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Maria Madalena Cavaleiro

Direito Comercial I

DIREITO COMERCIAL I

INTRODUÇÃO

1. Conceções de direito comercial

1.1. Evolução histórica

1.1.1. Um direito comercial em sentido próprio, enquanto corpo ou sistema normativo autónomo tendo por
função regular a atividade mercantil, terá surgido somente na época medieval – nasceu no séc. XII (e cresceu
nos séculos seguintes) em cidades italianas (Florença, Génova, Milão, Veneza e outras), filho dos comerciantes.

Era uma época de fraco poder político e de forte ressurgimento do comércio. Os (grandes) comerciantes,
organizados em corporações, passaram a constituir a classe económica e politicamente dominante. Havia pois
condições para os mercadores gerarem um direito “especial” do comércio – contraposto ao direito “comum”
(romano-canónico) e aos vários direitos “próprios” ou particulares, desajustados às novas realidades da vida
económico-mercantil.

Fontes desse direito eram:

a. Os costumes mercantis: originados nas práticas contratuais dos comerciantes, cedo foram reduzidos a
escrito, tendo sido depois retomados e desenvolvidos nos estatutos corporativos;
b. Os estatutos das corporações dos mercadores: continham não apenas costumes e princípios
jurisprudenciais consolidados, mas também o programa do mandato dos comerciantes eleitos
cônsules das corporações, as deliberações do conselho dos comerciantes mais antigos e das
assembleias gerais;
c. E a jurisprudência dos tribunais “consulares”: compostos por comerciantes designados pelas
corporações, estes tribunais tiveram papel relevante na interpretação-aplicação e desenvolvimento
das normas consuetudinárias e estatutárias.

Há aqui uma ideia de auto-normação e auto-jurisdição, pois são os comerciantes que gerem o direito
comercial, através dos costumes mercantis, dos estatutos das corporações dos mercadores e da jurisprudência
dos chamados tribunais “consulares” que são compostos pelos próprios comerciantes. Esta ideia de auto-
normação, voltamos a encontrá-la nos dias de hoje.

 Quem conhece o mundo do comércio sabe que se continua a verificar a existência de costumes, como
por exemplo, na atividade petrolífera ou no transporte internacional de mercadorias.
 Vamos encontrar também, nos dias de hoje, uma auto-jurisidição através da chamada arbitragem
comercial. Hoje, a arbitragem comercial, e principalmente a arbitragem comercial internacional, tem
tido um crescimento tremendo. Não apenas na Europa mas nos EUA, Ásia e África. Em setores muito
específicos, é usual que os tribunais arbitrais sejam compostos por comerciantes da área e não por
juristas.

Foi portanto o medievo direito comercial italiano um “direito de classe”, um ius mercatorum: um direito criado
pelos mercadores para regular as suas atividades profissionais e por eles aplicado. Dizendo de outro modo
(mais corrente), foi um direito de cariz “subjetivo” – disciplinava os comerciantes e os atos destes relativos ao
seu comércio. Era um direito que surgia em função da natureza dos sujeitos que o geram, dos comerciantes.

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Cedo, porém, surgiram germes “objetivistas”. Gradualmente foram introduzidas notas de algum objetivismo,
sobretudo em virtude de legislação de carácter processual, em particular, relativamente à competência dos
tribunais. O direito comercial começa a preocupar-se com certos atos, independentemente de quem os pratica.

a. Primeiro, os membros das corporações foram sujeitos à jurisdição consular por qualquer ato relativo
ao comércio que efetuassem – mesmo tratando-se de atos isolados, estranhos ao ramo do comércio a
que eles se dedicavam

b. Depois, admitiu-se que os não comerciantes demandassem os comerciantes nos tribunais consulares;

c. Admitiu-se que os não comerciantes fossem julgados naqueles tribunais se de facto exercessem
comércio ou praticassem tão-só singulares operações mercantis (estabelecia-se então, recorrendo a
uma fictio iuris, que eram demandados e julgados como mercadores os não comerciantes que
interviessem na prática mercantil; afastada a ficção, surgiria nítido o conceito de ato de comércio
objetivo – mas este passo foi dado em outra época)

Além das comunas italianas, outras regiões contribuíram para a formação e desenvolvimento do direito comercial medievo. Aludamos aqui
à Catalunha e à França.

Quanto à França, destaca-se a recolha de sentenças do tribunal marítimo de Oléron, que vigorou na Flandres, Holanda, Inglaterra e na
Europa setentrional; especial destaque merecem as feiras (especialmente as da região de Champagne e Lyon): os centros de transação de
mercadorias e dinheiro de toda a Europa ocidental, onde se forjaram alguns institutos (procedimentos executivos severos e expeditos) e se
desenvolveram outros (letras de câmbio), elas concorreram fortemente para a internacionalização-uniformização do direito comercial
daquela época.

E Portugal? Naqueles tempos, não se formou cá um autónomo ramo jurídico regulador das relações
comerciais. Com efeito, não foram muitas, nem muito significativas, as normas jurídicas especialmente
destinadas ao comércio.

 Nos primeiros tempos da monarquia (até finais do séc. XII) os reis emitiram pouquíssimas leis gerais – nenhuma delas, que se
saiba, versando matéria mercantil. O comércio seria então regulado pelos costumes (quase sempre locais), forais (também
locais), parcas disposições do código visigótico e de direito canónico.

 Nos séculos seguintes, ele terá sido disciplinado por normas daquele tipo (com exclusão do citado código, caído no
esquecimento), por disposições de direito romano (recebido a partir do séc. XIII), e por leis especiais de âmbito nacional e
regulamentos locais.

 No entanto: os poucos costumes ou foros que até nós chegaram, relevaram-se pouco importantes em matéria de comércio; os
forais continham fundamentalmente normas de direito público; a esparsa e parca legislação especialmente destinada à
atividade comercial visou sobretudo, por um lado, o comércio marítimo e, por outro lado, garantir o abastecimento público e
evitar subida de preços.

 Contudo, deve ser realçado o papel do Portugal medieval no desenvolvimento de seguros (mútuos) marítimos – as primeiras
bolsas de seguros marítimas lusas terão sido organizadas pelo rei D. Fernando entre 1375 e 1380, no quadro da “companhia das
naus”.

Algumas das razões por que não se registou a autonomização do direito comercial serão estas:

a. Foi implantada desde cedo uma centralização estatal-régia relativamente forte;


b. Além dos mercadores-burgueses, intervinham consideravelmente na atividade comercial membros da casa real, nobres, ordens
religiosas, ordens militares;
c. As associações de tipo corporativo tiveram nos primeiros séculos da monarquia “pouco ou nenhum significado” – e mesmo
depois de finais do séc. XV não parece que a corporativização nos “mesteres” se tenha propagado ao (grande) comércio (o
primeiro, o “Consulado” foi crido apenas no séc. XVI); as feiras, embora tivessem aparecido já no séc. XII, nunca alcançaram
projeção comparável à de outras além-Pirenéus.

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1.1.2. Na época moderna, com a centralização monárquica, a classe dos mercadores deixa de ser a fazedora
(direta) do direito comercial:

a. As corporações dos comerciantes são reguladas e controladas pelo Estado;


b. Os tribunais de comércio, embora continuem a ser compostos por comerciantes, deixam de ser
emanação da autonomia corporativa e passam a órgãos estaduais;
c. Os tribunais de comércio, embora continuem a ser compostos por comerciantes, deixam de ser
emanação da autonomia corporativa e passam a órgãos estaduais;
d. Os costumes são ultrapassados pelas leis no campo das fontes do direito mercantil

É a época da estatização-nacionalização do direito comercial. Este direito continua a ser de carácter subjetivo.

 Mas a francesa ordonnance do comércio (1673), que forma, juntamente com a ordonnance da
marinha (1681), o primeiro conjunto legislativo-mercantil geral, consagra já alguns atos puramente
objetivos.

Em Portugal, o grande desenvolvimento do comércio externo provocado pelas descobertas marítimas e


ultramarinas não foi acompanhado por significativo movimento legislativo-comercial.

1.1.3. O Code de Commerce de 1807 (Código de comércio de Napoleão) marca o início da etapa
contemporânea na evolução do direito comercial.

Este é um código objetivista (atende à natureza do ato). Os princípios da liberdade e da igualdade (perante a
lei), inspiradores da Revolução francesa (1789), eram incompatíveis com a manutenção de um direito dos
comerciantes – enquanto classe corporativa.

Daí que o código qualifique simplesmente como comerciantes os que fazem da prática de atos do comércio
profissão (art. 1º), e como comerciais uma série de atos (incluindo alguns ligados à indústria transformadora e
aos serviços) que não têm de ser praticados por comerciantes (arts. 631º/3, 632º e 633º) – acentua-se, pois, o
carácter objetivo do direito comercial.

O código francês influi bastante nas codificações mercantis oitocentistas. No entanto, o código comercial
alemão de 1897 (ainda vigente) adotou novamente a conceção subjetiva do direito mercantil – o
Handelsgesetzbuch disciplina o estatuto dos comerciais (§ 1º), e os atos de comércio são “atos de um
comerciante que pertencem à exploração da sua empresa comercial” (§ 343º e ss)

Os nossos códigos comerciais oitocentistas filiam-se também no referido sistema objetivo: o de 1833 (redigido
por J. FERREIRA BORGES ) e o de 1888 (devido à iniciativa de F. VEIGA BEIRÃO, então ministro da justiça), que se
mantém ainda em vigor, embora com várias normas alteradas e muitas mais revogadas, começa
sintomaticamente por declarar que “a lei comercial rege os atos de comércio sejam ou não comerciantes as
pessoas que neles intervêm”.

Consideráveis desenvolvimentos tem tido o direito comercial na última centúria, entre os quais uma tendência
para a sua internacionalização-uniformização.

Diversas convenções internacionais de âmbito potencialmente universal têm unificado os sistemas jurídico-
mercantis nacionais em setores específicos – assim, as convenções de Genebra de 1930 e 1931 estabelecendo
leis uniformes em matéria de letras e livranças e em matéria de cheques. Os tratados constitutivos das
organizações internacionais de integração (com destaque para as comunidades europeias) e as normas
emanadas dos respetivos órgãos vão unificando ou (sobretudo) harmonizando o direito comercial dos Estados-
membros em vastos domínios.

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Nos últimos decénios, o movimento de unificação tem-se acentuado no campo das relações comerciais
internacionais – não intervindo, pois, diretamente na disciplina das relações comerciais internas, sujeitas aos
diversos direitos nacionais. Por um lado, têm sido celebradas convenções internacionais estabelecendo um
regime uniforme para aquelas relações. Por outro lado, tem-se desenvolvido um direito uniforme de origem
não-(inter)estadual. Um direito feito de usos e de costumes do comércio internacional, de usos e práticas
negociais, de cláusulas contratuais gerais, e que é aplicado por tribunais arbitrais constituídos pelos sujeitos do
comércio internacional. Neste âmbito, voltamos portanto a deparar com um direito feito por comerciantes e
por eles aplicado (como em tempos da Idade Média) – por isso se fala a propósito de moderna lex mercatória.

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1.2. NOÇÃO DE DIREITO COMERCIAL PORTUGUÊS

Resulta do exposto nas páginas anteriores não existir um conceito unitário de direito mercantil com validade
universal.

Ora, circunscrevendo-nos ao quadro jurídico-positivo nacional, podemos definir o código comercial como o
sistema jurídico-normativo que disciplina de modo especial os atos de comércio e os comerciantes.

Atendendo ao art. 1º (“a lei comercial rege os atos de comércio, sejam ou não praticados por comerciantes”),
poderia ser-se tentado a definir este ramo do direito com referência apenas aos atos de comércio.

 Todavia, a lei mercantil regula fenómenos que não são atos comerciais nem seus efeitos diretos.

Por outro lado, a mesma lei, apesar de apresentar como “ponto de partida” uma conceção objetivista, visa
sobretudo os comerciantes: discrimina-os (art. 13º e ss), estabelece o seu estatuto (direitos e deveres, art. 18º
e ss), traça a organização respetiva (sobretudo com respeito aos comerciantes-entes coletivos), regula os seus
atos (os “subjetivos” têm de ser por eles praticados, e os “objetivos” contam também com a sua participação
na grande maioria dos casos) e instrumentos (entre os quais avultam as empresas).

O nosso direito comercial é um direito que gira em torno de dois pontos: (1) não apenas dos atos de comércio,
(2) mas também dos comerciantes. Em Portugal, o direito comercial é fundamentalmente um direito de atos de
comércio e dos comerciantes. Recolheu aspetos positivos da orientação subjetivista e objetivista; no entanto,
há uma orientação mais forte do objetivismo.

Nas noções de direito comercial aparece habitualmente a nota de ser ele um ramo do direito privado.
Regulando este a organização dos sujeitos (singulares e coletivos) privados e as relações estabelecidas entre
eles ou entre eles e entidades públicas atuando como particulares, é inquestionável que o direito mercantil é
fundamentalmente direito privado.

 Não obstante, as leis comerciais contêm também disposições de direito público. Basta pensar (para já
não falar das disposições penais incluídas em muitas delas) nas que consagram deveres jurídico-
públicos dos comerciantes – relativos, por exemplo, às firmas, escrituração mercantil e inscrições no
registo comercial.

Dentro do direito privado, e em face do direito civil (direito privado comum, aplicável a todas as pessoas e
relações entre particulares), o direito comercial é, globalmente, especial (e não excecional – embora contenha
normas excecionais, tal como as contém o direito civil).

O direito comercial é um ramo jurídico com regras diferentes das do direito comum, aplicável somente a certos
sujeitos, objetos ou relações, mas sem excluir a aplicabilidade do direito civil enquanto direito comum e
subsidiário.

O direito comercial disciplina atos de comércio e comerciantes, dissemos. Mas os conceitos de comércio em
sentido jurídico e de atos jurídico-comerciais não coincidem com os correspondentes conceitos económicos.

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É hoje vulgar falar-se em 3 setores da atividade económica:

(1) O primário: compreendendo a agricultura, que, num sentido amplo, abrange também a pecuária e a
silvicultura, a pesca e a caça);
(2) O secundário: indústria
(3) O terciário: os serviços, compreendendo estes, residualmente, tudo quanto não cabe nos dois
primeiro setores (comércio, transportes, fornecimento de agua e gás, eletricidade, atividades
seguradora, bancária, liberais, etc)

Numa outra perspetiva, diz-se que a produção económica se processa através da indústria – extrativa, agrícola,
transformadora, transportadora e comercial – e dos serviços.

Ora, o comércio em sentido jurídico abarca não apenas o comércio em sentido económico (usualmente
definido como atividade de interposição na circulação dos bens, ou de interposição nas trocas) mas também
(outras) indústrias e serviços; e os atos jurídico-mercantis não se situam somente nos domínios do comércio
economicamente entendido. É ver, por exemplo, o art. 230º, 366º e ss, 394º e ss, 397º e ss, etc.

Mas, por outro lado, também não pode dizer-se que o código comercial disciplina todas as atividades
económicas.

 Ele quase não entra, por exemplo, nas indústrias extrativas, na agricultura (art. 230º, § 1º e 2º, art.
264º/2), nas indústrias e serviços artesanais (arts. 230º, § 1º e art. 464º/3) e nos serviços dos
profissionais liberais.

1.2.2. Em vez de direito dos atos do comércio e dos comerciantes, não será preferível definir o direito
comercial como o direito das empresas (comerciais), ou à volta das empresas (comerciais)?

Tendo HECK e seus continuadores (RADBRUCH, LOCHER ) por precursores, a conceção empresarialista do direito
mercantil, basicamente cunhada por WIELAND e MOSSA , teve grande repercussão nalgumas legislações e na
doutrina Europeia e da América latina e a partir dos anos 20 do séc. XX.

Porém, o empresarialismo “escrito” (o direito comercial como simples direito das empresas) foi perdendo
força, e entrou em crise evidente a partir dos anos 50. Sobretudo, talvez, porque essa conceção tendeu a
restringir em demasia o espaço do direito mercantil – excluiu atos isolados de comércio, o direito cambiário e
das falências, o direito dos seguros e do tráfico marítimo e aéreo.

Contudo, na Alemanha (país onde o direito comercial é de estirpe subjetiva), reputados autores continuam a
defender uma conceção empresarialista. Para P. RAISCH e K. SCHMIDT, no centro do direito comercial está, não
o comerciante, mas a empresa (e respetivo titular). Os autores alargam o campo de aplicação do direito
mercantil a empresários não comerciantes, recorrendo nomeadamente à analogia.

E também nos países latinos, com um direito comercial de raiz objetiva, as conceções empresarialistas têm
hoje alargado acolhimento.

