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Textos Clássicos

a LEXMERCATORIA 5>-

FRANCESCO GALGANO
Tradução de ERASMO V A L L A D ä O A. E N. FRANçA

Introdução mite das instituições públicas, sob o signo


da autoridade comunal. As regras do co-
1. Da antiga à nova "lex mercatoria" mércio foram, assim, subtraídas à "compro-
A história da lex mercatoria é a histó- missória" mediação da sociedade política;
ria de um modo particular de criar direito, elas puderam, ao mesmo tempo, ultrapas-
a história do "particularismo" que distin- sar os confins comunais e expandir-se, co-
guiu a regulação normativa das relações co- mo regras profissionais da classe mercan-
merciais, tornando-a diversa da regulação til, até onde se estendiam os mercados. Um
normativa de qualquer outra espécie de re- direito comercial "grande, universal" —
lações sociais. dirá Frémery1 — "como o comércio que o
havia produzido".
É, na origem, oius mercatorum ou lex
mercatoria, e é tal não só porque regula a Na época moderna, que é a época da
atividade dos mercatores, mas também, e codificação do direito privado, a época da
sobretudo, porque é direito criado pelos mediação do Estado na regulação de todas
mercatores, que nasce dos estatutos das as relações sociais, o antigo particularismo
corporações mercantis, do costume mercan- jurídico se reapresenta em formas muda-
til, da jurisprudência da corte dos merca- das; o direito comercial é o direito dos có-
dores. É ius mercatorum, diretamente cria- digos de comércio, separados dos códigos
do pela classe mercanlil, sem mediação da civis; da jurisdição comercial, separada da
sociedade política, imposto a todos em jurisdição civil. Conquanto direito do Es-
nome de uma classe, não já em nome da tado, como o direito civil, o direito comer-
inteira comunidade; e isto conquanto a clas- cial se separa deste por uma razão que diz
se mercantil fosse classe politicamente di- respeito, ainda uma vez, a um diverso modo
rigente, força de governo da sociedade de criar direito: é tornado autônomo do di-
comunal, que podia ditar lei — e em outra reito civil por ser mais facilmente e mais
esfera de relações ditava lei — para o trâ- rapidamente emendável, em consonância
com as mutáveis exigências do comércio, e
por ser um direito, o mais possível, "a-na-
* N. do T.; o texto, a seguir, consiste no item I
da Introdução feita por Francesco Galgano à obra de cional", em antítese à acentuada caracteri-
sua autoria denominada Lex Mercatoria (ed. (1 zação nacional do direito civil, aberto às
Mulino, Bolonha, 2001, pp. 9-14). A Lex Mercatoria
representa uma atualização, acrescida de alguns ca-
pítulos novos, do livro que se denominou, original- I. A. Frémery, Éludes de Droit Commercial,
mente. Storía dei Diritto Commerciale (a 1* edição ou du Droit Fondé par la Coutume Universelle des
é de 1976). Comerçants, Paris, 1833. p. 19.
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exigências de uniformidade metanacional, do do.Corpus iuris, faziam expressa remis-


