem
garantias reais por não incidirem sobre coisas determinadas. O seu pagamento surge com base nos
bens não afetos a garantias reais prevalecentes, sendo feito com respeito pela prioridade e proporção.
o Comuns – são aqueles que não beneficiam de garantia real, nem de privilégio geral, e não são objeto
de subordinação. O seu pagamento surge depois da satisfação dos créditos privilegiados, respeitando-
se prioridade e proporção dos respetivos montantes se a massa for insuficiente para o pagamento
integral.
o Subordinados – nova categoria, presente no art. 48º, corresponde ao conjunto de créditos que são
satisfeitos depois dos restantes créditos sobre a insolvência. Serão pagos se ainda restar saldo após o
pagamento dos créditos comuns. Apesar de darem legitimidade para requerer a insolvência, não
conferem geralmente direito de voto na assembleia de credores (art. 73º/3 CIRE), nem conferem ao
titular assento na comissão de credores (art. 66º/1).

Estes créditos dividem-se em várias categorias:

• Créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, bem como aqueles que
tenham sido transmitidos por estas a outrem – o conceito de pessoas especialmente relacionadas com o

40
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

devedor é tratado no art. 49º CIRE. Para o Professor Menezes Leitão, as enumerações que aí são feitas são
meramente exemplificativas, destinadas a concretizar o art. 48º.

• Juros de créditos não subordinados constituídos após a declaração de insolvência – os juros que se
vençam após a declaração de insolvência podem ser reclamados no processo, ainda que, sendo
considerados créditos subordinados, o seu pagamento só possa ocorrer depois de satisfeitos os créditos
comuns. Excecionam-se desta classificação os juros de créditos abrangidos por garantias reais ou
privilégios creditórios gerais.

• Créditos cuja subordinação tenha sido convencionada pelas partes – a convenção de subordinação é
legalmente admissível com base na autonomia das partes. Note-se que a possibilidade de convenção de
enfraquecimento dos créditos em relação aos outros credores não pode ser encarada como renúncia aos
direitos do credor, para efeitos do art 809º CC.

• Créditos que tenham por objeto prestações do devedor a título gratuito – compreende-se que, dado o
facto de terem sido adquiridos a título gratuito, estes créditos não possam ser satisfeitos em prejuízo dos
créditos adquiridos a título oneroso.

• Créditos sobre a insolvência que, como consequência da resolução em benefício da massa insolvente,
resultem para o terceiro de má fé – esta classificação funciona como penalização do terceiro de má fé que
praticou atos onerosos em prejuízo da massa insolvente, e que por isso tiveram que ser objeto de
resolução em benefício da massa.

• Juros de créditos subordinados constituídos após a data da declaração de insolvência – sendo os juros
acessórios dos créditos, a solução compreende-se.

• Créditos por suprimentos – são aqueles que resultam de um contrato de mútuo entre o sócio e a
sociedade, ou de uma convenção de diferimento dos créditos daquele sobre esta que, em ambos os casos,
atribua ao crédito carácter de permanência. Estão previstos no CSC. O pagamento dos créditos sobre a
insolvência só pode ser feito depois de estes serem reconhecidos por sentença transitada em julgado,
feito sempre com base no disposto no art 174º CIRE.

Os créditos sobre a insolvência são satisfeitos, de acordo com o art. 47º/4 CIRE:

Primeiro as dívidas da massa insolvente e só posteriormente o pagamento das dívidas aos credores;

Os créditos serão assegurados pelos bens da massa e para que sejam considerados terão de ser constituídos
antes da declaração de insolvência.

1º Créditos garantidos e créditos privilegiados – os garantidos gozam de uma garantia real e, portanto,
são pagos em primeiro lugar; os privilegiados beneficiam de privilégios creditórios gerais (ex: dívidas
de doenças) e, por isso, são pagos também em primeiro lugar;
2º Créditos comuns;
3º Créditos subordinados – os mais “fracos”, pagos após os restantes terem sido assegurados. Arts.
47º/b) e 48º.

c) Órgãos da Insolvência

O processo de insolvência implica a ação de vários órgãos, dotados de competências no âmbito dos efeitos
da insolvência sobre a massa insolvente, sobre os credores e sobre o devedor.

41
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

1) Tribunal

São competentes para julgar em processos de insolvência e de revitalização as secções de comércio dos
tribunais de instância central. Em matéria de competência do tribunal, há que recorrer ao art 7º CIRE.

2) Administrador da Insolvência

É a figura central do processo de insolvência, tendo o seu estatuto regulado no CIRE (arts. 52º e ss) e na Lei
22/2013 de 26 de fevereiro.

O administrador da insolvência é um administrador, autónomo do devedor, a quem é atribuída competência


para administrar a massa insolvente, sendo que os poderes de administração são excluídos da esfera do
devedor – art. 81º/1 CIRE. Há, no entanto, exceção a esta regra, nos arts. 223º e ss. CIRE, que estabelecem
que, em determinados casos, a administração pode ser feita pelo próprio insolvente, com fiscalização do
administrador da insolvência.

 Escolha:

A sua nomeação é feita pelo juiz – art. 52º CIRE – de forma aleatória (informática) de entre os administradores
inscritos na lista oficial. Pode ainda o juiz, se assim se justificar ou se requerido por algum interessado, nomear
mais que um administrador de insolvência. Nesses casos, cabe ao interessado propor a pessoa a nomear,
pagando este a sua remuneração se a massa insolvente não chegar para tal. A escolha pode ainda ser feita por
assembleia, de acordo com o procedimento presente no art. 53º CIRE.

O administrador da insolvência pode, a todo o tempo, ser substituído pelo juiz, se houver para isso justa causa.
O conceito de justa causa é um conceito vago e indeterminado, mas que abrangerá naturalmente quaisquer
situações de violação grave dos deveres do administrador, bem como quaisquer outras circunstâncias que
tornem insustentável a sua manutenção no cargo. Em caso de substituição do administrador, a assembleia de
credores pode indicar substituto, tendo este de ser aceite pelo juiz se não se verificar nenhuma das situações
previstas no art 53º/3 (art. 56º/2 CIRE). Os credores só podem recusar o administrador se houver uma razão
justificada.

 Funções:

As suas funções, assim como o modo de exercício do seu cargo, são essencialmente descritas no art. 55º CIRE,
estando depois várias outras dispersas ao longo do presente Código. Tem, nomeadamente, competência para
proceder à venda dos bens no âmbito da liquidação, para pagar as dívidas da massa e os créditos sobre a
insolvência, para apresentar proposta de um plano de insolvência, assim como frutificar a massa insolvente.

Ao exercício da função de administrador da insolvência corresponde certa remuneração (art. 60º CIRE),
seguindo essa regras distintas consoante o administrador seja escolhido pelo juiz ou pela assembleia de
credores. A remuneração do administrador da insolvência consubstancia uma dívida da massa, sendo paga
em segundo lugar (art. 51º/1 b) CIRE). Temos de consultar os arts. 22º e ss. da Lei 22/2013 de 26 de fevereiro.

A sua atividade será fiscalizada nos termos do art. 58º CIRE. Este deverá prestar contas do exercício do cargo,
devendo essa prestação ocorrer no termo de funções – art. 62º/1 CIRE. Ainda assim, pode a mesma ser
solicitada pelo juiz ou pela comissão de credores, bem como resultar de espontânea vontade do
administrador, a qualquer momento. A falta dessa prestação de contas, quando requerida, permite ao juiz
tomar as diligências que achar adequadas (art. 63º CIRE). Deve ainda prestar todas as informações necessárias
à comissão de credores – art. 55º.

Se se mantiver o funcionamento do estabelecimento, o administrador terá responsabilidade sobre as


obrigações fiscais do mesmo, enquanto a sua administração durar. Em caso de infração dos seus deveres, este

42
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

poderá ser responsabilizado por via disciplinar e contraordenacional. Mais, a lei estabelece ainda a
responsabilidade civil do administrador da insolvência – art 59º CIRE + Lei 22/2013.

Exoneração do passivo restante – terminado o processo de insolvência, o devedor pode, passados 5 anos,
voltar à sua vida normal, sem que aquelas dívidas pairem sobre ele a vida inteira. A obrigação converte-se em
natural: sendo cumprida, não pode ser repetida.

Como pode o administrador da insolvência cessar funções?

(1) O encerramento do processo;


(2) A renúncia ao cargo;
(3) A destituição pelo Juiz.

NOTAS:

(1) Artigo 17º-A a J – processo especial de revitalização (PER), que visa permitir uma determinada
empresa, que se encontra numa situação económica precária, negociar com os seus credores um
plano de revitalização. O mesmo terá efeito paralisador, uma vez que impede, enquanto perdurar este
processo, a interposição de ações para pagamento.
(2) Quem pode requerer a insolvência será o devedor e o credor e, neste sentido, o art. 22º CIRE
determina que um recurso infundado será alvo de responsabilidade civil, mas apenas em caso de dolo
– o Prof. MC critica esta solução, dizendo que deve ser alvo de interpretação integrada e incluir
negligência grosseira.

3) Comissão de Credores

A comissão de credores não é um órgão obrigatório, dado que o juiz pode determinar a sua inexistência (art.
68º/1 CIRE). Ainda assim, este é o órgão essencialmente destinado a representar as diversas classes de
credores da insolvência, permitindo a fiscalização pelos credores da atividade do administrador da insolvência
e prestando-lhe a sua colaboração.

A comissão é nomeada pelo juiz, sendo composta por três ou cinco membros efetivos e dois suplentes. O
presidente será o maior credor, devendo os restantes membros ser escolhidos por forma a atingir uma
adequada representação das várias classes de credores, (bancos, fornecedores, trabalhadores, etc.) com
exceção dos credores subordinados.

Os trabalhadores terão de ser obrigatoriamente representados, com base no art. 66º/3 CIRE.

O Estado e as instituições da segurança social, mesmo que sejam o maior credor, não podem presidir a
comissão de credores (art 66º/5 CIRE). A assembleia de credores pode alterar as decisões judiciais relativas à
comissão de credores – art 67º/1 CIRE.

As suas funções, por sua vez, resultam essencialmente do art. 68º CIRE. Deste retira-se que a comissão de
credores tem sempre uma função de fiscalização da atividade do administrador da insolvência, colaborando
também no exercício da sua função. Destas funções de fiscalização há que distinguir aquelas em que a
fiscalização se baseia num mero acompanhamento da atuação do administrado ou aquelas em que se exige
mesmo o consentimento da comissão para a prática de certos atos por parte do administrador da insolvência.
Fora essas, a comissão exerce ainda funções de colaboração com o administrador da insolvência e funções
consultivas em relação a decisões do tribunal.

Relativamente à assembleia de credores, pode a comissão solicitar ao juiz a sua convocação (art 75º/1), tendo
aí direito e dever a participar. A comissão de credores reúne sempre que convocada – art 69º, nº 1 CIRE. A sua

43
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

atividade não é remunerada, apenas tendo direito ao reembolso das despesas estritamente necessárias.
Podem ser responsabilizados nos termos do art. 70º CIRE.

A cessação das suas funções pode ocorrer por:

(a) Encerramento do processo de insolvência (art 233º/1 b));


(b) Em qualquer momento anterior – dar-se-á em momento anterior se a assembleia de credores
prescindir da sua existência.
(c) Se for aprovado um plano de insolvência, a cessação das funções da comissão pode dar-se depois do
encerramento do processo.
(d) Os membros da comissão podem ser individualmente destituídos pela assembleia de credores,
independentemente da existência ou não de justa causa – art 67º/1, in fine.

4) Assembleia de Credores

A assembleia de credores é o local onde se reúnem todos os credores da massa insolvente, o que se justifica
pelo carácter coletivo da execução. Daí decorre a necessidade de coordenação das pretensões dos vários
credores, que exercem aqui o seu direito de voto de acordo com o montante dos seus créditos – art. 73º CIRE.

As funções da assembleia de credores resultam de vários preceitos do Código. Entre estas encontram-se as
funções de prescindir da existência da comissão de credores, de alterar a todo o momento a composição da
mesma, de revogar quaisquer deliberações da comissão e de aprovar o plano de insolvência apresentado. A
convocação da assembleia é feita de acordo com o previsto no art 75º CIRE, sendo a mesma presidida pelo
juiz.

 O pedido de declaração de insolvência

O processo de insolvência tem início com o pedido de declaração de insolvência, do qual tratam os arts. 18º e
ss. do CIRE.

A legitimidade para apresentar este pedido é:

(a) Em primeira linha, do próprio devedor.


(b) Se este for incapaz, terá legitimidade o seu representante legal.
(c) Se o devedor não for uma pessoa singular, a legitimidade recairá sobre o órgão social incumbido da
sua administração ou sobre a entidade incumbida da administração ou liquidação do património.
(d) Para além do devedor, tem legitimidade para apresentar o pedido de declaração de insolvência
qualquer credor, independentemente da natureza do crédito e do vencimento do mesmo, bem como
o Ministério Público.

É, ainda assim, necessário que se tenha interesse na respetiva declaração. Da petição inicial terá de constar,
no caso do credor, a natureza e o montante do crédito, tendo este de fazer prova do mesmo através de
qualquer meio.

a) Apresentação da insolvência pelo devedor

Excetuando-se as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em
situação de insolvência (art. 18º/2 CIRE), impende sobre o devedor o dever de requerer a declaração da sua
insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência (nº1).

44
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Se houver incumprimento deste dever de requerer a declaração, a insolvência será declarada culposa (art.
186º CIRE). Para além disso, o devedor incorre em responsabilidade aquiliana, por violação de disposição
legal destinada a proteger interesses alheios.

Os insolventes e os seus administradores incorrem solidariamente na obrigação de indemnizar os danos


sofridos pelos credores, em consequência do atraso na apresentação à insolvência:

» Créditos já constituídos no momento em que a apresentação deveria ter sido feita – dano consiste na
maior frustração dos créditos, com o agravamento da situação patrimonial do devedor. Haverá assim
que atender ao que os credores deveriam ter recebido se a insolvência tivesse sido oportunamente
decretada;
» Créditos que apenas se constituíram após essa data – serão indemnizados pelos danos sofridos em
resultado da celebração dos contratos. Abrange-se apenas o interesse contratual negativo (envolve
os investimentos feitos na negociação, que coloca a parte lesada numa situação como a que existiria
se as negociações não tivessem sequer começado). Poderá haver ainda responsabilidade criminal.

Sabe-se já que a insolvência iminente é equiparada à insolvência atual, do que resulta que o devedor pode
declarar insolvência ainda antes do vencimento das obrigações. Resta saber se a insolvência iminente
determina, então, o início da contagem do prazo para efeitos do art 18º/1 CIRE.

MENEZES LEITÃO defende que o prazo apenas se conta a partir do momento em que ocorre a insolvência atual
(“o art. 18º/1 remete apenas para o art. 3º/1 e não para o nº 4, aliado ao facto de ser extremamente insegura
a determinação do momento em que se verifica a insolvência iminente”).

Já no caso das pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa, a estes não cabe o dever de
apresentar declaração de insolvência. Não tendo este de o fazer, a situação cairá no âmbito do art. 186º/5
CIRE.

b) Requerimento da insolvência por outros legitimados

A declaração de insolvência pode ainda ser requerida pelos responsáveis legais das dívidas, pelo credor ou
pelo Ministério Público. A estes caberá produzir prova relativa à sua condição de interessados na declaração,
exigindo-se a verificação de uma das circunstâncias do art. 20º. Estas circunstâncias são índices da situação de
insolvência, sendo qualquer uma delas condição suficiente para a declaração de insolvência, se a presunção
que a elas se associa não for, entretanto, ilidida:

a. Trata-se de uma não realização generalizada dos pagamentos no momento do vencimento,


independentemente da fonte ou natureza dessas obrigações;
b. Incumprimento de apenas uma ou várias obrigações, do qual se possa inferir a impossibilidade de o
devedor satisfazer a generalidade dos seus créditos;
c. Fuga do titular da empresa ou dos administradores, ou abandono do lugar em que a empresa tem sede
ou exerce a sua atividade principal. Exige a lei que essa fuga se relacione com a falta de solvabilidade
do devedor, o que é redundante aos olhos de MENEZES LEITÃO. A ausência terá de ser injustificada,
sendo essencial que não haja designação de substituto idóneo.
d. Realização de atos de onde resulta o empobrecimento voluntário do devedor, na intenção de prejudicar
os seus credores.
e. Insuficiência de bens do devedor para satisfação do crédito do exequente, verificada em processo
executivo. Continuará a verificar-se, presumivelmente, a insuficiência da massa insolvente para
pagamento dos créditos.

45
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

f. Incumprimento das obrigações incluídas no plano de insolvência, a que se referem os arts. 192º e ss.,
ou no plano de pagamento, a que se referem os arts. 251º e ss. Tal resulta de o incumprimento desses
planos não poder ser resolvido no âmbito do próprio processo de insolvência, que normalmente se
encerra com a sua aprovação.
g. Trata do incumprimento generalizado, nos seis meses anteriores, de obrigações de natureza específica.
h. Destina-se às pessoas coletivas e patrimónios autónomos, traduzindo a manifesta superioridade do
passivo em relação ao ativo, ou o atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas
legalmente obrigatórias.

A petição inicial deverá obedecer ao disposto no art. 23º CIRE, exigindo-se em conjunto os documentos
estabelecidos no art. 24º do mesmo diploma. Se o requerimento for feito por outro legitimado, rege a situação
o art 25º CIRE.

O requerente da declaração de insolvência pode desistir do pedido ou da instância até ser proferida sentença,
nos termos do art. 21º CIRE – a desistência apenas é permitida em relação aos outros legitimados referidos
no art 20º.

O próprio devedor não o poderá, naturalmente, fazer, pois que a apresentação do pedido implica o
reconhecimento da declaração de insolvência – art. 28º CIRE.

A desistência deixa de ser permitida se a sentença for proferida, mesmo que não tenha ainda transitado em
julgado – proferida a sentença, passa a estar em causa um interesse geral, não podendo ser afastado por mera
iniciativa do requerente.

Do art. 22º resulta a aplicação do regime da responsabilidade civil, em caso de dolo, quando estiver em causa
um pedido infundado de declaração da insolvência. MENEZES CORDEIRO critica este preceito, dizendo ser
inaceitável que a lei apenas consagre responsabilidade civil em situações de dolo, fugindo à regra geral, na
qual se inclui também a negligência. Também a nível processual esta é atendida, no regime geral da litigância
de má fé. Assim sendo, não se justifica um regime mais liberal neste âmbito. O preceito deve assim ser alvo
de interpretação integrada e incluir negligência grosseira.

c) A sentença de declaração de insolvência e seus efeitos

A sentença de declaração de insolvência deve obedecer ao disposto no art. 36º CIRE. Já do art 37º decorrem
as regras de notificação da sentença e consequente citação. A declaração de insolvência e a nomeação do
administrador da insolvência são registadas oficiosamente, nos termos do art. 38º CIRE.

Se o juiz concluir que o património do devedor não é presumivelmente suficiente para satisfazer as custas do
processo, o que ocorre sempre que o património seja inferior a 5000€ (art. 39º/9 CIRE), e essa satisfação não
seja garantida por outra via, poder-se-á dar o fim do processo assim que a sentença transite em julgado. Nesse
caso, aplica-se o art. 39º/1, que exclui a aplicação de várias alíneas do art 36º/1 CIRE.

Ainda assim, qualquer interessado pode requerer que a sentença seja complementada com os restantes
elementos precisados no art. 36º, do que se conclui que a dispensa condicional do concurso de credores não
transita em julgado. Nesse caso, o requerente do complemento da sentença será responsável pelo garantir do
pagamento das custas e dívidas. Adquire, em troca, o direito a exigir o reembolso dessas quantias nos termos
do art 39º./5 CIRE.

Não sendo requerido o complemento da sentença, ocorre o disposto no art 39º/7. O disposto no art. 39º não
se aplica quando o devedor, sendo pessoa singular, tenha requerido, anteriormente à sentença da declaração
de insolvência, a exoneração do passivo restante – nº 8 do mesmo art.

46
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

 Efeitos da sentença de declaração de insolvência sobre o insolvente

◊ O primeiro dos efeitos sobre o insolvente é a transferência dos poderes de administração e


disposição dos bens da massa insolvente para o administrador da insolvência. Este efeito é regulado
pelo art. 81º CIRE, do qual resulta, portanto, que a declaração de insolvência implica a privação do
devedor dos seus poderes de administração e disposição do património. Perde-se, assim, a posse
material e as faculdades de administração e disposição, quer dos bens que possui aquando da
declaração, mas também dos bens e rendimentos futuros (realidade que deriva do próprio conceito
de massa insolvente – art. 46º CIRE).

Excluídos do âmbito desta privação estão:

(1) Os bens excluídos da massa insolvente (bens impenhoráveis) ou abrangidos por uma separação de
patrimónios.
(2) Os negócios obrigacionais – o devedor pode contrair dívidas, mas estas não responsabilizarão a massa
insolvente.
(3) Os administradores (representantes legais e mandatários no caso das pessoas singulares;
encarregados da administração e liquidação do património ou titulares de órgãos sociais no caso de
pessoas coletivas). Ainda assim, o administrador de insolvência não vê a sua atividade limitada por
possíveis condições pessoais que sejam impostas por lei ou por decisão judicial ao devedor. Assim, se
este for interdito ou inabilitado, essa condição não afetará o administrador de insolvência.

Há situações de exceção na retirada ao devedor dos poderes de administração e disposição – p.e. tribunal
concluir pela insuficiência da massa insolvente e nenhum credor requerer o complemento da sentença ou
aprovação da administração da empresa pelo próprio devedor. Nesta segunda possibilidade, são impostos
os limites decorrentes do art 226º, nº 2.

◊ O segundo dos efeitos sobre o insolvente é a apreensão dos bens. Este decorre do art. 36º/1, g) CIRE.
A apreensão abrange todos os bens suscetíveis de penhora, mesmo que já penhorados, arrestados
ou por qualquer forma apreendidos ou detidos noutro processo.

Apenas serão excluídos os bens insuscetíveis de penhora (arts. 822º e ss. CPC). Vigora ainda um regime
especial para o caso de apreensão da casa de morada de família: se arrendada, o arrendamento não pode ser
apreendido – este é um direito inalienável e, por isso, absolutamente impenhorável. Se for habitação própria,
pode o insolvente requerer o diferimento da desocupação com fundamento em razões sociais imperiosas.

Se os bens já tiverem sido vendidos, a apreensão terá por objeto o produto da venda (art. 149º/2 CIRE). A
entrega dos bens é feita de acordo com o previsto no art. 150º.

 Efeitos da sentença de declaração de insolvência sobre as ações judiciais

São vários os efeitos que a declaração de insolvência tem sobre as ações judiciais.

Desde logo, o facto de serem restringidas as faculdades de administração e disposição do insolvente faz com
que este deixe de poder instaurar ou prosseguir ações em que estejam em causa bens compreendidos na
massa insolvente – art. 85º/1.

Mais, a declaração de insolvência leva à suspensão de quaisquer diligências executivas que atinjam os bens
integrantes da massa insolvente – o processo de insolvência gera assim a proibição de instauração ou
prosseguimento de ações executivas, qualquer penhora ou arresto sobre os bens.

47
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

O insolvente perde também a possibilidade de submeter questões a decisão arbitral.

O regime especial relativo às dívidas da massa insolvente (art. 51º) está presente no art 89º/2.

 Efeitos da sentença de declaração de insolvência sobre os créditos

Sendo o objetivo do processo de insolvência o de fazer com que todos os credores possam exercer os seus
direitos perante o devedor, seria de esperar que os efeitos da sentença de declaração de insolvência sobre os
créditos fossem significativos.

Durante a pendência do processo, desde logo, os credores apenas poderão exercer os seus direitos no âmbito
do mesmo (art. 90º), pelo que não podem instaurar ações independentes ou continuar a prosseguir outros
processos à margem deste.

Mais, a declaração de insolvência gera o vencimento imediato de todas as obrigações (inclui obrigações puras,
obrigações a prazo e obrigações sujeitas a cláusulas cum potuerit ou cum voluerit) do insolvente (art. 91º/1),
com exceção dos créditos tratados no art. 50º. Esta antecipação do vencimento prende-se com a falta de
confiança dos credores na solvabilidade do devedor. Assim sendo, as obrigações passarão a vencer juros legais
a partir do momento da declaração.

Mais, a sentença de declaração de insolvência gera a suspensão de todos os prazos de prescrição e caducidade
oponíveis pelo devedor, durante o processo – art. 100º CIRE.

Dá-se também a extinção de certas garantias – art. 97º CIRE.

Existem também consequências para o regime da compensação. A partir do momento da sentença, os


credores apenas podem compensar os seus créditos com dívidas da massa se se verificar uma das situações
previstas no art. 99º CIRE. A compensação não é admissível nos termos do nº 4. Admitida a compensação, esta
faz extinguir tanto o crédito do declarante como o do insolvente. Assim, o declarante vê o seu crédito satisfeito
por inteiro, pelo que deixa de ser necessário que reclame o seu crédito. Terá de o fazer, somente, se o valor
do seu crédito ultrapassar o montante do crédito do insolvente (caso em que reclamará o remanescente).

