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COORDENAÇÃO

GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA


FLÁVIO TARTUCE

DlREhTQ
CQNT RAT UAL
TEMAS ATUAIS

TRZBUNAL DE JUSTIÇA
DE São PAULO
BIBL!O'!'E£CA
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EDITORA
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SÃO PAULO
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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ.

Direito contratual : temas atuais / coord. Giselda Maria Fernandes Novaes


Hironaka e Flávio Tartuce. - São Paulo : Método. 2007.

Bibliografia
1. Contratos - Brasil. I. Hironaka. Giselda Maria Fernandes Novaes. Il.
Tanuce, Flávio.

07-3503. cou: 3474431)


ISBN 97835-7660—219-4

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Impresso no Brasil
Printed in Brazil
2008
REDES CONTRATUAIS
E CONTRATOS COLIGADOS

LUCIANO DE CAMARGO PENTEADO


Mestre e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo (FDUSP). Professor no Curso de Especialização em
Advocacia Clvel da Fundação Getulio Vargas (FGV). Professor no Curso de
Especialização em Direito Contratual da COGEAE-PUC/SP. Professor nos
Cursos de Especialização em Direito Civil. Direito Civil e Direito Processual
Civil e Direito Contratual da Escola Paulista de Direito (EPD). Membro do
Conselho Editorial da Revista de Direito Privado (RT). Membro do Corpo de
Parecen'stas da Revista Direito-GV (EDESP). Parecen'sta ad hoc da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Professor
membro da equipe responsável pelos trabalhos de conclusão de curso do
GVIaw. Professor nas Faculdades Integrais Cantareira.
Advogado em São Paulo.

Sumário: 1. Introdução — 2. Doutrina clássica da relação contratual não


típica: 2.1 Contratos atípicos: 2.2 Contratos mistos; 2.3 Contratos coligados
— 3. Fatores determinantes de uma revisão da doutrina: 3.1 Contratação
em massa; 3.2 Insuúciéncia dos tipos; 3.3 Necessidade de analisar a causa
contratual — 4. Noção de rede contratual: 4.1 Espécies de redes de contrato;
4.2 Rede de contrato e grupos societários — 5. Regime jurídico aplicável - 6.
Conclusão — Bibliografia.

1. INTRODUÇÃO

O tema das redes contratuais e dos contratos coligados é dos mais di­
ficeis na teoria do direito contratual contemporâneo, porque é daqueles que
envolve a quase totalidade das categorias dogmáticas próprias desse ramo do
saberjurídico. Assim, desde a formação dos contratos, passando pela teoria das
invalidades e de todos os fatores eficaciais, desde a resolução, a resilição ou
mesmo a rescisão, são conceitos e figuras chamados à baila para ser, muitas
464 DIREITO CONTRATUAL — temas atuais

vezes, profundamente modificados em sua concepção tradicional, justamente


na tentativa de procurar responder às necessidades que o quadro das redes e
da coligação de contratos suscita.
Assim, por exemplo, saber se é possível postular a anulação de contratos
coligados, individualmente válidos, por lesão que se verifica na sua combinação
é questão que suscita muitos conceitos e categorias, os quais merecem um
exame bastante aprofundado. Do mesmo modo ocorre com as chamadas pro­
pagações de ineficácias e de invalidades que se podem verificar nas redes de
contratos. Muitas vezes, portanto, considerar contratos individualmente e visão
que perde para a consideração do conjunto. ou seja, do processo obrigacional
como uma totalidade.l
Nesse sentido. já afirmava o grande C. do Couto e Silva que: “A relação
obrigacional tem sido visualizada, modernamente, sob o ângulo da totalidade.
O exame do vínculo como um todo não se opõe, entretanto, a sua compreen­
são como processo, mas. antes, o complementa. Como totalidade, a relação
obrigacional é um sistema de processos. A concepção da relação jurídica como
totalidade e relativamente recente. A ela aludiu Savigny, ao definir a relação
jurídica como um organismo. A idéia de totalidade era corrente, no mundo
grego, pois se admitia a existência do lagos da coisa, apesar da completa
modificação das partes que materialmente a compunham“.ª
Só a concepção de que os vincula iure surgem e se comportam como
um todo dotado de sentido, isto é, como uma complexa totalidade ordenada
ao fim do adimplemento, pode-se compreender corretamente a reticularização
dos contratos e sua coligação instrumental para atingir fins econômicos ou
sociais impossiveis acaso houvesse a presença de apenas um contrato. Assim,
por exemplo, os contratos de trabalho de jogadores de futebol, coligados a
contratos de cessão de imagem, formam um todo. Desse modo, impossível
cindir as relações obrigacionais, permitindo que uma delas seja julgada pelo
juiz trabalhista e outra pelo juiz cível. Ambas devem ser julgadas pelo mesmo
juiz, para que fique preservada a unidade conseguida pela coligação. A imagem,
afinal, vem do contrato de trabalho, e este propicia, pela cessão de imagem,
uma remuneração. Assim, forma-se um sinalagma entre os dois contratos, um
equilíbrio material das trocas que advém da coligação. Nesse sentido, já decidiu
brilhantemente o STJ.” A ementa da decisão traz o tema dos contratos coliga­

' No sentido de ter sido esta a tônica da concepção de obrigação abrangida pelo novo CC,
vide Judith Martins-Costa, C ama/mirim ao novo Código Civil, coord. Sálvio de Figueiredo
Teixeira, Rio de Janeiro. Forense, 2003. v. V, t. 1, p. 1 e ss.
Clóvis V. do (“outo e Silva. A obrigação L'UINO procexsn. Rio de Janeiro. FGV. 2006, p. l7.
0 STJ já teve oportunidade de se pronunciar neste sentido. em decisão em um conflito de
competência suscitado. Vide. assim. o STJ CC 34504, rel. p/ac. Min. Ruy Rosado de Aguiar.
REDES CONTRATUAIS E CONTRATOS COLIGADOS 465
F
dos: “Confiito de competência. Clube esportivo. Jogador de futebol. Contrato
de trabalho. Contrato de imagem. Celebrados contratos coligados, para pres­
tação de serviço como atleta e para uso da imagem, o contrato principal é o
de trabalho. portanto, a demanda surgida entre as partes deve ser resolvida na
Justiça do Trabalho. ConHito conhecido e declarada a competência da Justiça
Trabalhista“. Tratou—se do caso do jogador Luis Mário.
Entretanto, o tema dos contratos coligados e dos contratos em rede é
muito complexo e demanda, realmente, um tratamento sistemático e organiza­
do para que o discurso tópico não permita a perda da consideração conjunta
dos assuntos. Dessa maneira, o presente trabalho conta com a restrição me­
todológica de apresentar o problema, exemplificar os casos mais freqtientes
de modo bastante tópico e fornecer uma proposta doutrinária de tratamento
dessas realidades que não se situe apenas e tão-somente no plano legislativo,
mas que se possa alçar à condição disso mesmo a que se propõe ser — uma
doutrina — e, desse modo, seja de alguma prestabilidade para os operadores de

j. I2.03.2003, DJU l6.06.2003. p. 256. m.v. Na ocasião. foi imponante a percepção da


formação de um sinalagma complexo entre os dois contratos. para a verificação da unidade
que a coligação propicia. O conceito empregado foi o de acessoriedade e principalidade entre
contratos. Particularmente significativa. a passagem do voto vencedor do Min. Ruy Rosado:
"Gostaria de acentuar um aspecto que se observa nas relações entre os jogadores e os clu­
bes esportivos no Brasil, especialmente os de futebol: uma maneira de pagar o salário ao
atleta, sem os encargos da Previdência, de impostos e de eventuais indenizações. & cumular
a remuneração do jogador com a renda auferida pelo uso da imagem, do nome. etc. Então.
o que há e uma relação entre o clube e o jogador. em que este presta serviços como tal e
ao clube e permitido usar — enquanto persistir essa situação — a sua imagem. o seu nome,
o seu prestígio. que e um modo. também. de se ressarcir das despesas que tem. Mas, na
verdade, trata-se de um contrato de trabalho em que está sendo remunerado o jogador, ou
o prestador do serviço. por diversos modos. com diversas parcelas. Se é assim, então, o
contrato principal é o contrato de trabalho. Pelo que se ouviu acerca do que consta nesse
outro contrato de imagem, ora submetido a Justiça Comum. o jogador simplesmente não
poderia mais exercer a sua profissão enquanto vigente o contrato sobre a imagem, a não
ser naquele clube. usando seu boné. sua camiseta, seu dístico. Já não poderia ingressar em
campo. a não ser com a camiseta do patrocinador — o que cerceia totalmente o exercício
da sua atividade. Quantos anos ficará pendente essa ação ordinária na Justiça Estadual? E
enquanto não for decidida a ação sobre o contrato de imagem. o atleta não poderá jogar.
embora já extinto o contrato de trabalho. O contrato principal é o de trabalho: 0 outro é
acessório e só pode funcionar e ser interpretado em função do principal. Ademais. a judi­
cialização dessas questões de jogadores de futebol nunca é favorável para o próprio esporte.
Estaríamos afimando que e preciso mover uma ação. uma reclamatória trabalhista, no juízo
do Trabalho. e outras ações no juizo Estadual. tudo envolvendo a mesma relação. o que.
para mim. e uma dificuldade a mais que se coloca nessa seara. Portanto. no caso, com os
contratos que estão sendo objeto dessas discussões judiciais. com tais clausulas. seria mais
conveniente que isso fosse visto pelo juiz. do contrato principal. que e o Juiz do Trabalho.
em cujo foro começou a primeira ação“.
466 DIREITO CONTRATUAL — temas atuais
1