Pode dizer-se, na verdade, que o núcleo do direito mercantil está na empresa comercial, constituindo ela o
“princípio energético” a que todas as legislações (integráveis nos sistemas objetivo, subjetivo ou misto)
prestam homenagem.

É igualmente defensável que o nosso direito comercial – reformado – deve ser um direito à volta das
empresas: um direito do estatuto dos empresários singulares e coletivos, dos direitos e negócios sobre as
empresas e da tutela destas, dos negócios jurídicos de organização das empresas, dos “contratos
[bilateralmente] de empresa” – v.g. contratos de concessão comercial, franquia, consórcio.

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E não parecem ser obstáculos intransponíveis a esta defesa de imprecisões que se vêm manifestando na
determinação da(s) empresa(s), nem o facto de haver empresas não comerciais, empresários não comerciantes
e até (embora muito marginalmente) comerciantes não empresários…

Todavia, o direito comercial português atual, além de admitir comerciantes não empresários, regula atos de
comércio esporádicos ou ocasionais que não têm que ver com empresas mercantis e cuja disciplina não poderá
dizer-se, globalmente, determinada por interesses ligados à empresarialidade – pense-se em atos (ocasionais)
de fiança, mandato, empréstimo, penhor, depósito, aluguer…

São fenómenos marginais, fora do núcleo do direito mercantil? Pois são – mas uma definição rigorosa do
direito comercial vigente não pode desconsiderá-los.

Por isso, COUTINHO DE ABREU prefere defini-lo como direito dos atos de comércio e dos comerciantes – embora
atos e sujeitos em regra ligados às empresas comerciais.

1.3. O problema da autonomia do direito comercial (ou da unificação do direito privado)

Fala-se de autonomia de um ramo jurídico em diversas aceções:

a) Formal ou legislativa: assente na reunião das respetivas normas fundamentais num código ou corpo
de leis próprio;
b) Substancial: expressivas de que o subsistema normativo regula de modo especial certos sujeitos e/ou
objetos e relações
c) Cientifica: dependente da substancial;
d) Didática.

O problema da autonomia do direito comercial tem sido debatido atendendo sobretudo às duas primeiras
aceções. Mas a questão nuclear é a da autonomia substancial (um ramo do direito substancialmente autónomo
pode estar ou não codificado, um ramo jurídico codificado ou legislativamente autónomo pode revelar-se sem autonomia
substancial).

Desde o séc. XIX vem-se manifestando um forte movimento doutrinal em prol da unificação do direito
privado (da fusão do direito mercantil com o direito civil).

 A tradicional separação do direito privado seria contrária à “unidade essencial da vida económica”, à
“homogeneidade da nossa constituição social” (expressões de VIVANTE ) – eis a base argumentativa dos
unitaristas.

Tal homogeneização do sistema socioeconómico ir-se-ia confirmando no plano jurídico: é evidente a


“generalização” de institutos tradicionalmente jurídico-mercantis e originariamente utilizados apenas por ou
para comerciantes ou para o comércio ou operações comerciais – pense-se, por exemplo, nas letras de câmbio
(utilizáveis por não comerciantes e para operações não comerciais), sociedades (os tipos de sociedades comerciais podem
ser adotados para o exercício de atividades civis), seguros (comerciais ou não, utilizáveis com relação a coisas e pessoas fora
do âmbito mercantil) e falência ou insolvência (em diversos países deixou de ser instituto privativo dos comerciantes; os
chamados sinais distintivos do comércio (firmas, logótipos, marcas) não são exclusivos do comércio; a disciplina da
concorrência é aplicável a não comerciantes; obrigações de escrituração e de inscrição de certos atos no registo (comercial)
não impendem somente sobre os comerciantes; em vários países operou-se mesmo a unificação legislativa (sobretudo no
domínio do direito das obrigações).

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É visível que esta tendência jurídico-positiva para a unificação denota o que desde há muito se vem chamando
“comercialização” do direito privado. Vão-se incorporando no direito civil regras e características ou princípios
tradicionais do direito mercantil – princípios como o do reforço do crédito, o da maior proteção da confiança, o da
celeridade nas operações negociais (assente na liberdade de forma nuns casos, e na exigência de formalismo em outros, na
facilitação das prova, na fácil e rápida transmissão de créditos titulados), o da certeza nas transações, o da presunção de
onerosidade (v.g. no mandato e no depósito).

Tal comercialização representa simultaneamente o triunfo do direito comercial, ao impor as suas regras o
direito civil, e – quando acabada – a “morte substancial” do mesmo direito, não havendo mais disciplina
especial, submetendo-se os atos “de comércio” ao mesmo regime dos atos “civis”, o direito comercial integra-
se no direito comum.

Mas, contrapor-se-á, a unificação do direito privado ao nível do direito das obrigações não arredará a
necessidade de uma disciplina especial para os empresários comerciais, como o confirmava o Codice Civile de
1942 (o Código Italiano é ainda hoje unitarista, incluindo no Código Civil matéria mercantil).

No entanto: uma disciplina subjetiva especial do tipo italiana não parece bastante para afirmar a autonomia
substancial do direito mercantil; por outro lado, já demos conta de que também ao nível dos empresários vai-
se estendendo a alguns não empresários. Daí que um direito comercial baseado nas empresas (mercantis ou
não mercantis) não tenha de ser, só por isso, substancialmente autónomo.

Não obstante, vários autores têm visto nos últimos tempos sinais de “reafirmação” da autonomia substancial
do direito comercial enquanto direito privado da empresa. Apoiando-se tal reafirmação principalmente na
“redescoberta” dos contratos comerciais como “contratos de empresa” (contratos celebrados por empresários
em ligação com a respetiva atividade empresarial).

Refletindo sobre o seguinte, C OUTINHO DE ABREU diz o seguinte:

(1) É aceitável a conceção do direito como direito, basicamente, das empresas. Repita-se também: das
empresas (no plural), não da empresa. A empresa como fenómeno unitário ou unívoco não existe (no
direito ou fora dele). Repita-se ainda: no direito comercial português atual entram sujeitos e atos que
não têm de entrar no domínio empresarial; e nem todas as (espécies de) empresas nele são acolhidas.

(2) Os contratos comerciais (em Portugal e noutros ordenamentos em que a categoria é aceite) não
podem ser (inteiramente) identificados com os contratos de empresa:
a. Existem contratos comerciais sem que nenhuma das partes sejam empresário no exercício da
respetiva atividade.
 Por exemplo, um operário compra a um companheiro de trabalho, um automóvel, a fim
de revendê-lo – art. 463º/1
b. Há contratos não comerciais apesar de neles participarem empresários
 Por exemplo, o proprietário e explorador de uma empresa agropecuária vende um boi
reprodutor a outro agricultor – art. 464º/4

(3) Alguns contratos unilateralmente de empresa, ainda que qualificáveis frequentemente como
comerciais (do lado da empresa - comercial), têm disciplina peculiar e autónoma não enraizada nas
lógicas ou interesses da empresarialidade ou de comercialidade. É o caso dos contratos de trabalho e
contratos de consumo.

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(4) Mesmo para os contratos de empresa bilaterais (qualificáveis ou não de comerciais) não existe hoje
disciplina e ratio (inteiramente) unitárias. Basta pensar no regime do “abuso da dependência
económica” e da nulidade das cláusulas contratuais em “transações comerciais” entre empresas que,
por exemplo, estabeleçam “prazos excessivos para o pagamento”. É o regime mais aparentado ao que
vale para os contratos de consumo do que para o tradicionalmente vigente nos contratos bilaterais de
empresa.

(5) O direito do consumo, ou dos consumidores, não é “contra” as empresas ou o sistema de produção
capitalista. Também não é “contra” o direito das empresas (ou o direito comercial). Mas diferencia-se
deste. Basta ter presentes as especialidades de regime aplicáveis a qualquer contrato de consumo:
 Dever de o fornecedor de bens prestar informações várias tanto na fase das negociações como
na fase de celebração dos contratos (Lei 24/96, Lei da defesa dos consumidores, art. 8/1);
 Direito de o consumidor resolver o contrato por deficiência de informação pré contratual ou
do conteúdo contratual (art. 8º/a LDC);
 Direito à adequação de consumo às legítimas expectativas do consumidor (art. 4º LDC);
 Relevância contratual de informações concretas e objetivas constantes de mensagens
publicitárias (art. 7º/5 LDC);
 Imperatividade das normas de proteção e nulidade das cláusulas contratuais que as
contrariem – sendo tal nulidade invocável somente pelo consumidor ou seus representantes
(art. 16º LDC).

(6) Nos contratos de consumo, contraparte do consumidor é normalmente um empresário (ou “empresa”
em sentido subjetivo, comercial ou não). Mas não necessariamente: pode ser um “profissional”
autónomo não empresário: v.g. um artesão ou profissional liberal sem empresa em sentido objetivo.

(7) Deflui do referido sob (5) e (6):

a. No campo dos contratos de consumo, é indiferente que apareça um empresário ou um


(“profissional”) não empresário como contraparte do consumidor;
b. As especialidades do regime dos contratos de consumo divergem manifestamente do regime
tradicionalmente aplicável aos contratos de empresa ou de comércio unilaterais – e afastam boa
parte deste regime.
Tudo isto não abona a tese da “reautonomização” do direito comercial como direito dos contratos
de empresa. Por outro lado, não é de menos assentar a autonomia do direito comercial nos
contratos de empresa bilaterais?

(8) O direito privado do consumo despontou com aspetos de regime especial relativamente ao direito
comum. Tenha ou não merecido a qualificação relativamente ao direito comum.
Tenha ou não merecido a qualificação de direito privado especial, parece que ele se vai integrando no
direito civil dos contratos, rectius, no direito privado dos contratos.

(9) Temos, então:


a. A burguesia comercial e financeira, primeiro, e industrial depois criou princípios e regras especiais
dos contratos (comerciais) em face do direito “comum” quando precisou;
b. Esses princípios e regras alastram pelos campos do direito civil dos contratos patrimoniais,
comunizaram-se largamente;
c. Os princípios e regras especiais dos jovens contratos de consumo vêm-se comunizando também

Resulta destes movimentos a harmonização (e considerável unificação) do direito privado dos


contratos

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(10) Portanto, a eventual reafirmação da autonomia do direito comercial não passará principalmente por
configurá-lo como direito privado externo-contratual das empresas.

Posto isto: a unificação do direito privado (patrimonial) ainda não atingiu um grau tal que a obrigue a
reconhecer a insubsistência da autonomia substancial do direito comercial. Pese embora a progressiva redução
do círculo dessa autonomia:

a. As nossas leis mantêm ainda um regime especial comum aos atos de comércio em geral;
b. Os atos de comércio em especial estão sujeitos a algumas regras divergentes das que vigoram para os
homólogos atos civis;
c. Os comerciantes têm um estatuto algo diverso do dos não comerciantes.

Não obstante, numa perspetiva de reforma, será aconselhável promover uma maior unificação do estatuto de empresários
diversos e do regime de diversas espécies empresariais. Tudo isto, sem prejuízo de algumas diferenciações de regime,
ditadas por exemplo pelas diferentes dimensões das empresas e por especificidades de cada um dos setores de atividade
empresarial.

De qualquer forma, para justificarmos essa autonomia do Direito Comercial, também podemos falar ao
contrário, olhando pela perspetiva do Direito Civil. Se fosse Civilista não queria que o Direito Comercial
contaminasse o Direito Civil. O Direito Civil deve ser um direito do cidadão e não deve ser contaminado pelo
mundo do comércio.

SOVERAL M ARTINS considera que esta autonomização deve ter lugar.

2. Fontes do direito comercial português

2.1. Fontes externas e internas

Nas fontes do direito mercantil convém distinguir fontes internas e externas:

Entre as fontes externas destacamos:


a. Convenções internacionais
b. Regulamentos e Diretivas da União Europeia.

Entre as fontes internas avultam:


As leis (comerciais) – amplamente entendidas de modo a abarcar
1) “Atos legislativos”:
 Leis constitucionais;
 Leis;
 Decretos-lei;
 Decretos legislativos regionais
2) E regulamentos:
 Do Governo;
 Das regiões autónomas;
 Das autarquias locais, etc.,
 Incluindo os de “entidades administrativas independentes” (art. 267º/3) como a
Comissão do Mercado de Valores Mobiliários).

A CRP contém algumas regras atinentes ao direito comercial: art. 61º, 81º/f), 82º, 85º, 86º, 99º, 100º, 293º

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As principais fontes do direito comercial são as leis ordinárias (as leis propriamente ditas, da AR e os decretos-
lei do Governo). Este é um código que tem visto muitas das suas normas alteradas e revogadas-substituídas, e
tem sido complementado por numerosa legislação extravagante.

Também a jurisprudência e a doutrina são fontes do direito comercial. E os usos (práticas sociais estabilizadas)
e os costumes (práticas sociais estabilizadas seguidas com a convicção de serem juridicamente obrigatórias)
mercantis? A resposta será afirmativa para ambas. Apesar de os usos não constarem, tal como os costumes, do
art. 3º, eles podem manifestar regras jurídicas.

2.2. Aplicação da lei civil a matéria mercantil

A lei civil é aplicável a questões comerciais. Di-lo logo o art. 3º: “Se as questões sobre direitos e obrigações
comerciais não puderem ser resolvidas, nem pelo texto da lei comercial, nem pelo seu espírito, nem pelos casos análogos
nela prevenidos, serão decididas pela lei civil”.

E deste preceito se poderia concluir ser a legislação civil fonte de direito comercial. Mas não seria correta a
conclusão.

 Sendo o direito comercial direito (privado) especial, lógico é que o direito civil, enquanto direito
privado comum, intervenha na disciplina de matéria mercantis quando o normativo especial se revele
insuficiente. A lei civil intervém porque é lei comum e a esse título.

À primeira vista parece resultar do art. 3º que as normas do direito civil nunca são aplicáveis às matérias
comerciais, intervindo somente para integrar lacunas da lei comercial não integráveis por normas mercantis
regulamentadores de casos análogos.

Mas não é assim.

O direito comercial apresenta-se como um ordenamento especial e fragmentário, aberto portanto ao recurso
direto ao direito comum na disciplina das situações e relações mercantis. Nem todas as omissões de
regulamentação legal-mercantil significam verdadeiras lacunas. Algumas dessas omissões estão de acordo com
o plano da lei comercial.

O que encontramos neste art. 3º é uma escada, uma ordem, uma prioridade: texto da lei, espirito da lei, casos
análogos e só depois o direito civil. Note-se também que pode dar-se o caso de se ter querido regular matéria
mercantil no Código Civil: é o caso da compra e venda.

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Direito Comercial I

PARTE I – ATOS DE COMÉRCIO, COMERCIANTES, EMPRESAS, SINAIS DISTINTIVOS

Capítulo I – Dos atos de comércio em geral

1. Introdução

Os atos de comércio são parte essencial da “matéria mercantil”. Todavia, já foi maior o interesse “prático” da
qualificação de um qualquer ato como comercial.

Na verdade, durante muito tempo foram os litígios relativos aos atos mercantis julgados por tribunais
comerciais e segundo regras processuais próprias. Ora, a jurisdição comercial foi extinta pelo Decreto-lei
21 694, de 29 de setembro de 1932, e o Código de Processo Comercial foi revogado pelo Decreto-lei 29 673, de
28 de maio de 1939, que aprovou um novo Código de Processo Civil.

Hoje, o regime especial comum aos atos de comércio em geral revela-se sobretudo no seguinte:

(1) Em regra, nas obrigações comerciais, nas obrigações resultantes de atos mercantis, os coobrigados são
solidários (art. 100º Código Comercial)

Se há coobrigados a um ato de comércio o que o artigo diz é que a responsabilidade que estão a
assumir por esse ato é solidária.

(2) Segundo o art. 14º, é proibida a profissão de comércio às associações ou corporações que não tenham
por objeto interesses materiais

(3) Segundo o art. 15º, as dívidas dos comerciantes casados derivadas de atos mercantis presumem-se
contraídas no exercício do respetivo comércio. Esta é uma presunção legal: uma presunção é um meio
de prova, não prescinde de alegação de factos.

Utilizando este art. 15º, podemos recorrer ao art. 1691º/1/d) do C. Civil, que consagra uma outra
presunção, designada de presunção de proveito comum: “São da responsabilidade de ambos os
cônjuges as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar
que não foram contraídas em proveito comum do casal, ou se vigorar entre os cônjuges o regime de
separação de bens. ”
 Isto tem muita importância, porque pode ser a diferença entre responderem todos os bens
comuns e os bens próprios do outro cônjuge ou apenas os bens próprios daquele.

(4) O art. 102º estabelece um regime com uma outra particularidade para os juros relacionados com atos
comerciais.