funcional para as necessidades de um mer- são, qual fonte subsidiária do ius mercato-
cado interestadual. E, no século passado, ter- rum, os estatutos mercantis; e, aos códigos
se-ão um só código civil, mas dois códigos civis, fariam análoga remissão os moder-
de comércio na Alemanha, dois códigos de nos códigos de comércio, advertindo que a
comércio na Espanha, dois códigos de co- "matéria de comércio" era regulada in pri-
mércio na Itália (onde um novo projeto de mis pelo código de comércio e pelos usos
código de comércio estará já em execução comerciais e, onde estes não tivessem esta-
nos primeiros decênios do novo século); tuído, pelo código civil.4
entre os dois séculos terá início o processo Se não é todo o direito do comércio,
de uniformização internacional de múltiplos tampouco é o direito comercial somente o
setores do direito comercial, daconcorrên- direito do comércio: também as atividades
ciae dos direitos exclusivos de propriedade industriais são, e desde o seu surgimento,
industrial, ao cheque e à cambial. ; matéria do direito comercial. O primeiro
A matéria sobre a qual esse "particu- código de comercio da era moderna, o Gode
larismo jurídico", historicamente, se exer- de Commerce de 1808, considerava "ato de
ceu, não é facilmente delimitável.2 O di- comércio" a aquisição de mercadorias com
reito comercial não tem, para desonra do oescopode revenda, mas "seja emnatura",
seu nome, um preciso referente nas catego- precisava, "seja depois de as ter elaborado
rias da*economia, não corresponde a um ou beneficiado {messe in opera)" (art. 632,
específico setor do sistema econômico; o l 9 parágrafo), e fazia expressa menção,
seu limite com respeito ao direito civil não como atos de comércio, às "empresas de
pode ser traçado — bem o advertiu Asca- manufatura" (art. 632, 2- parágrafo) e às
relli — decompondo o direito privado em ''empresas de construção" (art. 663, 2 9 pa-
direito da produção, da distribuição, da cir- rágrafo).
culação, do consumo e assim por diante.3
A essência da "comercialidade" des-
O direito comercial não é o direito do sa partição do direito não se colhe em uma
comércio: nãó regula, nem nunca regulou, visão sincrônica do direito privado, distin-
todo o comércio; não foi nunca um sistema guindo-a rarione materiae do direito civil;5
normativo auto-suficiente, ordenador de um colher-se-á se se coloca em uma perspecti-
inteiro setor da vida econômica; e, a regu- va diacrônica: o direito comercial aparece,
lar ò comércio, sempre concorreu, com ás então, como a inovação jurídica introduzida
normas sobre obrigações e sobre contratos, na regulação das relações econômicas, o
também o direito civil. Ao ius civile, que conjunto de "especiais" regras de comér-
era então o direito privado romano, extraf-
4, E já com respeito ao Code de Commerce.
2 , 0 conceito de "particularismo jurídico", que que não continha uma expressa remissão de tal sor-
é próprio dos juristas positivisms dos Oitocentos e, te. G, G. Locrè observava que o "código de comér-
em particular, da Jijeratura hisióncp-jurídica ffonce- cio. nSo sendo senSo uma lei de exceção, destinada
sa e italiana^ pode hoje ser empregado como catego- a regular os negócios de natureza particular, não pode
ria de conhecimento' histórico, já que — como ad- subsistir por si mesmo, liga-se ao direito comum"
verte G. Tarello, Le Ideologie 'delia Godificuzione (Spirito dei Codice di Commercio, trod, italiana.
nel Secolo XVIJI, Gênova, sem data (mas de; 1973). Milão, 1811, p. VI l).
p, 21 — "as valorações e as esperanças!', que nele 5. E no vigor do nosso Código de Comércio de
estão implícitas, "podcm-sc reencontrar seja na cul- 82 acabou-se por acolher um critério de todo tauto-
tura jurídica contemporânea ao fenômeno qualifica- lógico, concluindo que "matéria de comércio", para
do, seja na cultura e na mentalidade do futuro histo- os efeitos do art. 1~ do Código, outra coisa não era
riadora senáo a matéria regulada pelo Código mesmo (cf. L.
3. T, Ascarelli, Saggi di Diritto Commerciale, Bolafílo, "Disposizioni generali", em // Codice di
Milão, 19SS, p. J5; id.. Corso di Diritto Commer- Commercio Commeniato, Turim. 1913. sub arts. I-
ciale, Millio. 1962, pp. 87 e J24. 2, pp. 7 ess.).
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cio que, nas diversas épocas históricas, a sofia conservadora? Ou não, ao invés, uma
classe mercantil diretamente criou ou pre- visão cosmopolita do direito, a aspiração a
tendeu do Estado; e são, muito freqüente- reproduzir no direito nacional o modelo dos
mente, regras destinadas a traduzirem-se, outros grandes países do continente euro-
nas épocas sucessivas, em direito privado peu? O sentido dessa operação da jusco-
comum, a tornarem-se direito civil. Adver- mercialística italiana será claramente per-
tiu-o Pasukanis, quando escreveu que "o cebido por Tullio Ascarelli quando o Tra-
direito comercial, com respeito ao direito tado de Roma relançar, sobre o nosso con-
civil, cumpre a mesma função a que é cha- tinente, o projeto de um direito comercial
mado a cumprir o direito civil em relação a uniforme.7
todos os outros setores; ou seja, aquele in- O projeto é enunciado pelo art. 3 ? , le-
dica a este a via do desenvolvimento".6 tra /J, do Tratado, segundo o qual "a ação
As vicissitudes italianas se destacam, da Comunidade importa", entre outras coi-
durante o período fascista, do contexto eu- sas, "a aproximação das legislações nacio-
ropeu. Em 1942 o direito comercial perde, nais na medida necessária ao funcionamen-
no nosso país, a antiga autonomia legisla- to do mercado comum"; e o objetivo da
tiva; um unitário código civil toma o posto "aproximação das legislações", referida ao
precedentemente ocupado, e ainda ocupa- funcionamento de um mercado comum eu-
do alhures, por separados códigos civis e ropeu, torna evidente a alusão às legisla-
de comércio. Não obstante isso, os jusco- ções comerciais nacionais (dentro do direito
mercialistas italianos dão vida novamente comercial se coloca, além disso, o mais es-
ao direito comercial, com uma hábil opera- pecífico objetivo, expresso pelo art. 44,2 s
ção de "retalho", no interior do código ci- parágrafo, letra g, que consiste no "tomar
vil, de diversos conjuntos de normas, algu- equivalentes as garantias que são exigidas,
mas do Quinto, outras do Quarto Livro, cujo pelos Estados-membros, das sociedades,
elemento unificador em outra coisa não re- para proteger os interesses tanto dos sócios
side senão no fato de que elas eram. uma como de terceiros").