 Efeitos sobre os negócios em curso

A regra geral é a de garantir ao administrador da insolvência a possibilidade de optar pela execução do negócio
ou, antes, pela recusa do seu cumprimento – art. 102º. Assim sendo, procede-se à suspensão dos contratos,
como resultado da declaração de insolvência, até que o administrador da insolvência comunique a sua opção.
A outra parte reserva para si a possibilidade de fixar um prazo, findo o qual a não comunicação se tem como
recusa ao cumprimento – art. 102º/2. Este regime é justificado pela necessidade de adotar medidas de
proteção dos credores, pois que forçar o devedor a cumprir com todos os seus negócios faria com que este
tivesse de optar por cumprir uns negócios em detrimento de outros.

Note-se que a opção pela recusa por parte do administrador da insolvência não prejudica o direito à
indemnização pelos danos causados à outra parte pelo incumprimento, ainda que essa seja fortemente
restringida.

Já a opção pelo cumprimento do contrato garante-lhe o direito a exigir as prestações contratualmente


acordadas, tendo a outra parte igualmente o direito de exigir esse cumprimento, o qual constituirá uma dívida
da massa, nos termos do art. 51º/1º f).

48
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

d) Resolução em benefício da massa insolvente

O processo de insolvência tem como objetivo a satisfação igualitária dos direitos dos credores. Assim sendo,
não é admissível a concessão de vantagens especiais a qualquer um deles, a partir do momento em que a
situação de insolvência do devedor é conhecida.

Com base nisto, a lei permite que o administrador da insolvência determine a resolução de atos e omissões
em benefício da massa insolvente, nos casos em que o devedor tenha concedido alguma vantagem desse tipo
no período suspeito anterior à declaração. Tal decorre dos arts. 120º e ss.

A resolução em benefício da massa insolvente obedece a vários requisitos, podendo desde logo distinguir-se
entre requisitos gerais – art. 120º – e requisitos em relação a certas categorias de atos – art. 121º.

➢ Requisitos gerais

(i) Realização pelo devedor de determinado ato – não é já possível a resolução por omissões, ainda
que essa possibilidade continue a constar nos arts. 120º e 126º.
(ii) Prejudicialidade do ato em relação à massa insolvente – exige-se que os atos do devedor frustrem,
diminuam, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência. Do art.
120º/3 decorre ainda uma presunção iuris et de iure: certos atos, presumem-se prejudiciais à
massa.
(iii) Verificação desse ato nos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência – apenas
podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os atos que tenham decorrido nos dois
anos anteriores ao início do processo, pois que só este período é considerado como suspeito para
efeitos de resolução.
(iv) Existência de má fé do terceiro – está em causa o conhecimento por este de várias circunstâncias,
enumeradas no art. 120º/5. A má fé é presumida nos termos do nº 4.

➢ Requisitos da resolução incondicional – são vários, estando todos eles expressos no art. 121º. A
enumeração presente neste artigo é absolutamente taxativa, pelo que qualquer ato que não esteja
aqui previsto só poderá ser resolvido em benefício da massa insolvente se verificado o disposto no
art. 120º.

Note-se que há atos em relação aos quais a lei exclui a possibilidade de resolução em benefício da massa.
Desde logo, os que estão previstos nos arts. 120º/6 e 122º.

Quanto à legitimidade para o exercício deste direito, cabe distinguir a legitimidade ativa e a legitimidade
passiva:

→ Legitimidade ativa – art. 123º: legitimidade exclusiva do administrador da insolvência;


→ Legitimidade passiva – a mesma deve ser dirigida contra ambas as partes no ato que se pretende
resolver.

Quanto à forma de exercício da resolução, a mesma pode ser feita por simples declaração à outra parte
(regime geral do art. 436º/1 CC). Esta terá de conter os respetivos fundamentos, sob pena de nulidade.

O prazo para a resolução é o de seis meses após o conhecimento do ato pelo administrador da insolvência –
art. 123º/1.

49
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

 Reclamação e verificação de créditos:

Após a sentença, tem lugar a fase de verificação do passivo – processo declarativo, que corre em anexo ao
processo de insolvência. Nesta influem-se as fases de reclamação de créditos, saneamento, instrução,
discussão e julgamento da causa e sentença.

Quem são as partes na verificação de créditos? Tendo em conta o atual regime previsto no CPC, SALVADOR
DA COSTA defende que assumem parte principal do lado ativo os credores, estando do lado passivo o
insolvente, representado pelo administrador da insolvência.

Relembre-se que, neste processo, não vale o princípio do inquisitório, pelo que a decisão do juiz apenas se
pode basear em factos alegados pelas partes.

➢ Reclamação de créditos – os credores da insolvência apresentam a reclamação dos respetivos


créditos, como previsto no art. 128º CIRE. Apenas são reclamáveis os créditos sobre a insolvência
relativos a prestações patrimoniais. Ainda assim, a reclamação não é essencial para o reconhecimento
do crédito, pois que o administrador da insolvência tem o dever de reconhecer todos os créditos que
constem dos elementos da contabilidade do devedor (art. 129º/1, parte final). Os credores da massa
insolvente não estão sujeitos ao dever de reclamação de créditos.
➢ Saneamento do processo – esta inicia-se com a marcação pelo juiz de uma tentativa de conciliação, a
realizar nos termos do art. 136º.
➢ Instrução do processo – se existirem diligências probatórias a realizar antes da audiência, compete ao
juiz ordenar as providências necessárias para o efeito (art. 137º).
➢ Discussão e julgamento da causa – após a produção das provas, a audiência de discussão e julgamento
é marcada (art. 138º). A audiência ocorre em respeito pelo disposto no art. 139º.
➢ Sentença – é proferida pelo juiz a sentença de verificação e graduação dos créditos, nos termos do
art. 140º.

 Restituição e separação de bens:

Esta matéria é regulada pelos arts. 141º e ss. Esta é admitida nas situações enumeradas no nº 1,
correspondendo este a um meio específico de oposição para os casos em que o terceiro tem uma pretensão
de natureza real, a separar da massa de bens de que o insolvente não é o dono efetivo.

Esta difere da reclamação de créditos, na medida em que estão aí em causa créditos sobre a insolvência, mas
ocorre no mesmo período (ou seja, em simultâneo). Exemplo: meação dos bens comuns no caso dos cônjuges;
situação na qual determinado imóvel é integrante da massa insolvente, mas tem em si elementos que não
fazem parte dessa (por serem propriedade de terceiro).

 Verificação ulterior:

Tanto os créditos sobre a insolvência como o direito à separação ou restituição de bens podem ser exercidos
em momento posterior – art. 146º/1. As ações decorrentes dessa realidade correm por anexo aos autos da
insolvência, seguindo os termos do processo comum (art. 148º).

» Reclamação de créditos – a verificação ulterior está limitada pelo nº 2 do art. 146º. Proposta a ação,
deve verificar-se o disposto no número seguinte. O nº 4 trata, por sua vez, da extinção da instância.
» Restituição e separação de bens – este direito pode ser exercido a todo o tempo, com base no art.
146º/2, primeira parte.

50
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

 Assembleia de credores de apreciação do relatório:

A assembleia de apreciação do relatório é um momento importante do processo de insolvência, podendo


verificar-se ainda antes da liquidação. A mesma não é já obrigatória, pelo que pode o juiz prescindir da mesma
em declaração fundamentada, como disposto no art. 36º/1 n).

Se o juiz prescindir da assembleia, qualquer interessado pode, no prazo da reclamação de créditos, requerer
ao tribunal a sua convocação – art. 36º/3.

Serve esta assembleia para que se aprecie o relatório do administrador da insolvência (dever seu decorrente
do art. 155º/1). Desse relatório terá de constar o inventário e a lista provisória de credores (nº 2).

» Inventário – indica os bens e direitos que integram a massa insolvente, e qual o seu valor, natureza,
características, localização, ónus que sobre eles incidam e eventuais dados de identificação registal
» Lista provisória de credores – enumera por ordem alfabética os credores que constam da
contabilidade do devedor, que hajam reclamado os seus créditos ou que estes sejam por outra via
conhecidos.

Na assembleia de apreciação do relatório, deve ser dada ao devedor, à comissão de credores, à comissão de
trabalhadores ou aos representantes respetivos a oportunidade de se pronunciarem sobre o mesmo – art.
156º/1.

 Liquidação da massa insolvente:

Esta é das fases mais relevantes do processo de insolvência. A mesma destina-se a satisfazer, ainda que por
vezes meramente parcial, dos créditos sobre a insolvência. Através da liquidação, o património do devedor é
convertido em dinheiro, para que esse possa ser repartido pelos credores. Vigora, neste âmbito, o presente
nos arts. 156º e ss.

A liquidação não é obrigatória – a mesma pode ser dispensada, suspensa ou interrompida:

→ Dispensa – caso em que a mesma nem sequer tem início, pelo que a satisfação dos créditos dos
credores é feita por outra via. A possibilidade está prevista no art. 171º/1, podendo ser dispensada
pelo juiz, no todo ou em parte, sempre que o devedor seja uma pessoa singular e na massa insolvente
não esteja empreendida uma empresa. Para esse efeito, o devedor tem de entregar ao administrador
da massa insolvente uma quantia em dinheiro que não seja inferior ao valor que resultaria da
liquidação. A dispensa tem de ser solicitada pelo administrador, com acordo prévio do devedor,
ficando a decisão sem efeito se a quantia referida não for entregue;
→ Suspensão – a liquidação tem início, mas o seu decurso é temporariamente paralisado, enquanto
decorre certa situação a que se atribui esse efeito.

• Conferido ao administrador o encargo de elaborar um plano de insolvência – art. 156º/3.

• A requerimento do proponente do plano de insolvência, se tal for necessário para não pôr em
risco a execução desse plano – art. 206º/1.

• Atribuída ao devedor a administração da massa insolvente, pois que o art. 255º determina que,
nesse caso, a liquidação só tem lugar depois de retirada ao devedor essa administração. Note-se
que a suspensão da liquidação não obsta à venda antecipada dos bens da massa insolvente
suscetíveis de perecimento ou deterioração.

51
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

→ Interrupção – também aqui a liquidação tem início, mas a verificação de determinada situação provoca
o encerramento do processo, sem a conclusão da mesma.

• Administrador verifica que a massa insolvente é suficiente para satisfazer as custas do processo
e as restantes dívidas – art. 232º/4. Este regime decorre do presente no art. 39º. O administrador
da insolvência dará conhecimento desse facto ao juiz, podendo este conhecer igualmente
oficiosamente da situação.

A liquidação pode também ser objeto de regime especial, afastando-se das linhas do CIRE, se for aprovado
um plano de insolvência – art. 192º/1. Nesse caso, o plano terá de indicar quais os preceitos legais aplicáveis.

Antes da fase de liquidação propriamente dita, o administrador da insolvência pode já encerrar os


estabelecimentos do devedor, desde que obtenha parecer favorável para tal da comissão de credores. Se esta
tiver sido dispensada, tal poderá acontecer se o devedor não se opuser ou, independentemente disso, se o
juiz o autorizar – art. 157º.

Transitada em julgado que esteja a sentença declaratória da insolvência, pode o administrador proceder à
alienação dos bens apreendidos para a massa insolvente.

Em caso de contitularidade, indivisão ou litígio sobre a titularidade, isto que só podem responder pelas dívidas
do insolvente os seus próprios bens, torna-se necessário acautelar direitos de terceiros.

A liquidação dos bens é sempre limitada pelo direito que o devedor tem sobre esses bens – art. 159º.

A lei estabelece ainda um regime específico para os atos de especial relevo. O conceito de ato de especial
relevo é concretizado no art. 161º/2 e 3.

Também específico é o regime tocante à alienação de empresa compreendida na massa insolvente – a mesma
deve ser realizada como um todo, a não ser que não haja proposta satisfatória ou se reconheça vantagem na
liquidação ou alienação separada de certas partes – art. 161º/1. A violação destas disposições não prejudica a
eficácia dos atos que se pratiquem. Ainda assim, o administrador responderá pelos danos causados ao devedor
e aos credores da insolvência e da massa insolvente – art. 59º/1. Pode ainda dar-se a sua destituição com justa
causa.

A alienação dos bens é livremente escolhida pelo administrador da insolvência, pois que este pode optar por
qualquer das formas admitidas em processo executivo (art. 164º/1). A venda está sujeita ao regime dos arts.
811º e ss. CPC, por via do art. 17º CIRE. Ainda assim, se estiverem em causa créditos que gozem de garantia
real, os respetivos titulares terão de ser ouvidos sobre a modalidade de alienação – art. 164º/2. Em caso de
atraso na alienação do bem sujeito a garantia real, o credor deve ser compensado pelo retardamento da
alienação – art. 166º/1.

Para além disso, a lei proíbe ao administrador da insolvência a aquisição de bens ou direitos compreendidos
na massa insolvente – art. 168º/1. O incumprimento dessa disposição gera a obrigatoriedade de o
administrador restituir à massa o bem ou direito ilicitamente adquirido, sem direito a reaver a prestação
efetuada.

O produto das vendas deve ser depositado em conta à ordem da administração da massa – art. 167º.

A liquidação deve ser concluída no prazo de um ano, contado da data da assembleia de apreciação do
relatório, o qual pode ser estendido por seis meses. O incumprimento deste prazo resulta em justa causa de
destituição do administrador da insolvência – art. 169º.

52
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

 Pagamento:

O pagamento dos créditos é regulado pelos arts. 172º e ss. Ainda está, desde logo, prevista a liquidação prévia
das dívidas da massa insolvente, apenas se procedendo ao pagamento dos créditos sobre a insolvência depois
dessa liquidação.

A hierarquização dos créditos sobre a insolvência implica que comecem por ser liquidados os créditos
garantidos – art. 174º – e depois os privilegiados – art. 175º. Seguem-se os créditos comuns – art. 176º –
apenas podendo haver satisfação dos créditos subordinados depois disso – art. 177º.

As dívidas da massa insolvente são as que constam do art. 51º. A sua liquidação dá-se antes da das restantes,
devendo a mesma ocorrer na data do vencimento das dívidas, qualquer que seja o estado do processo – art
172º/3. Primeiramente, as dívidas em causa devem ser imputadas nos rendimentos da massa. Não sendo
possível a sua satisfação com esses rendimentos, a imputação é efetuada na devida proporção ao produto da
venda de cada bem móvel ou imóvel. Tal é o que resulta do nº 2 do artigo mencionado supra.

 Créditos garantidos, privilegiados, comuns e subordinados

Liquidadas que estejam as dívidas da massa insolvente, poderá dar-se início ao pagamento dos créditos que
beneficiem de garantias reais, o que inclui também os privilégios creditórios especiais – art. 47º/4 a).

O pagamento é realizado com base no produto da alienação dos bens objetos de garantia, abatidas que sejam
as correspondentes despesas e o valor de 10% destinado à liquidação das dívidas da massa insolvente (art.
174º/1). Se as garantias reais forem a favor de vários credores, o pagamento será realizado de acordo com a
hierarquização dessas garantias, feita em princípio tendo por base a ordem da sua constituição. Note-se, no
entanto, que “os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um
direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda
que estas garantias sejam anteriores” – art. 751º CC.

Já no que toca aos créditos privilegiados, estes são aqueles que beneficiam de um privilégio creditório especial:

(i) Privilégio mobiliário geral dos trabalhadores – art. 333º CT.


(ii) Privilégios mobiliários gerais do Estado e das autarquias locais, para garantia dos créditos de
impostos – art. 736º CC.
(iii) Privilégios mobiliários e imobiliários gerais das instituições de segurança social, referidos nos arts.
244º e 245º CRCSS.
(iv) Privilégios por despesas de funeral, doença ou obrigações de alimentos, nos termos do art. 737º
CC.
(v) Privilégio mobiliário geral, a graduar em último lugar, relativamente aos direitos de crédito não
subordinados de que seja titular o credor requerente da declaração de insolvência, até ao limite
de 500 unidades de conta – art. 98º/1.

Note-se, ainda assim, o disposto no art. 97º, que trata da extinção de privilégios creditórios gerais e garantias
reais. Essa extinção faz com que os créditos em causa se transformem em créditos comuns.

O pagamento dos credores privilegiados é feito segundo o disposto no art. 175º. Vale também o disposto no
art. 178º.

Segue-se o pagamento dos créditos comuns, previstos no art. 47º/4 c). O pagamento é feito através do rateio
na proporção do valor normal dos respetivos créditos, se se verificar que a massa é insuficiente para a
respetiva liquidação integral (art. 176º). Também aqui se pode aplicar o disposto no art. 178º.

53
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Pagos os créditos comuns, torna-se possível o pagamento dos créditos subordinados, referidos no art. 48º.
Este é feito pela ordem disposta nesse artigo, salvo no caso de subordinação convencional (art. 177º/2). A
partir do momento em que a massa insolvente se torna insuficiente para cobrir os créditos subordinados de
uma das alíneas, é efetuado o rateio entre os respetivos titulares, deixando de ser pagos os credores
abrangidos pelas alíneas seguintes.

 A tutela específica de certos créditos:

→ Credores de obrigações solidárias – obedece ao disposto no art. 179º.


→ Créditos sob condição suspensiva – vigora o art. 181º, conjugado com o art. 182º, que trata do rateio
final.
→ Créditos emergentes do contrato de trabalho – estes beneficiam de garantias especiais, constantes
dos arts. 333º e ss. CT:
1. Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam
dos seguintes privilégios creditórios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta
a sua atividade.
2. A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:
a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do art.
747º CC;
b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes de crédito referido no art. 748º
CC e de crédito relativo a contribuição para a segurança social.
→ Créditos do Estado e das autarquias locais – estas entidades beneficiam de privilégios especiais (art.
744º CC) e gerais, mobiliários e imobiliários, quer de hipoteca legal, para tutela de vários dos seus
créditos. Note-se que, para tentar restringir o acentuado peso que estes créditos podem assumir no
processo de insolvência, os mesmos se extinguem nos termos das alíneas a) e b) do art. 97º CIRE.
→ Créditos das instituições de segurança social – vale também o disposto na alínea b) do art. 97º CIRE.
Estes créditos são garantidos por um privilégio mobiliário geral e por um privilégio imobiliário geral,
nos termos dos arts. 204º e 205º CRCSS.

Encerrada que esteja a liquidação da massa insolvente, o processo é remetido à conta, seguindo-se a
distribuição e o rateio final realizados pela secretaria – art. 182º.

 Incidente de qualificação da insolvência:

O procedimento previsto nos arts. 185º e ss. CIRE constitui uma fase do processo que se destina a averiguar
quais as razões que conduziram à situação de insolvência, de modo a que se possa concluir se essas foram
meramente fortuitas ou, antes, resultado de intuitos fraudulentos do devedor.

Há então que se determinar se a insolvência deve ser qualificada como fortuita ou como dolosa – art. 189º/1.
Essa qualificação depende, assim, do grau de culpa do devedor.

A insolvência culposa corresponde à situação do art. 186º. Sempre que essa não se verifique, a insolvência é
qualificada como fortuita. O nº 2 do art. 186º estabelece uma presunção, pelo que a verificação de uma das
respetivas alíneas é suficiente para qualificar a insolvência como culposa. A lei permite ainda presumir culpa
grave, nos termos do nº 3. Estas presunções podem, com as devidas adaptações, ser aplicadas à atuação de
pessoas singulares insolventes.

54
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Qualificada como culposa, são várias as consequências:

a) Inibição das pessoas afetadas pela qualificação para administrarem patrimónios de terceiros por um
período de 2 a 10 anos – efeito que remete para os arts. 152º e 156º CC, e que comporta algumas
dúvidas a nível constitucional.
b) Inibição das mesmas pessoas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem
como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil,
associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa – não
estamos perante uma incapacidade em sentido técnico, mas antes perante uma incompatibilidade
resultante do estado de insolvência culposa.
c) Perda de créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afetadas pela
qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos no pagamento desses
créditos.
d) Indemnização aos credores do devedor insolvente no montante dos créditos não satisfeitos até às
forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados –
ocorre nos termos gerais do art. 483º CC, sendo a responsabilidade solidária nos termos do art. 497º
CC.

 O plano de insolvência:

A satisfação dos credores deve ocorrer, preferencialmente, através da aprovação de um plano de insolvência.
Este encontra-se previsto nos arts. 192º e ss.

A aplicação do plano de insolvência será em princípio universal, pelo que pode ocorrer em todos os processos
de insolvência que abrangem qualquer dos sujeitos passivos referidos no art. 2º/1. Ainda assim, estes não
podem ser aplicados a pessoas singulares que não sejam empresários ou titulares de pequenas empresas (pois
que para esses vigora o plano de pagamentos, presente nos arts. 251º e ss.).

Quanto à legitimidade para apresentar a proposta de plano de insolvência, esta abarca o devedor, o
administrador da insolvência, qualquer pessoa que responda legalmente pelas dívidas da massa insolvente e
qualquer credor ou grupo de credores cujos créditos representam pelo menos um quinto dos créditos não
subordinados reconhecidos (art. 193º/1).

O conteúdo do plano de insolvência é estabelecido pelo art. 195º. Ainda assim, este é limitado pelo disposto
no art. 192º/2. Este plano obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, apesar de ainda
assim se admitirem diferenciações, se justificadas por razões objetivas. Na falta de estipulação em contrário,
o plano de insolvência não afeta as garantias reais e os privilégios creditórios, os créditos subordinados
consideram-se objeto de perdão total e o cumprimento do plano exonera o devedor e os responsáveis legais
da totalidade das dívidas da insolvência remanescente – art. 197º.

O plano de insolvência determina o encerramento do processo, com o trânsito em julgado da decisão que o
homologa, se a isto não se opuser o conteúdo dele – art. 230º.

O encerramento do processo dá-se nos termos dos arts. 230º e ss.

55
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Contratos Comerciais

◊ CONTRATOS COMERCIAIS EM GERAL

PRINCÍPIOS GERAIS
 Autonomia das Partes

O Direito comercial dos contratos, enquanto Direito privado, é dominado pelos princípios comuns e, em
especial, pela autonomia privada, genericamente consignada no art. 405º/1 CC. As partes podem, pois,
celebrar os contratos que entenderem, com o conteúdo que quiserem, dentro dos limites da lei.

Tanto basta para se considerar que, no Direito comercial, vigora um postulado de numeros apertus: o número
de atos mercantis teoricamente possíveis é ilimitado. Da vigência deste postulado, decorrem dois corolários:

1. As descrições legais relativas a contratos comerciais não são contratualmente típicas: trabalhamos
com conceitos de ordem, os quais permitem a juridificação de elementos a eles alheios.
2. As regras comerciais são suscetíveis de aplicação analógica, mesmo quando especialmente previstas
para um determinado tipo.

A referência, no Direito comercial, a um numerus apertus de figuras e à autonomia privada, levam a colocar o
tema do poder juridificador do mercado. Ora, mesmo aceitando o papel do mercado, este deve ser
delimitado: qualquer atuação ilícita não deixará de o ser por obedecer às leis do mercado. Há regras
juridicamente necessárias.

➢ Contratos mistos:

As partes têm a possibilidade de juntar num único contrato cláusulas provenientes de diversos tipos
contratuais, ou ainda, de reunir também no mesmo instrumento cláusulas típicas e cláusulas novas. Os
híbridos daí resultantes podem configurar-se como tipos comerciais sociais: basta que apresentem uma certa
estabilidade ditada pela prática mercantil. Em qualquer dos casos, há que lidar com as regras sobre contratos
mistos.

Em rigor, seria possível distinguir:

a) Contratos típicos – aqueles cuja regulamentação geral consta da lei;


b) Contratos mistos em sentido estrito – aqueles que resultam da junção, num único instrumento
contratual, de cláusulas retiradas de dois ou mais contratos típicos;
c) Contratos mistos em sentido amplo – aqueles que correspondem a um conjunto de cláusulas próprias
de tipos contratuais legais e de cláusulas engendradas pelas partes;
d) Contratos atípicos (em sentido estrito) – aqueles que surgem como total criação da vontade das
partes.

Em sentido amplo, todos os contratos mistos são atípicos.

Resultando da autonomia privada, os contratos mistos podem multiplicar-se até ao infinito. Contudo, é
comum apontar algumas das suas configurações mais habituais:

o Contratos múltiplos ou combinados – uma das partes está vinculada a prestações específicas de
vários tipos contratuais, enquanto a outra está obrigada a uma prestação própria de um único tipo;

56
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

o Contratos de tipo duplo ou geminados – uma das partes está ligada à prestação típica de um contrato,
enquanto a outra deve realizar a prestação própria do outro;
o Contratos mistos em sentido estrito, indiretos ou cumulativos – as partes escolhem um certo tipo
contratual, mas utilizam-no de tal modo que, com ele, prosseguem o escopo próprio de outro;
o Contratos complementares – a obrigação própria de um contrato é acompanhada por obrigações
retiradas de tipos contratuais diferentes.