direito. Nota-se a necessidade de compreender o tema das redes contratuais,


especificamente, como um tipo contratual geral que comporta a presença de
estruturas obrigacionais distintas, funcionalizadas e organizadas a ser uma única
veste jurídica de operação econômica. Nos contratos coligados, o desdobramento
estrutural para a manutenção de uma única função organiza-se não já como
tipo contratual geral, mas com a preservação de tipos contratuais estritamente
desenhados pelos atos de autonomia privada.
Se a grande mudança de foco de análise do movimento codificador em
relação ao pensamento romano foi a passagem da consideração do vínculo de
direito para a convenção entre as partes,4 ou seja, para uma categoria, tal como
se preservou nos grandes movimentos codificadores, corporilicados em códigos
da modernidade (contrato/obrigação convencional no CC francês 1101 e ss. e
no BGB ª 104 e ss.), a teoria das redes contratuais parece se propor a ser,
dentro de novo desenho teórico e adaptada a novas tendências da sociedade,
uma retomada da perspectiva da relação jurídica como elemento central do
direito contratual. Ou seja, em vez do foco temático das redes e da coligação
ser a noção de ato jurídico ou negócio jurídico, em que importa visualizar a
questão da declaração negocial, centrando o debate em tomo do consentimen­
to, quando se fala desse tema, é mais relevante tratar do vinculum iuris por
eles desenhado e unido” pela multiplicidade de causas contratuais distintas,
mas unidas a ponto de formar uma única causa sistemática, na expressão de
Lorenzetti, ou seja, uma causa da coligação ou da rede contratual.
Poderíamos aqui, emprestando a terminologia cara a Sacco e De Nova,
fazer uma interessante distinção.“ Seria como se tivesse havido, nos tempos
hodiemos, uma mudança radical de perspectiva entre o fenótipo (aparência
externa, identiticada aqui como o negócio jurídico) e genótipo (elementos
imanentes de determinação, identificados aqui como a operação econômica)
do direito contratual. No direito romano, o fenótipo determinava o genótipo,
até mesmo pela limitação da autonomia privada a negócios jurídicos tipicos,
estritamente concebidos, e agora, vemos uma recuperação do genótipo — da

* Nesse sentido. João de Matos Antunes Varela. Contratos mistos. Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, p. I44, n. 44. 1968.
ª Algumas obras de referência em matéria de relação jurídica tratam do tema da eficácia. em
que se situa metodologicamente o assunto. muito brevemente. tão preocupadas que estão
com a questão referente à formação da declaração negocial e com a constituição válida do
negócio jurídico. Tradicionalmente. parte-se da classificação do fato jurídico, para depois
atingir sua eficácia. Nesse sentido. por exemplo, consultar Manuel Domingues de Andrade.
Teoria geral da relação juridica. Coimbra, Almedina. l974, v. ll. p. 25 e ss.. Quando o tema
6 rede. desloca-se de perspectiva: a percepção ocorre primeiramente do plano da eficácia.
para depois se buscar uma classificação.
“ Cfr. Rodolfo Sacco e Giorgio De Nova. ]! contralto. Torino. Utet. I993. t. I. p. 3 e ss.
REDES CONTRATUAIS E CONTRATOS COLIGADOS 467

operação econômica —, para só depois nos preocuparmos em apontar o fenótipo


— identificado pela qualificação contratual.
Segundo esta perspectiva, dever—se-ia levar em contra, para a compreensão
do específico problema suscitado pelas redes contratuais e contratos coligados,
o plano da eficácia do fenômeno jurídico, pois é nele que se situa o tema
da relação jurídica. Rede contratual nada mais é do que uma interligação
de relações jurídicas obrigacionais para atingir fins econômicos que não
poderiam ser alcançados por relações jurídicas isoladamente consideradas.
É no plano da eficácia que se situam as denominadas categorias eficaciais
que, em matéria contratual, praticamente se resumem a situações jurídicas
relacionais multilaterais.
O conceito de categoria eficacial pode ser elucidado como sendo uma
consequencia de determinado evento ou conduta humana no plano do orde­
namento juridico. Assim, por exemplo, o ser pessoa no plano natural, de um
indivíduo isoladamente considerado. propicia o surgimento da categoria eficacial
da situação jurídica denominada de personalidade jurídica e da conseqúente
— também categoria eficacial — capacidade de gozo. Assim conceitua categoria
eficacial Marcos Bernardes de Mello: “Denominam—se categorias eficaciais todas
as espécies de efeitos jurídicos encontráveis no mundo o direito; desde as mais
elementares situações jurídicas às mais complexas relaçõesjuridicas, às sanções,
às premiações e aos ônus, todos são categorias de eficácia jurídica“.7
Antes, porém, de aprofundar o tema da eficácia juridica pluricontratual
suscitada pelo tema das redes e dos contratos coligados, convém partir de um
pressuposto metodológico importante, que é a doutrina dos tipos no direito
contratual. Classicamente, se organizam os tipos contratuais tendo por base a
tipicidade de uma operação econômica; assim, a compra e venda, a locação,
o mandato, o depósito são contratos que se prestam a identificar determinadas
situações recorrentes no nível social, situações estas que merecem o isolamento
e a nomeação por uma categoria dogmática própria que permita localizar o
fenômeno no campo do direito contratual especial. Os contratos todos têm
tipo, mesmo os contratos atípicos. Tipo, aqui, vem empregado, numa primeira
acepção, como modelo operacional de regência da espécie.
Entretanto, por outro lado, é sabido que nem todo contrato é típico no
sentido de que nem todo contrato obedece a uma identificação plena de seu
regime em textos legais. Ai, tipicidade seria empregada no sentido de tipi­
cidade legal. Seria tipico o contrato com um nomen iuris e um conjunto de
regras presentes em textos normativos. Por fim, o típico pode ser também

Marcos Bernardes de Mello. Teoria dofulo juridico — plano da eficácia. São Paulo. Saraiva.
2003. p. 30.
468 DIREITO CONTRATUAL — temas atuais

identilicado como aquele contrato que tem um regime legal ou jurisprudencial


de maior ou menor definição. Teríamos, assim. tipicidade legal e tipicidade
jurisprudencial. Finalmente, a própria sociedade pode, mediante a atuação de
agentes no mercado, ir modelando determinados contratos que ganham uma
certa recorrência de cláusulas e de regimes, permitindo a identificação de um
estilo contratual que se reitera, tal qual um estilo de época na arte. Essa tipi­
cidade social daria margem, identificados litígios, a apresentação de soluções
tendencialmente uniformes pelos tribunais. de modo a se poder falar em uma
tipicidade sociojurisprudencial.
Diante da diversidade de sentidos com que se pode compreender a noção
de tipo no direito contratual, convém eleger uma deles. Típico é o contrato
que possui regime jurídico uniforme atribuído por lei, por jurisprudência ou
por comportamentos sociais reiteradas (ditos em doutrina comportamentos
socialmente típicos),ª regime este que obedece à solução de litígios envolven­
do criações cconômico-sociais mais ou menos uniformes. A tipicidade, assim,
rclacionar-se-ia a uma modelização contratual dotada de certa padronização.
Tal padronização, insista-se, não advém apenas do clausulado contratual, mas
também de uma categorização legal ou social. Nesse sentido, esclarece Sacco
que: “A tipificação das cláusulas não é — bem entendidas as coisas — a ti­
pificação dos contratos. Mas a prepara e a torna possível, porque substitui à
variabilidade do querido, a lista objetivo das cláusulas“?
A tipicidade, portanto, aponta para a possibilidade de recondução, maior
ou menor. a uma categoria. Essa tipicidade permite um juízo de mais ou
de menos, conforme a proximidade que apresenta à categoria designada. Em
matéria contratual. a tipicidade aponta para a identidade entre o contrato. tal
qual celebrado, e uma causa objetiva, lixada e dada de antemão, compreendida
como sua função econômica e social.
A dicotomia contratos típicos e contratos atípicos foi expressamente
assumida pelo novo Código Civil no CC 425: “E lícito às partes estipular

' Para o tema dos comportamentos socialmente típicos. ainda insuperada :: doutrina de Larenz.
Vide Karl [.arenz, O estabelecimento de relações obrigacionais por meio de comportamento
social típico. DireiloGl'. n. 3. p. 55-63. A doutrina vem de llaupt. que considera três grupos
em que adquiriria relevância: o contato social para negociação. as prestações de tráfego em
massa e os contratos de fato. Obviamente. nesses casos. falta a declaração e. portanto. falta
a noção de contrato. Entretanto. existe. em virtude do principio da confiança. uma relação
obrigacional. que. pela reiteração. pode-se tornar uma espécie de fato paracontratual típico.
a merecer conseqiiente tratamento nonnativo. Para uma brilhante exposição e explicação do
debate no direito brasileiro e comparado. v. o tópico "comportamentos socialmente típicos"
de Nery Jr. (Nelson Nery Jr.. Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores
do anteprojt'lo. 7. ed., Rio de Janeiro. Forense. 200l. p. 455-457.
” Rodolfo Sacco e Giorgio De Nota. ob. cit.. t. ll. p. 427.
REDES CONTRATUAIS E CONTRATOS COLIGADOS 469
[

contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código“. O em­


prego da expressão "é lícito" aponta para a escolha do legislador, orientada
a impedir que um contrato seja considerado nulo pelo juiz pelo simples fato
de ser atípico.IU
A grande questão subjacente a rede de contratos e a coligação contratual
e a identificação, a partir de contratos — típicos ou não — de realidades não
categorialmente definidas. Daí que um tema prévio a este deva ser enfrentado
— qual seja o da atipicidade.

z. DOUTRINA CLÁSSICA DA RELAÇÃO CONTRATUAL NÃO TÍPlCA

O contrato atípico raramente é enfrentado. Pode—se falar, nas lides ju­


diciais, de uma freqiiente e insistente fuga para o típico. na medida em que
muitas vezes opta-se por um regime normativo já conhecido e de larga expe­
riência judicante, em vez de assumir que a figura e atípica e tem regime que
necessita ser construído. O atípico é novo e sempre clama por uma solução
especial, uma atenção cuidadosa. Até a data de 27.12.2006, por exemplo, foram
encontradas apenas dez decisões que explicitamente tematizavam o assunto
desse modo no sítio do STJ.
O tipo é algo mais conhecido e exerce uma função importante em termos
de segurança jurídica na medida em que implica previsibilidade das regras que
pautaram hipóteses de necessidade em solucionar as controvérsias entre as par­
tes. Assim, o tipo exerce o papel de suprir lacunas em relação à vontade das
partes, bem como de determinar um mínimo de direito cogente que não poderá
ser por esta derrogado. por fixar valores mínimos da espécie contratual."
Com frequencia, portanto, é solucionada questão atípica como se típica
fosse. Isto não significa, de modo algum, que os contratos atípicos sejam con—
tratos sem tipo, isto e, contratos sem um modelo operacional reitor, sem um
potencial regramento jurídico que corresponda à sua qualificação. Por vezes,
muitos contratos atípicos são, inclusive, contratos nominados pela praxe dos
operadores em mercado, mostrando que, em não poucas ocasiões, são contratos
socialmente tipificados.
De todo modo, é preciso fixar que a tendência de fugir para o típico e
natural, e muitas vezes serve como um recurso de economia mental altamente
poderoso. Não é demais lembrar que o raciocínio do tipo permite identificar
as normas jurídicas reitoras da espécie com mais facilidade — normas do tipo.