(5) Por outro lado, a qualificação como comerciais de atos em geral importa ainda para qualificar de
mercantis outros atos que daqueles sejam acessórios, bem como para qualificar sujeitos como
comerciantes (art. 13º).

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Deixemos aqui umas linhas mais acerca do referido art. 102º


Ver aulas práticas
O corpo do artigo, que mantém (tal como § 1º) a formulação originária, refere-se a juros:

a. Convencionais (estabelecidos em negócios jurídicos) e legais (diretamente resultantes de preceito de


lei);
b. Remuneratórios (rendimentos de bens de capital) ou moratórios (reparação ou indemnização pela
falta de cumprimento tempestivo de obrigação).

Os juros (comerciais) legais são devidos nos casos previstos no Código Comercial, ou em outras leis – desde
que, nesta última hipótese, estejam também em causa, em regra, “atos comerciais”.

Previsões no Código Comercial:

1) Art. 241º - mandato


2) Art. 346º/5 e art. 348º - conta corrente
3) Art. 395º - empréstimo
4) Art. 415º - depósito em armazéns gerais
5) Art. 626º, § 2º - contrato de risco marítimo

Exemplos de outras leis:

1) Arts. 465º/e), 468º/1 (gestão de negócios), 480º (enriquecimento sem causa), 806º (obrigações
pecuniárias), 1199º/b) (depósito) – Código Civil;
2) Art. 48º/2 e 49º/2 LULL;
3) Art. 4º do Decreto-lei 262/83;
4) Art. 4º e 5º do Decreto-lei 62/2003 (atrasos de pagamentos nas transações comerciais entre
empresas e entre empresas e entidades públicas).

 Quando sejam devidos juros comerciais (legais ou convencionais, remuneratórios ou moratórios) e a taxa
respetiva não seja fixada pelos intervenientes no ato de comércio, vale a taxa legal-supletiva.
 Se for outra a taxa querida (maior ou menor), ela tem de ser fixada por escrito (ainda que o ato de
comércio respetivo não exija forma escrita), sob pena de nulidade (e aplicação da taxa supletiva)
É esta a interpretação do § 1º do art. 102º

“Aplica-se aos juros comerciais o disposto nos arts. 559º-A e 1146º do Código Civil” – §2º. É proibido, portanto,
estipular taxa de juros (remuneratórios ou moratórios) que exceda a taxa de juros legais aplicável em mais de
3% e 5%, conforme exista ou não garantia real; e é proibido também estipular cláusula penal que fixe taxa de
juros moratórios excedendo a taxa de juros legais em mais de 7% ou 9%, conforme exista ou não garantia real
(art. 1146º/1/2 CC). Se estas proibições forem violadas, as taxas de juros estipuladas consideram-se reduzidas
aos máximos referidos (art. 1146º/3)

O § 3º do art. 102º determina que a taxa supletiva dos juros moratórios, legais ou convencionais, relativos a
créditos de que sejam titulares “empresas comerciais” é fixada em portaria conjunta dos ministros das finanças
e da justiça. Todavia, nesta fixação têm de ser respeitados limites mínimos.

Relativamente a créditos resultantes de transações comerciais sujeitas ao Decreto-lei 62/2013 [negócios entre
empresas comerciais ou entre empresas comerciais e entidades públicas (devedoras) – cfr. os art. 2º, 3º/b), 4º
e 5 do DL], a taxa supletiva não pode ser inferior à taxa de referência do BCE acrescida de 8 pontos percentuais
(§ 5º).

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Direito Comercial I

Relativamente a outros créditos das empresas comerciais, designadamente os resultantes de negócio com
consumidores (cfr. o art. 2º/2 DL), aquela taxa não pode ser inferior à taxa de referência do BCE acrescida de 7
pontos percentuais (§ 4º).

Tendo em conta também o art. 2º/3 da Diretiva 2011/7/EU, e os artigos 3º/d), art. 4º/1, art. 5º/1/5, art.11º
do Decreto-lei 62/2013, as “empresas comerciais, singulares ou coletivas ”, aparecem no § 3º em sentido
subjetivo: sujeitos ou entidades que exercem atividade económica juridicamente qualificada de mercantil
(suportada ou não em empresas de sentido objetivo).

Os juros em causa são somente os moratórios (não os remuneratórios). Além de assim indicar a letra do § 3º,
aponta no mesmo sentido o escopo do DL 62/2013: reagir contra os atrasos nos pagamentos.

Nota: por força dos art. 4º/1, art. 5º1/5 do DL 62/2013, o regime dos juros moratórios previstos nos §§ 3º e 5º
do art. 102º é igualmente aplicável a créditos de que sejam titulares “empresas” não comerciais (agricultores,
profissionais liberais, artesãos). Veja-se também o art. 3º/b) e d) do DL.

2. NOÇÃO DE ATOS DE COMÉRCIO

Atendendo ao art. 1º: “a lei comercial rege os atos de comércio, sejam ou não praticados por comerciantes” – a
linha seguida pelo Código Comercial é objetivista.

Norma delimitadora básica dos atos de comércio é o art. 2º.

Logo deste enunciado resultará a impossibilidade de um conceito unitário, homogéneo ou genérico de ato de
comércio.

 Há atos considerados mercantis por estarem previstos, segundo critérios heterogéneos, na lei
comercial – e que podem em regra ser praticados por comerciantes ou não comerciantes-,
 Há atos considerados mercantis por, antes de mais, serem praticados por comerciantes e, além disso,
serem conexionáveis com o comércio e estarem, embora não necessariamente, conexionados coma
atividade mercantil dos seus autores.

Todavia, por cá e além fronteiras (no quadro de sistemas jurídico-comerciais de estirpe objetiva) têm sido
defendidos conceitos unitários de ato de comércio. Para isso, tem-se lançado mão principalmente de 3
critérios:

(1) Finalidade especulativa: é comercial o ato praticado com escopo


(2) Interposição nas trocas ou na circulação das riquezas
(3) Existência de uma empresa: são comerciais os atos praticados por uma empresa e/ou no quadro de uma
empresa.

ALFREDO ROCCO foi certamente um dos autores mais esforçados na busca de um conceito unitário de ato de
comércio (segundo o código italiano de 1882).

Para este, haveria duas grandes categorias de atos comerciais:

 Os atos de comércio constitutivos (ou pela sua natureza intrínseca)


 E os atos comerciais por conexão ou acessórios. Os primeiros compreenderiam 4 grupos e os
segundos, 3. (…)

Por conseguinte, o ato de comércio seria definível como “todo o ato que realiza ou facilita uma interposição de
toca.”

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Ora, nenhum destes critérios (isolada ou conjugadamente) possibilita um conceito unitário de ato de comércio.

1. Ora, quanto ao critério da finalidade especulativa: existem atividades normalmente exercidas com
intuito especulativo ou lucrativo e nem por isso qualificadas como comerciais. Recordem-se os casos
de agricultura, da maioria das indústrias extrativas, do artesanato, da atividade dos profissionais
liberais.

Por outro lado, os atos e atividades mercantis não têm de ser realizados com fins lucrativos, embora o
escopo especulativo esteja presente na maioria dos casos. Na verdade, o Estado pode praticar atos de
comércio sem tais finalidades (por exemplo, quando compra madeira de florestas atingidas por
incêndios para as revender por preços idênticos ou inferiores aos preços de custo (art. 17º e 463º);
outras entidades exercem atividades comerciais (como por exemplo, cooperativas, empresas públicas)
sem fins lucrativos ou sem que tenham de prosseguir fins lucrativos.

Por outro lado ainda, o próprio Código Comercial admite explicitamente atos de comércio sem
qualquer escopo especulativo – art. 404º: “O depositário terá direito a uma gratificação pelo depósito,
salvo convenção expressa em contrário”

2. Por sua vez, o critério da interposição nas trocas é insuficiente também. O Código Comercial considera
comerciais cetos atos que não têm de realizar ou facilitar interposições nas trocas. Pense-se, por
exemplo, na fiança (art. 101º), na conta corrente (contrato que nem tem de ser celebrado entre
comerciantes – art. 344º e ss), no penhor (art. 397º e ss), nas compras (não dirigidas à revenda) de
participações sociais relativas a sociedades comerciais (art. 463º/5), na reforma de títulos de crédito
mercantil (art. 484º).

 E quanto às empresas: não parece que a sua qualificação como comerciais assente no facto de
poderem ser vistas como atos de interposição na troca (também) do trabalho; além disso, nem
em todas as empresas haverá a referida intermediação na troca do trabalho, nem todas as
empresas comerciais têm de funcionar com assalariados.

3. Finalmente, a existência de empresa e a empresarialidade não são critérios servíveis para a construção
de um conceito unitário de ato de comércio. Por várias razões:

1. A comercialidade de diversos atos esporádicos ou ocasionais prescinde da existência de uma


empresa;

2. A empresarialidade não é algo unívoco, captável através de um critério único;

3. Há empresas civis, tendo obviamente também que ver com empresarialidade – e os atos a ela
pertinentes não são comerciais.

4. E quanto em particular as contratos comerciais como contratos de empresa, repita-se:


4.1. Há contratos comerciais que não contratos de empresa e contratos de empresa que não são
(hoje) contratos comerciais;
4.2. Os contratos de empresa não constituem categoria unitária, com disciplina especial
exclusiva.

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Direito Comercial I

Os “atos” de comércio são sobretudo:

1. Contratos. É aliás sintomático que o livro II do Código Comercial seja intitulado “Dos contratos
especiais de comércio”.

2. Mas, além dos negócios jurídicos bilaterais, podem ser atos mercantis negócios jurídicos unilaterais. É
o caso, por exemplo, dos negócios cambiários e dos negócios constituintes de sociedades comerciais
unipessoais – uns e outros previstos em lei mercantil (art. 483º).

3. E, fora do domínio dos negócios mas dentro ainda dos factos jurídicos voluntários, é possível
encontrar simples atos jurídicos como atos comerciais. É o caso das interpelações e avisos efetuados
por sociedades mercantis a sócios remissos (CSC, art. 203º/3, 204º e ss, 285º - 286º).

4. Os próprios factos jurídicos ilícitos não estão excluídos da qualificação, em certos casos, como tos
comerciais. Desde logo, quando estejam previstos na lei mercantil – por exemplo, a abalroação
culposa de navios (art. 665º e ss)

Já os factos jurídicos não voluntários ou naturais (como o decurso do tempo fundamento de prescrição)
parecem não qualificáveis como atos de comércio. Afora o facto de o regime especial comum aos atos
comerciais não ser aplicável a tais factos naturais, dificilmente se concebem “atos” que não sejam factos
voluntários de sujeitos de direito – o próprio art. 1º parece confirmar essa ideia.

Dito isto, podemos para já dizer que são atos de comércio os factos jurídicos voluntários especialmente
reguladas em lei comercial e os que, realizados por comerciantes, respeitem as condições previstas no final do
art. 2º do Código Comercial.

3. ATOS DE COMÉRCIO OBJETIVOS E SUBJETIVOS

Na classificação básica dos atos de comércio, estes aparecem-nos ou como objetivos ou como subjetivos.
Utilizando por ora os dizeres do art. 2º, os primeiros são “todos queles que se acharem especialmente
regulados neste código”; os segundos “todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de
natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio ato não resultar”

Assim entendida, a classificação é “exata” ou “científica”. Pese embora o facto de um ou outro ato
“especialmente regulado” ser caracterizado também por notas subjetivistas, e de outros atos dos comerciantes
para serem considerados atos de comércio subjetivos, terem de cumprir as duas condições objetivas previstas
no final do art. 2º. As classificações são convencionais; necessário é que se explicite o respetivo significado.

3.1. Atos de comércio objetivos

3.1.1. Interpretação da primeira parte do art. 2º do Código Comercial

Recorde-se a primeira parte do enunciado normativo do art. 2º: será considerados atos de comércio todos
aqueles que se acharem especialmente regulados neste código.

É uma definição de atos de comércio objetivos por enumeração ou catálogo – por enumeração implícita, mais
precisamente (o preceito não explicita os atos, remetendo antes para outras disposições normativas).

São 4 os modos de manifestação da comercialidade jurídica objetiva

(1) Enumeração implícita; (2) interpretação extensiva; (3) art 230º; (4) analogia

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Direito Comercial I

Prevê o Código Comercial, no estado atual, variados atos:

1. Fiança – art. 101º;


Há atos que só são objetivamente comerciais
2. Empresas – art. 230º
porque têm ligação com outro ato objetivamente
3. Mandato – art. 231º e ss comercial. É o exemplo da fiança (art. 101º). Este
4. Conta corrente – arts. 344º regime diz respeito à fiança mercantil. Quando é
5. Operações de banco – art. 362º ss mercantil? Quando o fiador é fiador de uma
6. Transporte – art. 366º e ss obrigação mercantil. Só se a obrigação for
7. Empréstimo – art. 394º ss mercantil é que a fiança é um ato objetivamente
8. Penhor – art. 397º e ss de comércio
9. Depósito – art. 403º
10. Depósito de géneros e mercadorias nos armazéns gerais – art. 408º e ss
11. Compra e venda (art. 463º ss)
12. Reporte (art. 477º ss)
13. Escambo ou troca (art. 480º)
14. Aluguer (art. 481º e 482º)
15. Transmissão e reforma de título de crédito mercantil (art. 483º e 484º)
16. Atos relativos ao comércio marítimo (título III)

Relativamente à maioria, o Código estabelece disciplina específica, regras próprias de cada um deles. Tal não se
verifica relativamente a alguns: operações de banco (art. 363º), aluguer (art 482º). Nem por isso, como é
evidente, desmerecem estes atos o qualificativo “comerciais”.

Quer isto dizer, portanto, que são atos de comércio – por se acharem especialmente regulados neste Código –
os atos concretamente caracterizados pelas notas caracterizadoras ou requisitos previstos no Código
Comercial. Assim sendo, mesmo os atos comerciais para os quais o Código não estabelece disciplina específica
ficam sujeitos às regras (especiais) comuns aos atos de comércio em geral.

São atos de comércio objetivos apenas os “especialmente regulados neste Código”?

Esta formulação faria algum sentido em 1888. Não é, contudo, razoável petrificar um catálogo de atos num
código datado; há de ser possível leis posteriores, acompanhando a evolução económica, preverem novos atos
comerciais. Por isso se entende pacificamente que a expressão “neste Código” deve ser interpretada,
extensivamente, de modo a abarcar outras leis comerciais nos arts. 1º e art. 3º.

Temos de olhar para o art. 2º com o olhar de um intérprete de hoje. O art. 2º tem aquela redação porque
quando o código surgiu estávamos num período em que ainda se faziam sentir os ventos de codificação. Uma
ideia de codificação tentava obedecer aos 3 S’s: deveriam ser sintéticos, sistemáticos e scientíficos. Isto
significava que deviam ser globais. Deveriam abranger toda a matéria relativa a assuntos em causa. O Código
mudou imenso: foram surgindo outros atos, foi necessário regular fora do Código e, portanto, temos muitos
atos regulados fora do código comercial.

Aliás, foram tantas as matérias a ser retiradas do Código a ser colocadas em leis avulsas, que se os atos
objetivamente comerciais fosse apenas os que constassem do Código Comercial, haveríamos de ficar pouco
dentro do que consideramos atos objetivamente comerciais.

Mas quando pode uma lei ser qualificada, para estes efeitos, de comercial? Há que considerar três hipóteses:

(1) A lei substitui normas do Código Comercial;


(2) A lei auto-qualifica-se comercial, ou mais precisamente, qualifica (direta ou indiretamente) atos como
comerciais;
(3) Nenhuma destas hipóteses se verifica

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Direito Comercial I

(1) No primeiro caso, a lei substituta será em princípio comercial, os atos nela regulados serão mercantis. Seria
estranho considerar comerciais atos previstos no Código Comercial e considerá-los não-comerciais quando
previstos fora do Código.

Há legislação que expressamente diz que certos atos são atos de comércio. Evidentemente, se a própria lei,
que tem a mesma dignidade que o Código Comercial, diz que aquele ato é de comércio, temos de respeitar
essa classificação.

A confortar esta ideia, está o art. 4º da Carta de lei que aprovou o Código Comercial de 28 de junho de 1888:
“toda a modificação que de futuro se fizer sobre matéria contida no Código Comercial será considerada como
fazendo parte dele e inserida no lugar próprio, quer seja por meio de substituição de artigos alterados (…)”.