Os contratos regem-se, em princípio, pelas regras pretendidas pelas partes. Apenas por exceção a lei interfere
na liberdade contratual, associando aos negócios por elas celebradas cláusulas ou regras de sua autoria.

Nos contratos mistos, esse princípio é ainda mais ponderoso. De facto, o contrato misto é, por definição,
atípico ou não previsto na lei. Não obstante, pode suceder que as partes estabeleçam um contrato misto, mas
sem prever para ele um particular e explícito regime. Nesse caso, poderá ser necessário recorrer à lei, ainda
que a título supletivo. Há, então, que procurar fixar, em abstrato, o regime correspondente ao contrato em
jogo.

São três as teorias apresentadas para explicar o regime aplicável aos contratos mistos:

1) Teoria da absorção – há que determinar, em cada contrato misto concretamente surgido, qual o
elemento tipicamente prevalente. Esse elemento ditará, depois, o regime do conjunto. MC critica esta
teoria por poder desvirtuar alguns dos contratos mistos, reduzindo excessivamente a autonomia
privada; isto porque um contrato misto será sempre mais do que apenas um dos seus elementos.
2) Teoria da combinação – impõe-se uma dosagem entre os regimes próprios dos diversos tipos
contratuais em presença. Todos eles contribuiriam para fixar o regime final do contrato misto a
integrar. MC critica esta teoria por ser limitadora, uma vez que o contrato misto tem um valor de
conjunto que transcende a soma das meras parcelas que o formam, sendo que o regime não pode ser,
assim, um somatório de elementos preexistentes. Além disso, verifica-se que esta teoria não dá a
forma de articulação dos diversos regimes nem exprime o peso relativo que cada um deles deverá ter
na solução final.
3) Teoria da analogia – o contrato misto, por definição, será um contrato não regulado na lei. Assim
sendo, lidar-se-ia com uma lacuna que não poderia deixar de ser integrada, nos termos gerais. MC
critica esta teoria por ignorar a vontade das partes e ser puramente formal: não esclarece qual o
critério para considerar análogos casos integráveis nos diversos tipos contratuais.

A doutrina obrigacional clássica aponta soluções mais moderadas: a teoria da combinação aplicar-se-ia a
contratos múltiplos e aos geminados, ficando a teoria da absorção para os contratos cumulativos e para os
complementares.

O Prof. MC diz que, contudo, o essencial terá sempre de residir na autonomia privada: quando esta seja
omissa, impõe-se recorrer aos princípios gerais de integração dos negócios jurídicos, com relevo para a
vontade hipotética das partes e para a boa fé.

Este aspeto têm vindo a dar força à teoria da absorção. Na verdade, as partes, ao contratar, ainda que através
de composições mistas, terão tido em vista algum ou alguns efeitos primordiais. Tais efeitos impregnam o
contrato e irão constituir o “centro de gravidade” do conjunto, propiciando a aplicação das regras dirigidas
aos aspetos preponderantes.

É também a teoria da absorção que permite delucidar a natureza objetivamente comercial ou não comercial
dos contratos mistos. Com efeito, como qualificar o contrato atípico que reúna em si cláusulas retiradas de
figuras comerciais, ao lado de cláusulas civis ou indefinidas? Não sendo possível uma qualificação subjetiva –
ex: o contrato é comercial por ter sido celebrado entre comerciantes no exercício da sua profissão – haverá

57
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

que determinar o âmbito em que cai o essencial do contrato. Seja ele mercantil e comercial será o contrato,
no seu todo.

➢ Coligações de contratos:

Tanto na lei como na doutrina, cada negócio contratual surge como um espaço insular e bem delimitado. Ele
apresenta-se como uma figura autónoma e inteiramente desligada, quer em termos de celebração, quer no
regime, de quaisquer outros negócios circundantes.

O tráfego comercial, contudo, faculta um cenário efetivo bastante diferente. Muitas vezes os contratos
encadeiam-se uns nos outros, de tal modo que surge toda uma série de interações relevantes para o regime
aplicável. O recurso a vários contratos é particularmente indicado para enquadrar situações complexas:
temos então coligações ou uniões de contratos.

Estes distinguem-se dos contratos mistos: enquanto nos primeiros diversos negócios encontram-se
associados em função de fatores de diversa natureza, mas sem perda da sua individualidade, nos contratos
mistos assiste-se à presença de um único contrato que reúne elementos próprios de vários tipos contratuais.

» Nas uniões de contratos, segundo a tradição de Enneccerus/Lehmann, distinguem-se:

(a) União externa – dois ou mais contratos surgem materialmente unidos, sem que entre eles se
estabeleça um nexo juridicamente relevante.
(b) União interna – dois ou mais contratos surgem conectados porquanto alguma das partes, ou ambas,
concluem um deles subordinadamente à conclusão de outro ou em função desse outro.
(c) União alternativa – a concretização de um contrato afasta a celebração do outro.

Este quadro afastaria a relevância jurídica das uniões externas; pelo contrário, nas uniões internas e nas
alternativas, haveria uma interação capaz de interferir no regime das figuras em presença.

» Outros autores apresentam quadros ordenados segundo linhas diversas. Por exemplo, Michele
Giorgianni:

(a) Conexões funcionais – verifica-se uma união entre dois ou mais contratos para melhor prosseguir
certo fim.
(b) Conexões causais – um dos contratos estabelece uma relação de onde deriva depois o outro.
(c) Conexões unitárias – uma figura aparentemente una, revela a uma análise mais atenta, vários
negócios.

» Numa tentativa mais abrangente, é possível apresentar um novo quadro. Deixando de parte as uniões
externas e alternativas, verifica-se que, quanto às internas, elas podem ser arrumadas em função de
vários critérios.

De acordo com o tipo de articulação:

(a) Uniões processuais – vários negócios encontram-se conectados para a obtenção de um fim (ex: um
pacto quanto à forma, um contrato-promessa e o contrato definitivo).
(b) Uniões não-processuais – restantes casos.

O tipo de articulação permite ainda distinguir:

(a) Uniões horizontais ou em cadeia – vários contratos conectam-se na horizontal, celebrados em


simultâneo ou sem que entre eles se estabeleçam espaços de tempo relevantes.

58
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

(b) Uniões verticais ou em cascata – os contratos articulam-se na vertical, dependendo uns dos outros ou
justificando-se nessa linha entre si, de modo a dar corpo a uma ideia de sucessão.

De acordo com o conteúdo:

(a) Uniões homogéneas – os vários contratos em presença são do mesmo tipo (ex: várias compras e
vendas).
(b) Uniões heterogéneas – os vários contratos reconduzem-se a tipos diferentes (ex: mútuo e compra e
venda).

De acordo com o modo de relacionamento:

(a) Uniões hierárquicas – um segundo contrato encontra-se subordinado a um primeiro, porquanto


encontra neste a sua fonte de legitimidade (ex: agência/subagência).
(b) Uniões prevalentes – um contrato especifica o objeto, o conteúdo e o regime de um certo espaço
jurídico, o qual irá depois ser retomado por remissão pelo segundo (ex: uma compra mercantil e a
subsequente revenda). São frequentes nas situações em que um contrato de base seja servido por
vários contratos instrumentais ou, simplesmente, em que tal contrato seja concretizado por outros
(ex: contrato-promesso e contrato definitivo).
(c) Uniões paritárias – vários contratos surgem conectados internamente, mas em pé de igualdade (ex:
várias compras e vendas).

As diversas classificações podem interpenetrar-se: assim, uma união pode ser processual, heterogénea,
prevalente e vertical – o caso do contrato-promessa/contrato definitivo – ou não processual, homogénea,
hierárquica e vertical – o caso da empreitada/subempreitada.

Mais uma vez, neste âmbito, impera a autonomia privada. As partes são livres de contratar e, fazendo-o, de
inserir nos contratos as cláusulas que lhes aprouver. Simplesmente, quando através de uma associação
contratual ou de contratos previamente celebrados, elas optem livremente por um certo tipo de soluções,
cabe-lhes honrar a palavra dada, salvo impedimento ou justificação legais.

 Efeitos:

Quanto à validade:

Nas uniões verticais, pode suceder que os contratos posteriores vejam a sua validade dependente da dos
anteriores. E isso por uma de três vias:

1. Legitimidade – uma coligação de contratos pode estruturar-se de tal modo que a legitimidade para a
celebração de um segundo contrato dependa da idoneidade de um primeiro. Por exemplo, a
invalidade da agência determina, ipso iure, a ilegitimidade da subagência.
2. Vício na formação da vontade – em certos casos, um dos contratos é celebrado na convicção da
existência válida de outro. Uma falha a este nível abre brechas no primeiro, por vício na formação da
vontade. Por exemplo, o caso radical do contrato-promessa/contrato definitivo: as partes que
celebrem uma compra e venda em execução de um contrato-promessa que se venha a revelar nulo,
podem proceder à competente anulação: ele foi celebrado no pressuposto da existência do dever de
contratar, no que pode ser considerado um erro sobre o objeto.
3. Ilicitude – um primeiro contrato inviabiliza a celebração de certos negócios. Por exemplo, um pacto
de não concorrência: salvo um distrate, as partes envolvidas não podem celebrar negócios de
determinado teor. Caso ocorra, eles serão ilícitos, com todas as consequências daí resultantes.

59
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Quanto ao conteúdo:

1. Remissão – há remissão quando uum contrato, de modo implícito ou explícito, apele para outro, no
tocante às regras que estabeleça.
2. Condicionamento – há condicionamento nos casos em que um contrato não possa, na sua
regulamentação, ir além de certos limites prescritos em contrato anterior ou, muito simplesmente,
deva seguir vias por eles pré-determinadas.
3. Potenciação – há potenciação sempre que os contratos unidos sejam necessários para a obtenção de
objetivos comuns, os quais ficarão perdidos na falha de algum deles.

Quanto à interpretação:

Perante contratos unidos, em cadeia ou em cascata, a interpretação das declarações em jogo deve ter o
conjunto em conta. Um declaratário normal pode ser levado a dar, às declarações negociais que porventura
receba, sentidos diferentes consoante os contratos antecedentes que, com elas, se apresentem conectados.

Em qualquer dos casos, havendo união, os diversos contratos não podem ser tratados separadamente, quer
aquando da interpretação, quer no momento da aplicação.

➢ Consensualidade e normalização

A desformalização dos contratos comerciais é aparentemente contraditada pelas necessidades de rapidez e


de segurança que reinam no mundo dos negócios. Um tanto paradoxalmente, o consensualismo retarda a
prática de certos atos: implica que as pessoas se conheçam, troquem mensagens preambulares e, depois, se
ponham de acordo quanto ao negócio pretendido. Ora, tal não pode acontecer,

A prática das cláusulas contratuais gerais conduz a uma normalização da vida comercial, particularmente em
áreas sensíveis como a da banca, a dos transportes e a dos seguros. Essa tendência agrava-se pela necessidade
de, rapidamente, com eficácia e sem dúvidas, exibir a prova dos atos celebrados. Tal prova colocaria imensos
problemas, quando se reportasse à prática oral de atos.

Pode então concluir-se que as necessidades de normalização da vida comercial implicam uma certa
reformalização dos contratos mercantis.

Os compromissos comerciais modernos tendem a ser celebrados por escrito, pelas razões apontadas. O
recurso intensivo a cláusulas contratuais gerais permite aproveitar textos já impressos em formulários
adequados, nos quais o consumidor ou o pequeno comerciante se limitam a assinalar a sua vontade. Através
das cláusulas contratuais gerais, as partes estipularam, ainda e muitas vezes, a sua vontade de, apenas por
escrito e mediante determinados canais, convencionarem novas alterações. A própria defesa do consumidor
requer muitas vezes o recurso à forma escrita.

➢ A delimitação negativa; a deontologia comercial

A autonomia das partes que domina o Direito comercial encontra, na sua frente, diversos vetores injuntivos
que provocam a sua delimitação negativa.

Os requisitos gerais do negócio jurídico são aplicáveis aos contratos comerciais. Assim, estes devem respeitar
o art. 280º CC, sendo, em especial:

a) Possíveis (física e juridicamente);

60
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

b) Determináveis, ainda quando indeterminados, no momento da sua conclusão;


c) Lícitos;
d) Conformes com os bons costumes e a ordem pública.

O exercício do comércio tem a sua deontologia. Poder-se-ia tolerar que o ocasional caia na barganha e procure,
num negócio, faturar vantagens extraordinárias. Mas a um profissional isso não é permitido. Margens de lucro
exorbitantes jogam, a prazo, contra o mercado e contra os seus operadores. Um comerciante não pode
enganar o seu cliente: isso equivale – para além dos relevantes aspetos morais – a erradicar novos negócios
e, no limite, a esterilizar um segmento do mercado.

 Princípios e Regras Comerciais

1- Princípios comerciais materiais

Para além dos princípios anteriormente referidos – internacionalidade, simplicidade e rapidez, clareza jurídica,
publicidade e tutela da confiança e onerosidade – convém agora considerar os princípios e as regras mais
especificamente virados para o Direito dos contratos comerciais.

◊ Liberdade de língua; o uso obrigatório do português

No art. 96º CCom dispõe-se que os títulos comerciais são válidos qualquer que seja a língua em que estejam
exarados – regra da liberdade de língua.

O uso de línguas estrangeiras é permitido nos contratos comerciais. Impõem-se, todavia, algumas delimitações
e restrições:

 Nos contratos comerciais internacionais, os usos tendem a impôr a língua inglesa. Nada impede,
contudo, que as partes recorram a qualquer outra língua, que ambas dominem.
 Nos contratos comerciais concluídos em Portugal, com recurso a cláusulas contratuais gerais, a língua
portuguesa impõe-se. Com efeito, a Lei de Defesa do Consumidor, no seu art. 7º/3 impõe que a
informação ao consumidor seja prestada em língua portuguesa. Deste e de outros muitos preceitos
(destaque para art. 3º DL 238/86 17 de agosto), retira-se que, perante consumidores finais, e
tratando-se sempre de cláusulas contratuais comuns, deve ser usada a língua portuguesa.

A violação do DL 238/86 não é sancionada com a nulidade, mas a título de contraordenação. Havendo danos,
ela pode dar azo a deveres de indemnizar por violação de normas de proteção, nos termos do art. 483º/1 2ª
parte CC.

◊ Comunicações à distância

O art. 97º CCom fixava o valor da correspondência telegráfica. O Prof. Oascensão inclina-se para a revogação,
pelo art. 379º CC do art. 97º CCom, mas o Prof. MC defende que aquele preceito não é compatível com um
regime comercial não coincidente, como é o caso.

O art. 97º em causa surgiu logo no início das telecomunicações. Hoje, o telégrafo está em desuso: foi
sucessivamente substituído pelo telex, pelo fax e pela possibilidade de transmissão por rede de computadores,
ou seja, pela internet. Assim, as leis vieram a adaptar-se.

Na fixação de regras relativas a comunicações negociais à distância, cumpre distinguir entre a prática do ato
em si e a sua prova. Um documento escrito e assinado não deixa de o ser pelo facto de ser enviado por cópia
à distância. Assim, e retomando os termos atualistas do velho art. 97º, vamos entender que os documentos

61
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

telecopiados, cujos originais tenham sido assinados pelo próprio, valem como documentos particulares.
Satisfazem, ainda, a exigência de forma escrita.

De acordo com o art. 26º DL 7/2004 de 7 de janeiro, as declarações eletrónicas com suporte adequado
satisfazem a exigência legal de forma escrita, valendo a assinatura eletrónica.

◊ Solidariedade

O art. 100º estabelece a regra supletiva da solidariedade passiva nas obrigações comerciais. O § único do art.
100º afasta essa regra, nos contratos mistos, quanto aos não-comerciantes. Aí, a exigibilidade in totum et
totaliter terá de ser convencionada, nos termos do art. 513º CC. Nas relações comerciais são frequentes as
convenções de solidariedade.

O art. 101º estabelece uma solidariedade do fiador de obrigação mercantil, mesmo que não comerciante.
Desde logo, temos uma manifestação da natureza acessória da fiança: esta será comercial quando a obrigação
principal o seja. De seguida, ocorre um afastamento do benefício da excussão previsto no art. 638º/1 CC.

◊ Regime conjugal de dívidas

Segundo o art. 1691º/1 d) CC, ambos os cônjuges são responsáveis pelas dívidas contraídas por qualquer dos
cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal,
ou se vigorar entre os cônjuges o regime da separação de bens.

Este preceito permite evitar a comunicabilidade das dívidas comerciais através da elisão da presunção de
proveito comum. O ónus da elisão compete ao cônjuge interessado em não arcar com a responsabilidade pela
dívida comercial em causa. Tudo depende, todavia, de o credor demonstrar a qualidade de comerciante do
devedor.

◊ Tutela do crédito comercial

Perante um incumprimento temporário (mora), o credor prejudicado hesitará em recorrer às vias judiciais: irá
encarecer a operação, ficando dependente de medidas e da diligência de terceiros. O devedor pode contar
com esta derrapagem, retardando sistematicamente os seus pagamentos. Tal situação acabou por se tornar
uma prática corrente.

Em face deste estado de coisas, as instâncias comunitárias decidiram intervir. A CE convidou os EM a tomar as
medidas jurídicas e práticas necessárias para fazer respeitar os prazos de pagamento contratuais nas
transações comerciais e para assegurar prazos de pagamento melhores nos contratos públicos.

Assim, o DL 62/2013 de 10 de maio, que revogou o DL 32/2003 de 17 de fevereiro veio fixar regras quanto ao
atraso nos pagamentos:

a) Sempre que do contrato não constem prazos, são devidos juros, automaticamente, 30 dias após a
data de receção da fatura ou da receção dos bens – art. 4º/2;
b) São nulos os prazos excessivos contratualmente fixados para o pagamento (art. 5º/1), podendo,
quando assentes em cláusulas contratuais gerais, ser objeto de ação inibitória – art. 5º/5;
c) O art. 102º CCom recebeu uma redação que permite a fixação de juros moratórios mais elevados –
art. 6º;
d) O atraso nos pagamentos permite o recurso ao regime da injunção – art. 7º.

◊ Prescrição presuntiva de dívidas comerciais

O art. 317º/b) CC prevê a prescrição presuntiva bienal, que se baseia na presunção de cumprimento das dívidas
envolvidas.

62
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

 A Contratação Comercial

 Culpa in Contrahendo

A culpa in contrahendo é um instituto geral do Direito privado. Dada a sua concretização preferencial através
de deveres de informação, ela apresenta-se cada vez mais como um instituto vocacionado para atuar no
campo dos serviços e, dentro deste, dos serviços comerciais.

Nas negociações preliminares, as partes devem respeitar os valores fundamentais da OJ, pautando-se pela
boa fé. O CC expressa-o no art. 227º, sendo a sua aplicação decisiva no campo comercial.

A culpa in contrahendo ocorre quando, na fase preparatória de um contrato, as partes ou alguma delas não
acatem certos deveres de atuação que sobre elas impendem. Esses deveres são:

1. De proteção – as partes devem abster-se de comportamentos que provoquem danos nos hemisférios
pessoais ou patrimoniais umas das outras. Quando tal acontece, há responsabilidade.
2. De informação – as partes devem, mutuamente, prestar-se todos os esclarecimentos e informações
necessários à celebração de um contrato idóneo. Ficam, em especial, abarcados todos os elementos
com relevo direto e indireto para o conhecimento da temática relevante para o contrato, sendo
vedada quer a omissão do esclarecimento, quer a prestação de esclarecimentos falsos, incompletos
ou inexatos.

Quanto ao conteúdo deste dever, em termos descritivos, poderá recair:

i. Sobre o objeto do contrato – ex: informação contabilística deficiente sobre o estado de uma
empresa a alienar (exemplo de violação deste dever);
ii. Sobre aspetos materiais conexos com esse objeto – ex: caso das alterações levadas a cabo numa
fração contígua à do objeto do contrato;
iii. Sobre a problemática jurídica envolvida;
iv. Sobre perspetivas contratuais ou sobre condutas relevantes de terceiros – ex: informações sobre
a clientela, aquando da transferência de um estabelecimento ou sobre as perspetivas de êxito,
num contrato de franquia;
v. Sobre a conduta do próprio obrigado.

3. De lealdade – podem surgir deveres de comportamento material, com o mesmo sentido de evitar,
nos preliminares, atuações que se desviem da busca honesta de um eventual consenso negocial.

Atente-se que não há, nas negociações preliminares, um dever de celebrar o contrato visualizado; há, sim, um
dever de negociar honestamente.

Consequências da violação:

A violação do art. 227º/1 CC dá lugar a responsabilidade obrigacional e não apenas aquiliana: foram violadas
obrigações legais e não somente o dever genérico de respeito implícito no art. 483º/1 CC.

Sendo obrigacional, presume-se a culpa, nos termos do art. 799º/1 CC. Como defende MC, a culpa envolve
aqui a ilicitude e a causalidade.

Consumada a violação, há um dever de indemnizar por todos os danos verificados. Não fazendo o art. 227º/1
qualquer limitação, deve entender-se que, violada a boa fé in contrahendo, devem ser ressarcidos todos os
danos causados. Ficam envolvidos tantos os danos emergentes como os lucros cessantes – esta é a orientação
da jurisprudência nos últimos tempos.

63
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Natureza:

Os deveres de atuação próprios da fase pré-contratual e as dívidas ocasionadas pelo funcionamento da culpa
in contrahendo na celebração de contratos comerciais têm, elas próprias, natureza comercial. Desde logo elas
terão natureza comercial subjetiva, sempre que provenham de comerciantes no exercício da sua profissão.
Mas além disso, teremos de lhes emprestar o regime próprio das obrigações definitivas, por se verificar o
mesmo conjunto de razões que a estas conecta aquele. Será, então, um bom exemplo de situação jurídica
comercial por analogia.

❖ Negócios Preliminares e Contratação Mitigada

 Negócios preliminares e intercalares

A celebração de contratos comerciais pode ser precedida pela celebração de negócios preliminares e
intercalares. Em virtude da complexidade de certas situações económicas, tais ocorrências são de extremo
relevo; por exemplo, os contratos de mediação, ou seja, contratos concluídos com terceiros (mediadores) que
assumem a obrigação de proporcionar a celebração de ulteriores contratos definitivos.

A interpretação de determinado ato comercial como preliminar ou intercalar deve ser feita em função do fim
prosseguido pelas partes, havendo ainda múltiplas implicações quanto ao alcance e a própria validade dos
atos emparelhados.

Os negócios preliminares ou intercalares de contratos comerciais têm, eles próprios, natureza comercial.

 Contratação mitigada

No universo da contratação mitigada, podemos encontrar, como exemplos sedimentados pela prática, as
seguintes figuras:

a) As cartas de intenção – declarações que consignam uma vontade já sedimentada, mas que postulam,
ainda, a prossecução de determinadas negociações. Obrigam as partes envolvidas a prosseguir as
negociações a partir do que nelas esteja consignado.
b) Os acordos de base – acordos que surgem em negociações complexas, para consignar o consenso no
essencial, uma vez obtido. As negociações prosseguirão depois a nível técnico, para aplainar os
aspetos secundários. Envolvem o dever de respeitar o que neles se exprima.
c) Os protocolos complementares – convénios acessórios que vêm regulamentar ou complementar
contratos nucleares. Devem ser processados de modo a não provocar a sua frustração.

Estas figuras requerem, caso a caso, uma ponderação cuidada de modo a determinar os seus alcance e
natureza.

“Contratação mitigada” não significa uma contratação mais fraca, mas sim uma contratação diferente. A
negociação, no seu todo, funciona como um valor comercialmente relevante, que deve ser reconhecido e
protegido pelo ordenamento.

Incumprimento:

Quid iuris quando uma parte se recusa a prosseguir as negociações? Pode o Tribunal substituir-se ao faltoso
ou deve este ser condenado em mera indemnização?

64
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Tudo depende da determinabilidade do contrato definitivo. Quando a carta de intenções ou o acordo de


princípios estejam tão pormenorizados que deles se possa retirar o contrato a celebrar, pode haver execução
específica.

Quando a margem de indeterminação não possa ser suprida, a única solução para o incumprimento reside na
negociação compensatória: não pode o Tribunal substituir-se a particulares, negociando por eles.

A ADESÃO A CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS

❖ O Comércio e as Cláusulas Contratuais Gerais

 As cláusulas e o comércio

Ainda que a sua dogmática básica seja civil, ela tem, no Direito comercial, plena concretização. As cláusulas
contratuais gerais traduzem fórmulas pré-elaboradas que proponentes ou destinatários indeterminados se
limitam a propor ou a aceitar. Esta ideia decompõe-se em dois pontos essenciais:

(i) A generalidade – as cláusulas contratuais gerais destinam-se ou a ser propostas a destinatários


indeterminados ou a ser subscritas por proponentes indeterminados.
(ii) A rigidez – as cláusulas contratuais gerais são acolhidas em bloco por quem as subscreva ou aceite.
Os intervenientes não têm, no plano dos factos, a possibilidade de modelar o seu conteúdo,
introduzindo nelas alterações.