" No mesmo sentido para o direito italiano. Rodolfo Sacco e Giorgio Dc Nova. ob. cit.. (.
Il. p. 425.
" João de Matos Antunes Varela. ob. cit.. p. l48.
470 DIREITO CONTRATUAL - temas atuais
]

normas gerais dos contratos e normas gerais do negócio jurídico. Já no caso


dos contratos atípicos existe maior dificuldade, sendo necessário que se siga
o caminho até os princípios gerais do direito e a analogia, sem passar pelas
normas de um tipo, já previamente organizadas."

2.1 Contratos atípicos

Os contratos atípicos em sentido estrito são aqueles que não possuem


um regime legal exaustivo e tampouco uma praxe em mercado recorrente. Em
sentido mais largo, são aqueles sem regime legal, regime este que muitas vezes
é denominado, por razões de economia mental, de tipo contratual. Entretanto,
como já adiantado, os contratos atípicos tem tipo contratual, entendido como
um modelo operacional que lhes traga uma solução quando de litígio ou que
regule o modus operandi de seu sistema de nulidades e de eficácias próprio
e específico.
São atípicos, muitas vezes, contratos especialmente desenhados para si­
tuações irrepetíveis — contratos atípicos stricto sensu, como também contratos
que se reiteram na prática sem terem recebido um regime legal exaustivo —,
os chamados contratos atípicos em sentido largo. Entre estes, merecem atenção
especial os contratos sociojurisprudencialmente típicos, legalmente atípicos. É
o caso, no Brasil, atualmente, por exemplo, do contrato de fornecimento.
Os contratos atípicos surgem por diversas razões. Muitas vezes pela
insuficiência dos modelos encontráveis nos Códigos e leis extravagantes, ou­
tras pela importação de operação econômica de outro país para o nosso, sem
precedente normatização. Outras ainda para possibilitar elaborar um especifico
design contratual.
O contrato de franquia, por exemplo, quando surgiu e antes de ser re­
gulado pela L 8.955/1994, era contrato atípico. Assim, por exemplo, decidiu o
STJ que não deveria ser considerado, ainda que parcialmente, como contrato de
prestação de serviços para fim de incidência do ISS. É composto de distribuição,
colaboração, concessão de autorização para uso de marca, assistência técnica,
exclusividade. Compõe-se de relações jurídicas diversas. Assim, foi moldado
pela autonomia privada como um outro contrato. Em decisão assim ementada,
decidiu o tribunal: “Tributário. lSS. “Franchising”. l. Franquia empresarial está
conceituada no art. 2.º, da Lei 8.955/1994. 2. O referido contrato é formado
pelos seguintes elementos: distribuição, colaboração recíproca, preço, concessão
de autorizações e licenças, independência, métodos e assistência técnica perma­

'ª Nesse sentido. João de Matos Antunes Varela, ob. cit., p. 149.
REDES CONTRATUAIS E CONTRATOS COLIGADOS 471
!

nente, exclusividade e contrato mercantil (Adalberto Simão Filho, Franchising,


São Paulo, 3. ed., Atlas, l988, p. 33/55). 3. Compreende-se dos elementos
supra que o referido contrato é formado por três tipos de relações jurídicas:
licença para uso de marca do franqueador pelo franqueado; assistência técnica
a ser prestada pelo franqueador ao franqueado; a promessa e as condições de
fornecimento dos bens que serão comercializados, assim como, se feitas pelo
franqueador ou por terceiros indicados ou credenciados por este (Glória Cardoso
de Almeida Cruz, em Franchising, Forense, 2. ed.). 4. É, portanto, contrato
de natureza complexa, afastando-se da caracterização de prestação de serviço.
5. [88 não devido em contrato de franquia. Ausência de previsão legal. 6.
“ 1]
Recurso da empresa provido por maioria .
l-lá autores que situam os contratos mistos e os contratos coligados dentro
do gênero contratos atípicos.“ Esta postura, entretanto, parece-nos equivoca­
da, na medida em que alarga demasiadamente o conceito de contrato atípico.
Contrato atípico é contrato de organização de prestações não prevista em tipos
contratuais. Mas sempre um contrato único, o que o afasta da coligação e não
formado necessariamente por prestações combinadas de tipos preexistentes — o
que levaria à qualificação de contratos mistos.

2.2 Contratos mistos

Os contratos mistos são contratos em cuja estrutura encontram-se ele­


mentos de diferentes tipos contratuais já conhecidos. São contratos em que as
prestações são arranjadas pelo ato de autonomia privada de modo a conferir­
lhes uma feição tal que combine as diversas prestações.
O exemplo clássico de contrato misto é o contrato de compra e venda
a preço vil, em que se compõem elementos do contrato de compra e venda
— troca de coisa por preço — e da doação — atribuição patrimonial gratuita.
O contrato misto caracteriza-se por uma duplicidade de causas, ou seja, pela
presença da causa concreta de dois ou mais tipos contratuais distintos.
O elemento caracterizador do contrato misto é a combinação das prestações
de diferentes contratos. Assim. sua causa abstrata e a fusão de prestações de
contratos típicos.” “São os contratos cuja estrutura engloba elementos típicos
de dois ou mais contratos nominadosº'.”

'ª STJ. REsp 22I577/MG. rel. Min. José Delgado, j. 23.ll.1999. m.v.. DJU 03.04.2000.
“ Nesse sentido: Rodrigo Xavier Leonardo. Redes contratuais no mercado habitacional. São
Paulo. RT. 2003. p. 96.
Cfr. Rodrigo Xavier Leonardo. ob. cit.. p. 99.
"' João de Matos Antunes Varela. ob. cit.. p. l49.
472 DIREITO CONTRATUAL — temas atuais
[

Os contratos mistos podem ser combinados, de tipo duplos, mistos


em sentido estrito ou, ainda, típicos com prestações subordinadas de outra
espécie."
Nos contratos combinados reproduz-se a estrutura de duas ou mais prestações
decorrentes de um contrato. que fica vinculada ao cumprimento de apenas uma
prestação unitária da outra parte. Assim, o contrato de prestação de serviços
de telefonia celular envolve prestação de serviços e alienação, contra o paga—
mento de um preço por parte do consumidor. Para tentar fugir a combinação
contratual, as lojas dividem logicamente o que e' um contrato só, até mesmo
para evitar a prática (vedada) da venda casada, cobrando separadamente o que
e' uso da linha e o que e preço do aparelho. Mas as operações econômicas
estão vinculadas e. quando de promoções do tipo compre um celular e ganhe
minutos, existe uma prestação unitária do consumidor contra prestações de dois
contratos típicos do fornecedor. Do mesmo modo, o contrato de prestação de
serviços turísticos (celebrado pelas agências de viagem) envolve uma série de
prestações, como hospedagem, transporte, alimentação, contra pagamento de
preço. Temos. assim, contrato misto da espécie combinado. Existe uma prestação
típica para uma das partes e diversas prestações para a outra.
O contrato de tipo duplo caracteriza-se pelo arranjo contratual em que
uma parte se obriga a uma prestação de certo tipo contratual, sendo a presta—
ção correspondente, a cargo de outra parte, derivada de outro tipo contratual.
A prestação de um determinado serviço em troca de residência gratuita, por
exemplo, é contrato misto de tipo duplo. Combinam-se o tipo da prestação
de serviços e o tipo da locação, sem os elementos completos de cada um
dos contratos, qual seja, a contraprestação pecuniária. O caráter misto vem
caracterizado pela duplicidade de tipos que desencadeia prestação de um tipo
agregada à prestação de outro dos tipos. Outro exemplo de contrato de tipo
duplo seria o de um advogado que patrocinasse uma causa de um pequeno
estabelecimento comercial em troca do fornecimento de mercadorias deste mes­
mo estabelecimento. O sinalagma se compõe por meio dos tipos da prestação
de serviços e da compra e venda.
Os contratos mistos em sentido estrito seriam aqueles em que a estru—
tura de um contrato é utilizada como Em para o resultado prático de outro
contrato. Trata-se de uma espécie de negócio indireto. Assim, por exemplo,
seria negócio misto (não contratual) a renúncia onerosa ao usufruto para eli­
dir a possibilidade de compra e venda de usufruto, fim prático que se obtém
mediante o negócio unilateral de renúncia. No campo contratual, a doação de
terreno para incorporação com encargo de contradoar unidades autônomas é

" Cli'. Rodrigo Xavier Leonardo ob. cit., p. 99-IOI.