Por conseguinte, são objetivamente comerciais:

a. Os atos constituintes das sociedades comerciais previstos no Código das Sociedades Comerciais, que
substitui os art. 104º e ss do Código Comercial.
 Durante 100 anos o regime das sociedades comerciais (exceção feita às sociedades por quotas) foi
regulado no Código Comercial, mas em 1986 deixou de estar, surgindo no Código das Sociedades
Comerciais. O contrato de sociedade é um ato de comércio, e por força da carta da lei, é como se
estivesse ainda regulado no Código Comercial.

b. Os negócios respeitantes às letras, livranças e cheques, basicamente regulados hoje nas Leis Uniformas
de Letras e Livranças e LUCh e ontem nos arts 278º e ss do Código Comercial;

c. As operações de bolsa, antes previstas nos art. 351º e ss do C.Com. e agora no CVM;

d. Os contratos de transporte de mercadorias por mar, fretamento, de transporte de passageiros por mar,
regulados pelo DL 352/86 e 349/86, que revogaram os disciplinados pelo RJCS que revogou os art. 425º
- 462º do Código Comercial.

Nem todas as leis substitutas de artigos do Código Comercial serão comerciais, e por isso, qualificadoras de
atos mercantis

COUTINHO DE ABREU considera é o caso do “contrato de associação em participação”. Argumentos:

 Segundo o art. 224º, dava-se “conta em participação quando o comerciante interessa uma ou mais
pessoas ou sociedades nos seus ganhos e perdas, trabalhando um, alguns ou todos em seu nome
individual somente”.
 Ora, o art. 21º/1 do citado DL define a associação em participação como “associação de uma pessoa a
uma atividade económica exercida por outra, ficando a primeira a participar nos lucros ou nos lucros e
perdas que desse exercício resultarem para a segunda”. Não se exige, agora, que o associante seja
comerciante nem que a atividade seja comercial.
 Por outro lado, o regime estabelecido no DL é unitário e não parece ser de direito (privado) especial;
 Mais: o art. 22º/1 estatui que “sendo várias as pessoas que se ligam, numa só associação, ao mesmo
associante, não se presume a solidariedade de débitos e créditos daquelas para com este”.
Por conseguinte, a associação em participante não é ato objetivo de comércio, podendo ser, porém, ato
subjetivo de comércio, nos termos da 2ª parte do art. 2º.

SOVERAL MARTINS , pelo contrário, entende que a associação em participação é um ato objetivo de comércio.

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Direito Comercial I

(2) Atendamos agora à segunda hipótese

a. O Código Civil, no capítulo “locação” contém “disposições especiais do arrendamento para fins não
habitacionais ” (art. 1108º a 1113º). Entre esses fins conta-se também o comércio. E a locação de
estabelecimento “comercial ou industrial” merecem aí algumas regras específicas (art. 1109º e
1112º/1/a)/4).

Ora, sendo embora certo que em tal “comércio ou indústria” podem caber atividades sem cabimento no
comércio em sentido jurídico, certo é também que é este o visado primordialmente. Em consequência,
devem considerar-se atos objetivos de comércio, porque “especialmente regulados” em “lei comercial”,
a locação e o trespasse de estabelecimentos comerciais.

SOVERAL MARTINS : a comercialidade destas normas (do trespasse e da locação de estabelecimento


comercial) resulta sobretudo do facto de se atender às necessidades do comércio. Note-se que é
permitida a transmissão da posição do arrendatário, dispensando-se o consentimento do senhorio, no
caso de trespasse de estabelecimento comercial ou industrial, o que mostra claramente que se pretende
atender às necessidades do comércio.

b. Os Agrupamentos Europeus de Interesse Económico (AEIE, cuja disciplina básica consta do Regulamento
(CEE) 2137/85) podem ter objeto comercial ou civil. Pois bem, quando o objeto de um AEIE seja
mercantil, o respetivo contrato constituinte é um ato objetivamente comercial. É o que resulta
claramente do art. 3º do art. 3º do DL 148/90: “O contrato de agrupamento tem carácter civil ou
comercial, consoante o seu objeto”.

c. O DL 144/2006 regula as condições de acesso e exercício da atividade de mediação de seguros ou de


resseguros.

Consiste esta mediação em atividades de promoção da celebração de contratos de seguro ou de


resseguro, de apoio à gestão e execução desses contratos e, eventualmente, de celebração (em nome
das seguradoras) dos mesmos contratos.

Os mediadores são pessoas singulares ou entidades coletivas que exercem remuneradamente aquelas
atividades e distribuem-se por 3 categorias: mediador de seguros ligado, agente de seguros e corretor de
seguros.

Esta atividade de mediação ou interposição nas trocas, por ser comércio em sentido económico, já
mereceria ser qualificada de comércio em sentido jurídico; e os atos em que ela se traduz mereceriam
consequentemente a qualificação de atos de comércio.

Mas o próprio DL qualifica como objetivamente comerciais os atos de mediação de seguros.

d. Vários decretos-lei reguladores de certas modalidades de sociedades caracterizam-nas explicitamente


como sociedades comerciais.

Ora repita-se, sendo comerciais as sociedades “que tenham por objeto a prática de atos e comércio” (art.
1º/2 CSC), são tais decretos-lei atos legislativos comerciais e atos de comércio objetivos são os atos que
exprimem o objeto das respetivas sociedades

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Direito Comercial I

(3) Chegamos à terceira hipótese. Na maioria dos casos, as leis não se auto-qualificam explicitamente como
comerciais, civis, etc. Como saber então se estamos perante uma lei mercantil, prevendo de algum modo atos
(objetivos) de comércio?

Não parece suficiente remetermos vagamente para as necessidades ou interesses de comércio: por um lado,
porque não existe um conceito unitário ou in genere de comércio; e por outro lado, porque as leis comerciais
regulam também atos de comércio ocasionais.

Para saber se as leis em questão são comerciais, aparece necessário ver se elas disciplinam matéria análoga à
disciplina no Código Comercial, ou em outras leis classificadas comerciais. Mas este problema, porque
integrável no quadro mais amplo de atos mercantis por analogia, será tratado infra.

3.1.2. Significado do art. 230º do Código Comercial no quadro dos atos de comércio

Este artigo serve para classificar atos? Sujeitos? Ou uma outra coisa? Vamos ter de apresentar argumentos
num sentido e noutro.

O art. 230º pretende classificar atos como objetivamente comerciais ou sujeitos como comerciantes? Podemos
discutir isto, porque se olharmos para o art. 230º retiramos argumentos de um sentido ou outro. Vamos fazer
uma contraposição.

Dispõe o art.230º:

“Haver-se-ão por comerciais as empresas, singulares ou coletivas, que se propuserem:


1º Transformar por meio de fábricas ou manufaturas, matérias-primas, empregado para isso, ou só operários, ou operários
e máquinas.
2º Fornecer, em épocas diferentes, géneros, quer a particulares, quer ao Estado, mediante preço convencionado;
3º Agenciar negócios ou leilões por conta de outrem em escritório aberto ao público, e mediante salário estipulado;
4º Explorar quaisquer espetáculos públicos
5º Editar, publicar ou vender obras científicas, literárias ou artísticas
6º Edificar ou construir casas para outrem com materiais subministrados pelo empresário
7º Transformar, regular e permanentemente, por água ou por terra quaisquer pessoas, animais, alfaias ou mercadorias de
outrem”

Qual o alcance de a lei qualificar estas empresas de comerciais?

a. Uma corrente doutrinária entende que as “empresas” aí previstas significam o mesmo que
“empresários” ou, mais concretamente, “comerciantes”: as empresas seriam as pessoas, singulares ou
coletivas, que se propusessem praticar os atos de comércio enumerados no artigo.

b. Para outra corrente (por nós defendida), as empresas não são mais do que séries ou complexos de
atos comerciais (objetivos). Assim, enquanto os outros atos regulados no Código são considerados
isoladamente, os previstos no art. 230º são comerciais porque praticados em série, em “repartição
orgânica”.

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Direito Comercial I

Argumentos da primeira corrente doutrinária:

1. O enunciado normativo sugere o sentido de pessoa ou empresário para “empresa”:


 Abre com “haver-se-ão por comerciais as empresas, singulares ou coletivas”
 Fecha com 3 parágrafos sobre determinados sujeitos. Logo, se excluí sujeitos, estamos a falar
de sujeitos no nº1.

2. “Haver-se-ão por comerciais as pessoas ou os empresários”.


 Contudo, esta é formulação no mínimo esquisita. Comerciais serão os atos ou… as empresas.
Porque não se escreveu “Haver-se-ão por comerciantes as empresas (pessoas) singulares ou
coletivas”?

SOVERAL MARTINS entende que COUTINHO DE ABREU tem razão quando sustenta algo diferente

Todavia, outros elementos de interpretação (o histórico, o sistemático e o teleológico) revelam-se menos


favoráveis àquela tese.

1. Argumento histórico: as empresas previstas no art. 3º do Código Italiano de 1882 eram entendidas
como complexos ou séries de atos efetuados no quadro de peculiares organizações produtivas.

2. Argumento sistemático:
 Norma delimitadora primeira da matéria mercantil é a do art. 1º. Os atos comerciais são logo os
previstos no Código Comercial, no livro II onde se situa o art. 230º.
 Por outro lado, havendo no Livro I um capítulo estabelecendo quem é (e quem não é)
comerciante, mal se compreende depois vir o art. 230º atribuir diretamente essa qualidade a
certos empresários. Aliás, pode haver pessoas (coletivas, nomeadamente certas associações,
fundações, Estado, etc) a explorar empresas previstas no art. 230º, sem que por isso adquiram a
qualidade de comerciantes (art. 14º e 17º)

3. Argumento literal: o art. 230º diz “”haver-se-ão como comerciais”: os sujeitos não são comerciais,
ninguém diz “aquele sujeito é comercial”, mas “comerciante”. Comerciais serão os atos ou… as
empresas

Inclinamo-nos, por conseguinte, a ver as empresas do art. 230º como conjuntos ou séries de atos (atividades)
objetivamente comerciais enquadrados organizatoriamente (atos praticados no quadro de organizações de
meios pessoais e/ou reais).

QUESTIONA-SE: No art. 230º vamos encontrar referência a atos que são claramente identificados como
contratos. Agora temos de ver se é possível ir além dos simples contratos mencionados (SOVERAL MARTINS
entende que sim).

Que atos objetivos inclui? (1) Tão-só os contratos em que o exercício da empresa tipicamente se traduz
(fornecimento, agência, transporte, edição) ou (2) todos os atos praticados na exploração dessas organizações
empresariais?

No nº1 não temos uma menção propriamente a contratos. Só por si, a transformação não é
um contrato; mas esta atividade de transformação, enquadrada num âmbito de organização,
será considerada como atividade objetivamente comercial.

21
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Dir-se-á: tão-somente aqueles primeiros, pois são eles que se revelam nos vários números do artigo; os
restantes serão subjetivamente comerciais, nos termos do art. 2º, segunda parte. De resto, é isto que sucede
com relação às empresas não previstas no art. 230º cuja atividade se traduz em atos regulados no Código.

Contudo, COUTINHO DE ABREU propende para a segunda tese.

a. Por um lado, o nosso artigo parece basear a tipificação de algumas empresas em factos não jurídico-
negociais: as empresas transformadoras, de espetáculos públicos e até construtoras. Nestes casos,
quais os atos que merecem o qualificativo de objetivamente comerciais e quais os atos a considerar
subjetivamente mercantis?...

b. Por outro lado, a visão orgânica dos diversos atos em que o exercício das empresas se traduz
favorecerá igualmente esta tese.

c. Tal como poderá confortá-la o facto já assinalado de as empresas referidas no art. 230º poderem ser
exploradas por não comerciantes – não havendo então lugar para atos subjetivamente comerciais

Há ainda que excluir do âmbito da comercialidade a atividade estritamente agrícola. Esta foi outras das opções que o
legislador tomou em 1888 - §2º do art. 230º.

O §2º veio afastar da matéria mercantil a atividade agrícola. Atendendo às circunstâncias em que a atividade se
desenvolvia no séc. XIX, foi mantida na reserva civil, mesmo que fossem empresas (SOVERAL MARTINS ). As empresas
agrícolas foram deixadas fora do âmbito de matéria comercial (embora seja discutível nos dias de hoje). Só afastando as
empresas agrícolas, o §2º tem sentido.
+
Depois há outras normas que servem de apoio ao que estamos a sustentar – art. 464º: «não são consideradas comerciais as
vendas que o proprietário ou explorador rural faça dos produtos de propriedade sua ou por ele explorada, e dos géneros e que lhes
houverem sido pagar quaisquer rendas». Mesmo quando vende o que retira da terra, o proprietário ou explorador rural não
está a desenvolver uma atividade comercial, mesmo quando tenha uma empresa.
 CASSIANO DOS SANTOS entende que o art. 230º permite qualificar, por analogia, como comerciais, todas as
atividades desenvolvidas no quadro de uma empresa, nomeadamente uma empresa agrícola.
 SOVERAL MARTINS entende que isto é contra legem, é contra o nosso direito comercial positivo.

Em relação aos artesãos, SOVERAL MARTINS entende que a atividade artesanal é uma atividade não mercantil, ainda que
desenvolvida através de uma empresa.

Temos de ter em atenção que há um regime aplicável ao artesanato, que prevê a possibilidade do artesão desenvolver a
sua atividade sob a forma de Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada ou Sociedade Comercial. Art. 12º
Estatuto: considera-se unidade produtiva artesanal toda e qualquer unidade económica legalmente constituída e devidamente
registada, designadamente sob as formas de empresário em nome individual, estabelecimento individual de responsabilidade limitada,
cooperativa, sociedade unipessoal ou sociedade comercial, que desenvolva uma atividade artesanal…

O EIRL só pode, em regra, ser utilizado para atividades comerciais; a Sociedade Comercial tem necessariamente um
objeto comercial. Portanto, poderia pensar-se que o facto de se fazer menção ao EIRL e à Sociedade Comercial seria um
indício de que naqueles casos a atividade artesanal poderia ser atividade comercial.

 SOVERAL MARTINS não concorda com esta leitura, porque a lei fez questão de dizer “sob a forma de”. Ou seja, o
legislador só olhou para o EIRL e para a Sociedade Comercial como forma, e não teve em conta a atividade, não
olhou para o objeto.

A própria sociedade é uma forma de organização em si. Por isso, podemos ter sociedades civis sob forma comercial (uma
sociedade por quotas, anónima). SOVERAL MARTINS : o que temos aqui é uma sociedade civil sob a forma de uma
sociedade comercial; uma atividade civil a ser desenvolvida sob a forma de uma sociedade comercial. 22
Analogia de classificação e não de
regulamentação Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

3.1.3. Qualificação de atos de comércio por analogia

A enumeração implícita dos atos de comércio constante da 1ª parte do art. 2º Código Comercial, é
exemplificativa ou taxativa? Atos não regulados legislativamente, ou previstos em leis cujo carácter não é
declarado, podem ser qualificados comerciais por analogia com atos previstos em lei mercantil?

Eis um problema que tem dividido marcadamente a doutrina portuguesa.

Uma primeira precisão: o problema não se resolve recorrendo ao art. 3º. Esta norma admite o recurso à
analogia para regular atos já qualificados como comerciais. A nossa questão diz respeito a lacunas de
qualificação, não imediatamente a lacunas de regulação.

Os defensores da tese da inadmissibilidade da qualificação de atos mercantis por analogia invocam 3


argumentos principais:

(1) Primeiro: a letra da lei. “Serão considerados atos de comércio todos aqueles que se acharem
especialmente regulados neste código e, além destes” – é um enunciado que, além dos atos subjetivos de
comércio, apenas permitiria como atos comerciais os “especialmente regulados” em lei mercantil.

(2) Segundo: razão histórica. A 1ª parte do art. 2º foi inspirada no 2º parágrafo do art. 2º do Código de
Comércio espanhol de 1885 (“Serão atos de comercio os compreendidos neste Código e quaisquer outros
de natureza análoga”) – e a parte final deste parágrafo foi deliberadamente afastada da nossa lei.

Por outro lado, vão no mesmo sentido o relatório ministerial que precedeu a proposta de lei para a
aprovação do Código Comercial e a discussão nas câmaras dos deputados e dos pares sobre o projeto do
Código Comercial.

(3) Terceiro: certeza e segurança jurídicas. Dado o regime especial e as implicações dos atos de comércio,
seria atentar contra o valor jurídico da segurança permitir a analogia na determinação de atos mercantis.
 Este argumento é pouco sólido, pois a analogia pretende garantir igualdade e justiça. O que está na
base do raciocínio analógico é a ideia de justiça e igualdade

DR. SOVERAL MARTINS aceita o raciocínio analógico.

Aquela é uma argumentação insubsistente:

(1) Primeiro, porque a letra do art. 2º não é concludente – não diz que, além dos subjetivos, são atos de
comércio apenas os especialmente regulados em lei comercial.

(2) Segundo, porque está permitida desde há muito a conceção subjetivista-histórica da interpretação das
leis.