Além destas características, há outras que, não sendo necessárias, surgem com frequência nas cláusulas
contratuais gerais:

(a) Desigualdade entre as partes – o utilizador das cláusulas contratuais gerais (a pessoa que só faça
propostas nos seus termos ou que só as aceite quando elas as acompanhem) goza, em regra, de larga
superioridade económica e jurídico-científica em relação ao aderente;
(b) Complexidade – as cláusulas contratuais gerais alargam-se por grande número de pontos. Por vezes,
cobrem com minúcia todos os aspetos contratuais, incluindo a determinação da lei aplicável e o foro
competente para dirimir eventuais litígios;
(c) Natureza formulária – as cláusulas constam, com frequência, de documentos escritos extensos onde
o aderente se limita a especificar escassos elementos de identificação.

As cláusulas contratuais gerais devem-se às necessidades de rapidez e de normalização ligadas às modernas


sociedades técnicas e ao seu comércio: não há que perder tempo em negociações relativas a atos correntes,
enquanto as entidades que atuam com recurso às cláusulas devem, por razões que se prendem com o seu
funcionamento, conhecer de antemão o tipo de vinculações a que vão ficar adstritas.

Muitas vezes, os particulares que se limitam a aderir às cláusulas contratuais gerais conhecem mal ou não
conhecem de todo as cláusulas a que aderem. Para além disto, o próprio teor das cláusulas é tal que os
aderentes ficam desprotegidos perante o incumprimento do utilizador ou, simplesmente, perante o próprio
lapso ou os azares da fortuna.

❖ A Lei Portuguesa das Cláusulas Contratuais Gerais

A Lei das Cláusulas Contratuais Gerais visou uma aplicação de princípio a todas as cláusulas – art. 1º. O art. 2º
especifica que elas ficam abrangidas independentemente:

65
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

a) Da forma da sua comunicação ao público;


b) Da extensão que assumam ou que venham a apresentar nos contratos a que se destinem;
c) Do conteúdo que as enforme, isto é, da matéria que venham regular;
d) De terem sido elaboradas pelo proponente, pelo destinatário ou por terceiros.

Algumas matérias ficam, no entanto, excluídas da disciplina das cláusulas contratuais gerais, seja por razões
formais – art. 3º/1 a) e b) – seja em função da matéria – art. 3º/1 c), d) e e).

De facto, o diploma sobre cláusulas contratuais gerais funciona perante situações patrimoniais privadas que
tenham a ver, de modo vincado, com o fenómeno geral da circulação de bens e dos serviços, isto é: com o
comércio privado. Retiraram-se, por isso, do seu âmbito de aplicação as situações jurídicas públicas, bem
como as situações familiares e sucessórias.

A exceção do art. 3º/1 c) – “contratos submetidos a normas de direito público” – deve ser limitada ao preciso
alcance dessas normas: um contrato que tenha aspetos públicos e privados incorrerá, nestes últimos, na
LCCG.

Atente-se que o recurso a cláusulas contratuais gerais questionam, na prática, apenas a liberdade de
estipulação e não a liberdade de celebração. Assim, elas incluem-se nos diversos contratos que as utilizem
apenas na conclusão destes, mediante a sua aceitação – art. 4º: não são incluídas nos contratos as cláusulas
sobre que não tenha havido acordo de vontades.

A inclusão depende ainda:

i. De uma efetiva comunicação – art. 5º;


ii. De uma efetiva informação – art. 6º;
iii. Da inexistência de cláusulas prevalentes – art. 7º.

Tanto o dispositivo do art. 5º como o do art. 6º correspondem a uma concretização do art. 227º/1 CC. Para
além de menos indeterminados, os deveres legais ora estabelecidos têm um regime diferente: quando não
estejam cumpridos, não surge apenas um dever de indemnizar, ao contrário do imposto pelo art. 227º, dado
que o art. 8º permite ir mais longe.

A presença, num contrato celebrado com recurso a cláusulas contratuais gerais, de dispositivos que não
tenham sido devidamente comunicados ou informados não corresponde ao consenso real das partes. Assim,
segundo a LCCG, esses dispositivos consideram-se excluídos dos contratos singulares atingidos – art. 8º/ a) e
b).

As alíneas c) e d) penalizam as “cláusulas surpresa” e as que constem de formulários, depois da assinatura dos
contratantes: em ambos os casos se verifica um condicionalismo externo que inculca, de novo, a ideia da
inexistência de qualquer consenso.

O art. 9º determina que, quando se assista à não inclusão de cláusulas contratuais gerais nos contratos
singulares, por força do art. 8º, estes se mantenham, em princípio. Nas áreas desguarnecidas pela exclusão,
haverá que recorrer sucessivamente:

a) Às regras supletivas aplicáveis;


b) Às regras da integração dos negócios jurídicos.

Caso estas soluções de recurso sejam insuficientes ou conduzam a resultados contrários à boa fé, a nulidade
é inevitável – art. 9º/2.

66
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Interpretação e Integração:

O art. 10º dispõe sobre a interpretação e integração das cláusulas contratuais gerais, remetendo
implicitamente para os arts. 236º e ss. CC. Esse preceito releva a dois níveis:

1) Impede as próprias cláusulas contratuais gerais de engendrarem outras regras de interpretação;


2) Remete para uma interpretação que tenha em conta apenas o contrato singular.

O art. 11º precisa a temática das cláusulas ambíguas, remetendo para o entendimento do aderente normal.
Esse preceito faz ainda correr, contra o utilizador, os riscos particulares de uma ambiguidade insanável.

❖ Cláusulas Contratuais Gerais Nulas e Proibidas

 Nulidade e proibição

Art. 13º/1 e 2:

 O aderente pode escolher entre o regime geral (nulidade com hipótese de redução) ou a manutenção
do contrato;
 Caso opte pela manutenção, aplicam-se na parte afetada pela nulidade as regras supletivas.

Art. 14:

 As soluções anteriormente referidas podem ser bloqueadas por exigências de boa fé, posto o que se
seguirá o esquema da redução, se for possível; caso contrário, terá de se perfilar a nulidade.

 Sistema geral das proibições

A LCCG ficaria impraticável se não concretizasse, em moldes materiais, as cláusulas que considera proibidas.
A lei portuguesa distinguiu, para efeitos de proibições:

 As relações entre empresários ou os que exerçam profissões liberais, singulares ou coletivos, ou entre
uns e outros, quando intervenham apenas nessa qualidade e no âmbito da sua atividade específica –
art. 17º.
 As relações com os consumidores finais e, genericamente, todas as não abrangidas pelo artigo 17.º -
art. 20º.

Na proibição das cláusulas, a lei adotou o seguinte sistema:

o Isolou as disposições comuns por natureza, aplicáveis a todas as relações.


o Elencou determinadas proibições relativas às relações entre empresários ou entidades equiparadas;
o Passando às relações com os consumidores finais, a lei determinou a aplicação de todas as proibições
já cominadas para as relações entre empresários e, além disso, prescreveu novas proibições.

Outro aspeto é ainda a estruturação das cláusulas contratuais gerais proibidas e assenta numa contraposição
entre:

a) Cláusulas absolutamente proibidas – não podem, a qualquer título, ser incluídas em contratos através
do mecanismo de adesão (arts. 18º e 21º).
b) Cláusulas relativamente proibidas – não podem ser incluídas em tais contratos, desde que sobre elas
incida um juízo de valor suplementar que a tanto conduza. Tal juízo deve ser formulado pela entidade

67
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

aplicadora, no caso concreto, dentro do espaço para tanto indiciado pelo preceito legal em causa (arts.
19º e 22º).

❖ Comércio à Distância

 Comércio Eletrónico

No tráfego jurídico atual, usam-se correntemente meios eletrónicos, seja para os preliminares contratuais,
seja para a celebração de contratos, seja para a sua execução.

Tradicionalmente, a contratação com recurso a autómatos pode ser explicada por uma de duas formas:

1) Teoria da oferta automática – a simples presença de um autómato pronto a funcionar, mediante


adequada solicitação feita por um utente, deve ser visto como uma oferta ao público: acionado o
autómato, o utente aceitaria a proposta genérica formulada pela entidade a quem fosse cometida a
programação, dando-se o contrato por celebrado.
2) Teoria da aceitação automática – preconizada por Medicus, afirma que o simples acionar do
autómato não provoca necessariamente a conclusão do contrato; tal só sucederá se o autómato não
estiver vazio, isto é se se encontrar em condições de fornecer o bem solicitado. Consequentemente,
o contrato só se concluiria através do funcionamento do autómato, cabendo ao utente a formulação
da proposta.

 A contratação por meios eletrónicos ou por internet

A declaração de vontade feita por computadores ou por meios de comunicação eletrónica vale como tal.
Naturalmente, terão aplicação as regras referentes ao erro e ao dolo nestas declarações.

A matéria foi em parte tratada pelo DL 7/2004 de 7 de janeiro.

A facilidade com que, através da internet, se podem adquirir bens ou serviços e assumir os inerentes encargos,
em termos imediatamente eficazes através da utilização de cartões bancários, obriga os Estados a adotar
regras de proteção aos utentes.

Com essa finalidade, foi aprovada a Diretriz 97/7/CE, que atinge o chamado comércio eletrónico: internet,
telefone e telefax. No fundamental, este diploma fixa deveres de informação acrescidos e atribui ao
adquirente um direito à resolução do contrato, caso se venha a arrepender supervenientemente da sua
celebração.

No Direito português, a transposição desta Diretiva foi efetuada peloDL 143/2001 de 26 de abril, tendo este
sido muito alterado e republicado pelo DL 82/2008 de 20 de maio.

No tocante ao âmbito de aplicação, limitou-se o consumidor às pessoas singulares (art. 1º/3 a)), considerando
o Prof. MC que não há justificação para tal, uma vez que a sociedade que, fora do seu âmbito profissional,
encomende livros ou música pela internet, tem direito a idêntica proteção.

 Contratos à distância e vendas a domicílio

Quanto a contratos celebrados à distância (art. 2º/a)), sublinha-se a sua não aplicação a vários campos,
nomeadamente o financeiro (art. 3º).

68
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Os contratos ao domicílio ou equiparados (art. 13º), com determinadas exclusões (art. 14º), obrigam ao
seguinte:

a) O fornecedor e os seus representantes devem estar identificados (art. 15º);


b) Os contratos devem ser celebrados por escrito, apresentando os elementos elencados no art. 16º. Os
catálogos ou outros suportes publicitários devem ter os elementos figurados no art. 17º;
c) O consumidor pode “resolver” o contrato no prazo de 14 dias (art. 18º), com determinados efeitos
restitutivos (art. 19º);
d) Não podem ser exigidos ao consumidor pagamentos antecipados (art. 20º/1). Se estes ocorrerem,
provam o contrato e têm-se como entregues por conta do preço, se aquele se concluir (art. 20º/2).

 Vendas automáticas e vendas especiais esporádicas

As vendas automáticas passaram a dispor de regras explícitas – arts. 21º a 23º.

São vendas especiais esporádicas as realizadas de forma ocasional fora dos estabelecimentos próprios. Aplica-
se-lhes, com adaptações, o regime das vendas a domicílio (art. 24º).

 Venda ambulante e publicidade não solicitada

O art. 22º DL 7/2004 de 7 de janeiro, complementado pelo DL 62/2009 de 10 de março, veio regular esta
prática pouco aprazível.

A regra básica consta do art. 22º/1: o envio de mensagens publicitárias cuja receção seja independente da
intervenção do destinatário, nomeadamente (mas não só) por via de aparelhos de chamada automática, de
telecópia ou por correio eletrónico, carece do consentimento prévio do destinatário.

Surgem algumas exceções, designadamente quando se trate de pessoas coletivas; todavia, todos podem pedir
para serem inseridos numa lista de entidades que não queiram receber comunicações.

De natureza diferente, mas também objeto de regras próprias, é o comércio a “retalho não sedentário”,
exercido por feirantes – o DL 42/2008 de 10 de março veio fixar novas regras nesse domínio.

 Documentos eletrónicos e assinatura digital

São documentos eletrónicos aqueles cujo suporte não seja físico, mas “eletrónico”: no sentido mais amplo, de
modo a abarcar soluções eletromagnéticas e óticas.

No tocante à assinatura digital, trata-se de um esquema que permite a uma entidade dotada de uma “chave”,
reconhecer e autenticar uma sequência digital proveniente do autor de uma missiva eletrónica, de modo a
autenticá-la.

Entre nós, surgiu um diploma relativo a documentos eletrónicos e a assinatura digital: o DL 290-D/99 de 2 de
agosto, que foi muito alterado e republicado pelo DL 62/2003 de 3 de abril e, sucessivamente, por outros DL.

 Natureza do E-commerce

Quanto à natureza comercial destes atos, cumpre assinalar que nem todo o e-commerce é comercial. Na
verdade, o uso de meios eletrónicos para contratar não altera, só por si a natureza dos atos envolvidos.
Quando estes sejam substancialmente comerciais, a comercialidade mantém-se. E caso não o sejam, não corre
qualquer comercialidade.

Os domínios da tutela do consumidor são civis. Todavia, os reflexos comerciais são manifestos.

69
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

◊ CONTRATOS ESPECIAIS DE COMÉRCIO

TIPIFICAÇÕES

 Contratos Comerciais e a sua Ordenação

Contratos extravagantes:

Fora do CCom, temos essencialmente cinco grupos de contratos:

1) Contrato de associação em participação e o contrato de consórcio, introduzidos pelos DL 231/81 de


28 de julho, revogando a conta em participação.
2) Contratos de mediação, com especial focagem no contrato de mediação imobiliária, hoje tratado pelo
DL 211/2004 de 20 de agosto, alterado e republicado pelo DL 69/2011 de 15 de junho e a mediação
dos seguros, regulada pelo DL 144/2006 de 31 de julho, alterado pelo DL 359/2007 de 2 de novembro
e pela Lei 46/2011 de 24 de julho.
3) Contrato de agência, regulado pelo DL 178/86 de 3 de julho, com alterações introduzidas pelo DL
118/93 de 13 de abril.
4) Contrato de locação financeira, regulado pelo DL 149/95 de 24 de julho, com alterações introduzidas
pelo DL 265/97 de 2 de outubro, pelo DL 285/2001 de 3 de novembro e pelo DL 30/2008 de 25 de
fevereiro.
5) Contrato de cessão financeira, regulado pelo DL 171/95 de 18 de julho, alterado pelo DL 186/2002 de
21 de agosto.

Sem regulação legal expressa, podemos ainda apontar certas figuras normalmente usadas por comerciantes
no uso da sua profissão:

(a) Contratos de promoção: patrocínio, publicidade e certas modalidades de mediação;


(b) Contratos de distribuição: concessão comercial e franquia;
(c) Contratos de organização: o lojista em centro comercial, a engenharia e certas modalidades de
empreitada.

A REPRESENTAÇÃO E O MANDATO COMERCIAIS

 A Representação em Geral

No Direito comercial, a representação assume um papel de relevo. O comerciante, designadamente quando


atinja e ultrapasse a média dimensão, não pode praticar por si todos os atos comerciais próprios do seu giro:
terá de ser representado.

 Requisitos, distinções e regime comum

Na representação impõem-se, fundamentalmente, três requisitos:

(1) Uma atuação em nome de outrem – o representante deve agir esclarecendo a contraparte e os
demais interessados que o faz para que os efeitos da sua atuação surjam na esfera do representado.
Se o representante não invocar expressamente essa qualidade, já não haverá representação;
(2) Por conta dele – o representante, além de invocar agir em nome de outrem, deve fazê-lo no âmbito
da autonomia privada daquele: atua como o próprio representado poderia, licitamente, fazê-lo. Não
há representação, por exemplo, quando o tribunal executa especificamente, nos termos do art. 830º
CC, um contrato-promessa.

70
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

(3) Dispondo o representante de poderes para o fazer – tais poderes podem ser legais ou
voluntariamente concedidos pelo representado, mas têm de existir.

Esta representação distingue-se de outras “representações”:

i. Da representação legal – trata-se do conjunto de esquemas destinados a suprir a incapacidade


dos menores – arts. 139º, 144º, 1878º/1 e 1881º/1 CC;
ii. Da representação orgânica – as pessoas coletivas são representadas, em princípio, pela
administração – art. 163º CC;
iii. Da representação voluntária ou em sentido próprio – a que tenha, na sua base, a concessão pelo
representado e ao representante, de poderes de representação.

O negócio jurídico celebrado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe
competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica do representado – art. 258º CC. Este é o aspeto básico da
representação. A repercussão dos negócios na esfera do representado tem duas características:

a) É imediata – independentemente de quaisquer circunstâncias, ela opera no preciso momento em que


o negócio funcione;
b) É automática – não exige qualquer outro evento para que ela ocorra.

Na representação, temos duas figuras – o representante e o representado. Coloca-se a questão de saber em


qual das duas e respetivas vontades se devem verificar os competentes requisitos:

o Pela teoria do dono do negócio, apenas a vontade do representado teria relevância.


o Pela teoria da representação, contaria apenas a vontade do representante.

O CC deu corpo a uma combinação de ambas no art. 259º: “à exceção dos elementos em que tenha sido
decisiva a vontade do representado, é na pessoa do representante que deve verificar-se, para efeitos de
nulidade ou anulabilidade da declaração, a falta ou vício da vontade, bem como o conhecimento ou ignorância
dos factos que podem influir nos efeitos do negócio”.

Parte-se, assim da teoria da representação; todavia, admitindo-seque a vontade do representado possa ter
contribuído para o resultado final – e, designadamente, quando o representado tenha dado instruções ao
representante, instruções essas que tenham tido efetiva relevância no ato praticado – também neste terão de
operar os requisitos negociais.

A má-fé do representado (art. 259º/2) prejudica sempre, mesmo que o representante esteja de boa fé. De
igual modo, a má fé deste prejudica também sempre. “Má fé” aqui está aplicada em termos muito amplos:
exprime o conhecimento, o desconhecimento culposo e, em geral, a prática de quaisquer ilícitos.

Uma vez que, numa situação de representação, o representante age em nome do representado, o destinatário
da conduta tem direito, nos termos do art. 260º/1 CC, de exigir que o representante, dentro de prazo razoável,
faça prova dos seus poderes: caso contrário, a declaração não produzirá efeitos.

Constando os poderes de representação de um documento, pode o terceiro exigir uma cópia dele, assinada
pelo representante – art. 260º/2. Reforça-se a confiança do terceiro e encontra-se um esquema destinado a
melhor responsabilizar o representante.

Existe uma distinção importante a propósito da procuração:

a) A que concede poderes gerais (art. 1159º/1 CC) – permite ao representante a prática de uma atividade
genérica, em nome e por conta do representado.

71
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

b) A que concede poderes especiais (art. 1159º/2 CC) – destina-se à prática de atos específicos.

 O negócio base; regras quanto ao procurador e à sua substituição

O CC veio a cindir a procuração do mandato:

➢ Procuração – promove a concessão de poderes de representação. A lei pressupõe que exista uma
relação entre o representante e o representado, em cujos termos os poderes devam ser exercidos –
art. 265º/1.
➢ Mandato – dá azo a uma prestação de serviço.

A efetiva concretização dos poderes implicados por uma procuração pressupõem um negócio nos termos do
qual eles sejam exercidos – o negócio-base.

Normalmente, o negócio-base será um contrato de mandato. A procuração e o mandato ficarão, nesse


momento, numa específica situação de união. Nessa altura, a lei manda aplicar ao mandato regras próprias
da procuração (arts. 1178º e 1179º CC); as vicissitudes desta vêm bulir com o mandato. A extensão da
procuração, as suas vicissitudes, a natureza geral ou especial dos poderes que ela implique e o modo por que
eles devam ser exercidos dependerão, também, do contrato-base.

O art. 265º/1 e 2 CC prevê três fórmulas para a extinção da procuração:

1. Renúncia do procurador – o procurador pode sempre renunciar à procuração. O Direito versa a relação
de representação como eminentemente pessoal e, nessa medida, assente numa confiança mútua.

Todavia, na prática, as coisas não se processam deste modo: as procurações são, muitas vezes, passadas a
profissionais e, como tal, remunerados. A renúncia súbita a uma procuração pode prejudicar o representado.
Assim, teremos de entender que sem prejuízo para a regra da livre renunciabilidade aos poderes por parte do
procurador, este poderá ter de indemnizar se causar danos e a sua responsabilização emergir da relação-
base.

Tratando-se de um mandato com representação, por exemplo, a renúncia à procuração implica a sua
revogação (art. 1179º), aplicando-se o art. 1172º quanto à obrigação de indemnização.

2. Cessação do negócio base – implica o termo da procuração que, em princípio, não se mantém sem
aquele. A lei admite, todavia, que a procuração subsista “se outra for a vontade do representado”.
Nessa altura, os poderes mantêm-se, aguardando o consubstanciar de outra situação de base que dê
sentido ao seu exercício.

O quadro das fórmulas da cessação da procuração e dos poderes que representação que ela envolve devem,
assim, completar-se com recurso às causas extintivas dos negócios subjacentes. Tratando-se de mandato, nos
termos do art. 1174º, ele caduca por morte ou interdição do mandante ou do mandatário ou pela inabilitação
do mandante, se o mandato tiver por objeto atos que não possam ser praticados sem intervenção do curador.
Todavia, o art. 1175º contém uma exceção: a morte, interdição ou inabilitação do mandante não faz caducar
o mandato quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro. Nos outros
casos, a caducidade só opera quando o mandatário tenha conhecimento do evento ou quando da caducidade
não possam resultar prejuízos para o mandante ou seus herdeiros.

Estas regras aplicam-se à procuração, no caso de morte, interdição ou inabilitação do representado: seja
diretamente, quando subjacente haja mandato, seja por analogia, nos outros casos.

Na pluralidade de representantes, funcionará o art. 1177º: a procuração caduca em relação a todos, ainda
que a causa de caducidade respeite apenas a um deles, salvo se outra for a vontade do representado.

72
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

3. Revogação pelo representado (art. 265º) – explica-se pela natureza de confiança mútua postulada
pela representação voluntária. Trata-se dos mesmos termos usados pelo art. 1170º/1 a propósito da
livre revogabilidade do mandato. Nessa ocasião, haverá que observar, quanto a eventuais
indemnizações, o regime aplicável ao negócio-base. Perante um mandato, os arts. 1179º e 1172º
determinarão um dever de indemnizar.

O art. 265º/3 prevê a hipótese de uma procuração conferida também no interesse do procurador ou de
terceiro. Nessa altura, a revogação só pode operar havendo justa causa, isto é, surgindo um fundamento,
objetivo ou subjetivo, que torne inexigível a manutenção dos poderes conferidos.

A revogação pode ser expressa ou tácita. O art. 1171º, a propósito do mandato, consigna uma modalidade
revogação que considera “tácita”: a de ser designada outra pessoa para a prática dos mesmos atos. O Prof.
MC entende que esta norma tem aplicação à procuração: o representado que designe outro procurador para
a prática dos mesmos atos está, implicitamente, a revogar a procuração primeiro passada. Por aplicação
analógica daquele mesmo preceito, a revogação só produz efeitos depois de ser conhecida pelo mandatário.

Em qualquer caso, sobrevindo a cessação de uma procuração, o representante deve restituir ao representado
o documento de onde constem os seus poderes – art. 267º. Este art., contudo, apenas refere a hipótese de a
procuração ter “caducado”; o Prof. MC entende que se deve alargar esse dispositivo às diversas formas de
extinção de uma procuração.

 A tutela de terceiros

A procuração destina-se a permitir ao represente celebrar, em nome e por conta do representado, atos com
terceiros: a procuração não pode ser tratada como uma exclusiva relação entre representante e representado.

Procurando contemplar os interesses e a confiança desses terceiros, mas sem descurar a posição do
representado, o CC estabeleceu no art. 266º as seguintes regras:

→ Havendo modificações ou revogação da procuração (atuações que dependam da iniciativa do


representante), devem elas ser levadas ao conhecimento de terceiros por meios idóneos – este é um
encargo em sentido técnico, dado que da sua inobservância apenas deriva uma inponibilidade das
modificações ou da revogação (nº 1).

→ Nos restantes casos de extinção da procuração, não se refere um expresso dever de dar a conhecer
aos terceiros; não obstante, elas não podem ser opostas a terceiro que sem culpa as tenha ignorado
(nº 2).

Aparentemente, a diferença reside no regime do ónus da prova: na hipótese do nº 1, o representado terá de


provar que os terceiros conheciam a revogação; no nº 2, a invocação da boa fé caberá aos terceiros.

Para tentar explicar a produção de efeitos da procuração cuja extinção, por não ter sido comunicada aos
terceiros interessados, mantém a sua eficácia, surgiram duas teorias:

▪ Teoria da aparência jurídica – foi inicialmente defendida por Wellspacher, sendo hoje considerada
dominante. Entende que a procuração se extinguiu efetivamente; todavia, mercê da aparência e para
tutela de terceiros, ela mantém alguma eficácia.