época, encerradas dentro do código de co- Nesse projeto, o "particularismo" do
mércio (e ao mesmo título são incluídas no direito comercial reemerge em toda a sua
"direito comercial" algumas leis especiais, importância histórica: retoma a antiga idéia
aquelas sobre falência, sobre a cambial e de um direito comercial "despoliticizado",
sobre o cheque etc., cuja^'comercialidade" a uniformidade ultranacional do qual se
deriva também do fato de elas regularem possa realizar independentemente da uni-
matérias já reguladas pelo código de co- dade política e não associar a nada mais
mércio). senão à unidade do mercado. E retoma, com
O antigo particularismo se transfor- essa. também a idéia de que as normas re-
mou, assim, em "autonomia científica" do guladoras da atividade comercial possam
ser produzidas de modo inteiramente "par-
direito comercial. A integração do direito
ticular", externamente àquelas sedes de
comercial ao direito civil é, quanto menos
mediação política e social nas quais se for-
em sede de sistematização e interpretação,
ma qualquer outra norma de direito. Segun-
esconjurada; a juscomercialística continua,
do o art. 94 do Tratado, as legislações na-
como no passado, a elaborar separadamen- cionais se "harmonizam" por diretiva vin-
te as próprias categorias. Uma operação de culante de um órgão comunitário, qual seja,
mera restauração, inspirada por uma filo- o Conselho da Comunidade Européia, que
é emanação exclusiva dos executivos nacio-
6. E. B. Pasukanis, Lu Teoria Generale del
Diritto e U Marxismo, trad, italiana de E. Martellotti,
com ensaio introdutório de U. Cerroni. Bari. 1975, 7. Ascarelli, Corso di Diritto Commerciale,
p. 55. cit., p. 142; c infra, cap. 5. par. 5.
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nais, enquanto o Parlamento Europeu, eleito preenderam que o socialismo postula o de-
por sufrágio universal, tem voto somente senvolvimento e o fortalecimento dos di-
consultivo. reitos pessoais e patrimoniais dos trabalha-
O particularismo do direito comercial dores. Ignoram a importância da proprie-
é, em termos "gramscianos", "èconomis- dade individual. Sobre um ponto agora es-
mo"; a sua valoração histórica é valoração tão todos de acordo: é preciso criar o mais
histórica do "economismó" no direito, e o rapidamente um novo código civil".'J
particularismo do direito comercial das ori- As razões do particularismo parecem,
gens foi somente um aspecto daquele geral todavia, destinadas a levar vantagem no
"economismó" da burguesia medieval que último quartel do vigésimo século; a eco-
foi a razão da sua rápida fortuna, mas tam- nomia mundial veio assumindo sempre mais
bém de seu igualmente rápido declínio.8 O marcadamente os caracteres de uma eco-
economismó no direito do nosso tempo é a nomia global, que tende a superar os con-
pretensão de separar o direito da política, fins políticos dosjïstados e a reduzir o pla-
de abstraf-lo da sociedade, qual mero "aces- neta à unidade econômica. A economia glo-
sório" da economia, pura técnica de regu- bal se sobrepôs ao antigo comércio inter-
lação das relações de produção. Ele con- nacional. No passado, a produção era sem-
tradiz — baste aqui o exemplo, há pouco pre nacional; eram internacionais os mer-
citado, do modo de criar direito comercial cados do aprovisionamento de matérias-
uniforme; na Comunidade Européia — as primas e da colocação de produtos acaba-
instâncias, jamais sopitadas, de formação dos. Na economia que se diz global não são
democrática dp direito, contradiz a aspira- as mercadorias que circulam além dos con-
ção a um desenvolvimento econômico co- fins nacionais; em âmbitos internacionais
ordenado com o progresso civil e social. A se desloca e se ramifica a própria organiza-
idéia de uma constituição européia, que ção produtiva e distributiva.
hoje se anuncia, apoia essas exigências, co-
mo as apoia a anunciada atribuição de um 9. A passagem faz parte da nota requisitória
voto deliberativo ao Parlamento Europeu. de 37; no sucessivo escrito de 49, sobre Pn/blemi
dei Diritto e delío Stato in Marx, A. J. Vysinskij re-
É hoje somente uma curiosidade his- pele ainda "a redução do direito civil soviético à es-
tórica, mas não é aqui fora de lugar recor- fera da produção e da troca. O que é feito, porém,
dar a áspera polêmica que, nos anos Trinta, daquela parte do direito civil que disciplina as rela-
ções matrimoniais e familiares? Ou também essas
dividiu os juristas soviéticos sobre o tema relações devem ser disciplinadas do ponto de vista
do "direito econômico". A quantos haviam da 'planificaçüo socialista'? É cloro que o direito civil
propugnado "a substituição do direito civil compreende uma esfera de relações mais ampla do
pelo direito econômico", Vysinskij acusou que somente as relações de troca (como afirmou
Pasukanis) ou também somente as relações de pro-
de haver "feito do ser vivente, com os seus dução e de troca (como afirmou StuckaJ"; é contra
direitos pessoais e patrimoniais, um aces- "a divisão do direito soviético que disciplina as rela-
sório do mecanismo econômico. Não com- ções econômicas em dois 'direitos': o direito civil e
o direito econômico", uma divisão que comporia a
"contraposição dos interesses da economia socialis-
8. Recordo as páginas de Antonio Grarasci em ta aos interesses do homem socialista, a depreciação
Note sul Machiavetli, sulla Patílica e sullo Stau» do direito civil como direito que disciplina, sancio-
Moderno, Turim, 1949, pp. 45 e ss., 90 e ss., J33; e na e tutela os interesses pessoais e patrimoniais dos
aquelas, mais numerosas, depois aparecidas nos trabalhadores, dos cidadãos da URSS, construtores
Quademi dal Cárcere, Turim. 1975, pp. 475 e ss., do socialismo" (em P, L. Stucka. E. B. Pasukanis, A.
641,694 e ss., 758 e ss.. 787 e ss., 935, 1.053 e ss., J. Vysinskij, M. S. Strogovic, Teorie Sovietir/ie dei
1.149. Às pp. 460 e ss. dos Quuderni (pp. 29 e ss. Diritto, aos cuidados de U. Cerroni, Milão. 1964,
das Note) está a crítica do "economismó"; e aí se lê pp. 265 e ss.). Stucka tinha, por sua vei, criticado o
que "é preciso combater o economismó n&o só na "economismó" de Pasukanis; cf. o ensaio introdutório
teoria da historiografia, mas também na teoria e na de Cenroni a Pasukanis, La Teoria Generale del
prática política" (p. 464 dos Quudemi). Diritto e il Marxismo, cit., p. 25.
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As grandes empresas assumem dimen- ordenamento jurídico, como o ordenamento