(3) Terceiro, porque o argumento da certeza jurídica já pesou muito mais do que agora (sobretudo por ter
sido extinta a jurisdição mercantil) e, doutro lado, porque o valor da justiça ou razoabilidade há de
sobrelevar

23
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Para qualificar atos como comerciais, é legítimo, portanto, recorrer à analogia.

Analogia legis e/ou analogia iuris?

a. Na perspetiva que adotamos, a admissibilidade do recurso à analogia legis não levantará grandes
dúvidas.
 Com efeito, esta significa, tradicionalmente, a disciplina dos casos omissos através da aplicação
de “princípios gerais” obtidos através de induções lógico-generalizadoras de uma série de normas
legais.

b. Ora, quem defenda a existência de um conceito unitário de ato de comércio, coerentemente


defenderá o recurso à analogia juris, extraído do sistema normativo mercantil o “princípio geral” –
conceito unitário de ato de comércio, há que aplicá-lo aos casos omissos.

Vimos atrás, porém, a irrealidade (objetiva) do conceito unitário de ato de comércio. Sendo assim, é
compreensível que alguns se oponham à analogia juris.

Contudo, rejeitando embora um conceito unitário de ato comercial, não será possível extrair vários princípios
gerais de vários grupos de normas qualificadoras de diversos atos como atos de comércio – possibilitando, pois,
o recurso à analogia juris? COUTINHO DE ABREU pensa que sim.

Vamos às concretizações destas ideias:

a. O nº6 do art. 230º refere-se às empresas de construção somente de “casas”. Não são então
comerciais as empresas construtoras de edifícios no mais amplo sentido, bem como de outras? Não há
razões substanciais para se lhe negar tal qualidade.
 A norma deve ser estendida analogicamente àquelas outras empresas de construção.

b. Os agrupamentos complementares de empresas: o objeto deles tanto pode ser comercial como civil,
pelo que não pode dizer-se serem estes diplomas leis comerciais. Todavia, sendo os ACE entidades
análogas aos AEIE, deve o contrato constituinte de um ACE com objeto comercial ser considerado ato
objetivo de comércio por extensão analógica (analogia legis)

c. A locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à
outra o gozo temporário de uma coisa móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta e
que o locatário poderá comprar, decorrido o prazo acordado por um preço nele determinado ou
determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados. A locação financeira é um
contrato em que se associam prestações próprias da locação e da compra e venda. Ora, a compra de
coisas móveis feitas pelo locador financeiro para as alugar e, eventualmente, revender ao locatário
financeiro é ato de comércio objetivo (art. 463º/1); a venda dessas coisas é também ato comercial
(nº3); e o aluguer de tais coisas é igualmente mercantil (art. 481º).

Por outro lado, as compras e revendas de coisas imóveis (pelo locador financeiro) são comerciais
“quando aquelas, para estas, houverem sido feitas” (art. 463º/4); mas, o art. 463º já não prevê a
compra de coisas imóveis para serem arrendadas e o aluguer do art. 481º incide sobre móveis. Não
obstante, afigura-se razoável estender analogicamente a norma do art. 481º à locação de imóveis no
leasing.

Portanto, o contrato de locação financeira, globalmente considerado, é um ato de comércio objetivo.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

d. O art. 230º/2 trata das empresas que fornecem “em épocas diferentes, géneros, quer a particulares
quer ao Estado, mediante preço convencionado”. Esta norma tem sido a mais fértil fonte para, através
de interpretação extensiva ou por analogia legis, se reconhecer a comercialidade de uma série de
espécies empresariais.

 Com efeito, tem-se entendido, com base em interpretação extensiva, serem comerciais as
empresas fornecedoras de água, gás ou eletricidade.

 Tal como se tem entendido, com base na analogia, considerar mercantis uma multiplicidade de
empresas de fornecimento de serviços (empresas hoteleiras, de publicidade, de informações de
automóveis, lavandarias, etc).

Raciocina-se assim: a consideração que impressionou o legislador e o levou a qualificar de comerciais


as empresas mencionadas no nº2 “foi haver aqui um certo risco originado pelo facto de interceder
sempre um período de tempo mais ou menos longo entre o momento da fixação do preço e dos
múltiplos atos sucessivos de fornecimento”.
 Se eu fixar hoje que, daqui a um ano, vou fornecer serviços a x euros por tonelada, corro o risco de daqui
a um ano os meus cálculos serem completamente manipulados pela realidade. Achava que o salário
mínimo ia ser y, que o custo da eletricidade ia ser y… ora, o custo destes fatores de produção pode
aumentar ou diminuir. É evidente que tudo isto se pode prever nos contratos, mas um contratos de
fornecimento não vai prever estas situações. Se os custos aumentarem muito, quem se obrigou a
fornecer, corre o risco ficar a perder. Claro que depois há o regime da alteração superveniente das
circunstancias, mas isso demora imenso tempo a resolver na prática.

Por isso devem ser abrangidas (analogia legis) todas as empresas que, apesar de não serem de
fornecimento de géneros, se traduzam no exercício de uma atividade económica desenvolvida dentro
do condicionalismo referido

 Mas é certo que a atividade de muitas empresas não se desenvolve dentro do referido
condicionalismo. Falhará aí a citada analogia legis.

Como qualificar as empresas de prestação de serviços, que têm crescido consideravelmente, mas que
Importante não são análogas às previstas no nº2 ou noutros, do art. 230º, nem às inclusíveis noutras normas do
Código nem às consideradas em diplomas posteriores?

Se não podem ser consideradas comerciais com recurso à analogia legis, já podem sê-lo com recurso à
teleologia imanente ao sistema legal mercantil, ao seu espírito, à analogia juris, portanto.

O facto de a lei, no Código, considerar comerciais muitas variadas empresas de serviços, conduz-nos
a esta conclusão.

Para SOVERAL MARTINS e para COUTINHO DE ABREU parece ser possível dizer que há, no Direito
Mercantil, um princípio geral segundo o qual, em regra, as empresas de prestação de serviços são !!!!
comerciais e as atividades que se desenvolvem a partir delas são comerciais. !
 Portanto, devem considerar-se comerciais os empreendimentos turísticos, estabelecimentos que se
destinam a prestar alojamento, aldeamentos turísticos, apartamentos turísticos, resorts, parques
campismo, etc, etc.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Isto é assim em regra, mas encontrar exceções, ou seja, situações em que não se verifica esta analogia
iuris. Estas exceções, no entendimento de SOVERAL MARTINS podem encontrar-se na prestação de
serviços artesanais (art. 230º §1º). Isto é algo que obriga a acender qual a linha de fronteira entre
atividade que é comercial e uma atividade que é artesanal. No caso do artesanato, há aqui apoio da
lei, nomeadamente no Código Comercial para afirmar que artesanato foi olhado como algo que deve
constituir uma espécie de reserva civil. Isto vale para o artesanato e para agricultura.

e. Ainda a propósito das empresas comerciais: vimos que o trespasse e a locação de estabelecimento
comercial são atos de comércio objetivo. Recorrendo à analogia juris, diremos que os negócios sobre
as empresas comerciais são atos objetivamente comerciais

f. “Agência” é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a promover por conta da outra a
celebração de contratos, de modo autónomo e estável e mediante retribuição, podendo ser-lhe
atribuída certa zona ou determinado círculo de clientes – DL 178/86

Até 1986, o contrato de agência era um negócio atípico. E questionava-se a sua comercialidade. A
comercialidade era afirmada claramente nos casos em que o contrato é concluído no âmbito de uma
empresa (assim decorre do art. 230º/3) e afirmada também quando fosse concluído fora do quadro
de uma empresa dedicada a agenciar negócios (por virtude de analogia legis com o mandato e
comissão comerciais (art. 231º e 266))

A comercialidade do contrato de agência deve continuar a ser afirmada.

Mas com argumentos parcialmente diversos, sobretudo para casos em que o agente não seja
empresário.

O comércio em sentido económico é a atividade de interposição de trocas ou intermediação na


circulação de bens, e o comércio em sentido jurídico, embora mais que isso, é evidentemente também
isso.

É ver: operações de banco, compras e vendas, aluguer, mediação de seguros.

Colhe-se, pois, um princípio geral, segundo o qual as atividades de interposição nas trocas pertencem
!!!! ao comércio em sentido jurídico (!). Ora, o agente exerce uma atividade de intermediação nas trocas.
– Analogia juris

O DL 178/86, disciplinando matéria jurídico-mercantil, é portanto uma lei comercial – e o contrato


de agência e os atos que por virtude dele o agente pratica são atos comerciais.

g. Concessão comercial é o contrato de carácter duradouro pelo qual o concedente se obriga a vender
bens por si produzidos ou distribuídos ao concessionário, obrigando-se este a comprá-los e a
promover, nas condições acordadas e em nome e por conta própria, a respetiva revenda. É claro que
as vendas dos concedentes são comerciais, tal como as compras. Porém, o contrato de concessão não
se confunde com o contrato de compra e venda. Contudo, pode dizer-se que o contrato de concessão
comercial consubstancia uma interposição nas trocas. Por isso, deve qualificar tal contrato, recorrendo
à analogia juris, como ato de comércio.

Posto isto, aqui fica uma definição de atos de comércio objetivos: os factos jurídicos voluntários previstos na lei
comercial e análogos.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

NOTA FINAL:

Em relação à analogia há um aspeto também que deve ser particularmente tido em conta, porque não é
desenvolvido nas lições

Quando nós vamos procurar colmatar uma lacuna de qualificação ou de regulamentação, temos de ver se
efetivamente existem razões para fundamentar essa analogia. É importante que não se aplique um regime a
uma situação lacunosa só porque as duas situações são parecidas. Isto não basta, não é um raciocínio jurídico.
Isso não é suficiente.

Portanto, temos um determinado regime expresso numa determinada lei para um determinado ato. Devemos
perguntar: do ponto de vista dos interesses, o que justificou que se desse este regime a este ato? Os
interesses que justificaram a solução consagrada são interesses do comércio? Se são, justificar-se-á aplicar esse
regime a esse caso omisso e qualificar o ato comercial por analogia. Portanto, não basta dizer que são
parecidos. Temos de ver se o que justificou a solução prevista, justifica a mesma solução no caso omisso.

Interesses mercantis:

1- Interesse na celeridade nas trocas: é um interesse particularmente visível no mundo do comércio)


2- Interesse na desformalização;
3- Interesses associados ao crédito: costuma-se dizer que o crédito é o oxigénio das economias. O
aumento de concessão de trocas coloca mais dinheiro em circulação e a riqueza aumenta;
4- Tutela da aparência: no mundo do comércio a tutela da aparência é importante, porque permite
aumentar a rapidez nas trocas, não temos constantemente de estar a verificar tudo

Temos de ver, portanto, se o caso é análogo e ver se o que justificou a solução prevista, justifica a mesma
solução no caso omisso.

3.2. Atos subjetivos de comércio

Utilizando os dizeres da segunda parte do art. 2º do Código Comercial, os atos de comércio são “todos os
contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do
próprio ato não resultar”.

Decompõem a “fórmula em 3 partes” Analisemos:

A. Os atos subjetivos de comércio começam por ser atos “dos comerciantes”

Dos comerciantes nos ocuparemos no próximo capítulo. Registe-se entretanto o enunciado normativo do art.
13º do Código Comercial.

Mas o art. 2º não fala simplesmente de atos de comerciantes; fala de “contratos e obrigações dos
comerciantes”. É uma formulação no mínimo pouco harmónica, com efeito: nem só “os contratos dos
comerciantes” são “atos dos comerciantes”; “as obrigações” não são “atos”, sendo sim consequência de atos;
nos “contratos”, um comerciante não pode ser simultaneamente ambas as partes – e um contrato pode ser
mercantil relativamente a uma das partes e não mercantil com respeito à outra.

Por conseguinte, seria mais coerente referir-se a “todos os atos dos comerciantes”.

Não obstante, poderemos adivinhar algum efeito útil da menção às obrigações. Na verdade, nem todas as
obrigações comerciais dos comerciantes derivam de atos mercantis por eles praticados (art. 18º). Ora, a
afirmação de comercialidade nos termos do art. 2º, de tais obrigações pode conduzir à aplicação, por exemplo,
do art. 15º (conjugado com art. 1691º/d) e 1695º CCiv).

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

B. Não podem ser de natureza exclusivamente civil

Segundo o entendimento tradicional, seriam de natureza exclusivamente civil os atos apenas


(“exclusivamente”) regulados na lei; não possuiriam tal natureza os atos incluíveis num género de que o Código
Comercial, ou outra lei mercantil, regula uma ou mais espécies, bem como os atos com regulamentação tanto
na lei civil como na lei comercial.

 Patenteia-se esta conceção no relatório do ministro Veiga Beirão

Considerações:

a. O preceito refere-se a atos que não forem de natureza exclusivamente civil, não a atos que estejam
regulados exclusivamente na lei civil (por exemplo, o trespasse e locação de estabelecimento
comercial encontram-se regulados no CCivil. e não é por isso é que têm natureza exclusivamente
civil.);

b. Por outro lado, o art. 2º depois de visar na primeira parte os atos regulados na lei comercial, há de
visar na segunda parte sobretudo os atos dos comerciantes nessa mesma lei não previstos;

c. Além disso, há atos omissos, não regulados nem na lei civil, nem na lei comercial, aos quais pode não
repugnar a comercialidade;

d. Por outro lado ainda, é razoável que o preceito pretenda sujeitar ao regime do direito comercial atos
conexionáveis com o comércio profissional.
Consideração
Em consonância com autorizada doutrina italiana que se ocupou do art. 4º do Codice di Commercio, em abstrato
entendemos pois serem atos de natureza exclusivamente civil os que, por sua natureza ou essência não são
conexionáveis com o exercício do comércio, não se concebendo nem dirigidos a auxiliar, promover ou levar a
cabo o exercício do comércio, nem a deste dependerem.

 São portanto atos de natureza exclusivamente (ou essencialmente!) civil os atos de carácter
extrapatrimonial, como o casamento, perfilhação, a designação de tutela pelos pais.

O ato tem natureza essencialmente civil se é um ato que repugna o mundo do comércio, se for um ato
estranho ao mundo do comércio em geral. O ato é comercial se o ato é em abstrato conexionável com o
mundo do comércio.

Vejamos contudo alguns atos cuja natureza essencialmente civil tem sido discutida.

i. Doações: é possível considerar doações atos subjetivamente comerciais com respeito ao comerciante-
doador? Alguns autores vão pela negativa. Outros respondem afirmativamente. Coutinho de Abreu
pensa que as gratificações a empregados (doações remuneratórias), bem como as doações feitas pelos
comerciantes com fins reclamísticos, não são atos de natureza exclusivamente civil, são atos com causa
mercantil, conexionáveis com o comércio.

ii. Porque conexionáveis com o exercício do comércio em geral, também as rendas perpétuas e vitalícias
não são atos essencialmente civis.

iii. Os factos jurídicos ilícitos, geradores de responsabilidade extracontratual têm conexão com o
comércio - não têm natureza exclusivamente civil.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

C. Se o contrário do próprio ato não resultar

Um ato de natureza não exclusivamente civil de um comerciante é (subjetivamente comercial) “se o contrário
do próprio ato não resultar”.

Neste 3º requisito o que interessa é verificar se é ou não um ato conexionável com o comércio daquele sujeito.
Vamos olhar para aquele ato e em função do que resulta dele e podemos ter 3 situações possíveis:

Assim, considerando o ato em concreto:

a. Se do próprio ato resulta a ligação com o comércio, o ato é comercial;


 Merceeiro compra furgoneta a um agricultor, declarando destinar-se a mesma ao transporte
de mercadorias de e para a sua mercearia
b. Se do próprio ato resulta a não ligação com o comércio, o ato é igualmente comercial;
 Merceeiro compra furgoneta ao seu conhecido agricultou sem nada declarar acerca do seu
destino
c. Se do próprio ato resulta a não conexão com o comércio, o ato é não mercantil
 Merceeiro, ao comprar furgoneta, declara que a utilizará como “caravana” nas férias

“Próprio” ato significa não apenas o facto jurídico em si mas também as circunstâncias concomitantes que
auxiliem na sua compreensão.

Pegando no exemplo em que o merceeiro, ao comprar furgoneta, declara que a utilizará como “caravana” nas
férias. Se atendêssemos simplesmente ao ato negocial, concluiríamos tratar-se de um ato mercantil – dele não
resulta uma não conexão com o comércio. Todavia, porque devemos atender às circunstâncias concomitantes,
no caso ao projeto de utilização dado a conhecer pelo comerciante, o ato há de ser qualificado de civil.

O que resulta do próprio ato? Como fazemos a apreciação?