▪ Teoria do negócio jurídico – presente em Flume, entende que a procuração só se extingue, pelo
menos em vários casos, quando a sua cessação seja conhecida pelos terceiros a proteger. No Direito
português, esta teoria não tem quaisquer fundamentos nas fontes.

73
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Resta optar pela teoria da aparência: o art. 266º, nas precisas condições nele enunciadas, dispensa, aos
terceiros aí referidos uma determinada proteção.

 A procuração tolerada e a procuração aparente

O art. 266º protege os terceiros, ou certos terceiros, perante modificações ou a revogação da procuração, de
que não tivessem, sem culpa, conhecimento. Na base deste princípio da tutela da confiança de terceiros,
foram autonomizados, no direito alemão, dois institutos destinados a essa tutela:

o Procuração tolerada – alguém admite, repetidamente, que um terceiro se arrogue seu representante.
Quando isso suceda, reconhece-se ao “representante” aparente, autênticos poderes de
representação. Não se admite que, por esta via, surja uma verdadeira procuração: apenas um
esquema de tutela.

o Procuração aparente – alguém arroga-se representante de outrem, sem conhecimento do


“representado”. Porém, o “representado”, se tivesse usado do cuidado exigível, designadamente na
vigilância dos seus subordinados, poderia (e deveria) prevenir a situação.

Em qualquer dos casos, teria de se exigir a boa fé por parte do terceiro protegido: a tutela não opera quando
ele conhecesse ou devesse conhever a falta da procuração.

→ Perante o Direito português, serão utilizáveis estes esquemas?

À partida, não parece possível alargar o art. 266º a casos nos quais falte uma procuração. Na verdade, a
previsão protetora assenta num instrumento de representação efetivamente existente, cuja cessação não foi
comunicada ao terceiro que nele acredite.

Na falta de procuração, e mesmo em situações de tolerância ou de aparência, nada há que, objetivamente,


faculte a aplicação do referido art. 266º. Fora de qualquer previsão específica, a confiança só é protegida, no
Direito português, através da boa fé e do abuso do direito. Assim, não se admite nem a “procuração tolerada”
nem a “procuração aparente”.

Todavia, o terceiro que seja colocado numa situação de acreditar, justificadamente, na existência de uma
procuração, poderá ter proteção: sempre que, do conjunto da situação, resulte que a invocação pelo
“representado” da falta de procuração constitua abuso do direito, seja na modalidade do venire contra factum
proprium, seja na da surrectio.

Note-se que, no Direito português, no caso especial do contrato de agência, admite-se a figura da
representação aparente (art. 23º DL 178/86).

→ Poderá o art. 23º DL 178/86 ser generalizado, de modo a que no Direito comercial se pudesse admitir
a procuração aparente?

O Prof. MC defende que não existem valores comerciais específicos que justifiquem tal desvio ao CC. Apenas
se poderá aceitar uma interpretação extensiva deste artigo.

Todavia, será de admitir a figura da procuração institucional, para a qual este artigo dá apoio: perante um
pretenso representante isolado, a pessoa que, com ele contacte, deve tomar precauções, inteirando-se da
existência e da extensão dos seus poderes. Mas quando depare com uma organização na qual se integre o
pretenso representante, a confiança legítima é imediata: ninguém, na caixa de um supermercado, vai
interpelar o empregado no sentido de este comprovar os seus poderes de representação. Nesta área,
especialmente relevante para o Direito comercial, opera uma procuração institucional eficaz,
independentemente da sua qualidade instrínseca.

74
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

 Representação Comercial

O art. 231º CCom, a propósito da noção de mandato comercial, dá-nos elementos próprios da representação.
Assim, segundo este preceito, dá-se mandato comercial quando alguma pessoa se encarrega de praticar um
ou mais atos de comércio por mandato de outrem.

Prosseguindo o § único: o mandato comercial, embora tenha poderes gerais, só pode autorizar atos não
mercantis por declaração expressa.

A associação entre o mandato comercial e a representação aflora ainda no art. 233º CCom: o mandato
comercial, que contiver instruções especiais para certas particularidades do negócio, presume-se amplo para
as outras; e aquele, que só tiver poderes para um negócio determinado, compreende todos os atos
necessários à sua execução, posto que não expressamente indicados.

Trata-se de um aspeto básico do mandato mercantil: na falta de representação, a pessoa que se obrigue a
providenciar contratos poderá ter celebrado um contrato (atípico) dito mediação. Assim, ao contrário do que
sucede no mandato civil, o mandato comercial envolve sempre poderes de representação.

No Direito comercial, o mandato sem representação diz-se comissão ou contrato de comissão – arts. 266º e
ss.

A representação comercial, só por si, não confere ao representante a qualidade de comerciante. Os atos
comerciais que pratique projetam-se, automática e imediatamente, na esfera do representado: não na do
representante. No entanto, se ele exercer a atividade a título profissional, já poderá, por essa via, converter-
se em comerciante.

 A tutela de terceiros

No Direito comercial português, não encontramos preceitos diretamente destinados à tutela de terceiros.
Apenas cabe anotar o art. 242º, segundo o qual o mandatário deve exibir o título que lhe confira os poderes:
não pode opor a terceiros quaisquer instruções que houvesse recebido em separado do mandante, salvo
provando que os terceiros em causa delas tinham conhecimento.

Todavia, os terceiros são protegidos, e num grau elevado, através do registo comercial. Nos termos do art.
10º/a) CRC, o mandato escrito, as suas alterações e a sua extinção estão sujeitas a inscrição comercial. A
aparência daí resultante é tutelada, em termos negativos e positivos, por via dos arts. 14º/1 e 22º/4 CRC.

Em todos os domínios omissos, têm aplicação, a título subsidiário e nos termos do art. 3º CCom, as regras
referentes à procuração civil.

O mandato não está sujeito a qualquer forma especial, salvo se tiver em vista atos que a exijam. Na prática
comercial, designadamente para votar em sociedades, por exemplo, o mandato efetiva-se através de “cartas
mandadeiras” que indicam, de modo sumário, o mandante, o mandatário e o assunto a que o mandato diga
respeito.

 Mandato Comercial

O CCom dedica ao mandato o título V do seu livro II.

No mandato comercial, o mandatário obriga-se, tal como no civil, a praticar um ou mais atos jurídicos por
conta de outrem; simplesmente, tais atos são, aqui, de natureza comercial – art. 231º. O mandato comercial
envolve, ao contrário do civil, representação.

75
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

O mandato comercial presume-se oneroso – art. 232º - ao contrário do mandato civil. A remuneração é
acordada pelas partes ou, na falta de acordo, pelos usos da praça onde o mandato for executado.

Embora contratual, o mandato comercial pode ser conferido por via unilateral. O “mandatário”, não estando
de acordo, pode recusá-lo. Nessa altura, ele incorre nos deveres previstos no art. 234º:

(a) Comunicar a sua recusa ao mandante o mais cedo possível;


(b) Praticar todas as diligências necessárias para a conservação de quaisquer mercadorias que lhe hajam
sido remetidas, até que o mandante proveja;
(c) Consignar em depósito tais mercadorias se, avisado, o mandante nada fizer;
(d) Responder pelo incumprimento de qualquer das enunciadas obrigações.

Obrigações do mandatário:

i. Praticar os atos envolvidos de acordo com as instruções recebidas ou, na sua falta, segundo os
usos do comércio – art. 238º;
ii. Informar o mandante de todos os factos que o possam levar a modificar ou revogar o mandato –
art. 239º;
iii. Avisar o mandante da execução do mandato, presumindo-se que ele ratifica quando não responda
imediatamente, mesmo que exceda os seus poderes – art. 240º;
iv. Pagar juros do que deveria ter entregue, a partir do momento em que não o haja feito, ou seja,
prestar contas – art. 241º.

Obrigações do mandante:

a) Fornecer ao mandatário os meios necessários à execução do mandato, salvo convenção em contrário


– art. 243º;
b) Pagar-lhe, nos termos ajustados ou segundo os usos da praça – art. 232º § 1;
c) Reembolsá-lo de despesas e compensá-lo – arts. 234º, 243º e 246º.

A revogação e a renúncia não justificadas do mandato dão lugar a indemnização – art. 245º.

O mandato comercial em sentido estrito tem ainda outras especificidades. Assim, o CCom prevê diversas
regras para o caso de o mandato envolver a remessa, ao mandatário, de mercadorias – arts. 234º a 237º.

Na pluralidade de mandatários, presume-se que devam obrar, por ordem de nomeação, na falta uns dos
outros – art. 244º - prevendo-se ainda a hipótese de mandato conjunto não aceite por todos - § único.

O art. 247º estabelece privilégios creditórios mobiliários especiais a favor do mandatário comercial. De um
modo geral, tais privilégios operam sobre mercadorias à guarda do mandatário e por despesas por elas
ocasionadas.

A grande diferença entre o mandato civil e o mandato comercial é a seguinte: o mandato civil surge, no
essencial, passado no interesse do mandante; pelo contrário, o mandato comercial opera também no
interesse do mandatário e no do comércio em geral.

 Mandatários comerciantes

a) Gerentes de comércio

O gerente é a pessoa que detenha mandato geral para tratar do comércio de outrem – art. 248º. Não é um
mandato geral civil (art. 1159º/1 CC), uma vez que este se limita a atos de administração ordinária, enquanto

76
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

o gerente de comércio poderá estar titulado para praticar todos os atos próprios da atividade em jogo, seja
qual for a sua natureza.

O gerente tem poderes de representação – arts. 250º e 251º. A limitação de tais poderes é inoponível a
terceiros, salvo provando que tinham conhecimento dela ao tempo que contrataram.

Se o gerente contratar em nome próprio mas por conta do proponente, o regime do art. 252º não coincide
com as regras civis do mandato sem representação: o gerente fica pessoalmente obrigado, podendo todavia
o contratante acionar o gerente ou o proponente, mas não ambos.

Existem ainda as seguintes especificidades:

 O gerente não pode, salvo autorização expressa do proponente, desenvolver atividade com a deste
concorrente. Se o fizer, responde pelos danos, podendo ainda o proponente fazer seu o negócio
faltoso – art. 253º;
 Havendo registo do mandato, o gerente tem legitimidade judicial ativa e passiva, como representante
do proponente – art. 254º.

As regras sobre a gerência comercial aplicam-se aos representantes de casas comerciais ou sociedades
constituídas em pais estrangeiro que tratarem habitualmente no reino, em nome delas, de negócios do seu
comércio – art. 255º.

A morte do proponente não põe termo à gerência comercial – art. 261º. Havendo revogação do mandato,
ficam extintos os poderes de representação: não quaisquer outros elementos decorrentes da prestação de
serviço – art. 262º.

b) Auxiliares e caixeiros

O auxiliar distingue-se do gerente pelo seguinte: enquanto este tem um mandato geral – arts. 248º e 249º - o
auxiliar tem um mandato específico apenas para tratar de algum ramo específico do tráfego do proponente –
art. 256º.

No âmbito do mandato, os auxiliares são representantes – art. 258º.

O CCom admite ainda que, como auxiliares, possam funcionar “empregados” do comerciante, devidamente
mandatados – art. 257º. Mas note-se que o aspeto laboral opera apenas nas relações internas entre o
comerciante e o seu empregado, sendo insuficiente para justificar o tipo de representação aqui em causa.

Os poderes de representação do trabalhador, automaticamente decorrentes do seu contrato de trabalho, só


funcionam no âmbito da empresa.

Os caixeiros são pessoas mandatadas para vender e cobrar, em nome e por conta do comerciante mandante.
Têm, para isso, os necessários poderes.

Os arts. 260º, 264º e 265º fixam um regime semelhante ao do nosso contrato de trabalho. De todo o modo, o
Prof. MC sustenta que a qualificação do caixeiro como trabalhador não é automática nem fatal: caso a caso
teremos de indagar se existe a subordinação tipicamente laboral.

 Contrato de comissão

A comissão é um contrato de mandato comercial sem representação – art. 266º.

Ao contrato de comissão aplicam-se as regras gerais acima examinadas, salvo o que respeita à representação
– arts. 267º e 268º: o comissário deverá depois retransmitir para o mandante ou comitente o que, por conta
deste, haja adquirido (parte final do art. 268º).

77
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

O comissário não responde, perante o mandante e salvo pacto ou uso em contrário, pelo cumprimento das
obrigações do terceiro – art. 269º e § único. Quando ele assuma esse encargo, pode debitar, além da
remuneração ordinária, a comissão del cedere, a determinar por acordo ou pelos usos da praça – art. 269º §
2.

As consequências da violação ou excesso dos poderes de comissão correm pelo comissário – arts. 270º e 271º.

O comissário deve agir com prudência – art. 272º - otimizando os meios destinados a prosseguir o interesse
do mandante. Tratando-se de bens com preço de bolsa ou de mercado, ele pode, salvo cláusula em contrário,
comprar ou vender ao comitente, por conta dele, sem perda da remuneração – art. 274º.

O CCom estipula determinados deveres de escrituração – arts. 273º e 275º a 277º. A violação deles traduz a
inobservância do mandato, com as consequências legais.

 Contrato de Mediação

Diz-se mediação o ato ou efeito de aproximar voluntariamente duas ou mais pessoas, de forma a que entre
elas se estabeleça uma relação de negociação, eventualmente conducente à celebração de um contrato
definitivo. Atente-se que, mesmo que não venha a haver a celebração do contrato definitivo, não quer dizer
que não estejamos perante um contrato de mediação.

A mediação exige que o mediador não represente nenhuma das partes a aproximar e, ainda, que não esteja
ligado a nenhuma delas por vínculos de subordinação.

A mediação pode ser assumida como objeto de um contrato – teremos um contrato de mediação. Mas ela
pode também ocorrer por uma iniciativa do mediador sem que, previamente, nada tenha sido contratado
entre ele e qualquer dos intervenientes – nesse caso, falamos em mediação liberal.

Quando haja contrato de mediação, podemos estar em face de uma mediação civil ou de uma mediação
comercial.

Alguns conceitos:

(a) Mediador ou mediador contratado – pessoa que subscreva um contrato de mediação, obrigando-se
a promover um ou mais negócios jurídicos. Na tradição portuguesa, o mediador era o corretor;
(b) Mediador liberal – aquele que, independentemente de qualquer contrato, promova a conclusão de
negócios jurídicos;
(c) Comitente ou solicitante – aquele que contrate um mediador, através de um contrato de mediação;
(d) Solicitado – a pessoa junto da qual o mediador vá exercer os seus bons ofícios;
(e) Contrato definitivo – o contrato cuja celebração seja prosseguida pelo mediador.

Numa evolução subsequente, os corretores foram especializados em três grandes troncos:

i) Valores mobiliários – o DL 142-A/91 de 10 de abril aprovou o Código do Mercado de Valores


Mobiliários (art. 24º), tendo este preceito vindo a revogar os arts. 64º a 81º do CCom. A contrario,
caberia concluir que esses preceitos se mantiveram em vigor para os outros setores. Todavia, a
generalidade dos compiladores considerou que estes arts. haviam sido revogados no seu todo. O
Prof. MC entende que não foi assim: os deveres consignados no CCom, que não necessitavam do
revogado Regulamento de 1901, mantiveram-se em vigor para os mediadores que não
constassem do elenco mobiliário.

78
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Finalmente, o Código do Mercado de Valores Mobiliários foi revogado pelo DL 486/99 de 13 de novembro –
art. 15º/1 a). A antiga matéria dos corretores das bolsas surge agora a propósito da intermediação financeira
(arts. 289º a 351º), havendo ainda regulamentos e legislação complementar.

ii) Seguros – a matéria está hoje regulada no DL 144/2006 de 31 de julho, alterado pelo DL 359/2007
de 2 de novembro.
iii) Setor imobiliário – a mediação imobiliária foi o primeiro setor a ter uma regulação específica na
mediação. A matéria está regulada no DL 211/2004 de 20 de agosto, tendo, em 15 de junho de
2011, em nome da simplificação, surgido o DL 69/2011, que alterou diversos preceitos do DL
211/2004.

Modalidades de mediação:

1. Simples vs Profissional – a primeira é levada a cabo por qualquer pessoa e não está sujeita a
determinados condicionalismos; a segunda tem de se desenvolver de modo organizacional, lucrativo,
tendencialmente exclusivo e como modo de vida.
2. Liberal vs Dependente vs Oficial – na primeira, o agente age por si, sem qualquer vínculo contratual
ex: mediação imobiliária; na segunda, o mediador está ligado a uma organização por um vínculo de
prestação de serviço; na terceira, o mediador é designado por um ato administrativo, encontrando-se
em posição funcionalizada pública, ex: mediação dos jogos sociais do Estado.
3. Espontânea vs Contratada – na primeira, o mediador põe, por iniciativa sua e sem que ninguém lho
tivesse solicitado, duas ou mais pessoas em contacto, promovendo entre elas a negociação e a
conclusão de um contrato que a ambas interesse; na segunda, o mediador celebra, previamente, um
contrato com algum dos envolvidos, comprometendo-se a localizar e a interessar um co-contratante,
promovendo com este a conclusão contratual definitiva.
4. Pura vs Mista ou Combinada – na primeira, há independência e equidistância entre o mediador e as
partes; na segunda, o mediador, para além dos serviços de mediação propriamente dita, exerce ainda
uma atuação por conta de outrem (mandato), podendo igualmente assumir outros serviços.
5. Civil vs Comercial – na primeira, traduz-se numa obrigação de uma das partes encontrar um
interessado para a celebração, com o comitente, de um contrato definitivo (tratar-se-ia de um
contrato preparatório); na segunda (que é o que normalmente sucede), pode ocorrer por duas vias:
a) Ou por se tratar de um mediador – portanto, um comerciante – no exercício da sua atividade
comercial: não haverá qualquer dúvida quando o mediador seja uma sociedade – teremos uma
comercialidade subjetiva.
b) Ou por estar em causa alguma das modalidades de mediação tipificadas em leis comerciais especiais:
mediação mobiliária, dos seguros, imobiliária, monetária e de câmbios e de jogos sociais – a
comercialidade será objetiva, coincindo normalmente com a subjetiva.

Houve uma tentativa de enquadrar o art. 230º/3 CCom nesta figura da mediação, como sendo um ato
subjetivamente comercial. MC entende que não, porque o que está em causa neste art. são figuras de
prestação de serviço.

6. Típica vs Atípica – a primeira reporta-se às modalidades que tenham consagração na lei; a segunda
reporta-se às restantes, sendo que os nossos tribunais permitem documentar as que se reportem:
a) À venda de um automóvel;
b) À aquisição de frascos para produtos farmacêuticos;
c) A encontrar, no mercado, determinados livros;
d) À compra e venda de máquinas industriais e têxteis;

79
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

e) À contratação de determinado seviço de fornecimento de gás.

Figuras Afins:

A mediação distingue-se do mandato:

➢ Mediação - Atuação material, ocorre por conta própria, não pode ser acompanhada por poderes de
representação; a sê-lo, será uma mediação imprópria.
➢ Mandato - Atuação juridica, que ocorre por conta do mandante, podendo ser acompanhado por
poderes de representação.

O Prof. MC alerta para o facto de a mediação não deixar de ser, na sua essência, uma prestação de serviços
e, como tal, cai no âmbito do art. 1156º CC: assim, as regras do mandato ser-lhe-iam aplicáveis.

A mediação distingue-se do contrato de agência:

➢ Mediação – assenta num negócio pontual, apenas e eventualmente duradouro; o mediador mantém-
se equidistante; não é compatível com poderes de representação; não tem esquemas de retribuição.
➢ Contrato de agência – pressupõe um quadro de colaboração ou de organização duradouro entre o
principal e o agente; o agente deve agir de modo empenhado, por conta do principal; é compatível
com poderes de representação; tem esquemas típicos de retribuição, designadamente: o agente só é
remunerado, em regra, quando o contrato definitivo seja cumprido.

A mediação também não se confunde com o contrato de trabalho – o mediador é um profissional


independente. Sucederá, porém e em certos casos, que o mediador se venha a colocar na subordinação
económica do comitente. Nessa altura, a exata pesquisa de subordinação jurídica terá de ser encetada na base
dos indícios da laboralidade e privilegiando sempre a vontade das partes contratantes.

 O regime e a natureza da mediação

Qualquer pessoa pode, independentemente de haver um contrato de mediação, operar como intermediário
num determinado negócio. Assim, a jurisprudência definiu que, para estarmos face a um contrato de
mediação, tem de haver:

a) Uma incumbência, expressa ou tácita, no mediador.


b) Um contrato nesse sentido, sob pena de haver meras negociações.
c) Ter em vista a celebração de um contrato.

Na hipótese de uma mediadora que tenhasido contratada pelo terceiro interessado, não haverá contrato de
mediação entre ela e o vendedor.

Quanto aos requisitos e principiando pelas partes:

(i) A exigência de licenciamento ou equivalência, mormente no campo imobiliário, só se aplica a


profissionais e não ao mediador esporádico e ocasional.
(ii) Na hipótese de surgir um “profissional” não autorizado, poderá haver sanções contra este, mas o
contrato de mediação em si não é nulo.

No que toca à forma, a mediação, sendo um contrato atípico, não se sujeita a qualquer forma específica.

80
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

→ Todavia, o art. 10º/1 DL 285/92 de 19 de dezembro, relativamente à mediação imobiliária, vem exigir
a forma escrita. A inobservância desta exigência não pode, no entanto, ser invocada pela entidade
mediadora (art. 10º/6 e 19º/8 do DL 211/2004, hoje em vigor); a sua invocação pelo interessado para
não pagar a comissão pode, todavia, constituir abuso do direito. Logo, também não o poderá ser nem
por qualquer interessado, nem ex-officio: apenas pelo cliente do mediador (comitente) – nulidade
atípica. Além disso, tendo sido obtido com êxito a mediação, mesmo havendo nulidade formal do
contrato, como não é possível restituir os serviços prestados, a comissão seria sempre devida.

Perante a escassez regulativa do contrato de mediação, a jurisprudência tem reclamado a aplicação sucessiva:

1- Das estipulações das partes.


2- Das normas de aplicação analógica.
3- Dos princípios gerais das obrigações.
4- Da decisão judicial integradora.

Recorde-se, contudo, que o Prof. MC afirma que a mediação é, antes de mais, uma prestação de serviço, pelo
que, na falta de outras regras, haverá sempre que fazer apelo ao previsto para o mandato, por via do art.
1156º CC.

A mediação pode ser acompanhada, a título de cláusula típica, pela exclusividade. Nessa altura, o comitente
compromete-se a, com referência ao projetado negócio, não contratar mais nenhum mediador. Esta cláusula
de exclusividade pode ser ainda reforçada quando o comitente se obrigue, para além daquilo, a não descobrir
ele próprio um terceiro interessado. Contudo, tal deverá estar expressamente clausulado e, havendo dúvidas,
deverá ser provado por quem tenha interesse na situação considerada.

Em toda a relação de mediação, haverá que observar o princípio da boa fé (art. 762º/2 CC), com todos os
deveres acessórios que daí decorrem. Assim, e designadamente:

a) Há que prestar todas as informações pertinentes entre as partes;


b) As partes devem manter-se leais, prevenindo condutas que possam inviabilizar o escopo do negócio;
c) A mediação não pode constituir pretexto para desencadear ou potenciar situações de concorrência.

Proteção do terceiro solicitado:

Este não é parte no contrato; todavia, tem uma tripla proteção:

i. O próprio contrato de mediação só se considera cumprido se o contrato definitivo for


regularmente obtido: tal não sucede quando o mediador use de dolo, altura em que não há direito
à comissão;
ii. A lei obriga a esclarecer devidamente os terceiros solicitados, em várias situações legalmente
previstas. Quando isso não aconteça, há responsabilidade, ex vi do art. 485º CC;
iii. A boa fé contratual protege também o próprio terceiro. Será uma manifestação do efeito protetor
de terceiros.

Retribuição:

A mediação, particularmente quando comercial, é onerosa. Cabe às partes, no contrato, prever com toda a
precisão:

- Qual a retribuição devida;


- Em que circunstâncias ela deva ser paga;
- Em que momento terá lugar a sua satisfação.

81
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

A retribuição efetiva-se, muitas vezes, através de uma comissão sobre o preço do negócio definitivo. Aquando
da retribuição e do seu pagamento, há que contar com os deveres fiscais envolvidos: retenção na fonte
(quando seja o caso) e IVA.

Na falta de estipulação das partes ou na sua insuficiência:

➢ A retribuição só é devida com a conclusão do contrato definitivo: não bastam esforços nesse sentido.
➢ A atividade do mediador deve ser causa adequada ao fecho do contrato definitivo; ou então, este
deve alcançar-se como efeito de intervenção do mediador.
➢ A remuneração é devida mesmo que o contrato definitivo não venha a ser cumprido, na hipótese de
só não se ter concluído o negócio definitivo por causa imputável ao comitente.
➢ A subsequente declaração de nulidade do contrato, por causa não imputável à mediadora, não afeta
o direito desta à retribuição.
➢ Havendo um concurso de causas que conduzam à celebração do negócio pretendido, a comissão será
devida desde que a atuação do mediador também tenha contribuído para o êxito final.
➢ O negócio definitivo poderá, na mediação imobiliária, ser um simples contrato-promessa ou, antes, a
escritura final: depende da interpretação do contrato de mediação.
➢ A alteração subjetiva de uma das partes do negócio não exclui, só por si, a comissão.