REDES CONTRATUAIS E CONTRATOS COLIGADOS 473
r
doação que instrumentaliza uma troca. Há, como na simulação, dois níveis
negociais, um aparente e outro oculto, sem que, no caso concreto, haja que
se falar na nulidade do CC l67 pela ausência de interesse em lesar terceiro e
pela licitude que a abertura do CC 425 permite.
Quanto aos contratos tipicos com prestações subordinadas de outra espécie,
esclarecedoras as palavras de R. X. Leonardo: "Nestes, haveria um contrato
típico central no qual seriam adicionadas prestações laterais, nitidamente su­
bordinadas, provenientes de outros contratos tipicos. Tome-se, por exemplo,
o contrato típico com prestação subordinada, a compra e venda de sacas de
cereais unida ao dever de devolver os sacos em determinado prazo, posterior
à entrega daquele produto".” Existem deveres acessórios prestacionais que
pertencem a outras espécies contratuais, no caso concreto, do comodato.
Todas essas espécies de contratos não se confundem com a noção de
rede contratual, a uma porque a causa da rede mantém a causa de cada um
dos contratos interligados, permitindo apenas, por expansão, o surgimento de
uma causa sistemática, que nada mais é do que uma conexão fortíssima entre
as diferentes causas, que permanecem individualizadas apenas do ponto de
vista estrutural. A duas a rede não pressupõe a formação de um novo tipo de
contrato, coisa que é muito freqiiente nos contratos mistos, pois que compõe
uma operação econômica unitária expressa por um único regime típico. Muitas
vezes a combinação de tipos propiciada pelo contrato misto pode fazer surgir
um novo contrato típico, como foi o caso da franquia e do fornecimento.
Interessante que a própria lei do contrato de franquia a caracterize como um
sistema de relações jurídicas, logo no L 8.955/l994 2.º.
Entretanto, os conceitos são instrumentalmente úteis porque permitem, na
rede, a identificação de possibilidades análogas à dos contratos mistos e porque
a rede pode ser vista como espécie de contrato coligado, como se verá adiante.
Além disso, deve-se recordar que o direito, como ciência social aplicada, apre­
senta consequencias práticas. e estas, no caso do contrato misto, apontam para
a solução de conflitos com uso da legislação pertinente. Afinal, se o contrato
é misto, que lei deve ser aplicada? Assim também ocorre com a rede.
Para reger o contrato misto, existem três teorias fundamentais: a teoria da
absorção, a teoria da incidência respectiva e a teoria da aplicação analógica.
Ao lado delas se desenvolveu também a teoria da criação.
Para a teoria da absorção seria necessário identificar o tipo preponderante
na relação contratual e, a partir dele, permitir a incidência das normas próprias
do tipo contratual. Existiria. desse modo, um contrato ou uma prestação de

" Rodrigo Xavier Leonardo. ob. cit.. p. l0l.


474 DIREITO CONTRATUAL - temas atuais
l

um contrato que sempre exerceria o papel principal e fundamental, sendo as


demais prestações acessórias, permitindo o julgamento pela regra de que o
acessório segue o principal.

“O elemento contratual mais importante, na economia geral do acordo, absorvia


deste modo lado o sentido do conjunto, detem1inando o seu regime global — e
daí que esta orientação fosse crismada na doutrina com a designação sugestiva
de lcoria da abstração".in

A grande crítica que se faz a esta teoria é o fato de permanecer no campo


da tradicional distinção entre acessório e principal, profundamente artificial em
matéria de combinação das prestações. Seu mérito, entretanto, é notável nos
casos em que haja apenas uma ligeira alteração no regime do tipo de deter­
minado contrato, pela introdução de prestação lateral de outro contrato. Nesses
casos. pode-se reger o contrato misto pelo tipo reitor de contrato.
Para a teoria da incidência respectiva, deve-se permitir a subsunção de cada
parte do contrato, correspondente a cada diferente tipo contratual, da respectiva
norma jurídica reitora. Assim, para contrato misto de locação e empreitada, para
cada parte do contrato, as normas de cada tipo de contrato é que o regerão.
A crítica que se pode mover contra essa teoria é que acaba por cindir a
operação econômica subjacente ao contrato em setores, quando muitas vezes
ela é um todo de sentido. Deve-se perceber que o contrato misto não é uma
miscelânea de prestações arranjadas, sem articulação com o conjunto.:0
O mérito de cada uma das teorias. como se vê, acaba por ser o demérito
da outra.
Para a teoria da interpretação analógica, aproveita-se da válvula de aber­
tura do sistema contida no LlCC 4.“ para, fugindo das teorias de absorção ou
de combinação, reconhecer a atipicidade da figura e procurar um específico e
próprio regime que, sem ir contra a lei, permita dar toda a potencialidade que
o ato de autonomia privada merece com base na similitude com outras figuras
ou mesmo com contratos do ordenamento. Ad similia procedere.
Por fim, existe a teoria da criação, a qual, partindo do negócio tal como
entabulado pelas partes, lhe confere um regime normativo específico. É a essa
teoria que nos filiamos, desde a apresentação no I Congresso Internacional de
Direito das Obrigações da FGV.“

'“ João de Matos Antunes Varela. ob. cit., p. l53.


:" ldem, ibidem. p. l55.
“ "Prescindindo por ora. de um aprofundamento temático no teor dos julgados do ponto de
vista da qualificação contratual e da operação econômica envolvida. chama a atenção o
REDES CONTRATUAIS E CONTRATOS COLIGADOS 475

Temos advertido que o contrato misto é o contrato com estrutura for­


mada por elementos de dois ou mais contratos. Há também negócios mistos
não contratuais, como já explicamos. No contrato misto, a vontade de cada
uma das partes acorda em elaborar uma declaração negocial cuja subjetividade
intencional (vontade interna) engloba diversos caracteres, elementos do tipo
(categorias inderrogáveis) de outros contratos. Expressa-se (declaração de von­
tade) de modo combinado. A vontade de negócio jurídico combina elementos
de tipos contratuais diversos, mas mantém a sua unidade. É uma só. Essa
combinação não consiste em uma mera adição, como ocorre com um cozinheiro
que combina diferentes ingredientes. O caráter misto de um contrato não é
critério meramente formal ou aditivo. A ele subjaz uma conexão econômica
tão íntima que, apesar da fusão de partes de contratos, há uma única prestação
devida por cada uma delasfª O contrato é misto, mas é uno, é um todo, não
só do ponto de vista econômico, mas existencial. É delineado e querido por
ser tal ou qual contrato, com aquelas prestações específicas. A sua unidade se
dá também na decisão das partes. É importante vincar bem essa perspectiva,
para não corremos o risco de subordinar os efeitos do contrato e a sua exis­
tência à lógica do mercado, em detrimento da liberdade e da responsabilidade,

emprego da palavra “descaracteriza”, agora no sentido negativo. antes no sentido positivo.


Quer-se com isso indicar que certos e determinados elementos. pertinentes de maneira pre­
ferencial a certos e determinados negócios jurídicos obrigacionais, podem. mediante uma
combinação real diferente daquela habitualmente praticada pelos operadores, alterar sua
estrutura a tal ponto que não sejam mais aquele contrato que se nomeou em instrumento
ou em reiteração da operação em mercado daquele modo. Parte-se de um quid real. para
buscar a qualificação da espécie e a descoberta do modelo jurídico (legal ou supralegal)
pertinente e. consequentemente. identificar o regime normativo a estabelecer diretrizes para
a espécie. Há algo que o tribunal está a apontar como determinante para caracterizar ou
não o contrato: existem elementos objetivos. para além do acordo. que constituem o tipo do
ponto de vista concreto. Existe algo que no contrato o caracteriza ou que. pelo contrário o
não caracteriza como pertencente a um tipo. É possível detectar elementos essenciais, que
foram identificados. talvez em terminologia imprópria no Code Civil. como vinculados it
natureza da obrigação mesmo que a convenção a eles não faça referência, por integração
determinada pela equidade, usos ou mesmo pela própria lei (art. l.l35). Há uma marca
própria a apontar para um necessário não essencial a permitir a tarefa de identificar o
nome da figura em apreço“ (Luciano de Camargo Penteado. Causa concreta. qualificação
contratual, modelo jurídico e regime normativo: notas sobre uma relação de homologia a
partir de julgados brasileiros. Revista de Direito Privado. n. 20. p. 235-236).
Cfr. Tullio Ascarelli. Contrato misto. negócio indireto. “nego/im" nuli'lum cum dona/iam)".
Jornal do Foro. Lisboa. l954. p. 10. Tratando de tema afim. que e o de contratos coligados.
um autor conclui que a cadeia contratual constitui um contrato único. Por isso, a perspec—
tiva de análise do contrato misto não e' plenamente adotada neste estudo. Mais importante
e' perceber que a figura em estudo é um caso de atipicidade contratual. Cfr. Rodolfo Sacco
e Giorgio De Nova. ob. cit.. p. 469.
476 DIREITO CONTRATUAL — temas atuais

atributos essenciais da dignidade da pessoa humana. Assim, não apenas a


operação econômica condiciona a estrutura do negócio misto, mas também o
modo como as partes o desenham, ou seja, o específico design contratual que
elas assumem como vinculante.
Um exemplo de contrato misto, dado por Ascarelli, é o do aluguel de
cofre bancário. Há um contrato misto de outros dois, quais sejam a locação e
o depósito. Pelo primeiro contrato, a tradição da posse outorga ao locatário um
direito de posse sobre o cofre, no qual depositará seus bens. O banco é credor
de uma prestação em dinheiro que remunera o fato de ter posto à disposição
do cliente o espaço. Os bens depositados passam a estar em posse imediata do
banco. Ele é o fiduciário, que tem o dever de guarda-los. Há uma pluralidade
de elementos dos dois contratos, mas que é fundida pelas partes em uma só e
idêntica declaração de vontade, a qual opera por si efeitos jurídicos próprios,
os quais combinam os efeitos típicos das duas espécies referidas. Entre os con­
tratos bancários, há muitos que são negócios mistos. O desconto, por exemplo,
é o misto de uma cessão de crédito e um negócio cambial. Evidentemente,
não há elementos de dois contratos para formar um terceiro neste caso, mas
elementos de dois negócios jurídicos.
O contrato misto, normalmente, é o meio próprio para a autonomia das
partes elaborarem novos contratos."
Outra alternativa razoável seria aplicar cada teoria para cada espécie de
contrato misto, de acordo com uma prévia interpretação que permitisse vis­
lumbrá-la como a mais adequada.

2.3 Contratos coligados

Os contratos coligados diferem dos contratos simplesmente atípicos pelo


fato de que consistem numa combinação de contratos distintos. Também não
podem se confundir com os contratos mistos, na medida em que envolvem
duas ou mais espécies contratuais, unidas, entretanto, pela finalidade econômica
unitária ou pela comunhão de uma operação econômica só.
Essa distinção entre contratos, mantido algum tipo de nexo de vinculação
entre eles, é o que caracteriza o fenômeno dos contratos coligados, também
chamados de união de contratos.“ Também se pode denominar o fenômeno
de cumulação de contratos.