A doutrina tem vindo a defender, com todo o sentido, o critério da impressão do declaratário. O vendedor vai
olhar para aquele ato, para o próprio ato e circunstâncias que o envolvem: como é que vamos apreciar o que
esse terceiro (vendedor) vai retirar do próprio ato?

Utilizamos não o olhar da concreta contraparte, mas o olhar de um terceiro normal, colocado nas
circunstâncias em que estava envolvido a concreta contraparte. Pegamos num sujeito medianamente sagaz,
prudente e colocamo-nos na situação do concreto do terceiro, do que ele conhecia, podia conhecer, e ver que
conclusões esse terceiro normal retiraria daquele ato, daquelas circunstâncias.

A segunda parte do art. 2º contém ou não uma presunção legal? Tal como aconteceu em Itália a propósito do
art. 4 do Codice di Commercio, também por cá se tem discutido a questão.

 Segundo alguns autores, a norma revela uma presunção (os atos de comerciantes presumem-se
comerciais) presunção juris tantum para uns e et de jure para outros.
 Segundo outros autores esta norma é imperativa.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

COUTINHO DE ABREU acompanha os últimos autores. Isto porque as “presunções são as ilações que a lei ou o
julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido (art. 349º CC)”. Ora, do facto de se
saber que determinado sujeito é comerciante não se conclui que os atos por ele praticados são comerciais,
porque aquela norma estabelece a comercialidade de atos através de três requisitos.

Definição de atos de comércio subjetivos: os factos jurídicos voluntários (ou os atos, simplesmente) dos
comerciantes conexionáveis com o comércio em geral e de que não resulte nõ estarem conexionados com o
comércio dos seus sujeitos.

4. Atos de comércio autónomos e atos de comércio acessórios

 São atos de comércio autónomos os qualificados de mercantis por si mesmos, independentemente de


ligação a outros atos ou atividades comerciais

 São atos de comércio acessórios os que devem a sua comercialidade ao facto de se ligarem ou
conexionarem a atos mercantis

O C. Comercial prevê alguns atos acessórios: fiança (art. 101º), mandato (art. 231º), empréstimo (art. 394º),
penhor (art. 397º), depósito (art. 403º).

Estes atos tanto podem ser acessórios de atos de comércio objetivos e autónomos (mandato para compra de
mercadoria destinada a revenda) como de atos de comércio objetivos mas acessórios (mandato para depósito
de mercadorias que mandante comprou para serem revendidas), como de atos subjetivamente comerciais
(mandato para compra de caixas-registadoras destinadas ao supermercado do mandante).

Tem-se questionado a possibilidade de qualificação como comerciais dos atos de não comerciantes não
especialmente regulados na lei mercantil mas acessórios de atos objetivamente comerciais.

Por exemplo, uma pessoa comprou 10 arrobas de queijo da serra para revender e, para transportar os queijos,
compra caixas de madeira e utiliza uma viatura dada em aluguer por um agricultor: A compra de caixas e o
aluguer da viatura são qualificáveis como atos de comércio pelo facto de serem acessórios de um ato mercantil
(compra queijos para revender)?

 Há quem responda afirmativamente, de acordo com a chamada teoria do acessório, todo o ato de um
não comerciante efetivamente conexionado com ato objeto mercantil é ato de comércio.
 Resposta negativa é dada pela doutrina dominante, ou porque se considera inadmissível o recurso à
analogia, ou porque se admite tal recurso mas de modo restrito.

COUTINHO DE ABREU: pensa que a teoria do acessório, na pretendida máxima extensão, não deve ser colhida
entre nós. É certo que a lei comercial prevê vários atos mercantis por serem acessórios de outros atos de
comércio.

Porém, dada a diversificada índole daqueles atos, não parece legítimo afirmar um “princípio geral”, segundo o
qual todo e qualquer ato de não comerciantes seria mercantil quando conexionado com atos objetivos de
comércio (não há lugar a analogia iuris).

30
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Não obstante, já nos parece legítimo qualificar de comerciais certos atos de não comerciantes por serem
análogos a atos acessórios de comércio previstos na lei (analogia legis).
NOTAS
AULA
TEÓRICA
Às vezes a diferença não é assim tão nítida. Por vezes vemos escrito que um exemplo de ato autónomo é a
compra e venda mercantil. Contudo, atendamos ao art. 463º: a revenda de uma coisa móvel que se comprou
para esse fim é ato de comércio objetivo e a compra para revenda pressupõe uma ligação com o ato
pretendido ao nível das intenções (comprou com aquele fim de revenda).

Por isso é que se diz que, e O RLANDO CARVALHO usava essa expressão, muitas vezes este pretenso objetivismo
(que parte dos atos de comércio independentemente de quem os pratica) é conduzido por um teologismo.

Porquê? Porque o ato é considerado objetivo em função das intenções e finalidades colocadas aos atos e por
vezes a prova das finalidades é algo muito subjetivo. Temos aqui um objetivismo que é por vezes subjetivista.

Em relação aos atos acessórios, a questão que se pode colocar é se a prática de atos acessórios com carácter
profissional permite adquirir a qualidade de comerciante.

No caso do direito mercantil, SOVERAL MARTINS não vê razões para afastar a possibilidade de ser desenvolvido
com carácter profissional a atividade de depositário (art. 403º). O depósito mercantil é muito utilizado na vida
comercial.

Noutros casos, a situação é mais complexa, como no caso do empréstimo ou da fiança mercantil. Estamos
perante atos que até, em abstrato, faz sentido imaginar alguém a desenvolver, com carácter profissional, a
atividade de prestar essas garantias. O problema é que, mesmo que tenham um património avultado, não
podemos desenvolver com caracter profissional essa atividade, por estar reservado a entidades de crédito – se
alguém começar a desenvolver este género de atividade com carácter profissional, o ato será nulo.

5. Atos formalmente comerciais e substancialmente comerciais

Apesar de ter hoje pouco relevo prático, é de manter esta (entre nós) tradicional classificação.

Atos formalmente comerciais são os esquemas negociais que, utilizáveis quer para a realização de operações
mercantis, quer para a realização de operações económicas que não são atos de comércio nem se inserem na
atividade comercial, estão contudo especialmente regulados na lei mercantil, merecendo portanto a
qualificação de atos de comércio.

31
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Protótipo destes atos são os negócios cambiários (relativos às letras de câmbio)

Se por exemplo A quiser vender a um colega um pc, estamos perante uma compra e venda civil. Mas
vamos supor que o comprador não tem dinheiro suficiente para comprar. Numa situação destas, o
vendedor pode resolver celebrar o negócio, concedendo crédito. Mas o vendedor pode ser calculoso e,
para garantir a sua posição, pode combinar com o comprador que vai saca r sobre ele uma letra, que o
comprador vai aceitar. O saque é um negócio cambiário, é um ato de comércio objetivo, e o aceite da
letra de câmbio é também um ato objetivo de comércio.

A doutrina diverge na terminologia:

 Alguns autores entendem que a letra em si é um ato de comércio.


 SOVERAL MARTINS entende que os atos de comércio são os negócios cambiários inseridos na letra, ou
seja: o saque (o ato que cria a letra), o aceite, o endosso e o aval… São atos de comércio objetivos, que
a doutrina entende que são atos formalmente comerciais, apenas.

O saque e o aceite podem ser utilizados para a operação mercantil, mas neste caso não foram, e são
considerados como formalmente comerciais.

6. Atos bilateralmente comerciais e atos unilateralmente comerciais

Os bilateralmente comerciais são atos cuja comercialidade se verifica em relação a ambas as partes.

 Por exemplo, A, produtora de automóveis, vende, no quadro de um contrato de concessão comercial, x


automóveis ao seu concessionário B; A celebra com C, seguradora, um contrato de seguro relativo aos
seus estabelecimentos mercantis.

São unilateralmente comerciais os atos cuja comercialidade se verifica só em relação a uma das partes

 Por exemplo: E, professor, compra a B um automóvel pra o seu uso e da sua família; E segura o seu
automóvel junto de C; E, para pagar parte das prestações relativas à compra da viatura, celebra um
contrato de empréstimo com D.

Qual o regime jurídico dos atos unilateralmente comerciais? Aplicar-se-lhes-á a lei comercial, civil ou uma
outra? Responde o art. 99º do Código Comercial: “Embora o ato seja mercantil só em relação a uma das partes,
será regulado pelas disposições da lei comercial quanto a todos os contratantes, salvo as que só forem
aplicáveis àquele ou àqueles por cujo respeito o ato é mercantil, ficando, porém todos sujeitos à jurisdição
comercial”

Os atos unilateralmente comerciais estão em regra sujeitos, portanto, à disciplina mercantil.


 Excetuam-se, porém, as disposições da lei comercial “que só forem aplicáveis àquele ou àqueles por
cujo respeito o ato é mercantil”.

E quais são elas? Será especialmente, hoje, a do art. 100º. A solidariedade de devedores só se verifica
relativamente àqueles “por cujo respeito o ato é mercantil”.

Deve acrescentar-se uma categoria mais geral de exceções à aplicação da lei comercial: quando o ato
unilateralmente comercial seja contrato de consumo, aplicam-se a ambos os contratantes as regras especiais
das relações de consumo.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

CAPÍTULO II – OS COMERCIANTES

1. Introdução

Sabemos já que os sujeitos dos atos de comércio e das relações jurídico-mercantis podem ser comerciantes e
não-comerciantes.

Os sujeitos (singulares ou coletivos) com capacidade civil de exercício possuem igualmente capacidade
comercial de exercício, podem praticar atos de comércio – art. 7º

Porém, os atores determinantes no (e do) direito mercantil são os comerciantes. E tem alguma importância
saber quem é (e não é) comerciante. Pois possuem os comerciantes um estatuto próprio, que se traduz
principalmente no seguinte:

a. Os atos dos comerciantes são considerados subjetivamente comerciais, nos termos da segunda parte
do art. 2º;

b. As dívidas comerciais dos comerciantes casados presumem-se contraídas no exercício dos respetivos
comércios (art. 15º; e tais dívidas são em princípio da responsabilidade dos comerciantes e seus
cônjuges – art. 1691º/d));

c. A prova de certos factos em que intervêm comerciantes é facilitada:


 Art. 396º
 Art. 400º

d. Prescrevem no prazo de 2 anos “os créditos dos comerciantes pelos objetos vendidos a quem não seja
comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam
profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de
trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo despesas que hajam efetuado, a menos que a
prestação se destine ao exercício industrial do devedor” (art. 317º CCiv.)

e. Nos termos do art. 18º do CCom os comerciantes estão obrigados a adotar uma firma, a ter
escrituração mercantil, a fazer inscrever no registo comercial os tos a ele sujeitos, a dar balanço e
prestar contas.

2. Sujeitos qualificáveis como comerciantes

2.1. Pessoas singulares

Nos termos do art. 13º/1, são comerciantes as pessoas que tendo capacidade para praticar atos de comércio,
fazem deste profissão. O preceito compreende sem dúvida as pessoas singulares.

(1) Para serem comerciantes, as pessoas, segundo aquele enunciado normativo, têm de ter “capacidade para
praticar atos de comércio”. Discute-se se a capacidade exigida é a capacidade jurídica (capacidade de gozo de
direitos – aptidão para se ser sujeito de relações jurídicas) ou a capacidade de exercício de direitos (capacidade
de agir – aptidão para atuar juridicamente, por ato próprio ou mediante procurador).

FERRER CORREIA entendia que seria uma capacidade de gozo, com o argumento de que o art. 7º trataria a
capacidade de exercício e não seria necessário voltar a falar da capacidade de exercício no art. 13º.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Entende a doutrina tradicional e dominantemente referir-se a norma à capacidade de exercício. Assim entende
COUTINHO DE ABREU e SOVERAL MARTINS . A “prática” de atos de comércio e a “profissão” mercantil hão-de
referir-se à capacidade de agir, não à mera idoneidade para se ser titular de direitos e obrigações; por outro
lado, o art. 13º há de concordar com o art. 7º, relativo à capacidade de exercício para a prática de atos de
comércio.

Sendo assim, os incapazes (menores não emancipados, interditos e inabilitados) não poderiam nunca ser
comerciantes; a lei, pondo a coberto dos riscos do comércio o património dos incapazes impedi-los-ia de serem
comerciantes. Mas não é assim. Tendo em vista outras normas legais (e razoabilidade) o requisito da
capacidade previsto no art. 13º tem de ser compreendido com algumas restrições:

a. Na verdade, o art. 1889º/1/c) CCiv permite aos pais, enquanto representantes do filhos, e desde que
autorizados pelo MP, “adquirir estabelecimento comercial ou industrial ou continuar a exploração do que
o filho haja recebido por sucessão ou doação”.

b. O mesmo é permitido ao tutor representante de menor ou interdito (art. 1938º/1/a)/f) e 139º CCiv)

c. Por sua vez, o inabilitado assistido por curador (curador-assistente) pode não só continuar a exploração
de estabelecimento que vinha explorando antes da inabilitação, mas também adquirir empresa e
explorá-la (art. 153º CCiv). O curador administrador dos bens do inabilitado (curador-representante –
art. 154º) pode, com autorização do MP, continuar a exploração de empresa já explorada pelo
inabilitado, bem como adquirir empresa ou continuar a exploração da que o inabilitado haja recebido por
sucessão ou doação (art. 156º).

Ora, os incapazes que exerçam o comércio através dos seus representantes legais devidamente autorizados
pelo MP devem ser considerados comerciantes, têm o estatuto de comerciantes (apesar de não terem
capacidade para a prática de atos de comércio).

Por conseguinte, os menores não emancipados, os interditos e inabilitados não são comerciantes:

i. Quando exerçam o comércio (apenas) por si;


ii. Quando o comércio seja exercido em nome deles por quem não é representante legal;
iii. Quando os representantes legais exerçam o comércio em nome dos incapazes sem autorização do
MP.

NOTA: a Lei 49/2018 de 14 de agosto criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os
institutos da interdição e inabilitação previstos no CCiv. Com esta nova lei vamos ter uma alteração
substancial. Como sabemos, hoje temos as 3 formas de incapacidade: menoridade, inabilitação e
interdição. Contudo, quando esta lei entrar em vigor, apenas os menores continuarão a ser considerados
incapazes de exercício. O maior sujeito ao regime de acompanhamento deixou de ser considerado incapaz.
O que vamos ter é a figura do acompanhamento.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

(2) Para serem comerciantes, as pessoas com capacidade para praticar atos comerciais (e incapazes nos casos
acabados de analisar) têm de fazer do comércio profissão.

Se pode dizer-se haver consenso quanto a uma ideia mínima de “profissão” (exercício habitual de atividade
económica como meio de vida), já o mesmo se não pode dizer quanto ao “comércio”.

Vimos no capítulo introdutório que o comércio em sentido jurídico vai para lá do comércio em sentido
económico. E o comércio referido no art. 13º/1 há-de ser comércio em sentido jurídico. Pois bem, este
comércio significa atividade, atividade qualificada por lei como comercial. E atividade que se traduz em atos,
entre os quais se encontram, muitas vezes de forma determinante, atos de comércio propriamente ditos.

Todavia, não é a prática, ainda que habitual, de quaisquer atos de comércio que faz do respetivo sujeito,
comerciante:

a. Estão evidentemente fora de causa os atos de comércio subjetivos – não atribuem a qualidade de
comerciante, supõem-na. Os atos subjetivos já pressupõem a qualidade de comerciante.

b. Fora de causa estão também os atos formalmente comerciais – podem ser utilizados ou não para a
realização de operações mercantis e a sua prática, mesmo que habitual, não pode denotar o exercício
de uma profissão
 Um agricultor que recorre habitualmente ao crédito, aceitando por isso letras de câmbio, não exerce
qualquer profissão comercial pelo facto de habitualmente praticar atos de comércio cambiários.

c. Fora de causa estão também os atos acessórios? Responde afirmativamente a doutrina dominante. É
verdade que a prática de certos atos acessórios não conduz à qualificação dos respetivo sujeito como
comerciante (por exemplo, apenas as instituições de crédito e sociedades financeiras, e não as pessoas
humanas, podem exercer a título profissional atividades que se traduzam na prestação de fianças ou
penhores mercantis – art. 4º/1/b) e 8º/2 RGIC).