O pagamento da comissão ao mediador dependerá de haver uma relação contratual entre este e o contratante
final, ou algum deles. Na sua falta, poderemos fazer apelo à gestão de negócios. Qualquer pagamento terá
então uma diversa natureza, devendo efetivar-se nos quadros desse instituto.

Cessação:

O contrato de mediação cessa:

1. Com a morte ou extinção de qualquer uma das partes;


2. Com a verificação de um facto que tenha sido estipulado pelas partes;
3. Quando pactuado para um concreto negócio, ele cessa caso esse negócio se obtenha, ou na hipótese
de ele se tornar definitivamente impossível.

A revogação indevida equivale ao incumprimento, com todas as consequências daí advenientes.

O contrato de mediação tem assim como características o facto de ser uma prestação de serviços materiais,
onerosas, aleatória e intuito personae.

No que toca à sua natureza, o Prof. MC defende que tem natureza contratual. Fora de um contrato de
mediação, qualquer intermediário que “alcance” um negócio entre terceiros, apenas poderá beneficiar do
estatuto de gestor de negócios.

 CONTRATOS DE ORGANIZAÇÃO

Nos contratos de organização, encontramos um esquema de colaboração comercial entre duas ou mais partes,
com características de duração e estabilidade.

Estes contratos são fontes de obrigações mútuas de facere – são atos jurídicos – mas nada obsta a que haja
obrigações acessórias, incluindo obrigações de dare. Ao contrário do que sucede nas sociedades comerciais,
os contratos comerciais de (mera) organização não chegam a dar azo a uma entidade autónoma, diversa das
próprias partes que lhes estejam na origem.

82
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Os contratos de organização têm um relevo especial no domínio do comércio internacional: através deles,
empresas de diversos Estados podem pôr-se de acordo para a prossecução de objetivos comuns, de interesse
mútuo.

 Associação em Participação

Na associação em participação, temos uma organização muito elementar, que liga uma pessoa a um
comerciante, conferindo-lhe determinados apoios para o desenvolvimento do seu comércio e recebendo, em
troca disso, parte dos lucros que ele venha a obter. Toda a atuação é desenvolvida em nome e por conta do
comerciante.

Sistemas comutativos:

Aos sistemas “societários”, hoje representados pela societé en participation francesa e pela stille Gesellschaft
alemã, opõem-se os sistemas comutativos. Nestes, a associação em participação é tomada como um simples
contrato entre duas pessoas, pelo qual uma, mediante determinada prestação, recebe participação em certos
lucros. Tem um nível de álea, ainda que delimitado.

A passagem às conceções comutativas deve-se à doutrina italiana. No domínio do Código do Comércio de


1882, o esquema era próximo do napoleónico: uma organização elementar com um “sócio” oculto. E assim,
muita doutrina reportava a associação em participação a uma fórmula societária. Outra doutrina optava,
contudo, por um contrato comutativo, numa opção que ganhou terreno através do estudo global dos
contratos parciários: contratos semi-aleatórios em que os participantes quinhoavam no resultado de
determinada atividade.

Este sistema teve alguma influência na reforma portuguesa de 1981. Todavia, o legislador nacional acabou por
optar por um esquema com elementos híbridos: o do contrato associativo.

O Código Ferreira Borges consagrou a figura em estudo, denominando-a associação em conta de


participação. O Código Veiga Beirão optou pela designação conta em participação.

Associação em Participação:

Na sequência de estudos realizados por Raul Ventura, o legislador decidiu introduzir um regime específico
dedicado ao consórcio, tendo também redenominado a figura da conta em participação, passando esta a
designar-se associação em participação.

A matéria foi inserida nos arts. 21º a 32º do DL 231/81 de 28 de julho. O art. 32º deste DL terá revogado os
arts. 224º a 229º CCom.

» Regime:

O comerciante diz-se “associante” e a pessoa que a ele se liga denomina-se “associado”.

A participação nos lucros é essencial, enquanto a participação nas perdas poderá ser dispensada, mediante
convenção escrita – arts. 21º/2 e 23º/2 DL.

Pode haver vários associados: não se presume a sua solidariedade, ativa e passiva, para com o comerciante –
art. 22º/1.

83
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

O contrato é consensual – art. 23º/1 – salvo se alguma forma especial for exigida pela natureza dos bens com
que o associado contribua, prevendo o nº 3 deste art. uma reforçada hipótese de conversão.

O associado obriga-se a uma contribuição de natureza patrimonial – art. 24º/1 – podendo esta ser dispensada
no contrato, se ele participar nas perdas.

Os deveres do associante estão previstos nos arts. 26º e 31º.

No domínio da associação em participação, apenas o associante atua em termos comerciais – o associado não
tem qualquer atividade, para além da contribuição.

A associação extingue-se nos casos referidos no art. 27º. A morte do associante ou do associado não faz cessar
só por si a associação: pode conduzir a isso, caso seja vontade dos sucessores ou do contraente sobrevivo –
art. 28º.

» Natureza:

A prevalência de uma dogmática integrada e de um pensamento sistemático permitem verificar que a


associação em participação não joga com o Direito das sociedades comerciais. Trata-se de lógicas distintas: as
sociedades, embora se prendam a uma ideia de organização voluntária, postulam esquemas de adjunção
muito mais vincados e sobretudo diferentes.

Ainda por razões dogmáticas e sistemáticas, a associação em participação deverá ser tida como um ato
comercial objetivo. Quer isto dizer que, na sua integração, haverá que passar pelos princípios comerciais,
antes de apelar ao Direito civil.

 Consórcio

Hoje, pode considerar-se que, para além de dimensões jurídicas, o consórcio apresenta uma faceta social e
económica, que explica o seu aparecimento nas mais diversas sociedades e no próprio plano internacional.

O Direito português, através do DL 231/81 de 28 de julho, no seu art.1º, define o consórcio como o contrato
pelo qual duas ou mais pessoas singulares ou coletivas que exerçam uma atividade económica se obrigam
entre si a, de forma concertada, realizar certa atividade ou efetuar certa contribuição com o fim de prosseguir
qualquer dos objetos referidos no art. 2º.

Por seu turno, o art. 2º deste DL define como objetos passíveis de serem prosseguidos:

a. Realização de atos, materiais ou jurídicos, preparatórios quer de um determinado empreendimento,


quer de uma atividade contínua;
b. Execução de determinado empreendimento;
c. Fornecimento a terceiros de bens, iguais ou complementares entre si, produzidos por cada um dos
membros do consórcio;
d. Pesquisa ou exploração de recursos naturais;
e. Produção de bens que possam ser repartidos, em espécie, entre os membros do consórcio.

Existe, quanto ao contrato de consórcio, uma querela doutrinária relativamente à classificação deste como
ato comercial em sentido objetivo:

OLIVEIRA ASCENSÃO e COUTINHO DE ABREU defendem que o contrato de consórcio não consubstancia um
de comércio em sentido objetivo, uma vez que podem traduzir-se apenas em atos meramente económicos.
Contudo, caso esse contrato seja celebrado por comerciantes, será comercial em sentido subjetivo.

84
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

MENEZES CORDEIRO, por outro lado, sustenta que este contrato é objetivamente comercial, de acordo com
uma interpretação de cariz histórico, uma vez que já estiveram regulados no CCom.

» Regime:

Como se referiu, para que haja consórcio, é necessário:

(1) Duas ou mais pessoas singulares ou coletivas – a pluralidade de sujeitos liga-se à natureza contratual
da figura. Assim, o consórcio desaparece quando se perca tal pluralidade, desde que, nos termos
gerais, possa operar a confusão – art. 868º CC – e sem prejuízo de terceiros – art. 871º/1 CC.
(2) As pessoas em causa deverão exercer uma atividade económica – a lei visou aqui acentuar a natureza
basicamente lucrativa e, daí, comercial, da figura. Contudo, nada obsta, no âmbito da autonomia
privada, a que se possa utilizar o consórcio num sentido puramente civil.
(3) As pessoas interessadas no contrato vão obrigar-se a agir de forma concertada – postula-se assim
uma organização comum – é o que permite enquadrar o consórcio nos contratos de organização. As
partes apresentam-se com interesses comuns e não contrapostos.

A concertação reporta-se ao desenvolvimento de certa atividade ou à efetivação de certa contribuição. Ficam


contornados os consórcios puramente passivos, em que uma das partes se adstingiria simplesmente a não
concorrer com a primeira. Esses elementos – a atividade e/ou a contribuição – são devidos por cada um dos
consorciados, sempre com subordinação a uma ideia de concatenação.

Quanto aos requisitos:

(a) Os contratos de consórcio devem ser celebrados por escrito, requerendo-se a escritura quando
estejam envolvidos imóveis – art. 3º.
(b) As alterações ao contrato, a adotar pela forma utilizada para a sua celebração inicial, devem ser
aprovadas por todos os contraentes, salvo quando o próprio contrato preveja outra fórmula – art.
6º/1 e 2.

A lei portuguesa distingue entre (art. 5º):

 Consórcio interno – as atividades ou os bens são fornecidos a um dos membros do consórcio e só este
estabelece relações com terceiros ou, então, tais atividades ou bens são fornecidos diretamente a
terceiros por cada um dos membros do consórcio, sem expressa invocação dessa qualidade.
 Consórcio externo (art. 15º) – as atividades ou os bens são fornecidos a terceiros por cada um dos
consorciados, com invocação expressa dessa qualidade. Assiste-se aqui a um reforço do elemento
organizativo. Não se presume solidariedade no consórcio externo (art. 19º).

Os deveres dos consorciados, nas dimensões da proibição da concorrência e da prestação de informações,


são explicitados no art. 8º, surgindo ainda regras no tocante à repartição dos valores recebidos pela atividade
nos consórcios internos e à participação em lucros e perdas – art. 18º.

A denominação vem predisposta no art. 15º - a denominação do consórcio externo tem regras: os seus
membros podem juntar os seus nomes, firmas ou denominações sociais, com o aditamento “Consórcio de..”
ou “...em consórcio”, sem prejuízo de apenas ser responsável perante terceiros quem assine os contratos.

As regras relativas às relações com terceiros estão estabelecidas no art. 19º.

Todos estes artigos são supletivos, numa ocorrência que deverá ser confirmada caso a caso, perante a própria
lei e em face dos princípios gerais.

85
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Em relação à posição dos contratantes, toda esta regulamentação é apenas um modelo que a lei põe à
disposição das partes. Estas, nos termos do art. 405º CC, dispõem de plena liberdade contratual: podem,
designadamente, celebrar consórcios “atípicos”, acrescentar cláusulas suas ao modelo legal ou afastar
soluções legais supletivas.

» Repartição dos ganhos e perdas:

Num consórcio, as partes concentram-se para desenvolver determinada atividade económica – pergunta-se
se elas poderão ajustar uma repartição abstrata dos ganhos e das perdas.

Note-se que o consórcio não tem personalidade jurídica e, como tal, a contratação com terceiros é feita em
nome de algum ou alguns dos consorciados. Pode algum consorciado, que não tenha contratado diretamente
com terceiros, ser chamado a receber lucros ou a suportar prejuízos?

Ora, estamos no domínio patrimonial privado. Todos os direitos em jogo no consórcio são plenamente
disponíveis. Não há nenhuma regra, no Direito português, que proíba estabelecer regimes de solidariedade
passiva ou ativa. A lei não prescreve, todavia, nenhuma solidariedade; nem ativa, nem passiva. Apenas não
proíbe que as partes, ao abrigo da sua autonomia privada, o façam.

No que toca às relações internas entre as partes, é viável que duas pessoas ajustem entre si uma certa
repartição de esforços ou de lucros, num negócio para o qual ambas tenham contribuído. Mas note-se que tal
repartição não tem nada a ver com o estabelecimento de uma pessoa coletiva – trata-se de um fenómeno
corrente, que a todo o momento se verifica em situações de compropriedade.

Note-se ainda que a proibição de fundos comuns (art. 20º) nada tem a ver com a repartição dos lucros e
perdas; ela apenas visa facilitar a definição das relações entre as partes, remetendo-as para o art. 1167º/a)
CC, relativo ao mandato.

» Termo do consórcio:

A lei portuguesa distinguiu três modalidades de cessação do consórcio:

a) Exoneração dos seus membros (art. 9º) – corresponde a uma posição potestativa que o consorciado
tenha de pôr cobro aos seus compromissos, excluindo-se do consórcio. Compreende-se que ela
requeira uma particular justificação.
b) Resolução do contrato (art. 10º) – equivale a uma posição potestativa que o consorciado tenha excluir
os outros do consórcio. Compreende-se que, pela sua gravidade, se requeira justa causa, a qual pode
ser subjetiva ou objetiva.
c) Extinção do consórcio (art. 11º) – engloba a revogação, a caducidade e a impossibilidade.

 CONTRATOS DE DISTRIBUIÇÃO

Os circuitos económicos de distribuição dos bens, desde o produtor e até ao consumidor final, são dobrados
por esquemas jurídicos destinados a legitimá-los, fixando os direitos e os deveres das partes envolvidas. Trata-
se, grosso modo, dos contratos de distribuição.

Os Códigos Comerciais não têm autonomizado os diversos contratos de distribuição. Abrem-se, assim, lacunas,
que têm vindo a ser colmatadas:

→ Ou por recurso à analogia, a partir das normas efetivamente existentes, normalmente dedicadas ao
contrato de agência;
→ Ou com base em CCG, devidamente sindicadas pela prática.

86
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

A comercialização dos bens e a sua distribuição na sociedade pode ser feita de forma direta ou indireta:

o Distribuição direta – o bem passa diretamente do produtor ao consumidor, ainda que através de
representantes, de comissários ou de mediadores;
o Distribuição indireta – o bem atravessa ainda várias fases, passando do produtor ao grossista, do
grossista ao retalhista e do retalhista ao consumidor final. Por seu turno, a distribuição indireta pode
ser:
i. Integrada – existe uma coordenação entre a produção e a comercialização, de tal modo que o
distribuidor é integrado em circuitos próprios do produtor, sujeitando-se, eventualmente, às suas
diretrizes;
ii. Não integrada – não há tal coordenação; os distribuidores atuam sem concertação com os
produtores.

Numa economia de tipo ocidental, que inscreve a livre-concorrência como um valor básico, capaz de
regularizar o mercado, protegendo a qualidade dos produtos e defendendo os consumidores, a distribuição
tem a maior importância.

Particularmente relevantes neste domínio são as regras de defesa da concorrência (Lei 18/2003 de 11 de
junho) e que vedam, designadamente, os acordos e práticas concertadas tendentes a interferir nos mercados
(art. 4º).

Também a nível contratual, as intervenções do Estado serão norteadas pela defesa do mercado e, por essa
via, dos consumidores – as regras sobre as CCG e a defesa do consumidor devem estar sempre presentes.

◊ Distribuição indireta integrada:

 Agência

O contrato de agência, hoje dotado de regime legal expresso nos diversos Direitos da UE, não é apenas um
contrato de distribuição entre tantos outros; ele funciona como uma matriz de distribuição, isto é, como uma
figura exemplar.

Muitas das regras próprias do contrato de agência operam como princípios gerais que enformam todos os
contratos de distribuição.

O contrato de agência, tomado como modelo reitor dos diversos contratos de distribuição, tem um papel
importante nas relações de comércio internacionais: o agente é, muitas vezes, um veículo privilegiado para
colocar as mercadorias para além das fronteiras; para além disso, a agência pode deparar-se com questões de
concorrência.

Por estes motivos, as instâncias europeias procuraram uma uniformização dos regimes nacionais da agência
– assim, surgiu a Diretriz 86/653/CEE do Conselho, de 18 de dezembro de 1986, relativa à coordenação do
Direito dos EM sobre os agentes comerciais.

» Regime:

O contrato de agência dispõe de regime legal específico – DL 178/86 de 3 de julho.

87
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

De acordo com a noção de agência contida no art. 1º/1 deste DL, temos como elementos fundamentais:

1- O dever de promover, por conta de outrem, a celebração de contratos;


2- De modo autónomo e estável;
3- Mediante retribuição.

A agência será, em rigor, uma prestação de serviço, mais particularmente uma modalidade de mandato. A
autonomia é importante, pois permite desde logo uma distinção do contrato de trabalho (PINTO MONTEIRO).
Contudo, não é total: à semelhança do mandatário, o agente deve acatar as instruções do principal,
instruções concretizadoras e não inovatórias (art. 7º/a)).

O contrato de agência é um contrato oneroso.

Apesar de o contrato de agência não parecer estar sujeito a qualquer forma, o art. 1º/1 atribui a cada parte o
direito de exigir da outra um documento assinado com o conteúdo do contrato. Visa-se, assim a proteção do
agente, que nunca poderá ser confrontado com a pura e simples nulidade do contrato por falta de forma.

Além disso, diversas cláusulas devem necessariamente assumir forma escrita:

▪ A que confira ao agente poderes de representação – art. 2º/1;


▪ A que lhe permita cobrar créditos – art. 3º/1;
▪ A que estabeleça uma proibição de concorrência pós-eficaz – art. 9º;
▪ A convenção del credere – art. 10º;
▪ A cessação por mútuo acordo – art. 25º;
▪ A declaração de resolução – art. 31º.

À semelhança do que sucede com o mandato, o contrato de agência pode ser celebrado com ou sem
representação – art. 2º/1. Havendo representação, presume-se que o agente está autorizado a cobrar os
créditos do principal – art. 3º/1 – o que, de outra maneira, exigiria autorização escrita – art. 3º/1.

Na agência sem representação, das duas uma:

1- Ou o agente contrata em nome próprio, devendo depois retransmitir para o principal a posição
adquirida;
2- Ou o contrato é celebrado, pelo cuidado do agente, diretamente entre o principal e o terceiro.

Quando o contrato nada diga e não haja in concreto instruções do principal, o agente sem representação pode
optar por qualquer uma das suas vias: é prerrogativa sua, enquanto prestador autónomo.

Num paralelo com o disposto para o mandato, o agente pode recorrer a auxiliares e a substitutos, contratando
designadamente subagentes (art. 5º).

» As posições das partes:

Obrigações do agente (art. 7º enuncia a título exemplificativo):

(a) Respeitar as instruções do principal que não ponham em causa a sua autonomia – o legislador
pretende que as instruções não tenham tal densidade que coloquem o agente na posição de
empregado do principal. O agente tem de ter uma margem de autonomia face ao principal, sob pena
de se tratar de um verdadeiro contrato de trabalho.
(b) Prestar as informações pedidas e as necessárias, esclarecendo ainda o principal sobre a situação do
mercado e as suas perspetivas.
(c) Prestar contas – o art. 7º/d) é pouco explícito: na dúvida, caberá recorrer ao art. 1161º/c) CC – as
contas deverão ser prestadas no fim do contrato ou sempre que o principal o exija.

88
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

(d) Dever de segredo, que pode mesmos ser pós-eficaz – art. 8º.
(e) Dever de não concorrência pós-eficaz, se for acordado por escrito – esse dever não pode exceder os
2 anos e circunscrever-se-á à zona ou círculo de clientes confiados ao agente – art. 9º.
(f) Dever de garantir, havendo acordo escrito, o cumprimento das obrigações de terceiro, desde que
respeitantes a contrato por si negociado – convenção del credere, a qual deve especificar o contrato
e individualizar as pessoas garantidas – art. 10º.
(g) Dever de avisar de imediato o principal de qualquer impossibilidade sua de cumprir o contrato.

Direitos do agente (art. 13º):

➢ Direito de receber do principal os elementos necessários ao exercício da sua atividade – concretização


do art. 1167º/a) CC.
➢ Direito de receber sem demora a informação da aceitação ou da recusa dos contratos concluídos sem
poderes.
➢ Direito de receber periodicamente a relação dos contratos celebrados e das comissões devidas, bem
como todas as informações necessárias para verificar os montantes das comissões.
➢ Direito a uma comissão (art. 16º e 13º/f)) pelos contratos que haja promovido e pelos contratos
concluídos com clientes por si angariados, desde que concluídos antes do termo do contrato, ficando
assim cobertas as situações de contratação direta entre o principal e o cliente angariado. Havendo
exclusivo, a comissão alarga-se a todos os contratos celebrados com o principal na área do contrato.

O direito à comissão mereceu uma atenção particular do legislador quanto à sua concretização, prevalecendo
uma orientação protetora do agente no art. 18º. Se o contrato providenciado pelo agente não for cumprido
por causa imputável ao principal, mantém-se o direito daquele à comissão – art. 19º.

➢ Direito de ser avisado de qualquer diminuição da atividade do principal, seja perante o convencionado,
seja perante o que seria de esperar (art. 14º).

Relativamente a remunerações, o art. 13º/e) enuncia o direito à retribuição. A retribuição é fixada por acordo
das partes ou, na falta deste e sucessivamente, pelos usos e pela equidade – art. 15º.

» Proteção de terceiros:

O contrato de agência visa celebrar negócios entre o principal e terceiros. Estes colocam-se, porém, na
situação de contratar não com o próprio dono do negócio, mas com um intermediário. Podem, por isso,
encontrar-se numa posição de certa vulnerabilidade.

Deste modo, a lei estabeleceu diversos mecanismos de proteção dos terceiros – arts. 21º a 23º DL 178/86 de
3 de julho:

 Art. 21º - o agente deve informar os interessados sobre os poderes que possui, designadamente
através de letreiros afixados nos seus locais de trabalho e em todos os documentos em que se
identifica como agente de outrem, deles devendo sempre constar se tem ou não poderes
representativos e se pode ou não efectuar a cobrança de créditos. O incumprimento desta regra torna-
o responsável por todos os danos que venha a ocasionar.
 Art. 22º - sem prejuízo do disposto no art. 23º, o negócio que o agente sem poderes de representação
celebre em nome da outra parte tem os efeitos previstos no art. 268.º/1 CC. Considera-se o negócio
ratificado se a outra parte, logo que tenha conhecimento da sua celebração e do conteúdo essencial

89
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

do mesmo, não manifestar ao terceiro de boa fé, no prazo de cinco dias a contar daquele
conhecimento, a sua oposição ao negócio.
 Art. 23º - representação aparente: o negócio celebrado por um agente sem poderes de representação
é eficaz perante o principal se tiverem existido razões ponderosas, objetivamente apreciadas, tendo
em conta as circunstâncias do caso que justifiquem a confiança do terceiro de boa fé na legitimidade
do agente, desde que o principal tenha igualmente contribuído para fundar a confiança do terceiro.

» Cessação da agência:

A cessação do contrato de agência pode ocorrer por via de (art. 25º):

(a) Acordo das partes ou distrate – o mútuo acordo das partes exige forma escrita.
(b) Caducidade – tem a ver com a sobrevivência de um facto extintivo, enumerados no art. 26º.
(c) Denúncia – é o ato unilateral, discricionário e recipiendo. Deve ser comunicada à outra parte com
determinada antecedência. Só é permitida nos contratos com prazo determinado (art. 28º).
(d) Resolução (art. 24º) – os casos em que pode operar a resolução constam do art. 30º. A resolução deve
ser comunicada por escrito, com indicação das razões e no prazo de um mês após o seu conhecimento
– art. 31º.

» A indemnização de clientela:

O contrato de agência pode, pelo seu funcionamento, acarretar clientes para o principal, clientes esses que
se manterão mesmo após o seu termo. O legislador entendeu, por isso, que cessando a agência, era justo
compensar o agente pelo enriquecimento assim proporcionado à outra parte – art. 33º. Caso essa
“contribuição” não fosse remunerada, o principal teria um enriquecimento sem causa (ML e MC).

Esta não é uma verdadeira indemnização, uma vez que essa pressupõe que exista danos e ilicitude. Será antes
uma compensação pelos clientes angariados.

Esta indemnização é cumulável com outras indemnizações a que haja direito e exige, cumulativamente:

→ Que o agente tenha angariado novos clientes para a outra parte ou tenha aumentado
substancialmente o volume de negócios com a clientela já existente;
→ Que o principal venha a beneficiar consideravelmente, após a cessação do contrato, da atividade
desenvolvida pelo agente;
→ Que o agente deixe de receber qualquer retribuição por contratos negociados ou concluídos, após a
cessação da agência, com os clientes angariados ou cujos negócios tenham sido aumentados.

A indemnização de clientela pode ser exigida pelos herdeiros (art. 33º/2), não sendo devida se o contrato tiver
cessado por razões imputáveis ao agente ou se este tiver cedido, por acordo com a outra parte, a sua posição
contratual a um terceiro (art. 33º/3). A intenção de exercer o direito à indemnização de clientela deve ser
comunicada ao principal no prazo de um ano.

O Prof. PINTO MONTEIRO afirma que não pode haver uma renúncia à indemnização, podendo contudo haver
uma convenção das partes sobre o montante dessa indemnização.