Cfr. Luciano de Camargo Penteado. Doação com encargo e cama con/ramal. Campinas,
Millennium. 2004, p. 271-272.
“ Cfr. Rodrigo Xavier Leonardo. ob. cit.. p. lll.
REDES CONTRATUAIS E CONTRATOS COLIGADOS 477

O que separa os contratos coligados dos contratos mistos é a existência


de duas relações jurídicas obrigacionais distintas, geradas por dois ou mais
contratos. No contrato misto existe apenas um contrato. Para separar as duas
espécies de contratos atípicos, é necessário tomar por baliza a lei, que estabe­
lece os parâmetros de cada tipo.“
Os contratos coligados podem ser de coligação meramente externa ou
instrumental, de coligação com dependência ou ainda de coligação alternada.
Nos contratos de coligação externa, a união de contratos se dá de modo
apenas eventual, sem conexão verdadeira. sendo que. em um mesmo instru­
mento de contrato, em um documento só, encontram-se contratos distintos,
com finalidades jurídicas e econômicas diversas. Também pode ocorrer união
externa sem instrumentação. Assim, por exemplo, quando se compra graxa de
um engraxate e se solicita que proceda ao engraxar de um sapado, existem
dois contratos unidos de modo meramente eventual. Não há, propriamente fa­
lando, coligação, nesses casos. Entretanto, por vezes, a situação pode mostrar
uma relação maior entre os contratos, a implicar uma outra classificação. A
coligação externa é raramente verilicada na prática.
Nos contratos de coligação com dependência, esta pode se verificar de
modo unilateral ou bilateral. Os contratos coligados de dependência unilateral
caracterizam-se pela acessoriedade de um em relação ao outro. Ou seja, um
contrato só tem sentido se um primeiro contrato existir. Existe distinção estrutural
entre vínculos, mas unidade funcional entre elesfª' .lá aqueles de dependência
bilateral apresentam-se como uma união de contratos coordenada, sem relação
de subordinação de um contrato em relação aos outros. A funcionalidade de
uma só operação econômica foi escandida em duas relações contratuais paritá­
rias. Exemplo das da primeira espécie seria o mútuo com garantia hipotecária.
Nesse caso, empréstimo e contrato de garantia estão em relação de dependência
unilateral, estando a última vinculada ao primeiro, mas não sendo verdadeira
a recíproca. Já é exemplo de dependência bilateral a concessão de marca com
distribuição de produtos em determinadas espécies de franquia.
Analisar os contratos coligados de dependência bilateral, especialmente
de modo isolado, sem considerar um em relação ao outro, ou ainda melhor,
sem considerar a relação fonnada entre um e outro, no campo intra-eficacial,ª7
e' perder de vista a possibilidade de que a causa de um deles influencie a

ªª João de Matos Antunes Varela. ob. cit.. p. 167-168.


ºº Nesse sentido: Rodrigo Xavier Leonardo. ob. cit.. p. 124.
ª Sobre a importância da noção de relação intraelicacial para a compreensão de temas atuais
do direito privado. r. Luciano de Camargo Penteado. Efeilox contra/unix pL'I'UHIL' lcrccimx.
São Paulo. Quartier Latin. 2007. p. lºl e segs.
478 DIREITO CONTRATUAL - temas atuais

causa do outro. .lá dissemos que nessas hipóteses a causa pode ter um efeito
transubstanciador,“ ou seja, de transformar os tipos distintos em um terceiro
tipo impensado originariamente pelas declarações de vontade das diferentes
partes contratantes.
Nos contratos de coligação alternativa, determinada condição, se acaso
implida, desencadeia o surgimento de outro contrato. Assim, por exemplo,
pode-se coligar o fornecimento à prestação de serviços, quando se pactua que,
havendo muitas mercadorias em estoque, o fornecedor deverá encaminhar pessoa
para alocá-la em local de exposição destas a público.
E na união de contratos realmente verificada, e excetuada, portanto, a
hipótese da união externa stricto sensu que o tema das redes de contratos
encontra o seu campo mais fértil de aplicação.
Na coligação instrumental ou externa, os problemas jurídicos parecem
adstringir-se à eventual possibilidade de alegação de exceção do contrato não
cumprido para o caso do descumprimento de uma prestação de dado contrato
perante o pedido de cumprimento de outra prestação do contrato combinado.
Tal possibilidade está prontamente afastada pela vedação que a própria noção
de coligação instrumental propicia. Nos contratos coligados dessa natureza,
as prestações de cada um deles devem ser individualmente desempenhadas,
mantendo cada um sua individualidade. Assim, no exemplo do engraxate, não
seria correto juridicamente reter o valor do serviço fundado em que a graxa
adquirida não foi entregue do modo como combinado.
Nos contratos de dependência unilateral, a mais importante consequencia
seria a absorção pelo tipo principal dos caracteres essenciais do tipo secundário, de
modo que, em geral, serão as regras do tipo principal, à falta de norma específica
para o tipo acessório, que regerão a sua disciplina jurídica. Assim, predominaria
a teoria da absorção, pois, do ponto de vista jurídico, representa a tradução da
unidade de operação econômica projetada em coligação dessa natureza.
Nos contratos de dependência bilateral, as consequências são múltiplas e
variadas. Conforme o caso, haverá a necessidade de criação de uma solução
mais adequada. É, portanto, nesse específico campo que deve predominar a
chamada teoria da criação em matéria de regime de contratos atípicos. Aqui se
deve atentar para a concretização das cláusulas gerais, especialmente de boa-fé
objetiva, e à função social dos contratos, bem como para os fins sociais da
norma e do bem comum.
Como afirma P. P. de Vasconcelos, a respeito da teoria da criação: “Não
se trata, propriamente, de criar direito, de criar uma solução juridica ad hoc

º' Luciano de Camargo Penteado, Causa concreta, qualificação contratual... cit., p. 248.
REDES CONTRATUAIS E CONTRATOS COLIGADOS 479

para um problema isolado, mas antes de concretizar principios, cláusulas gerais


ou standards, e de construir, ou desconstruir, a disciplina contratual, nunca
deixando de ter em mente que essa concretização é feita sempre a partir do
próprio contrato e atentas as circunstâncias do caso, num processo de inter­
“ «q
pretação complementadora .
Apesar de existir uma forte identificação entre autonomia privada e con­
tratos coligados, na medida em que se afastam dos modelos legais, pode haver
contrato coligado por força de lei, como ocorre com o contrato de transporte
aéreo e o seguro do passageiro. Nesse caso, o caráter coligado é geneticamente
determinado pela lei.JO

3. FATORES DETERMINANTES DE UMA REVISÃO DA DOUTRINA

Até aqui, pode-se ver como o sistema de direito privado tradicional se


acomoda para fornecer soluções aos problemas práticos que eventualmente o
tema da coligação de negócios oferece. Entretanto, o tema específico das redes
de contratos, propriamente contemporâneo, merece tratamento jurídico próprio e
específico, de que a teoria dos contratos coligados, em si mesma considerada,
não é capaz de dar conta.
Tais deficiências, entretanto, só podem ser analisadas se primeiro nos der­
mos conta de que existem alguns fatores socioeconômicos que desencadearam
a necessidade de uma revisão da doutrina dos contratos.

3.1 Contratação em massa

Um dos pontos em que mais se insiste na argumentação juridica contem­


porânea como fator desta modificação e a contratação em massa. A contratação
massificada, não apenas a contratação para consumo, mas também ela, levou
a um modelo de especialização flexível da economia e ao surgimento de um
pós-fordismo por ela caracterizado.
A contratação em massa significa operações econômicas padronizadas,
reiteradas e organizadas em setores de acordo com a lógica da atividade da
grande empresa. Daí que se possa falar do contrato de adesão como fruto dessa
especifica lógica em que é preciso construir instrumental juridico adequado ao
escoamento da produção. Entretanto, hoje se pode falar em uma verdadeira
revolução copemicana da função do contrato de adesão, que passa a ser um

º” Pedro Pais de Vasconcelos. Contratos atípicas. Coimbra, Almedina, 2002, p. 239.


ªº Nesse sentido: Orlando Gomes, Con/ralos, 25. ed.. Rio de Janeiro. Forense, 2002, p. 104.
480 DIREITO CONTRATUAL — temas atuais

contrato que organiza a atividade por setores, massificando desde a idealização


do produto até sua retirada do circuito econômico pelo consumidor final.
O contrato de adesão se presta, desse modo, a, desde o interior da ati—
vidade empresarial, organizar a empresa. Assim, o destinatário da contratação
pouco ou nada conhece a respeito do como e do porquê contratar, e menos
ainda dos custos de transação decorrentes da contratação. Isso não significa,
entretanto, afirmar que o contrato de adesão (recta: contrato por adesão), seja
um mal. Trata-se de uma necessidade de escoamento da produção na sociedade
de massa. Sem ele não existe o ganho de escala e também o correlato bara­
teamento do preço para o consumidor final. Penscmos no absurdo que seria a
negociação de apenas um aparelho e um serviço de telefonia celular, para um
cliente. O custo da operação seria imenso. Daí que a contratação por adesão
implique uma grande benesse social, por outro lado.
O contrato por adesão, entretanto, não é estático, mas evolui com o tempo.
De contrato de adesão clássico, por assim dizer, aos contratos contemporâneos,
há uma evolução.
A metáfora que serve a um primeiro passo dessa evolução é a da cadeia,
pela qual se pode conceber um enlace instrumental entre cada uma das etapas do
fator de produção até o consumo. Assim, se pode pensar no frango resfriado que
se compra em um mercado. Existe padronização desde a atividade de criação,
passando pelo abate até o resfriamento. Pode existir maior ou menor setorização,
mas a atividade é organizada de tal modo que existe uma cadeia de produção, uma
sequência de operações econômicas que Formam diferentes contratos, celebrados
em massa, desde com o produtor, até com o consumidor final.
Hoje, entretanto, as operações econômicas se tornaram tão complexas e
ao mesmo tempo tão organizadas, que existe um sistema de contratos estru—
turados para ofertar produtos diferenciados no mercado. Não se trata mais do
produto frango, mas do cartão de crédito, da habitação residencial, da fran­
quia. São produtos complexos, que dependem de vários contratos, os quais
não estão apenas encadeados em sequência linear, mas sim emaranhados em
forma de rede, a propiciar o surgimento de um sistema contratual que goza
das características de ordem e unidade, de diferenciação e, ao mesmo tempo,
de destinação a finalidades previamente desenhadas pela arquitetura contratual
de que as partes se valeram.
Na cadeia de produção, “o caracteristico é que se verifica nela uma su­
cessão temporal de atos jurídicos, de um ao outro e assim sucessivamente")'
Na rede os atos são simultâneos, não sucessivos.