Mas nem sempre assim sucede. Suponha-se uma pessoa que explora um armazém onde são
depositadas mercadorias destinadas a ser revendidas pelos depositantes (cfr. art.403º). Porque não há
de ser considerada comerciante?

d. Outra questão: quaisquer atos de comércio objetivos, substanciais e autónomos possibilitam a


qualificação de pessoas como comerciantes? Não parece. Tenham-se em vista, por exemplo, a conta
corrente (art. 344º e ss) e as compras de participações sociais não destinadas à revenda ou as vendas
de participações sociais não adquiridas com intuito de revenda (art. 463º/5)

(3) Para serem comerciantes, as pessoas têm de exercer uma atividade comercial ou praticar atos de comércio
com profissionalidade, isto é, de modo habitual ou sistemático- não se exige, no entanto, que a profissão seja a
única exercida pelo sujeito, nem que seja a principal. Nem se exige que a respetiva atividade seja exercida de
modo contínuo ou ininterrupto.

(4) Deve acrescentar-se que as pessoas que exercem profissionalmente uma atividade comercial só são
comerciantes quando a exerçam em nome próprio; dizendo de outra maneira: é comerciante a pessoa que
exerce pessoalmente a título profissional o comércio ou em cujo nome ele é exercido.
 São, portanto, comerciantes os incapazes e não os seus representantes legais, ou empresários
mercantis e não os seus mandatários ou representantes

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Direito Comercial I

É correto dizer-se, entre nós, que os comerciantes são afinal, as pessoas (singulares) que exploram (a título
de propriedade, locação, usufruto) empresas comerciais?

É tendencialmente correto. A larga maioria dos comerciantes explora empresas comerciais. Mas não todos.
Parece infundado sustentar-se que certos vendedores ambulantes, equiparados com um tabuleiro onde são
expostos artigos, têm uma empresa; os agentes e outros profissionais intermediários comerciais são
comerciais; os especuladores que, com profissionalidade, e apenas munidos, em casa com computador,
telefone e alguns livros e revistas, compram e revendem participações na Bolsa ou fora dela são comerciantes,
mas não exploram empresas; pode acontecer uma pessoa ser considerada comerciante mesmo antes de ter
constituído empresa.

A partir de que momento adquirem as pessoas singulares a qualidade de comerciantes?

Não parece possível uma resposta única. O início da qualidade de comerciante poderá depender de um só ato
ou de vários. Em tese geral, diremos que tal início se determinará pela prática do ato ou dos atos reveladores
do propósito e possibilidade de certo sujeito se dedicar ao exercício habitual de uma atividade comercial.

Soveral Martins concorda com a tese vertida

Assim, por exemplo, um sujeito não empresário que celebra pela primeira vez um contrato de agência passa
desde então a ser considerado profissional do agenciamento comercial e comerciante – apesar de não ter inda
promovido a celebração de qualquer contrato por conta “principal”.

A questão apresenta maior relevo, porém, a propósito dos comerciantes-empresários. Tem-se entendido, entre
nós, sobretudo com o apoio do art. 95º, que uma pessoa passa a ser comerciante logo que abre um
estabelecimento pronto a funcional. Mas não se deverá ir mais longe?

 Na Alemanha, antes da lei de reforma do direito comercial de 22 de junho de 1998, entendia-se


pacificamente que a aquisição da qualidade de comerciante se bastava com atos preparatórios da
empresa; não parece que a atual redação daquele § determine entendimento diferente.
 Na Itália a questão é bastante debatida.

Uma importante corrente doutrinária, apesar de minoritária (parece) sustenta também que uma série de atos
concatenados com vista à organização e exploração de uma empresa é suficiente para o respetivo sujeito
adquirir a qualidade de empresário.

COUTINHO DE ABREU entende semelhantemente. Se alguém compra uma empresa comercial, revelando o
propósito de a explorar, torna-se por isso comerciante. Se alguém pratica vários aos de organização de uma
empresa comercial e esses atos indiciam que ele irá explorá-la, torna-se por isso comerciante – apesar de ainda
nem sequer existir empresa propriamente dita.

2.2. Pessoas coletivas

2.2.1. Sociedades comerciais

Prescreve ainda o art. 13º que “são comerciantes” “as sociedades comerciais” (nº2). Nos termos do art. 1º/2
CSC, “são sociedades comerciais aquelas que (1) tenham por objeto a prática de atos de comércio e (2) adotem
o tipo de sociedade em nome coletivo, de sociedade por quotas, anónima, comandita simples ou em comandita
por ações”

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Direito Comercial I

As sociedades comerciais de que tratamos adquirem a qualidade de comerciantes pelo menos a parir do
momento em que adquirem personalidade jurídica – art. 5º CSC. Não é necessário, portanto, que pratiquem
primeiro quaisquer atos de comércio compreendidos no seu objeto.

O CSC, no art. 1º/4 permite que as sociedades que tenham exclusivamente por objeto a prática de atos não
comerciais adotem um dos tipos ou formas das sociedades comerciais – sendo-lhes então aplicável o regime
deste Código. As sociedades civis de tipo ou forma comercial, porque lhes falta um dos requisitos das
sociedades comerciais – não têm objeto comercial, não se propõem exercem nem exercem atividade mercantil
-, não são sociedades comerciais. Logo, não são comerciantes; o art. 13º/2 qualifica de comerciantes somente
as sociedades que sejam sociedades comerciais.

Portanto, é necessário (1) objeto mercantil e (2) que a sociedade adote um daqueles tipos de sociedade
comercial previstos no código.

3. Sujeitos não qualificáveis como comerciantes

Vimos anteriormente que são comerciantes o que exercem com profissionalidade atividades comerciais. Por
conseguinte, não são comerciantes os que exercem atividades não mercantis. Sendo estas atividades as não
qualificadas legalmente de comerciais e não análogas às comerciais – certo sendo ainda que a lei, por vezes,
exclui expressamente (de modo direito e/ou indireto) certos setores da atividade económica do campo da
comercialidade.

1. Assim, não são comerciantes as pessoas (singulares ou coletivas) que exercem uma atividade agrícola
(e não exerçam, claro está, uma outra atividade considerada comercial) – valendo aqui um conceito
amplo de agricultura, que compreende a atividade agrícola em sentido estrito e tradicional (cultivo da
terra para obtenção de colheitas), a silvicultura, pecuária, e ainda a cultura de plantas e a criação de
animais sem terra ou em que esta apresenta carácter acessório.

Com efeito, a lei exclui a agricultura (e atividades acessórias) os domínios do comércio. Para não sair
do Código Comercial, vejam-se os arts. 230º §1º (1ª parte) e 2º, art. 464º/2/4.

2. Também não são comerciantes os artesãos, isto é, os produtores qualificados que, podendo embora
servir-se de máquinas, utilizam predominantemente o seu trabalho manual e como instrumentos,
ferramentas.

Na verdade, o art. 230º §1º (segunda parte) e art. 464º/3 exclui do comércio a atividade artesanal
industrial-transformadora, exercida “diretamente” pelos artesão (oleiros, ferreiros, latoeiros,
sapateiros, costureiras, cesteiros, etc).

Por sua vez, as atividades artesanais de outro tipo (situadas sobretudo no domínio dos serviços),
quando exercidas “diretamente” pelos artesãos (eletrodomésticos, estucadores, cabeleireiros,
esteticistas) também não são comerciais – já por não se acharem especialmente reguladas na lei
mercantil, já por serem análogas às previstas no art. 230º §1º

3. Os profissionais liberais – pessoas singulares que exercem de modo habitual e autónomo atividades
primordialmente intelectuais, suscetíveis de regulamentação e controlo próprios (a cargo, em medida,
de associações públicas – “ordens”, “câmaras”) -, bem como os sujeitos coletivos cujo objeto consista
numa atividade profissional-liberal também não são comerciantes.

Além de os atos típicos das atividades respetivas não serem qualificados legislativamente de
mercantis, a asserção é confirmada por diversos atos normativos.

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Direito Comercial I

4. Próximos dos profissionais liberais (e nalguns casos dos artesãos) temos uma série de trabalhadores
autónomos igualmente não comerciantes. É o caso dos escultores, pintores, escritores, cientistas,
músicos.

As atividades destas pessoas não são legalmente qualificadas de mercantis e o §3º do art. 230º
reforça essa não qualificação.

Dissemos há pouco serem comerciantes os que exercem atividades comerciais. Todavia, nem todos os
exercitantes de tais atividades são comerciantes.

“O Estado, o distrito, o município e a paróquia não podem ser comerciantes, mas podem, nos limites das suas
atribuições, praticar atos de comércio e quanto a estes ficam sujeitos às disposições deste Código” – art. 17º do
Código Comercial.

Quer dizer, as pessoas coletivas territoriais – o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais – podem
praticar atos de comércio até de forma habitual e sistemática, podem explorar direta e imediatamente
empresas comerciais (não personalizadas), mas nem por isso adquirem qualidade de comerciantes.

Não há, ao contrário do que por vezes se diz, incompatibilidade entre o exercício profissional do comércio e o
exercício de funções públicas ou a prossecução de finalidades públicas por parte de pessoas coletivas de direito
público. Não obstante, a lei veda a qualificação e o estatuto de comerciante às referidas entidades que se
dedicam ao comércio.

Segundo a norma em apreço, o Estado não pode ser comerciante.

E as pessoas coletivas públicas de tipo institucional (institutos públicos – serviços personalizados, fundações
públicas, estabelecimentos públicos, EPE) e de tipo associativo?

 Excetuadas as EPE, parece que todas essas entidades também não podem ser comerciantes, mesmo
que pratiquem habitualmente atos de comércio.

O “Estado” mencionado no art. 17º deve pois ser interpretado extensivamente, de maneira a abarcar estas
pessoas coletivas públicas que prosseguem uma administração estadual indireta ou administração autónoma.

Acrescenta o § único do art. 17º: a mesma disposição é aplicada às misericórdias, asilos e mais institutos de
beneficência e caridade. Isto é, as associações e fundações de direito privado com fim desinteressado ou
altruístico podem, nos limites das suas atribuições, praticar atos de comércio, mas não podem adquirir a
qualidade de comerciante – esmo quando exerçam o comércio de forma sistemática.

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Direito Comercial I

4. FIRMAS E DENOMINAÇÕES

4.1. Noção

O art. 18º Código Comercial estipula que os comerciantes são especialmente obrigados a adotar uma firma.

Notas prévias:

 Em 1998, era comerciante quem tinha uma firma; quem não tinha, não era comerciante. Hoje em dia,
vamos encontrar alguns sujeitos considerados comerciantes que têm denominações e não firmas.

Tradicionalmente dizia-se que a firma era o nome comercial do comerciante, o sinal que os individualiza ou
identifica. Hoje é apenas tendencialmente assim. Esta é uma noção insuficiente.

1) Com efeito, além de identificar comerciantes, a firma individualiza alguns não-comerciantes:

a. As sociedades civis de tipo comercial (art. 37º RRNPC e art. 1º/4 e 9º/1/c) CSC)
b. Os ACE com objeto comercial (têm firma quer os ACE comerciantes quer os ACE não comerciantes);
c. E pode agora individualizar empresários individuais não comerciantes (art. 39º RRNPC).

2) Por outro lado, alguns comerciantes são identificados não por uma firma, mas por uma “denominação”

O art. 19º do Código Comercial, na sua redação originária contrapunha a firma à denominação:

 Firma: constituída por nome(s) de pessoa(s);


 As denominações designavam as sociedades anónimas, sendo composta por expressões indicando
essencialmente o respetivo objeto social.

O art. 3º da lei das sociedades por quotas mantinha semelhante contraposição.

Entretanto, o DL 19638 alterou os arts. 19º e 23º do Código Comercial, fazendo equivaler firma e
denominação.

O RRNPC retoma a distinção mas em moldes diversos.

(1) “Firma” é o vocábulo preferido para designar o signo individualizador de comerciantes (art. 37º, 38º,
40º; mas o art. 37º refere-se também às sociedades civis sob forma comercial; e vimos que o art. 39º
permite agora que empresários individuais não comerciantes adotem “firma”)

(2) “Denominação” designa preferencialmente o sinal identificador de não comerciantes, e pode nalguns
casos ser composta por nomes de pessoas (art. 36º, 42º, 43º).

Não obstante, existem diplomas que utilizam invariavelmente “denominação” com respeito a entidades
coletivas que podem ser comerciantes. É o caso do RSPE (art. 57º/2) e do Regulamento (CEE) nº2137/85
(art.5º/2), por exemplo

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Todos os comerciantes devem adotar firma ou denominação (art. 18º/1 Código Comercial e os citados artigos
dos diplomas reguladores dos ACE, EPE, AEIE e cooperativas). É das firmas e denominações dos comerciantes,
dos sinais distintivos dos comerciantes que trataremos.

4.2. COMPOSIÇÃO

4.2.1. Firmas dos comerciantes individuais

Nesta matéria, a norma fundamental é o art. 38º do RRNPC.

A firma de comerciante individual (pessoa singular) tem de ser composta pelo seu nome: “completo ou
abreviado, conforme seja necessário para identificação da pessoa”, não podendo, em regra, a abreviação
reduzir-se a um só vocábulo (art. 38º/1/3).

 Se só utilizar como firma o nome civil isso depois tem consequências ao nível da tutela.
 Vejamos o nº4 que diz que os que não usem apenas o nome, têm direito ao uso exclusivo. Quem
use apenas o nome (completo ou abreviado) já não tem esse direito (ao uso exclusivo).
Questiona-se a
O nome, completo ou abreviado, pode ser antecedido de expressões ou siglas “correspondentes a títulos constitucionali
dade do nº3,
académicos, profissionais ou nobiliárquicos” a que o comerciante tenha direito (art. 38º/3).
porque a
nossa CRP
 Note-se que o nome do comerciante individual, sendo abreviado, a sua abreviação não pode aboliu os
reduzir-se a um só vocábulo, a menos que a adição efetuada o torne completamente títulos
individualizador – nº3 parte final nobiliárquicos.

E pode ainda o comerciante aditar ao seu nome, completo ou abreviado, “alcunha ou expressão alusiva à
atividade exercida” (art. 38º/1)

Tratando-se de titular de um estabelecimento individual de responsabilidade limitada, a firma adotada pelo


comerciante na exploração do mesmo será igualmente constituída pelo seu nome, completo ou abreviado,
“acrescido ou não de referência ao objeto do comércio nele exercido, e pelo aditamento “Estabelecimento
Individual de Responsabilidade Limitada” ou EIRL” (art. 40º/1/2 RRNPC).

4.1.2.2. Firmas das sociedades comerciais

Em relação às sociedades comercias, temos que lidar, por um lado, com o RRNPC (art. 37º) e, por outro, com o
Código das Sociedades Comercias (art. 10º, 200º - sociedades por quotas - e art. 275º - sociedades anónimas) –
são as 3 grandes nomas que temos de conhecer muito bem

De acordo com o art. 177º/1 CSC, a firma das sociedades em nome coletivo deve ser composta, ou pelo nome
(completo ou abreviado) ou firma de todos os sócios, ou pelo nome (completo ou abreviado) ou firma de um
deles, com o aditamento, abreviado ou por extenso, “e Companhia” ou qualquer outro que indique a existência
de outros sócios (por exemplo: “e Irmão”, “e Filhos”).

Além destes elementos, a firma destas «sociedades de pessoas» pode ainda conter (apesar de o artigo não
dizer) expressão alusiva ao objeto social (por analogia com o art. 38º RRNPC), bem como siglas, iniciais,
expressões de fantasia ou composições – por analogia com o art. 42º/1 RRNPC (relativo às denominações das
sociedades civis simples).

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Segundo o art. 200º/1 CSC, a firma das sociedades por quotas deve ser formada, com ou sem sigla (vocábulo
constituído pelas iniciais ou outras letras de um nome ou expressão), ou pelo nome (completo ou abreviado)
ou firma de todos, algum ou alguns dos sócios (firma-nome), ou por uma denominação particular (firma-
denominação), ou pela reunião de ambos esses elementos (firma mista); em qualquer caso, a firma conterá o
aditamento “Limitada” ou “L.da”.

O que dissemos acerca da firma das sociedades por quotas vale integralmente para a firma das sociedades
anónimas. São na verdade muito semelhantes os dizeres dos arts. 200º e 275º.

Diz o art. 275º: que a «firma destas sociedades será formada, com ou sem sigla, pelo nome ou firma de um ou
alguns dos sócios ou por uma denominação particular, ou pela reunião de ambos os elementos, mas em
qualquer caso concluirá (e aqui está a grande diferença) pela expressão “sociedade anónima” ou pela
abreviatura “S.A.”»

Durante muito tempo, a denominação particular integrante de firma (firma-denominação ou firma mista) de
sociedade por quotas ou anónimas tinha de aludir ao objeto social. O art. 10º/3 dizia que «a firma da
sociedade constituída por denominação particular ou por denominação nome ou firma de sócio (…) deve dar a
conhecer quanto possível o objeto da sociedade».

Deixou de ser assim depois da entrada em vigor do DL nº 111/2005 (“empresa na hora”). O seu art. 17º alterou
o art.10º CSC, tendo sido eliminada a parte final no nº3. Agora, a denominação integrante de firma pode fazer
menção ao objeto social mas não tem de fazê-lo – pode ser inteiramente fantasiosa.