sões mundiais; caracterizam-se como em- jurídico da business community, que não
presas multinacionais; colocam as próprias conhece nacionalidade e se estende à intei-
unidades de produção diretamente sobre os ra "aldeia global". Ao mesmo tempo a eco-
mercados de consumo dos produtos; ou ar- nomia global, da qual as multinacionais são
ticulam em países diversos, segundo crité- as principais protagonistas, produz um efei-
rios de conveniência, as diversas fases e os to gravemente perturbador sobre as estru-
diversos setores da própria ati vidade, tiran- turas jurídicas e políticas dos Estados, frus-
do vantagem das diversas oportunidades tra-lhes a política econômica, exautora-lhes
que aí encontram ofertadas, como o mais as leis. Os Estados soberanos, por potentes
vantajoso mercado de trabalho, ou o mais que sejam, não são mais tão soberanos
vantajoso mercado de capitais, ou o siste- quanto no passado. Eles não governam se-
ma fiscal preferível; e obtendo ao mesmo não um minúsculo fragmento do mercado
tempo o resultado de separar os riscos re- global, enquanto as multinacionais estão em
lativos aos diversos mercados. grau de controlá-lo na sua inteireza.
As multinacionais constituem um po- Nada ou bem pouco das experiências
tente fator de propagação, no mundo, de político-constitucionais maturadas dentro
práticas e de modelos contratuais unifor- das sociedades nacionais podem ser utiliza-
mes; concorrem para a formação daquela das diante da globalização da economia e
nova lex mercatoria, tão universal quanto da nova lex mercatoria. São necessárias no-
foi universal a lex mercatoria da era pré- vas idéias e experiências de todo originais
industrial, à qual se tende hoje a reconhe- — que estão agora amadurecendo, como se
cer o caráter de originário e supranacional dirá no último capítulo deste livro.

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