A indemnização de clientela deve ser calculada equitativamente (art. 34º), não podendo exceder uma
retribuição anual, calculada nos termos médios referidos no art. Se, porém, se provar um prejuízo superior a
essa cifra, acompanhado por um dano que transcenda igualmente a retribuição anual, fica aberta a hipótese
de inconstitucionalidade por violação da propriedade privada (art. 62º/1 CRP).

90
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

As regras relativas ao regime da cessação da agência têm aplicação imediata nos contratos que se
desenvolvam, exclusiva ou predominantemente em território nacional. Só pode ser aplicada lei diversa da
portuguesa se ela for mais vantajosa para o agente – art. 38º. Trata-se de uma norma imperativa.

 Concessão

À partida, este contrato opera em áreas que exigem investimentos significativos e que o produtor dos bens
ou serviços a distribuir não queira ou não possa ele próprio efetuar. Corresponde pois, pelo menos
tendencialmente, a esquemas destinados a distribuir produtos de elevado valor, com exemplo clássico nos
veículos automóveis.

É um contrato que não tem sede legal expressa, mas a prática leva a que se possa considerar o contrato de
concessão um tipo social.

Existem o concedente e o concessionário, que celebram um contrato pelo qual o concessionário compra
determinados bens ao concedente e os revende posteriormente ao público interessado.

Assim, na concessão, um produtor fixa com um distribuidor – o concessionário – um quadro de distribuição


que se norteia pelos seguintes parâmetros:

a) Um comerciante (o concessionário) insere-se na rede de distribuição de um produtor;


b) Adquire o produto em jogo, junto do produtor, e obriga-se a (re)vendê-lo, em seu próprio nome, na
área do contrato.

O concessionário aproveita portanto o mercado, a clientela e o prestígio da marca que vai comercializar.

A concessão é um contrato que estabelece relações duradouras, no âmbito das quais o concessionário opera
iure proprio. Pode ainda operar como promessa genérica de aquisição e de venda de produtos, com diversas
prestações de facere em anexo. Em qualquer caso, ele manifesta-se como um contrato-quadro, em cujo
âmbito vão, depois e na execução, surgir outros contratos entre as duas partes.

Com muita frequência, o contrato de concessão implica uma distribuição a nível internacional; nesse caso,
ele é ainda complementado com elementos internacionais privados.

NOTA: têm ocorrido diversas intervenções quanto à clivagem entre contratos de distribuição – entre os quais
a concessão – e o contrato de trabalho. A necessidade de distinção cifra-se no seguinte: nos contratos de
distribuição, é frequente o distribuidor ficar económica e socialmente subordinado ao produtor. A própria
subordinação jurídica, no sentido de o distribuidor, contratualmente, dever acatar as instruções do produtor,
pode fazer a sua aparição.

» Regime:

É um contrato que não consta diretamente da lei e que vai ser ajustado pelas partes, nomeadamente com
recurso às CCG. À partida, trata-se de um contrato que não está sujeito a qualquer forma solene: pode ser
meramente verbal ou pode resultar de condutas concludentes. Para além disso, o seu regime resultará, antes
de mais, da interpretação e da integração do texto que tenha sido subscrito pelas partes. No que as partes
tenham deixado em aberto, haverá que recorrer à analogia: neste domínio, normalmente recorrer-se-á ao
regime da agência.

91
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Contudo, há algumas cláusulas normalmente estipuladas pelas partes:

1- Repartição geográfica – cada concessionária vai comercializar os bens comprados ao concedente


apenas numa circunscrição geográfica.
2- O concessionário, quando estejam em causa bens de prestígio, tem de preencher determinados
requisitos para que se possa considerar concessionário.

Ainda quanto à aplicação do regime da agência naquilo que não esteja estabelecido pelas partes, é de notar
que as regras relativas à cessação do contrato, nomeadamente a norma atinente à indemnização de clientela
(art. 33º DL 178/86) terá segura aplicação ao contrato de concessão. Contudo, a doutrina tem vindo a exprimir
cautela quanto à transposição automática do regime de agência, na medida em que a analogia teria de ser
verificada. Assim, haverá que, caso a caso, ponderar os requisitos da lei e a analogia.

Como se referiu, nos contratos de concessão, muitas vezes os grandes produtores ou fabricantes recorrem a
CCG para uniformizar os diversos contratos de distribuição que celebrem. As CCG daí derivadas sujeitam-se às
regras jurídicas gerais e, em particular, ao regime específico que para elas exista. Estas têm ressalvas que têm
em vista evitar situações prejudiciais ao comércio pelas concessionárias.

É possível apontar algumas especificidades no tocante ao regime e ao funcionamento prático da concessão.


Quanto ao seu conteúdo:

o A concessão postula uma relação de confiança – assim, não se justifica a aplicação do prazo
admonitório do art. 808º/1 2ª parte CC;
o O regime da exclusividade não é necessário, devendo, para existir, ser acordado. A exclusividade não
é, ainda e só por si, contrária às regras da concorrência, nem é suficiente para provar a concessão;
o A concessão pode envolver a formação profissional do pessoal do concessionário.

A concessão, nos seus elementos úteis, deve ser provada por quem dela se queira prevalecer. Quanto à sua
duração:

 Não havendo prazo, ela só pode ser denunciada com um pré-aviso, sob pena de dar azo a um dever
de indemnizar;
 Havendo culpa do concedente na cessação da concessão, este pode ser condenado a retomar os
stocks antes vendidos ao concessionário. Não há, todavia, nenhum fundamento jurídico para, em
qualquer caso, limitar as indemnizações ao dano negativo: pelo Direito português, todos os danos
devem ser sempre indemnizados.
 A denúncia ilegal é eficaz, mas obriga a indemnizar.

 Contrato de franquia (Franchising)

Nestes contratos, o franqueador concede ao franqueado, dentro de certa área, cumulativamente ou não:

(a) A utilização de marcas, nomes ou insígnias comerciais;


(b) A utilização de patentes, técnicas empresariais ou processos e fabrico;
(c) Assistência, acompanhamento e determinados serviços;
(d) Mercadorias e outros bens para distribuição.

92
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Atualmente, o franchising é um esquema próprio para a expansão internacional de empreendimentos. O seu


êxito é reconduzido a três fatores: às possibilidades abertas pela publicidade, à mobilidade crescente dos
consumidores e ao aumento dos seus rendimentos.

Hoje, a franquia implica elementos próprios da agência e da concessão: angariar clientes e distribuir bens e
serviços, funcionando numa base hierarquizada.

O contrato de franquia é atípico, totalmente dependente da autonomia privada. A doutrina tem vindo a
prooceder a certas classificações, de acordo com critérios variados, nomeadamente:

a) Contratos de franquia de serviços – o franqueado oferece um serviço sob a insígnia, o nome comercial
ou mesmo a marca do franqueador, conformando-se com as diretrizes deste último.
b) Contratos de franquia de produção – o próprio franqueado fabrica, segundo as indicações do
franqueador, produtos que ele vende sob a marca deste. Ex: coca cola – a casa mãe autoriza, mediante
contratos de franquia, que fábricas que estão em todo o mundo produzam e comercializem esse
produto.
c) Contratos de franquia de comercialização – o franqueado limita-se a vender certos produtos num
armazém, que usa a insígnia do franqueador. Ex: Mc. Donalds.

» Posições das partes

A franquia vive dominada pela autonomia privada e, por isso, apenas pela interpretação de cada contrato
considerado se poderá verificar qual o seu alcance e quais os deveres que dele resultam para as partes. Na
base da habitualidade, contudo, é possível apontar os deveres das partes que, normalmente, tendem a surgir.

Obrigações do franqueador:

a) Facultar ao franqueado o uso de uma marca, insígnia ou designação comercial na comercialização de


serviços ou produtos por este adquiridos ou fabricados;
b) Auxiliar o franqueado no lançamento e na manutenção de certa atividade empresarial, munindo-o de
conhecimentos técnicos ou produtos necessários;
c) Facultar ao franqueado técnicas ou processos produtivos de que o franqueador teria o exclusivo;
d) Fornecer os bens ou serviços que, porventura, o franqueado deva distribuir.

Direitos do franqueador:

i) Uma certa retribuição, calculada muitas vezes como percentagem do produto de vendas (royalties)
ou correspondente ao produto de certas aquisições que o franqueado se poderá obrigar a fazer-lhe;
ii) Poderes de aprovação ou fiscalização quanto às especificações e qualidades do produto vendido sob
as suas marcas, insígnias ou designações comerciais;
iii) Poderes no domínio da cessão da posição contratual e da renovação do contrato;
iv) Direito de receber a contrapartida dos bens ou serviços que forneça.

Obrigações do franqueado:

a) Pagamento de certas retribuições ou aquisição, junto do franqueador, de certos produtos;


b) Lançamento e desenvolvimento da sua atividade dentro de certa circunscrição;
c) Manutenção das qualidades dos serviços ou dos produtos franqueados;
d) Sigilo no tocante a conhecimentos recebidos pelo franqueador;
e) Comparticipação em despesas de publicidade;

93
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

f) Certas cláusulas de não-concorrência.

Direitos do franqueado:

i) Uso de marcas, insígnias ou nomes comerciais do franqueador;


ii) Utilização de conhecimentos, técnicas empresariais ou modos de fabrico de pertença do franqueador;
iii) Auxílio do franqueador no lançamento, manutenção e desenvolvimento da sua atividade, no que toca
a indicações;
iv) Fornecimentos acordados.

» Cessação

O contrato de franquia dá lugar a uma situação duradoura. Na sua cessação, há que observar os quadros
competentes, com relevo para a resolução (unilateral e justificada) e a denúncia (unilateral e discricionária).
O modelo de cessação da agência é aplicável, com as devidas adaptações. A cessação não pode ser retroativa.

Verifica-se que o franqueado fica numa patente subordinação económica: vai ter de fazer investimentos
significativos, em nome de uma situação que o franqueador poderá fazer cessar, se o contrato o permitir. Põe-
se, deste modo, o problema da tutela do franqueado.

À partida, a doutrina entende que, embora economicamente subordinado, o franqueado é juridicamente


autónomo, e, por isso, não se justificaria o recurso a uma tutela de tipo laboral. Impor-se-ia, contudo, alguma
proteção: a do contrato de agência. Contudo, muitas vezes, o franqueador trabalha em condições
verdadeiramente precárias e, nestes casos, o Prof. MENEZES CORDEIRO defende que se poderá aplicar um
regime de proteção paralelo ao conferido aos trabalhadores, uma vez que o regime da proteção dos
trabalhadores não se considera um regime especial.

A franquia é, muitas vezes, celebrada com recurso a CCG. A LCCG é, assim, um instrumento jurídico privilegiado
para facultar ao Tribunal o controlo das cláusulas injustas.

» Problema da concorrência

O contrato de franquia deve ser cuidadosamente conjugado com as regras da concorrência, designadamente
as derivadas do Tratado de Roma e introduzidas depois nas diversas ordens internas dos EM da UE.

» Natureza:

A natureza mista do contrato de franquia permite fazer apelo aos mais diversos contratos; todavia, deverá
prevalecer o centro de gravidade dado, pelas partes, ao negócio. Estão sempre envolvidos deveres de
lealdade, que se manifestam por uma defesa de espírito de grupo.

No período pré-contratual, é importante que o candidato a franqueado seja claramente informado das
implicações da sua adesão – a culpa in contrahendo tem aqui um papel significativo. Também os vetores
relativos à tutela dos consumidores devem estar presentes.

As regras relativas à indemnização de clientela, quando cesse o contrato, são em princípio aplicáveis, na base
da analogia com a agência e na medida em que ela exista. Contudo, haverá casos em que é duvidoso se
efetivamente o franqueado angariou clientela, nomeadamente quando se trate de marcas com muito
prestígio.

94
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Direito Bancário

O direito bancário é o direito das instituições de crédito. Hoje em dia pode considerar-se como sendo o direito
que trata do dinheiro: abrange o dinheiro, a produção de dinheiro e todas as operações que envolvem
dinheiro.

No âmbito do direito bancário, distinguem-se duas áreas:

1. Direito bancário institucional – disciplina jurídica do direito financeiro e das instituições


especializadas no tratamento do dinheiro (RGIC). O direito bancário institucional é também um direito
da supervisão destas instituições:
o Banco de Portugal
o Instituições de crédito
o Sociedades financeiras

Por lei, as instituições de crédito são sociedades anónimas. Sendo bancos, aplica-se o regime do CSC.
Assim, conclui-se que o direito bancário institucional tem elementos públicos, mas é também direito
privado.

1. Direito bancário material – atos que são praticados por essas instituições de crédito com os
particulares. É substancialmente um direito dos contratos bancários, mas não só: a celebração dos
contratos implica negociações, e assim, o direito bancário material abrange também a fase pré-
contratual (deveres pré-contratuais) e a responsabilidade bancária. O direito bancário material é um
direito privado.

Há determinadas leis em que tipifica o regime jurídico de certos contratos. Contudo, há determinados
contratos que não têm o seu regime jurídico espelhado em diplomas legais. Nestes casos, ter-se-á de recorrer
às CCG.

Autonomia: O Prof. MC defende que o direito bancário tem, pelo menos, alguma autonomia. Mas temos de
ver os seus princípios gerais, aos quais se reconhece alguma consistência:

a) Princípio da derivação conceitual – o direito bancário teve de engendrar alguns conceitos novos, mas
não tinha palavras para eles. Como não há palavras, recorre-se ao direito civil para se construir
conceitos bancários, o que muitas vezes pode criar dificuldades. Por exemplo – depósito bancário:
pode pensar-se que o depósito bancário é o contrato de depósito presente no CC, mas não é; aliás, o
depósito bancário nem constitui um contrato, tendo regras diferentes daquelas previstas no CC; outro
exemplo é o do penhor, que está previsto no CC, existindo o penhor de conta bancária, que é
diferente: este não verte sobre uma coisa corpórea, nem existe nenhum apossamento como existe no
penhor civil.
b) Princípio da simplicidade – na sua base, está a ideia de que existe uma contraposição entre solenidade
e celeridade. Há, no Direito bancário, uma redução da exigência de forma e formalidades ao mínimo
exigível para a consubstanciação e prova dos atos. Este princípio concretiza-se em:
1) Consensualismo, que surge associado a uma normalização dos atos bancários; porém, a prática
bancária exige uma simplificação através do uso de CCG.
2) Uso intensivo da informática, uma vez que os bancos estão obrigados a um sem número de
operações, que se tornam mais rápidas com o uso da informática.
3) Unilateralidade dos atos – é preciso distinguir entre a unilateralidade real (aqui atende-se à
restrição do art. 457º e 458º CC) e a aparente (há um consenso das partes mas só se exige uma

95
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

formalização desse consenso por uma das partes). Neste caso, tratar-se-á de uma unilateralidade
aparente, uma vez que existe um consenso entre a parte e o Banco, mas só a parte assina.
c) Princípio da rapidez – tem diferentes manifestações:
1) Processo de descentralização do processo decisório – implica uma normalização substantiva dos
atos, assente nas CCG.
2) Desmaterialização – através de suportes informáticos.
d) Princípio da ponderação bancária – traduz-se num modo de realizar o direito próprio do comércio
bancário. Tem três manifestações:
1) Fórmula de contratar – o banqueiro não faz considerações pessoais, mas se tem ou não condições
para pagar. Há uma prevalência das condições materiais, assentes nos fluxos patrimoniais da
pessoa e, acessoriamente, qual o património da pessoa que poderá responder, em sede de ação
executiva, se se chegar a tal.
2) Regras próprias de interpretação dos atos bancários – o Prof. MC entende que as regras do 236º
CC não são adequadas ao comércio bancário, uma vez que têm uma componente subjetivista, o
que pode acarretar uma insegurança jurídica incompatível com o comércio bancário. Propugna
então por uma visão objetivista: regra do primeiro entendimento – a declaração negocial vale
como resultado ? ou como o primeiro entendimento que o operador venha a retirar.
3) Garantias do cumprimento – estão associadas a uma eficácia sancionatória. Há uma assimetria
informativa significativa: a pessoa tem muito mais informações sobre a sua própria atividade do
que o Banco. Assim, para se proteger, o Banco faz-se valer de garantias sobre o património do
devedor, caso este não venha a cumprir. Existe uma prevalência das garantias pessoais sobre as
reais, porque as primeiras alargam o leque de devedores, sobre os quais o Banco pode exercer
pressão extrajudicial para o pagamento.

☼ Relação Bancária Geral:

Não podemos compreender os diversos atos bancários se não compreendermos a relação complexa que se
estabelece entre o Banco e o seu cliente. Este tende a ser um relacionamento duradouro, no qual são
enquadrados diferentes atos bancários, como, por exemplo, a abertura de conta, os depósitos, etc.

 Abertura de Conta

O ato nuclear que determina o início desta relação bancária complexa é o contrato de abertura de conta –
determina deveres recíprocos das partes para os atos que se sucedem, ou seja, fixa as margens fundamentais
da relação bancária. É, portanto, o tronco de todos os restantes atos bancários. Não existe, contudo, um
regime jurídico específico para este contrato – é um tipo social, assente em CCG.

Existe o Aviso nº 2/2013 do BP, que é dirigido às instituições bancárias e visa prevenir o branqueamento de
capitais.

Modalidades de abertura de conta:

➢ Contas individuais – é aberta em nome de uma pessoa e só essa pessoa pode aceder à conta.
➢ Contas coletivas – conta aberta por várias pessoas. Pode ser:
a) Solidária – qualquer dos titulares pode movimentar sozinha os fundos.
b) Conjunta – só pode ser movimentada por todos os titulares em conjunto.
c) Mista – alguns titulares podem movimentar sozinhos, mas outros têm de movimentar em conjunto.

96
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Do contrato de abertura de conta resultam elementos essenciais:

1. Depósito (art. 1185º CC) – ato típico que se sucede à abertura de conta. O depositário está obrigado
a conservar a coisa para depois a devolver.

O depósito bancário aproxima-se da figura do depósito irregular (arts. 1205º e 1206º CC) – relativamente a
bens fungíveis, tem-se admitido que o depositário possa dispor da coisa fungível depositada, ficando obrigado
a entregar uma coisa do mesmo género e quantidade ao depositante. Este não é, contudo, um verdadeiro
depósito, uma vez que a propriedade sobre o bem transmite-se para o depositário. Há aqui elementos de
mútuo e de depósito: o Prof. MC sustenta que se justifica tratar o contrato de depósito irregular como um
contrato próprio, ao qual se aplicam as regras próprias fixadas nas CCG correspondentes, que têm os diversos
elementos de mútuo e de depósito.

O depósito bancário distingue-se do depósito civil (arts. 1185º e ss.), pois este consiste na entrega de coisa
móvel para que venha a ser posteriormente restituída, ou seja, a propriedade sobre a coisa não se transmite
para o depositário.

2. Conta corrente – contrato nos termos do qual se registam a débito ou crédito diferentes atos.

No domínio comercial (arts. 344º e ss. CCom):

Vem intrinsecamente ligada à compensação como forma de extinção das obrigações ao longo do tempo. Tem
uma função de simplificação e de segurança, associada à compensação, e uma função de crédito (é possível
identificar o saldo: ou deve algo, ou tem dinheiro a haver; nesta última situação, significa que está a financiar
a atividade da contraparte). A conta corrente consubstancia então um acordo de compensação e um acordo
de reconhecimento de saldo.

É o mecanismo base da conta corrente. Só o saldo final resultante da liquidação é exigível pelo Banco.

No domínio bancário:

Só diz respeito a movimentos em dinheiro. É uma realidade que se estabelece no seio de uma relação mais
complexa. Postula uma emissão contínua de saldos, nos quais tipicamente o banco não surge como credor,
exceto nos casos de descoberto em conta. Caso o saldo esteja disponível, o banqueiro tem o dever de
assegurar o dever de caixa (disponibilização do dinheiro) ao cliente.

Há que ter em atenção as situações de descoberto em conta – situação em que o cliente fica devedor do
Banco e não seu credor.

3. Giro bancário – traduz as operações e movimentações a que o Banco se obriga por indicação do
cliente. Pode implicar transferências bancárias simples, internacionais, cobrança por conta bancária,
etc., ou seja, tem a ver com todo o tipo de movimentações a que o Banco se obriga perante o cliente.
Assenta também na compensação.

Há ainda cláusulas que, normalmente, se estabelecem:

(a) Convenção de cheque,


(b) Convenção relativa à emissão de cartãos bancários e
(c) concessão de crédito de descoberto em conta (habilita a movimentar mais dinheiro do que aquele a
que tem direito – ter saldo negativo).

97
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Há regras injuntivas que são dirigidas à prevenção de branqueamento de capitais e de prevenção de


financiamento do terrorismo:

(1) Indicação do titular da conta


(2) Indicação da proveniência dos depósitos
(3) Indicação dos movimentos.
(4) Etc.

Elementos do contrato de abertura de conta:

» Preceitos legais injuntivos – para a prevenção de branqueamento de capitais e prevenção de


financiamento do terrorismo.
» Cláusulas contratuais gerais.
» Disposições legais supletivas – neste âmbito, é importante ter em conta composição típica da abertura
de conta: elementos da conta corrente (arts. 344º e ss. CCom), elementos do giro bancário (317/2009
de 30 de outubro), elementos do depósito (1185º e ss. CC), convenção de cheque e cartão bancário.

→ Convenção de cheque:

O cheque é um documento do qual consta uma ordem do cliente ao banqueiro de efetuar um pagamento a
favor de um terceiro. Nessa ordem, o banqueiro não sabe nem tem de saber a obrigação que subjaz a esse
pagamento.

O cliente é o sacador, o banqueiro é o sacado e o beneficiário da ordem é o terceiro beneficiário ou


simplesmente beneficiário.

A lei uniforme sobre os cheques resultou da Convenção de Genebra de 19 de março de 1931 e foi depois
diferentemente interpretada pelas diversas jurisprudências dos diversos países. Em Portugal, foi aprovado o
DL 23721 de 1934.

No cheque surgem dois elementos:

1. Ordem de pagamento dirigida ao banqueiro – o sacador tem o direito a dar esta ordem, por efeito da
convenção de ordem de cheque. Esta convenção abrange as partes e adstringe a que estas cumpram
deveres acessórios:

- O Banco deve agir com diligência – não deve demorar demasiado tempo a creditar, deve confirmar a
assinatura do cliente e, na dúvida, deve recusar o cheque que lhe surja alguma dúvida.

- Quem emite o cheque deve certificar-se de que tem dinheiro na conta.

2. Obrigação cartolar do sacador caso o banqueiro recuse o pagamento – há uma obrigação que se traduz
no facto de o beneficiário poder exigir ao sacador o valor caso o banco o recuse por não ter provisão.
O cheque acaba por funcionar como um título de crédito, havendo três qualidades associadas a este:
a) Literalidade – a letra do título é decisiva para a determinação do conteúdo, dos limites e das
modalidades do direito.
b) Autonomia – o seu adquirente é tido como o titular do direito
c) Abstração – é independente da relação jurídica que esteve na sua origem.

98
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Regime jurídico:

O DL 46491 de 28 de dezembro fixa o regime do cheque.

Nos termos do art. 1º, existe um dever de rescisão de cheque quando, por qualquer motivo, alguém emita
cheques e com isso ponha em causa o espírito de segurança que deve presidir à sua circulação.

Há, assim, uma tutela da confiança que tem de ser atendida aquando da emissão dos cheques. Daí decorre
também a obrigatoriedade de pagamento pelo sacado, ainda que sem saldo, quando a obrigação não exceda
150€ - art. 8º.

→ Cartão Bancário:

Os cartões bancários são o elemento característico da prática bancária, tendo vindo a substituir os cheques.

Os Bancos mantêm a propriedade dos cartões bancários, sendo que o cliente fica como mero dententor, tendo
um dever de guarda do mesmo.

O regime tem assentado numa organização simples e descentralizada.

Boa parte do comércio retalhista realiza-se hoje através de cartões bancários. Já alguns comerciantes só
permitem a utilização de cartões bancários a partir de determinado valor.

Hoje em dia, as pessoas preferem pagar tudo com cartão. Problema: o sigilo bancário hoje é quase inexistente,
pelo que é fácil ao Estado controlar os movimentos bancários, ao contrário do que sucede se o pagamento for
efetuado em dinheiro.

Modalidades:

a) Operação a contado – ocorre a multibanco ou a débito. O dinheiro é automaticamente descontado


da conta. Em postos de leitura rápida (ex: portagens) já nem é preciso a digitalização de pin.

Cartões de levantamento automático (cartões de débito) – relaciona apenas o cliente e o terceiro. O portador
insere o cartão na ranhura, digita-se o pin e o dinheiro é automaticamente descontado da conta.

b) Operação a crédito – o visa é uma das modalidades mais conhecidas. A autenticação é feita
normalmente por assinaturas. A despesa fica consignada em seu nome, mas há uma dilação temporal
entre o adiantamento do valor pelo banco e a cobrança desse valor ao cliente.

Cartões de crédito – relaciona o cliente, o banqueiro e terceiro.