“' Ricardo Lorenzetti. Redes contraetuales: conceptualimción juridica. relaciones internas de


colaboración, efectos frente a terceros. Revista de Direito do Consumidor, n. 29, p. 24.
REDES CONTRATUAIS E CONTRATOS COLIGADOS 481

A contratação em massa, do ponto de vista do direito dO consumo, tam­


bém propicia a formação da conexidade. esta forma especialíssima de relações
jurídicas desencadeadas por contratos cativos. “A conexidade é, pois, o fenô­
meno operacional econômico de multiplicidade de vínculos, contratos, pessoas
e Operações para atingir um fim econômico unitário e nasce da especialização
das tarefas produtivas, da formação de redes de fornecedores no mercado e,
” ):
eventualmente, da vontade das partes .

3.2 Insuficiência dos tipos

Quando se analisa a contratação contemporânea dessa maneira, a de que


a padronização está não mais na relação fornecedor consumidor, mas organi­
zada em toda a cadeia de ciclo distribuidor de produtos e serviços, percebe-se
que a noção de tipo contratual, tal qual desenhada pela teoria tradicional do
direito dos contratos, é insuficiente. Quando se fala em rede de contrato, a
qualificação de cada um dos vínculos obrigacionais tem relevância secundaria
diante da percepção do todo do organismo rcticularizado.
Assim, por exemplo, no cartão de crédito, há desde a prestação de
serviços de administração, até a cessão de créditos, passando, muitas vezes,
pelo financiamento do saldo. Mas, em termos globais, importa conceber que
a atividade e' de cartão de crédito e que, portanto, é esse sistema que tem de
ser levado em consideração. Tratar o contrato como atípico, pura e simples­
mente, também não explica a questão a fundo, na medida em que não se está
diante de uma relação bilateral não recondutívcl a determinado tipo específico,
mas diante de um complexo de relações, entre diferentes sujeitos, as quais se
interligam em rede.
Diante desse regime, a busca por um modelo jurídico a que se siga
uma especifica consequencia jurídica, ou seja, a relação entre suposto de fato
e cstatuição legal, perde sentido. Faz-se necessário o exame do sistema de
relações jurídicas e, portanto, da rede de contratos.

3.3 Necessidade de analisar a causa contratual

Quando se fala de rede de contratos, ou de redes contratuais, portanto, é


necessário que se entenda que não se despreza a consideração de cada espécie
contratual que a forma. E importante notar que ela persiste, mas integrada num

l:
Cláudia Lima Marques. C omralos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed.. São Paulo.
RT. 2002. p. 93.
482 DIREITO CONTRATUAL - temas atuais
l

sistema que lhe dá todo o sentido e sem o qual fica impossível analisar cada
uma de suas partes.
O instrumento mais adequado da teoria dos contratos que permite decom­
por e recompor as relações jurídicas por ele engendradas é a causa contratual,JJ
em sua acepção concreta. Nenhum dos outros elementos, como partes, vínculo,
objeto, garantia, serve para conceituar a rede, na medida em que geralmente
esta é formada por várias partes, em tomo de vários vínculos, com objetos
distintos e várias garantias, correlatas a esses objetos.
A causa, entretanto, como traduz a específica ligação entre prestações,
permite identificar cada relação contratual e a rede como um todo, decom­
pondo as diferentes segmentações em que se divide a operação econômica
unitária. Assim, podemos ver a causa de cada contrato que integra a rede
e a causa da rede.
Quando se identifica a causa da rede, podem-se colacionar os remédios
normalmente relacionados à idéia de causa, especialmente à noção de causa
sinalagmática, como a rescisão lesionária, a revisão judicial dos contratos, a
resolução por onerosidade excessiva, a exceção do contrato não cumprido. Os
remédios tradicionais que mantêm a co-respectividade entre as prestações po­
dem, portanto, ser plenamente utilizados nas redes contratuais; entretanto, não
devem ser invocados para cada um dos segmentos, mas apenas em tomo da
causa da rede, denominada por alguns autores de causa sistemática.“ Preferimos
a expressão causa da rede contratual ou causa da rede.
Assim como os remédios sinalagmálicos tradicionais, seria possível pen­
sar, pela cláusula geral de função social do contrato. em uma expansão dos
deveres e obrigações solidárias na rede de contratos, a beneficiar todos os
participantes da causa sistemática da rede. Desse modo, por exemplo, eventual
beneficio obtido por um dos franqueados poderia ser estendido aos demais,
normativamente. por força da cláusula geral.

4. NOÇÃO DE REDE CONTRATUAL

A rede contratual pode ser definida como uma coligação de contratos de


forte dependência destinada a organizar uma operação econômica unitária. Trata­
se da união de contratos de causas distintas para formar uma causa contratual

“ No mesmo sentido. Jose” Carlos Barbosa Moreira. Unidade ou pluralidade de contratos


— contratos conexos. vinculados ou coligados. Lilisconsórcio necessário e litisconsórcio
facultativo. "Comunhão de interesses". “conexão de causas" e “afinidade de questões por
um ponto comum de fato ou de direito", RT. v. 8l7. p. 756.
" Ricardo Lorenzetti. ob. cit., p. 23.
REDES CONTRATUAIS E CONTRATOS COLIGADOS 483
[

da rede, a qual permite a referência a deveres e direitos decorrentes de um


vínculo distinto do vínculo obrigacional tradicional, que une partes contratantes.
Ao se identilicar uma causa contratual reticular, identifica-se, correlatamente,
um nexo de imputação de responsabilidades aos sujeitos integrantes da rede
diverso dos nexos de cada um dos contratos isoladamente considerados.
Na franquia, por exemplo, podem existir direitos e deveres entre os
franqueados de natureza contratual, sem que haja entre eles contrato firmado.
São deveres de cooperação e assistência, como também deveres de lealdade e
transparência. Assim, por exemplo, em determinadas espécies de franquia, há
delimitação espacial para que se instale outro franqueado da mesma rede. A
existência de uma causa da rede, que encontra entre seus elementos a oferta
de produtos de determinado padrão de qualidade em regime de concorrência
que permita a subsistência da operação econômica de cada franqueado impõe
a cada um deles o respeito a setores geográlicos de mercado, uns em relação
aos outros. Assim, não só inadimple a obrigação o franqueador que autoriza
a instalação de franqueado fora do espaço geográfico, mas também quem o
faz. Seria possível, desse modo, demanda-lo diretamente.
Nas redes, cada contrato pode ser individualizado, mas a sua união lhes dá
uma “tonalidade especial“.“ Nessa tonalidade é preciso considerar a existência
de um vínculo associativo, que estabelece, entre os contratos que a compõem,
uma relação intra-eficacial quase-societária.
Há um interessante dispositivo do CC a que temos chamado atenção em
outras oportunidades. Trata—se do CC 875 caput: “Se os negócios alheios fo­
rem conexos ao do gestor, de tal arte que se não possam gerir separadamente,
haver-se-á o gestor por sócio daquele cujos interesses agenciar de envolta com
os seus". Ou seja, na prática. o membro da rede que atua em beneficio próprio
cria também, automaticamente, um beneficio para toda a rede. Isso porque seu
negócio é conexo ao dos demais sujeitos, que podem ser equiparados aos donos
do negócio na gestão de negócios. Assim, forma-se entre o que atua obtendo
direito próprio em rede contratual e os demais em posição jurídica equiparada
sociedade intra-eficacia]. Essa relação societária permite falar em solidariedade
ativa legal, na combinação desse dispositivo com o CC 421. Desse modo, o
financiado que obtém beneficio em cálculo de juros permite a extensão do
mesmo beneficio aos demais integrantes da rede.
Assim, nos contratos de plano de saúde, existe desde a prestação de
serviços entre paciente e clínica, outra relação entre paciente e operadora e
uma terceira entre a operadora e a clínica. Ao se fazer uso do plano, as três
relações são atuadas de modo unitário, instantaneamente. Esse aspecto caracteriza


ldem, ibidem.
484 DIREITO CONTRATUAL — temas atuais

uma rede contratual. Assim, por exemplo, têm sido condenadas empresas de
plano de saúde por má prestação de serviços dos profissionais que credencia,
nada obstante não sejam parte da relação jurídica. A própria noção de parte
se dinamiza, bem como a noção de terceiro.
A imputação de responsabilidadcs a sujeitos diversos daqueles a quem
se imputaria de acordo com as regras tradicionais da responsabilidade civil
se dá quando se verifica forte dependência e controle daquele a quem se vai
imputar a responsabilidade.“
Os elementos tipificantes da rede, segundo Lorenzetti,"7 são a gestão comum
por um ente, em geral mediante um contrato marco que unifica a atividade dos
demais, ou então a associação entre eles. mediante integração ou conexão de con­
tratos. Barbosa Moreira afirma, em interessante parecer, que “acentuam os autores
que não é essencial a vinculação externa dos negócios, bastando que as recíprocas
prestações tenham sido pactuadas como elementos que se coordenam, na intenção
das partes, em vista do lim comum que se quer atingir. Algumas vezes, haverá
dependência bilateral, de sorte que cada um dos contratos só existe um função do
outro; mas pode haver também dependência unilateral, se um dos contratos pres­
supõe o outro sem que a recíproca seja verdadeira. Na segunda hipótese, a conexão
não fica excluída pelo fato de serem diversos os sujeitos dos contratos”?
Cada parte, nos sistemas contratuais em rede, por outro lado, deve coo­
perar com o todo. Nesse sentido, por exemplo, os deveres de adimplemento
também ganham um sentido mais forte. Descumprir um contrato em rede implica
dano de maior gravidade que o descumprimento de um contrato tradicional,
justamente porque o descumprimento implica desequilíbrio do sistema como
um todo e, portanto, de cada uma de suas partes.
São, desse modo, pressupostos da rede de contratos a existência de uma
pluralidade de contratos, entendidos como negócios jurídicos formados por par­
tcs, um elo de conexão entre eles, que pode ser desde as partes até o objeto, ou
mesmo uma prestação e uma causa linal comum, entendida como causa da rede.
Em consequência da conexão, existe a formação de uma única relação jurídica,
entre as relações voluntárias, relação esta de caráter conseqúencial, ou seja, intra­
eficacial, que é a relação jurídica que permite verificar uma coesão, uma unidade
na rede de contratos. Esta garante a possibilidade de um tratamento coerente e
lógico da rede, em cada um dos seus aspectos mais importantes.“

” Nesse sentido: Ricardo Lorenzetti, ob. cit.. p. 50.


Ricardo Lorenzetti. ob. cit.. p. 31-34
"' José Carlos Barbosa Moreira. ob. cit.. p. 756.
Embora dislinga rede e contratos conexos. interessantes as palavras de Cláudia Lima Mar­
ques. respectivamente. sobre cada uma das categorias: "redes de contratos — em que cada
REDES CONTRATUAIS E CONTRATOS COLIGADOS 485

Essa categorização da noção de rede — pluralidade, conexão por elemen­


tos do contrato e causa final unitária — permite uma análise mais rigorosa do
problema da reticularização das relações jurídicas contratuais. A rede contratual
permite identilicar a idéia de sistema no campo contratual, ou seja, a presen­
ça de elementos plurais que mantêm ordem e unidade, e com isso, coesão e
completude relativas. A relatividade da completude se dá pela possibilidade de
preenchimento do regime aplicável às redes contratuais por um regime nor­
mativo específico a ser desenhado nos casos concretos pelas cláusulas gerais,
notadamente as de boa-fé (CC 422), interpretação conforme os usos (CC IB)
e função social do contrato (CC 421).

4.1 Espécies de redes de contrato


As redes de contratos podem ser entre dois sujeitos lixos ou podem
envolver sujeitos que, na denominação que temos adotado, seriam “terceiros
parte“.”
Nos contratos a sujeitos bilateralmente identificados, temos um sistema
de contratos setn sistema de partes. Nos demais, temos sistema de partes e
sistema de contratos.
A importância dos contratos conexos bilaterais se dá por conta de que pode
existir uma propagação de regimes de responsabilidade pelo inadimplemento
de um para outro contrato. Assim, por exemplo, o plano de previdência com

contrato tem sucessivamente por objeto a mesma coisa. o mesmo serviço. o mesmo objeto
da prestação. É a estrutura contratual mais usada pelos lbmccedores ao organimr as suas
cadeias de prestação ao consumidor com lbmccedores diretos e indiretos, como no caso
do seguro saúde. também usada nas colaborações entre lbmccedores para a produção (e
terceirizaçõcs) e distribuição no mercado" (ob. cit.. p. 94); e "Contratos conexos stricto
sensu — são aqueles contratos autônomos que por visarem :] realização de um negócio único
(nexo funcional). celebram-se entre as mesmas partes ou entre panes diferentes e vinculam­
se por esta linalidade econômica supracontratual cotnutn e de consumo. todos os contratos
são de consumo por conexidadc ou acessoriedadc. Esta nova visão qualificada e atnpliadora
das relações de consumo e' necessária para uma boa aplicação do CDC. A conexidade é o
metodo de comercialização e marketing. e a consequencia. que hoje pode ser facilmente
fotografada no mercado nacional" (ob. cit.. p. 94).
w
Para a noção de "terceiro-parte". consultar Luciano de Camargo Penteado. Efeitos contru­
tttais permite terceiros cit.. p. 45-48. Pedimos licença para transcrever a seguinte passagem:
"Teríamos. assim, a figura do terceiro que e parte da relação contratual sem ser parte do
contrato. Uma importante consequencia disso seria que os vícios de negócio jurídico. por se
passarem na relação entre aqueles que tomaram o contrato. não poderiam ser alegados para
desconstituir efeitos da relação integrada pelo terceiro. Daí toda a materia referente a essas
questões da formação da declaração ser inoponivel ao terceiro-pane da relação contratual"
(idem. ibidem. p. 47).
486 DIREITO CONTRATUAL — temas atuais

contrato de seguro conexo, celebrado entre a mesma seguradora e o mesmo


beneficiário, permitiria, em tese, a aplicação, conforme o caso concreto, das
normas de seguro para o contrato de plano de previdência privada.
As redes de contrato ou contratos conexos que envolvam terceiros po­
dem se organizar de diferentes modos. Podem se organizar de modo a que os
contratos se succdam em ordem lógica tal qual em uma cadeia produtiva, de
modo que exista uma relação de ordem entre eles. Desse modo. as sucessivas
compras e vendas visando ofertar um produto õnal, são exemplo clássico de
rede contratual sucessiva. A propósito, é a rede mais conhecida e assumida
legislativamente no CDC 12 caput e 7.º par. ún. Também a subcontratação,
em alguns casos enseja a rede por cadeia.
A questão da rede por cadeia suscita a possibilidade de penetração de
invalidades de um contrato para outro contrato. Entretanto, não há, propria­
mente falando, responsabilidadc sistemática ou exceção do contrato não cum­
prido sistemática, pois o crédito de um é sempre correspondente ao crédito de
outro, não existindo, em sentido próprio, multiplicidade de créditos e débitos
recíprocos a formar uma causa sistemática em sentido estrito!'
A rede pode se organizar também em estruturas triangulares ou circulares,
de tal modo que sejam intervenientes na mesma operação econômica três ou
mais partes de negócios obrigacionais distintos. Tal é o caso da venda com
pacto de alienação fiduciária em garantia."41

4.2 Rede de contratos e grupos societários

Com muita frequência as redes de contratos surgem ocasionadas por


grupos de sociedades, as quais se organizam de forma a propiciar uma efi­
ciência maior e que, no próprio âmbito interno da atividade de cada uma,
projetam relações jurídicas conexas que são celebradas entre holdings, sub­
sidiárias e coligadas.
Além da função social da empresa, seria necessário, neste específico cam­
po, atentar para a questão referente aos grupos e cadeias. “Em muitos destes
casos, a conexão contratual estará combinada com a existência de grupos de
sociedades, ou de maneira geral com certas estruturas de cadeias societárias
que envolvem holdings e subsidiárias. Em outros casos, resume-se a um con­
junto de negócios visando a uma mesma finalidade, como a transferência de

" Para a categoria. vide Carlos Nelson Konder, Contratos conexos: grupos de contratos, redes
contratuais e contratos coligadas, Rio de Janeiro. Renovar. 2006, p. l00.
" Para a classificação. vide Carlos Nelson Konder, ob. cit.. p. 100-l02.
" Carlos Nelson Konder, ob. cit.. p. “3.
REDES CONTRATUAIS E CONTRATOS COLIGADOS 487
l

controle acionário ou o aporte de recursos financeiros para a implementação


de um projeto.“
Os grupos societários podem ser de fato ou de direito. No caso do grupo
de direito (LSA 265-277), existe uma formalização da união de instituições.
de caráter contratual. Nos grupos de fato, existe uma unidade funcional e
logística, caracterizada por diversos mecanismos e estruturas, desde o controle
comum, até a coligação econômica. A ligação que se vê nas redes e' distinta
daquela observada nos grupos societários de fato (uma de caráter contratual,
outra de caráter institucional), mas existe uma profunda semelhança entre
ambos. Nesse sentido, afirma Carlos Konder que a distinção “é até menos
relevante de ser salientada aqui do que a semelhança entre eles, que e es­
" 45
pecialmente ilustrativa .
Verifica-se no grupo de fato uma conexão, uma organização, que le­
gislativamente implica a responsabilidade do acionista controlador e dos ad­
ministradores. Essa imputação de responsabilidade pode advir indiretamente.
Isto é, o controlador de uma sociedade pode ser responsabilizado por ato de
outra sociedade do grupo, se for controlador desse grupo (controle vertical),
ou ainda por atos de cadeia organizada (controle horizontal). Nisso se veriÍica
semelhança com as redes de contratos: pluralidade, conexão e unidade de causa,
com formação de relações de caráter intra-ehcacial.

"O conjunto de regras a respeito do acionista controlador e dos administradores é


aplicável aos grupos de sociedades. sejam eles de fato ou de direito. Como o acionista
controlador pode ser pessoa fisica oujurídica. tem-se. neste último caso. a figura das
sociedades holdings. Essas sociedades podem constituir um grupo. ou seja, perseguir
objetivos transpessoais que interessam ao todo, ao grupo em si. e não à parte. ou
seja, a cada uma das sociedades controladas. C onfigura-se. assim, o grupo de fato,
ou seja, a circunstância de uma sociedade exercer sobre a outra o poder resultante da
detenção da maioria do capital votante. podendo direciona-la para outros objetivos.
que podem ser iguais ou diversos dos da sociedade controlada“?