Normas aplicáveis aos cartões bancários:

Derivam essencialmente de CCG, assinadas quando o Banco entrega o cartão.

A emissão de cartões de crédito está restringida às instituições de crédito e às instituições financeiras para
isso autorizadas.

 Mútuo Bancário:

O mútuo civil (art. 1142º CC) é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou coisa
fungível, ficando a segunda obrigada a restituir coisa do mesmo género, qualidade e quantidade. Só produz
efeitos com a entrega da coisa mutuada. O Prof. MC admite a existência de mútuos meramente consensuais.

99
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Contudo, os mútuos serão consensuais ou reais consoante o valor (art. 1143º CC). Entregue a coisa, o
mutuário fica proprietário da coisa mutuada (art. 1144º CC), ficando adstrito a pagar a retribuição (juros) se
for esse o caso e a restituir a coisa do mesmo género, qualidade e quantidade. O mutuante pode resolver o
contrato, se o mutuário não pagar os juros no seu vencimento (art. 1150º CC).

O empréstimo mercantil está presente nos arts. 394º, 395º e 396º CCom. Este empréstimo surge quando a
coisa cedida seja destinada a qualquer ato mercantil (art. 394º), ou seja, é um ato comercial por via da teoria
do acessório.

O contrato é sempre retribuído (art. 395º) e, quando celebrado por comerciantes, admite qualquer tipo de
prova. MC entende que esta retribuição “automática” não faz sentido, já que mesmo entre comerciantes
podem ser celebrados mútuos gratuitos, ou seja, a presunção de onerosidade também não faz sentido. Já a
liberdade de prova (art. 396º) deve ser entendida como liberdade de forma (art. 219º CC), pois não faria
sentido sujeitar o empréstimo mercantil às pesadas formalidades do mútuo civil.

Quanto aos juros, o CC empregou-os como uma espécie de obrigações, nos arts. 559º a 561º CC. Esta obrigação
de juros pressupõe uma obrigação de capital que tem de estar na sua base. Quanto aos juros, existe uma
proibição do anatocismo (art. 560º CC), ou seja, de fazer vencer juros sobre juros. Só se permite ou por
convenção entre as partes posterior ao vencimento ou mediante uma notificação judicial feita ao devedor.

O mútuo bancário distingue-se então dos outros por ser celebrado por um banqueiro na qualidade de
mutuante no exercício da sua profissão.

O mútuo bancário tem uma forma “aligeirada” previsto no art. único do DL 32765 de 29 de abril de 1943, que
dispõe que os contratos de mútuo ou usura, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos
bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda mesmo que a outra parte contratante
não seja comerciante.

O DL 58/3013 de 8 de maio vem proceder à qualificação dos créditos bancários, distinguindo o prazo e o
regime dos juros. O art. 4º deste DL estabelece que os créditos concedidos pelas instituições são classificados
como de curto, médio e longo prazo, qualquer que seja a sua natureza e forma de titulação.

 Contrato Especiais de Crédito:

1. Abertura de Crédito

Permite que o cliente vá fazendo diferentes utilizações de diferentes montantes dentro de um “bolo”,
pagando juros sobre os diferentes montantes que vai utilizando da linha de crédito. Distingue-se assim do
mútuo bancário, uma vez que neste a totalidade do montante é imediatamente disponibilizada ao cliente,
enquanto na linha de crédito o banco vai disponibilizando o montante total em pequenas tranches.

O art. 362º CCom refere a abertura de crédito como uma operação de banco: contrato consensual, sem
necessidade de qualquer entrega monetária, legalmente atípico, inominado e correspondente a um tipo
social.

Quanto à forma, aplicam-se as regras do mútuo bancário: forma escrita. Poderá, todavia, ser requerida
escritura pública se a abertura de crédito incluir negócios que o exijam [vg garantia hipotecária].

Existem duas modalidades:

» Simples: crédito disponibilizado pode ser usado uma vez.

100
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

» Em conta-corrente: o cliente pode sacar diversas vezes sobre o crédito, solvendo as parcelas de que
não necessite.

A cessão de uma abertura de crédito, quando não regulamentada pelas partes, será regulada pelas regras da
conta corrente em geral, do mandato (quanto à disponibilidade) e do mútuo (quanto ao saldo).

Havendo prazo, haverá que chamar à colação as regras sobre a perda do benefício do prazo. O regime do
mandato será sempre o regime subsidiário.

2. Contrato de Crédito a Consumidores

Na origem do fenómeno da popularização da banca, permite o acesso das camadas da população


economicamente mais débeis a múltiplos bens de equipamento e de consumo. As consequências podem
redundar na sobre-exploração dessas camadas, levadas a assumir débitos superiores às suas possibilidades de
pagamento. Diversas normas pretendem moderar este mecanismo: informação da taxa anual efectiva global
[TAEG] e “período de reflexão”, por exemplo.

O regime deste contrato está estabelecido no DL 133/2009 de 2 de junho. Alguns aspetos relevantes:

o Art. 5º regula a publicidade – os consumidores têm de ser protegidos, dado que são bombardeados a
toda a hora com sugestões de consumo, e de alguma forma o crédito a consumidor vem potenciar
este consumo compulsivo. A TAEG é a fórmula que compreende tudo o que são custos para os
consumidores (não só os juros, mas todos os encargos e comissões).
o Art. 6º regras pré-contratuais.
o Art. 7º estabelece um dever de assistência ao consumidor. É uma modelação das informações gerais
às concretas condições daquele cliente. Visam individualizar a informação que é prestada em termos
gerais ao cliente.
o Art. 10º estabelece um dever de avaliação da solvabilidade do cliente. Para isso tem de consultar as
informações dadas pelo cliente e as bases de dados sobre a disponibilização de créditos existentes.
o Art. 13º - desvio à regra geral. A preterição de deveres de informação não acarreta a nulidade do
negócio jurídico.
o Art. 14º informações sobre alterações da taxa nominal.
o Art. 17º paralelo com a lei de defesa do consumidor – estabelece um prazo de reflexão que permite
ao consumidor revogar unilateralmente o contrato.
o Art. 20º – regras relativas ao não cumprimento pelo consumidor.
o Art. 24º - cálculo do TAEG.

 Locação Financeira (Contrato de Leasing)

O contrato de leasing ou locação financeira é o contrato oneroso, temporário e originador de relações


duradouras, pelo qual uma entidade (locador financeiro, os bancos) concede a outra (locatário financeiro) o
gozo temporário de uma coisa corpórea adquirida pelo próprio locador a terceiro (fornecedor, por contrato
de compra e venda), por indicação do locatário.

O regime jurídico deste contrato está fixado no DL 149/95, de 24 de junho, alterado pelo DL 30/2008 de 25 de
fevereiro.

O locatário pode adquirir o bem por um valor residual no final do contrato, transmitindo-se a propriedade,
sendo nula a cláusula contratual que o obrigue a adquirir esse bem (opção de compra, tão-só). Até essa

101
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

aquisição, o locador financeiro dispõe da titularidade do bem (garantia por excelência), permitindo-lhe,
através da celebração deste contrato, diluir os custos das aquisições e obter vantagens fiscais. Para efeitos de
defesa da posse é este (locador) o possuidor da coisa, ainda que exerça essa posse através do locatário
financeiro.

Mas imagine-se: o cliente não paga e o banco vai buscar o bem. Mas o banco muitas vezes não vai dar uso
imediato ao bem: fica com um bem ao qual não vai dar uso imediato; tem de o vender em segunda mão, por
um preço simbólico. Por isso, o banco tendencialmente tende a multiplicar as garantias que exige ao locatário
para garantir o pagamento.

O risco, esse, é por conta do locatário, já que beneficia da fruição do bem (art. 15º DL 149/95, ubi commoda,
ibi incommoda).

O art. 21º deste DL permite ao banco, através de uma providência cautelar, reaver o bem que foi
disponibilizado ao locatário, no caso de, aquando a cessação do contrato, o locatário não proceder à
restituição do bem.

Jurisprudência:

(a) O locador deve assegurar a entrega da coisa.


(b) O locador é o possuidor da coisa, exercendo a posse através do locatário.
(c) Se há resolução, à partida, o banco não pode reclamar as rendas vincendas. Contudo, se apenas puder
reclamar as rendas vencidas, o banco terá prejuízo; assim, o tribunal entendeu que há uma
percentagem de rendas vincendas (cerca de 20%) que pode ainda ser reclamada para cobrir prejuízos
que os bancos tenham.

Os efeitos do incumprimento do contrato dependem da opção de resolução ou manutenção do mesmo:

a) Resolução: prazo suplementar que pode ser precludido pelo locatário com o pagamento do devido;
volvido esse prazo, a mora no cumprimento transforma-se em incumprimento culposo definitivo [art.
801º-2 CC]; permite colocar o locador na posição em que estaria não fosse a violação [art. 798º e 562º
CC]:

o Restituição da coisa: providência cautelar adaptada – presunção inilidível de periculum in mora [efeito
útil].

o Rendas vencidas e juros de mora, à taxa legal.

o Percentagem das rendas vincendas e percentagem do preço residual (cláusula penal, jurisprudência:
20% do valor residual e juros vencidos desde a resolução até ao pagamento definitivo); a mera restituição
não é ressarcitória (não está a ser indemnizado – bem usado inútil para uma instituição financeira), e, no
outro extremo, admitir o pagamento das rendas vincendas em simultâneo seria abusivo.

b) Manutenção:

o Sem restituição da coisa.

o Ação de condenação de cumprimento ou ação executiva, com título executivo.

o Rendas vencidas e juros de mora, à taxa legal.

o Rendas vincendas, tratando-se de contrato de execução duradoura (sanção preventiva).

102
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Figuras próximas da locação financeira:

(a) Ald – aluguer de longa duração. No leasing há a possibilidade de adquirir o bem no final do contrato.
Já neste contrato, há uma obrigação de aquisição desse bem no final do contrato.
(b) Renting – difere porque tem contratos de prestação de serviços associados.

 Cessão Financeira (Contrato de Factoring)

Contrato pelo qual uma entidade (cliente ou aderente) cede a outra (cessionário financeiro ou factor) os seus
créditos sobre terceiros (devedor ou debitor) mediante determinada remuneração.

É uma forma de financiamento, a curto prazo, do aderente ou cedente financeiro, conferindo maior liquidez
à empresa, incrementando a sua rentabilidade (MC – se tem maior liquidez, significa que pode pagar logo aos
seus fornecedores, sendo que isso pressiona os fornecedores: eu posso pagar já, mas quero um desconto de
5%; FG não concorda que incremente a rentabilidade – leva é a que perca a rentabilidade, pois não irá ganhar
a totalidade do valor que deveria receber) impulsionando a sua expansão, limitando o endividamento (MC –
sendo equivalente ao crédito bancário), favorecendo o balanço e aumentando o fundo de maneio.

Como desvantagem pode ter-se a má imagem que acaba por passar ao parceiro: está tão mal, que teve de
ceder o seu crédito para que o banco cobrasse uma dívida.

Implica a transferência do risco para o factor, diminuindo os riscos do aderente. A cessão financeira está
crescentemente implicada na prestação de serviços, com traços do regime desta. É celebrada em regime de
exclusivo, pelo que o aderente só pode ter um único factor: adstrito a não celebrar novos contratos do tipo e
a oferecer todos os seus créditos ao factor (princípio da globalidade).

O DL 171/95 de 18 de julho, relativo às sociedades de cessão financeira, dispõe que este contrato deve ser
celebrado por escrito, acompanhado pelas correspondentes faturas ou suporte documental equivalente (art.
7º DL 171/95 – parece ter acolhido a estrutura dualista do factoring).

Apresenta-se como um contrato-quadro, organizatório, que conduz a uma colaboração duradoura entre as
partes: contrato oneroso, consensual e de conteúdo atípico misto (promessa de venda de créditos futuros,
assunção de risco e prestação de serviços, art. 1156º CC – aplica-se o regime do mandato, com atribuição de
uma comissão ad valorem, cobrada em função do valor dos créditos). MENEZES CORDEIRO sugere a aplicação
analógica do art. 28º DL 178/86, relativamente à denúncia.

Cumpre reter aqui o regime da cessão (transmissibilidade das obrigações): art. 577º CC, independentemente
de consentimento do devedor, exigindo-se notificação (art. 583º CC). É um modo de transmissão de
obrigações, nomeadamente quanto à transmissão de um crédito mediante um contrato entre o antigo credor
e o novo credor (contrato-base e contrato fonte). No CC não releva o compromisso e a profissionalização que
subjaz à cessão financeira.

GARANTIAS

» Às garantias aplicam-se os princípios gerais das obrigações:

1ª Tutela do devedor

2º Irrenunciabilidade antecipada aos direitos (819º CC)

3º Princípio da causalidade (não há obrigação sem a sua fonte)

103
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

4º Ressocializar as obrigações

» Princípios específicos – no Direito bancário:

1. Funcionalidade e dependência:

garantia visa assegurar o cumprimento das obrigações.

As garantias em geral conseguimos captar pela função e não pela estrutura.

As garantias podem ter muitas naturezas e visam tutelar o crédito, através de meios compulsivos.

A dependência está ligada à funcionalidade, porque as garantias não existem por si.

2. Acessoriedade:

Não pode ser apresentado como uma dogmentação da dependência.

Tipos de acessoriedade:

a) Forte – tende a ser equiparada à fiança. Na fiança há uma aderência muito particular, não é valida se
não for válida a principal. É obrigacional e pessoal.
b) Média – direitos reais de garantia.
c) Fraca – garantias autónomas. Se a garantia for autónoma, o devedor pode dirigir-se diretamente ao
garante, daí que o MC defenda que estas garantias só possam ser dadas por bancos e não por
particulares. Isto ainda é uma garantia? Na prática funciona com a intervenção dos bancos. Estas
garantias nunca são totalmente autónomas.

3. Subsidiariedade:

Funciona em caso de não funcionar a primeira. No caso da fiança responde primeiro o património do
devedor.

4 tipos de subsidiariedade:

➢ Forte e direta
➢ Forte e invertida
➢ Média
➢ Fraca
4. Tutela do garante:

Certos garantes são considerados especialmente frágeis.

A proteção do garante surge sobre certas pessoas - no caso das sociedades (art. 6º CSC) e dos menos, estes
são protegidos (crianças pelo MP).

104
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

5. Ética dos negócios – bons costumes:

Regras deontológicas – garantes que não tem património nem rendimentos mínimos. O problema é que os
bancos começaram a exigir garantias a pessoas que não tinham dinheiro.

Critérios:

1. Económicos;

2. Falta de interesse do garante;

3. Relação de proximidade;

Exigência de garantias supressa – no momento da formulação, há decisão surpresa.

Comunicações para a lista negra do banco de Portugal – qualquer banqueiro pode ter acesso (coloca pessoa
fora do circuito).

6. Informação e convenção:

Quando alguém apresenta uma garantia o banqueiro tem informações sobre a pessoa. Existe um dever de
informação por parte dos bancos aos garantes, sobre as informações que os primeiros sabem sobre os
devedores? Tem-se entendido que banqueiro não é obrigado a dar informações, mas deve informar o garante.

7. Tutela do consumir:

(Ver diplomas que tutelam o consumidor)

O consumidor deve ser informado do que está a fazer. Existe a possibilidade de arrependimento do garante,
durante um prazo.

 Garantias no Direito Comercial e no Direito Bancário:

É difícil configurar os efeitos de uma relação, e por isso mesmo as partes procuram regular previsíveis riscos
que possam resultar dessa relação – riscos de crédito, de depreciação monetária, etc.

No domínio do direito bancário as garantias assumem um papel ainda mais importantes que no direito
comercial.

O direito comercial e bancário constroem as suas próprias figuras por cima das figuras do direito civil. Há
garantias que são desenvolvidas com especificidades no direito bancário, havendo que distinguir:

a) Garantias à banca e garantias emitidas pelo banco – no primeiro caso trata-se de uma garantia
prestada ao banco, no segundo de caso trata-se de garantias emitidas pelo banco.

105
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

 Penhor Bancário

No direito comercial:

327º CCom.

Basta uma entrega simbólica do bem dada em garantia – em direito comercial, é suposto os bens terem uma
aptidão produtiva, para a geração de lucro; ora, se o comerciante tivesse de fazer uma entrega efetiva, ou
seja, de colocar à disposição do credor o bem, estar-se-ia a retirare esse bem da capacidade produtiva do
comerciante.

No direito bancário:

Não é necessária a entrega da coisa, nem é preciso que seja sequer simbólica – art. 1º DL 29/833 17 de agosto.

Exige-se forma escrita – art. 8º DL 32/032 22 de maio de 1942.

» Penhor de conta bancária

O penhor de conta bancária é um tipo social através do qual depósitos bancários feitos pelo cliente ficam
afetos ao pagamento de certas dívidas.

O depositante obriga-se a não os movimentar, enquanto subsistirem as dívidas garantidas, autorizando o


Banco a debitar, na conta dos depósitos, as dívidas garantidas vencidas. O dinheiro, esse, é propriedade do
Banco.

Por exemplo: A obriga-se a não mobilizar a sua conta bancária e, em caso de incumprimento, fica o Banco
autorizado a debitar na conta os valores em dívida e juros correspondentes.

Este não é um verdadeiro penhor, porque:

o Não recai sobre uma coisa corpórea


o A garantia é debitada numa conta bancária
o Garantia pessoal, e não real [art. 665º e 694º CC]
o Obriga o garante a manter a conta provisionada
o Reporta-se ao saldo da conta, tão-só: limitação da responsabilidade do garante
o Cláusula de principal-pagador [art. 640º a) CC]
o Tratando-se de uma quantia monetária, não há motivo para proibição de pactos comissórios.

» Penhor de créditos de seguro

Penhor de créditos, funcionando as regras deste e as regras que as partes tenham definido. Está em causa o
penhor de créditos de seguros.

 Acordos de garantia financeira:

O regime está contemplado no DL 105/2004 8 de maio, que decorre da transposição da Diretiva Europeia
2002/47/CE. A ideia é a de que é necessário agilizar o processo das garantias.

o Os sujeitos deste acordo estão previstos no art. 3º.


o Obrigações garantidas (o que pode ser garantido) – arts. 4º e 5: numerário (saldo disponível de uma
conta bancária, denominada em qualquer moeda, ou créditos similares que confiram direito à
restituição de dinheiro, tais como depósitos no mercado monetário) e instrumentos financeiros

106
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

(valores mobiliários – ações, obrigações -, instrumentos do mercado monetário e créditos ou direitos


relativos a quaisquer dos instrumentos financeiros referidos).
o O art. 6º dispõe sobre o desapossamento.

→ Penhor financeiro (arts. 9º e ss.):

Existe uma entrega do valor ao credor pignoratício sem que haja transferência da propriedade. MC – penhor
irregular.

Pacto comissório – no direito civil vale uma regra para a hipoteca que é a proibição do pacto comissório que
se estende ao penhor: proibição de o credor fazer sua a coisa perante o incumprimento do devedor. Já no
penhor financeiro permite-se que o credor faça sua a coisa objeto da garantia perante o incumprimento.
Nesse caso, se a coisa valer mais do que aquilo que o devedor devia, o credor deverá restituir a diferença (art.
11º/2).

→ Fidúcia financeira (arts. 14º e ss.):

MC – é o mais antigo direito real de garantia. Transmite-se imediatamente a propriedade de um bem em


garantia do cumprimento de uma obrigação: se o devedor cumprir a obrigação, a propriedade sobre o bem é-
lhe restituída.

É um esquema contratual pesado para o devedor, que suporta um risco elevado. Pode acontecer que o
devedor cumpra a obrigação mas o credor não queira devolver o bem – perante isto, afastou-se a fidúcia,
tomando lugar a hipoteca. Contudo, a fidúcia voltou a ganhar relevo, nomeadamente no mercado dos valores
imobiliários.

Não pode ter natureza real, pode suscitar problemas de nulidade e é muito violenta para o devedor.

 Garantias bancárias

São garantias pessoais do banco a fiança (não se coaduna com as exigências de celeridade do comércio
internacional), o aceite, o aval (figura típica dos títulos de crédito) e as garantias bancárias autónomas. Prefere-
se normalmente uma garantia bancária autónoma.

 Fiança:

O banco assegura o pagamento ao credor em caso de incumprimento do devedor.

A fiança tem uma série de inconvenientes no comércio internacional, decorrente da acessoriedade da fiança
(benefício da excussão prévia) e da incerteza do pagamento por parte do devedor garante, o que a torna a sua
efetivação mais lenta:

a) A obrigação do fiador não sucede se a obrigação for inválida – art. 632º/1 CC.
b) Além dos meios de defesa que lhe são próprios, o fiador tem o direito de opor ao credor aqueles que
competem ao devedor, salvo se forem incompatíveis com a obrigação do fiador – art. 637º/1 CC.
c) A fiança deve seguir a forma da obrigação principal – art. 628º/1 CC.
d) Tem o seu âmbito delimitado pela obrigação principal.
e) Extingue-se com a extinção da obrigação principal.

107
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Assim, foi sendo desenvolvida uma figura, em que os bancos se obrigam a pagar uma determinada quantia,
independentemente do que resulte da relação subjacente – garantia autónoma bancária (afastamento do
regime da acessoriedade própria da fiança).

 Garantia autónoma bancária

Distingue-se neste âmbito entre as garantias autónomas bancárias automática, on first demand e as
garantias dependentes de apresentação de documentos.

Quanto às primeiras, trata-se de garantias que não são afetadas pelas vicissitudes da relação principal (vs
garantia acessória, vg fiança), através do qual o Banco se compromete a pagar à primeira solicitação (on first
demand), assegurando o pagamento de uma quantia pré-determinada (garantia causal). Se não existisse essa
cláusula de primeira solicitação, tratar-se-ia de mera fiança.

É celebrada entre o interessado (mandante, conferindo-lhe credibilidade) e o garante, a favor de terceiro


(garantido ou beneficiário), permitindo uma liquidez quase total (como se fosse dinheiro).

A grande função da garantia autónoma é assegurar que o beneficiário receberá uma determinada garantia em
dinheiro, nos termos convencionados. Distingue-se da fiança pela ausência de acessoriedade (não existe
benefício da excussão prévia), ou seja, é mais “gravoso” para o garante.

Temos sempre de recorrer às regras da interpretação negocial para saber se o garante se quis vincular como
fiador (é melhor, porque beneficia do benefício da excussão prévia) ou se prestou uma garantia autónoma:
segundo JANUÁRIO GOMES, havendo dúvida se foi celebrada uma fiança ou uma garantia autónoma, deve
optar-se pelo regime menos gravoso para a parte garante, sendo esse a fiança, uma vez que nesta existe
acessoriedade, pois o fiador beneficia da excussão prévia (se a esta não tiver renunciado).

Exige-se forma escrita – texto da garantia que o banco escreve ao beneficiário garantindo que paga em
determinadas circunstâncias.

Qual é a natureza destas garantias?

Poderá tratar-se de uma relação contratual, nos termos do qual o banco se obriga perante o beneficiário a
garantir um pagamento a favor de terceiro – pode considerar-se um contrato a favor de terceiro. Contudo,
terá de se ter em conta o caso concreto.

Exemplo: A pretende adquirir um imóvel, sendo-lhe exigida a prestação de uma garantia; contra o pagamento
de uma comissão, o Banco obriga-se, irrevogável e incondicionalmente, a pagar ao garantido, mediante mera
interpelação, valor esse correspondente à obrigação contraída por A.

 Carta de conforto

A carta de conforto (comfort letter) é a missiva dirigida a uma instituição de crédito por uma entidade
(entidade-mãe) que detém interesses dominantes ou significantes numa terceira entidade (entidade-filha), a
fim de dar a conhecer o cumprimento assumido, confortando ou tranquilizando a instituição de crédito
quanto à seriedade ou cumprimento dos deveres assumidos. Apenas implica prestações, e não quaisquer
garantias reais (garantia imprópria combinada).

Tendem a existir nos grupos societários.

As vantagens são de duas ordens: assumir uma obrigação sem garantias formais (ex: imposto) e manter boas
relações comerciais.

108
Direito Comercial I Leonor Branco Jaleco

Modalidades:

(a) Fraco: compreende apenas um dever de informação e um dever genérico de diligência (policy da
empresa). Ex: a entidade-mãe limita-se a dar informações favoráveis sobre a entidade-filha.
(b) Médio: concessão de informação, dever genérico de diligência (policy da empresa) + declaração
negocial vinculando-se a uma obrigação de meios, acautelando os interesses do Banco e promovendo
o efetivo cumprimento da obrigação. Ex: a entidade-mãe compromete-se a promover pelo
cumprimento por parte da entidade-filha.
(c) Forte: assume, para além do que foi referido anteriormente, uma obrigação de resultado. Ex: a
entidade-mãe diz que a entidade-filha vai pagar e, se não o fizer, a própria entidade-mãe paga.

Este é um negócio unilateral fonte de obrigações (cumulativamente):

▪ Cumprimento integral dos deveres;


▪ Ajustamento do capital aos montantes “confortados”;
▪ Uso de completa diligência.

109

Você também pode gostar