Essa transpessoalidade do interesse comum é que se identifica com a


causa sistemática que se observa nas redes contratuais.
Na presença de grupos societários, é importante verificar as consequen­
cias do exercício irregular do poder de controle. Estas podem se dar com os
administradores, com os minoritários e com os credores.” Do mesmo modo, a

" ldem, ibidem. p. 98


" Carlos Nelson Konder. ob. cit.. p. l79.
'“ Clóvis Veríssimo do Couto e Silva. Grupo de sociedades. RT. v. 647. p. 10.
" Idem. ibidem, p. l4-2|.
483 DIREITO CONTRATUAL — temas atuais

responsabilidade na rede pode se dar entre os sujeitos que a integram, perante


aqueles aos quais se destina o objeto da obrigação ou ainda perante terceiros.
No LSA 245, dispondo a respeito da responsabilidade dos administra­
dores, existe uma clara intenção de se proteger o equilíbrio, vedando-se o
favorecimento mediante influência indevida diante da presença de poder de
controle. "Os administradores não podem, em prejuízo da companhia, favorecer
sociedade coligada. controladora ou controlada, cumprindo—lhes zelar para que
as operações entre as sociedades, se houver, observem condições estritamente
comutativas ou com pagamento compensatório adequado; e respondem perante
a companhia pelas perdas e danos resultantes de atos praticados com infração
ao disposto neste artigo”. Assim, o equilíbrio do grupo necessita ser mantido
dentro da idéia de comutatividade ou pagamento compensatória. Assim, no
grupo de contratos, deve-se manter o equilíbrio sistemático da rede, de modo
que a ruptura da causa deve ensejar perdas e danos para a parte lesada.

5. REGIME JURÍDICO APLICÁVEL

O regimejurídico aplicável à rede de contratos, como se vê, depende da identi­


ficação de uma causa da rede, ou causa sistemática. Esta se depreende da percepção
da unidade de operação econômica que se transveste de diferentes contratos.
O regime jurídico aplicável à rede tem de superar, necessariamente, a
distinção entre teorias da absorção e da combinação. Deve ter em conta a causa
da rede e. portanto, se trata de um regime jurídico necessariamente construído.
O aspecto mais importante desse regime seria a aplicação, a partir da causa
da rede. de remédios sinalagmáticos tradicionais ao regime da rede.
Além disso, pode-se considerar a rede de contratos como um sistema e,
desse modo, resolver a solução de cada setor com referência ao todo.
Outro aspecto a considerar é a penetração das invalidades e das inelicá­
cias. Assim, por exemplo, pode-se considerar inválido ou ineficaz determinado
negócio jurídico integrante da rede de contratos caso um deles apenas esteja
cominado de algumas dessas sanções.
Esse regime jurídico tem um papel análogo às regras de trânsito, que
ordenam a circulação de veículos.“
A razão desse mutualismo entre contratos é análoga ao que se passa no
mutualismo que tanto se insiste haver nos contratos de seguro. No regime jurí­
dico se deve atentar para a necessidade de proteção do sistema como um todo,

" Ricardo Lorenzetti. ob. cit., p. 23.


REDES CONTRATUAIS E CONTRATOS COLIGADOS 439
l

pois ele, em si, traz beneficios distributivos e alocativos, tendendo a oferecer


produtos e serviços mais adequados e a menor custo para seus usuários.
Outro aspecto fundamental a se considerar é a questão referente à aplica­
ção da boa-fé objetiva, que recebe um colorido especial nessa matéria. Deve­
se mesmo falar em teoria da confiança, quando se fala em redes contratuais,
porque existe uma relação contínua e duradoura entre os plqvers, a qual, se
não for mantida, pode implicar uma perda de segurança para o sistema e,
conseqiientemente, para cada uma de suas partes.
Além dos remédios sinalagmáticos tradicionais, deve-se considerar a causa
temporal e a causa grupal.
Assim, por exemplo, do ponto de vista da causa final do grupo, um
maior poder econômico de um dos agentes da rede implica maior responsa­
bilidade e, portanto, a possibilidade de imputação da relação indenizatória em
seu patrimônio, ainda que não seja parte de uma das relações jurídicas isola­
damente consideradas. Obviamente, para essa imputação de responsabilidade
não basta a consideração do maior poder econômico, mas deve-se observar
a possibilidade de controle efetivo sobre a atividade da rede de contratos, ou
seja, deve-se verificar uma causalidade entre esse poder e a conexão entre os
contratos. Assim, por exemplo, pode-se responsabilizar a empresa nacional de
determinado produto por defeito dele, ainda que tenha sido vendido por empresa
de mesmo grupo econômico no estrangeiro. A marca, no caso concreto, e o
elemento de causalidade da rede que se forma entre contratos de distribuição,
fornecimento, venda e franquias eventualmente existentes.
Nesse sentido, o STJ já teve oportunidade de se manifestar em memo­
rável decisão.“ Na ocasião, um consumidor adquirira filmadora no estrangeiro
e quis imputar a responsabilidade pelo defeito da mercadoria a empresa na­
cional da mesma marca. O STJ, no julgado, houve por bem responsabilizar a
empresa nacional, nada obstante não ser parte do contrato com o consumidor,
por entende-la integrante de uma rede de contratos e também de um grupo
societário internacional.
Na ementa pode—se ler: “Direito do consumidor. Filmadora adquirida no
exterior. Defeito da mercadoria. Responsabilidade da empresa nacional da mesma
marca (“Panasonic”). Economia globalizada. Propaganda. Proteção ao consumidor.
Peculiaridades da espécie. Situações a ponderar nos casos concretos. Nulidade
do acórdão estadual rejeitada, porque suficientemente fundamentado. Recurso
conhecido e provido no mérito, na maioria." E também: “Se a economia globa­
lizada não tem mais fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre concorrência,

"' STJ. REsp 6398l/SP, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. j. ll.04.2000. m.v.
490 DIREITO CONTRATUAL — temas atuais
l

imprescindível que as leis de proteção ao consumidor ganhem maior expressão


em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve reger as relações jurídicas,
dimensionando-se, inclusive, o fator risco, inerente à competitividade do comércio
e dos negócios mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que
presentes empresas poderosas, multinacionais, com filiais em vários países, sem
falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico da informática e no
forte mercado consumidor que representa o nosso país".
No voto condutor do acórdão fica claro o reconhecimento de uma causa
sistemática, orientada a finalidade unitária, no compartilhamento de marcas:
“Dentro dessa moldura, não há como dissociar a imagem da recorrida “Pana­
sonic do Brasil Ltda' da marca mundialmente conhecida “Panasonie': Logo, se
aquela se beneficia desta, e vice-versa, devem, uma e outra, arcar igualmente
com as consequencias de eventuais deficiências dos produtos que anunciam e
comercializam, não sendo razoável que seja o consumidor, a parte mais frágil
nessa relação, aquele a suportar as consequencias negativas da venda feita
irregularmente, porque defeituoso o objeto“.
E sobre a conexão, 0 voto-vista do Min. Asfor Rocha: “É certo que
podem ter, por conveniências políticas, contábeis ou fiscais, em cada país,
uma personalidade jurídica distinta, mas que se acham unidas por receberem
a mesma atuação estratégica, e guardarem em comum a sujeição a um mesmo
comando". A formação da causa final, no caso concreto, foi vista até mesmo
pela unidade de propaganda.
Outra questão importantíssima que se deve ter em conta é a propaga­
ção de inelicácias e invalidades de um contrato integrante da rede para outro
contrato que a íntegra.-ªº
A expansão que a coligação e reticularização contratual propiciam pode
induzir, portanto, ainda em casos de dependência bilateral de contratos, regime
jurídico uniforme. Assim, no Código do Consumidor da Itália (CDC ita), de
acordo com a redação dada pelo DL 206/2005, publicado em 08.10.2005, no
CDC ita 34.1 afirma-se que “a abusividade de uma cláusula é avaliada tendo
em conta a natureza do bem ou do serviço objeto do contrato e fazendo refe—
rência às circunstâncias existentes no momento da sua conclusão e às outras
cláusulas do mesmo contrato ou de um outro contrato coligado ou do qual
depende”. Assim, a nulidade pode se dar por uma visão conjunta de negócios
jurídicos os quais, considerados isoladamente, seriam válidos.
Do mesmo modo, a partir do Enunciado STJ 283, percebe-se como o
mútuo necessário para financiamento do crédito rotativo do cartão de crédito

ªº José Carlos Barbosa Moreira, ob. cit.. p. 757.


REDES CONTRATUAIS E CONTRATOS COLIGADOS 491

altera o regime ordinário do contrato de mandato e de cessão de crédito, a


ponto de autorizar as administradoras de cartão de crédito a praticar juros
de instituições financeiras, à vista de que a causa do contrato, ao unificar
os fins do contrato na sua individualidade, propicia uma transubstanciação
de sua existência concreta, para abarcar uma totalidade compreendida como
processo.
A propagação das invalidades se dá justamente por conta dessa uni­
dade de função que se verifica na rede e na coligação.-ª' No nosso sistema,
preservados os casos de nulidade parcial, a nulidade dos contratos coligados
ou em rede justificar-se-ia pelo CC 421, que exerce o mesmo papel, no
ordenamento brasileiro, que a disciplina da causa ilícita no italiano (CC ita
l343-l345).
Assim também, em nosso sistema, o Enunciado STJ 308 torna ineficaz
perante o consumidor de boa-fé a hipoteca prestada pelo incorporador, tendo
em vista a inoponibilidade de negócios jurídicos celebrados contrariamente
à boa-fé. Nada obstante o consumidor não ser parte em sentido clássico na
relação de mútuo entre construtora e agente financeiro, adquire imunidade em
face deste contrato, tendo em vista a possibilidade de que este o afete. O
enunciado é claríssimo e mostra justamente como a rede contratual formada a
partir da finalidade de ofertar unidades habitacionais ao mercado pode influir
sobre a consideração unitária de cada tipo ou espécie de contrato, afetando
a individualidade, tendo em vista a causa sistemática: “a hipoteca firmada
entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração
da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes
do imóvel”.

6. CONCLUSÃO

A partir desses argumentos e possivel vislumbrar a complexidade do tema


das redes, que propicia a compreensão de igual complexidade do fenômeno
contratual contemporâneo.
A complexidade mostra a dificuldade em se encontrar paradigmas para
a solução das controvérsias, paradigmas estes que sejam razão suficiente da
solução dos litígios. A dogmática analítica, entretanto, precisa de critérios de
decisão que tornem operacional a tarefa de dirimir conflitos. Pretendemos, com
estas linhas, ter contribuído com essa tarefa.

“ Nesse sentido: Carlos Nelson Konder, ob. cit.. p. 220.


492 DIREITO CONTRATUAL — temas atuais

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