 O regime da empresa na hora tem esta designação porque é realmente possível constituir uma
sociedade por quotas ou uma sociedade anónima em menos de 1 hora. “Constituir” no sentido de
celebrar um ato constitutivo, sendo feito o registo comercial definitivo nesse período de 1 hora. O
registo é constitutivo (art. 5ºCSC)

Esta possibilidade está expressamente prevista no decreto-lei, aplicável a sociedades por quotas e anónimas –
art. 3º/a) DL. Os fundadores de sociedades podem optar “por firma constituída por expressão de fantasia
previamente criada e reservada a favor do Estado”

 A pessoa, para acelerar o processo pode antecipadamente recorrer a esta base de expressões de
fantasia reservadas a favor do Estado.
 A essa expressão seguir-se-á o aditamento obrigatório (L.da ou S.A.), podendo no entanto o
interessado fazer inserir, entre aquela e este, expressão alusiva ao objeto social. (art. 10º/1 DL)

A firma pode ser uma firma-nome ou firma-denominação (quando só utiliza estas expressões de fantasia ou
apenas expressões relativas ao objeto comercial) ou pode ser uma firma-mista (quando tem tanto o nome
como expressões de fantasias ou expressões alusivas ao objeto comercial)

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

4.2. Princípios informadores da composição das firmas e denominações

1. Princípio da Verdade

“Os elementos componentes das firmas e denominações devem ser verdadeiros e não induzir em erro sobre a
identificação, natureza ou atividade do seu titular” – art. 32º/1 RRNPC

Nota: Há coisas que escapam, pois temos cooperativas cujas firmas fazem referência a sociedades.

Assim, por exemplo:

a. A firma das comerciantes individuais deve conter o nome deles e não de outrem, a firma-nome e a firma
mista das sociedades e dos ACE devem conter o nome ou firma de sócios (ou associados) e não de
estranho;

b. As firmas e denominações não podem conter palavras, expressões, abreviaturas que induzam em erro
quanto à caracterização jurídica dos respetivos titulares (p. ex., “Associação de Importadores de
Automóveis, L.da”, para uma sociedade por quotas – art. 32º/4/a) RRNPC e 10º/5/a) CSC).

c. Não podem incluir elementos que sugiram atividades diversas das que os respetivos titulares exercem ou
se propõem exercer, etc (art. 32º/2 RRNPC e 10º/1, 200º/2/3 e 275º/2/3 CSC).

d. Quando, “por qualquer causa (transmissão de participação social, voluntária ou em processo executivo,
exoneração, exclusão, morte), deixe de estar associado ou sócio pessoa singular cujo nome figure na firma
ou denominação de pessoa coletiva, deve tal firma ou denominação ser alterada no prazo de um ano, a
não ser que o associado ou sócio que se retire ou os herdeiros do que falecer consintam por escrito na
continuação da mesma firma ou denominação” – art. 32º/5 RRNPC.

A alteração da firma, nestes casos, é requerida pelo princípio da verdade, bem como pela tutela do direito
ao nome das pessoas humanas; e a possibilidade (havendo consentimento) de a firma continuar
inalterada constitui restrição ao mesmo princípio

Se não é dado esse consentimento, a sociedade, naquele prazo de 1 ano, tem de alterar a firma. Ao fim
desse ano, o uso daquela firma, com o nome do sócio, é ilícito.

2. Princípio da novidade e da exclusividade

“As firmas e denominações devem ser distintas e não suscetíveis de confusão ou erro com as registadas ou
licenciadas no mesmo âmbito de exclusividade, mesmo quando a lei permita a inclusão de elementos utilizados
por outras já registadas, ou com designações de instituições notoriamente conhecidas” – art. 33º/1 RRNPC

Os titulares de firmas ou denominações validamente constituídas e registadas definitivamente (art. 35º/1/4)


têm um direito exclusivo sobre elas em determinado âmbito geográfico, direito esse que exclui a licitude de
firmas e denominações idênticas ou confundíveis com aquelas nesse mesmo espaço; aí, as diversas firmas ou
denominações devem ser novas, isto é, distintas e inconfundíveis.

Do que se trata e de fazer juízo comparativo: quando algum comerciante pretende constituir uma firma e
registá-la, irá ser feito um controlo, uma verificação com outras firmas, anteriormente registadas, que
mereçam tutela naquele âmbito de exclusividade.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Falamos em âmbito de exclusividade porque nem todas têm o mesmo âmbito de exclusividade:

1. As sociedades comerciais têm direito ao uso exclusivo das suas firmas em todo o território nacional
(art. 37º/2).

2. Os ACE, as EPE, as cooperações e os AEIE têm em princípio direito ao uso exclusivo das firmas ou
denominações em todo o território nacional, quando o respetivo objeto estatutário “não indicie a
prática de atividades de carácter essencialmente local ou regional” ou “no âmbito geográfico do
exercício das suas atividades estatutárias nos restantes casos” (art. 43º/2 remetendo para o art.
36º/3).

3. Por sua vez, “os comerciantes individuais que não usem como firma apenas o seu nome completo ou
abreviado têm direito ao uso exclusivo da sua firma desde a data do registo definitivo e no âmbito do
concelho onde se encontra o seu estabelecimento principal” (art. 38º/4 e art. 40º/3)

Sendo assim, os comerciantes individuais cuja firma seja composta tão-só pelo nome civil (completo
ou abreviado) ou pelo pseudónimo não têm direito ao uso exclusivo dela; os comerciantes homónimos
podem ter firmas iguais, não “novas”.

SOVERAL MARTINS : Já não se justifica esta limitação. Este é um critério do tempos do Afonsinos.
Não se justifica, porque muitos comerciantes em nome individual têm grande projeção
internacional. Além do mais, podemos ter um estabelecimento principal num local/concelho e a
atividade a ser desenvolvida noutro.
N

Não obstante, o comerciante individual com firma composta somente pelo seu nome, apesar de não
poder valer-se da tutela própria do direito à firma, pode reagir judicialmente contra outro ou outros
comerciantes e não-comerciantes que, tendo o mesmo nome, o usem no exercício de atividade
profissional; pode na verdade socorrer-se do normativo respeitante ao direito ao nome (art. 72º/2
CCiv) ou eventualmente à proibição da concorrência desleal (art. 317º CPI).

Aparentemente, o significado do princípio da novidade ou exclusividade em relação às sociedades comerciais


(e civis de tipo comercial) é algo diverso do enunciado no citado do art. 33º/1 RRNPC.

Com efeito, o art. 10º CSC refere-se ao princípio em dois números.

 nº2: “Quando a firma da sociedade for constituída exclusivamente por nomes ou firmas de todos,
algum ou alguns dos sócios (firma-nome) deve ser completamente distinta das que já se acharem
registadas”

 nº3: “A firma da sociedade constituída por denominação particular (firma-denominação) ou por


denominação e nome ou firma de sócio (firma mista) não pode ser idêntica à registada de outra
sociedade, ou por tal forma semelhante que possa induzir em erro”

Contudo, a divergência é só aparente, e dever-se-á à inércia legislativa. Porquanto estas formulações se filiam
nos velhos arts. 27º e 162º, condição 4ª do Código Comercial, respetivamente.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

E já na vigência dessas normas se entendia pacificamente significarem ambas substancialmente a mesma coisa:

 No respetivo âmbito de exclusividade, as firmas deviam ser novas, inconfundíveis, não podiam ser
idênticas ou de tal modo semelhantes que induzissem o público em erro ou confusão;
 Firmas “completamente distintas” podiam conter elementos comuns, contanto que o conteúdo global
de cada uma fosse diferenciado e inconfundível.

Pois bem, este modo de ver continua apto para desfazer a aparente contradição entre o art. 10º/2 CSC, por um
lado, e o nº3 deste artigo e o art. 33º/1 RRNPC, por outro lado.

Mas quando pode dizer-se que as firmas ou denominações não são “novas”? Quais os critérios para aquilatar
da confundibilidade ou induzimento em erro?

 SOVERAL MARTINS : o juízo sobre a novidade será feito numa apreciação global. O efeito fonético daquelas
palavras será tido em consideração para ver se há essa suscetibilidade de erro ou confusão. Será tido em
conta o núcleo caracterizante da firma. Essa comparação entre a firma oficiosa e nova firma é feita para
ver se há suscetibilidade de erro ou confusão. [O erro ou confusão pode ser quanto ao titular da firma ou
quanto à firma]

 Diremos que uma firma (ou denominação) não é nova relativamente a outra firma ou denominação
quando, atendendo à grafia das palavras, ao efeito fonético das expressões, ao núcleo caracterizante (ou
coração da firma ou denominação), à forma “oficiosa” dos signos, o público “médio” – o público de
normal capacidade, diligência e atenção – as não consegue distinguir, as confunde, tomando uma por
outra e um comerciante por outro ou, não as confundindo embora, crê erroneamente referirem-se a
comerciantes distintos mas especialmente relacionados (por exemplo crê que duas sociedades com
firmas semelhantes se encontram em relação de grupo).

O art. 10º/2 utiliza expressão que pode ser um pouco equívoca: «Quando a firma da sociedade for constituída
exclusivamente por nomes ou firmas de todos, algum ou alguns sócios deve ser completamente distinta das que
já se acharem registadas.»

 Isto significa que não pode ter qualquer elemento em comum? Se levássemos esta expressão à séria,
nem uma letra poderiam ter em comum….

 Esta interpretação tem sido rejeitada. Fazendo uma leitura do art. 10º/2, este preceito só pretende
dizer que deve haver um juízo acerca da possibilidade de erro ou confusão. Portanto, podem haver
elementos em comum.

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Direito Comercial I

Valerá o princípio da novidade ou exclusividade para comerciantes não concorrentes, que exercem
atividades diversas, não idênticas, nem similares, ou vale tão-só para comerciantes concorrentes?

A. Têm alguns autores defendido não valer o princípio em relação a comerciantes não concorrentes.

Na verdade, dizem, o risco de confusão entre firmas (e denominações, acrescentemos) em casos tais é
inexistente ou quase (apesar de um banqueiro ter firma idêntica À do dono de um supermercado, isso
não induz uma pessoa a dirigir-se ao proprietário do supermercado quando pretende contrair um
empréstimo bancário). Confortando este entendimento estaria também o art. 33º/2 RRNPC: “Os
juízos sobre a distinção e a não suscetibilidade de confusão ou erro, devem ter em conta o tipo de
pessoa, o seu domicílio ou sede, a afinidade ou proximidade das suas atividades e o âmbito territorial
destas”

B. Para outros autores, como COUTINHO DE ABREU e ALEXANDRE SOVERAL MARTINS , o princípio vale também
para comerciantes não concorrentes.

Suponha-se duas sociedades por quotas com sede em Coimbra, na mesma rua, uma com a firma “SVP
– Sociedade viaturas e peças, Comércio, lda”, e outra com a firma “SVP – Sociedade de Vinhos do
Porto, Comércio, lda” sendo SVO a firma “oficiosa” de ambas.

Claro que ninguém se dirige a uma sociedade de viaturas para comprar vinho, mas existem outras
dimensões de risco!

Segundo os critérios atrás enunciados, estamos perante firmas confundíveis e/ou que induzem em
erro. O público em geral pode tomar uma firma por outra, uma sociedade por outra, ou supor entre
elas relações inexistentes, agravando-se o risco com relação a fornecedores e financiadores; os
descaminhos postais, telegráficos, etc, são mais prováveis; a reputação de uma sociedade pode ser
posta em causa pela publicitação do facto de a outra ser objeto de um processo de insolvência, etc,
etc.

Se o princípio não fosse aplicado, então existiram uma série de riscos.

Por sua vez, o art. 33º/2 RRNPC não diz que a não identidade ou afinidade das atividades exercidas ou
a exercer pelos comerciantes exclui a suscetibilidade de confusão ou erro. Diz antes que no juízo sobre
isto se deve atender àquilo e ao “tipo de pessoa” e ao se “domicílio ou sede” – tudo critérios auxiliares
na apreciação sobre a confundibilidade.

Ainda a propósito do art. 33º/2 RRNPC

Reza assim o nº5 desse artigo: “Nos juízos a que se refere o nº2 deve ainda ser considerada a existência de
mercas e logótipos já concebidos que sejam de tal forma semelhantes que possam induzir em erro sobre a
titularidade desses sinais distintivos”.

O preceito parece querer completar o do nº2. Mas este trata da diferenciação entre firmas (e denominações),
por um lado, e outros sinais distintivos (de espécie diversa), por outro…

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Direito Comercial I

3. Princípio da capacidade distintiva

As firmas e as denominações enquanto sinais distintivos de comerciantes, hão-de ser constituídas por forma a
poderem desempenhar a função diferenciadora.

Parece não haver problema quanto às firmas-nomes e firmas mistas das sociedades individuais, e às firmas-
nomes e firmas mistas das sociedades e dos ACE. Tais sinais, compostos (só ou também) por nomes de pessoas
ou por nomes e/ou firmas de sócios ou associados, têm capacidade distintiva (tal como a têm os nomes das
pessoas humanas e a devem ter as firmas de sócios ou associados).

Já as firmas-denominação das sociedades por quotas, das sociedades anónimas e dos ACE, bem como as
denominações das EPE, quando não sejam, ou não tenham elementos, de fantasia, suscitam mais cuidados.

 Sob pena de incapacidade distintiva, as denominações não podem bastar-se com designações
genéricas (v.g. Sociedade Bancária, SA), vocábulos de uso comum para designar atividades ou
produtos (v.g. Sociedade Ideal, l.da), topónimos ou indicações de proveniência (Sociedade
Conimbricense, SA).

Imaginemos que alguém pretendia utilizar como firma “Sapatos, lda”. Então, nenhum comerciante de sapatos
poderia criar uma firma com a referência a sapatos. Ora, isso criaria um monopólio em relação aquele sinal

Tais elementos, de per si não distintivos, hão-de ser associados a outros, de modo a que o conjunto seja capaz
de distinguir. (!)

Tudo isto está hoje consagrado formalmente na lei. Diz assim, recorde-se, o art. 33º/3 RRNPC (também no art.
10º/4 CSC): “Não são admitidas denominações constituídas exclusivamente por vocábulos de uso corrente que
permitam identificar ou se relacionem com atividade, técnica ou produto, bem como topónimos e qualquer
indicação de proveniência geográfica”

4. Princípio da unidade

A doutrina dominante na Alemanha defende a possibilidade de os comerciantes individuais (não as sociedades)


adotarem várias firmas quanto tenham várias empresas. FERRER CORREIA defendeu entre nós posição idêntica.

 Entretanto, o art. 12º/5 do DL 425/83 consagrou a regra da unidade da firma para os empresários
individuais.
 O art. 9º do DL 42/89 manteve a regra, e mantém-se igualmente o art. 38º/1 RRNPC
 E vigora o mesmo princípio para as sociedades (art. 9º/1/c) CSC) e para as restantes entidades
coletivas que podem ser comerciantes.

(!) O comerciante individual deve adotar uma só firma (!)

Todavia, o princípio admite uma exceção: um comerciante individual que exerça atividades mercantis no
quadro de um EIRL e fora dele terá duas formas (art. 40º RRNPC)

 O EIRL é um património autónomo, que pode ser utilizado para limitar a responsabilidade do comerciante
em nome individual.

 O comerciante em nome individual que constitui um EIRL para desenvolver através dele uma atividade
comercial, pode desenvolver outra, no âmbito daquele EIRL. E nesse caso pode adotar duas firmas: uma
que nada tem a ver com o EIRL, e outra que tem a ver.

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Direito Comercial I

Já o comerciante que adquira a firma de outro, mesmo que passe a explorar duas ou mais (autónomas)
empresas, não poderá manter mais de uma firma (ou denominação): a originária (alterada) com aditamento; é
o que deflui do citado RRNPC, art. 38º/1/2 (“pode ainda aditar a sua firma…”), art. 44º/1/3.

5. Princípio da licitude (residual)

Significa um conjunto de variados requisitos. Assim, as firmas e denominações não podem conter (art.
32º/4/b)/c)/d) RRNPC):

a. “Expressões proibidas por lei ou ofensivas da moral ou dos bons costumes”;


b. “Expressões incompatíveis com o respeito pela liberdade de opção polícia, religiosa ou ideológica”;
c. “Expressões que desrespeitem ou se apropriem ilegitimamente de símbolos nacionais, personalidades,
épocas ou instituições cujo nome ou significado seja salvaguardar por razões históricas, patrióticas,
científicas, institucionais, culturais ou outras atendíveis”

4.1.4. Alterações de firmas e denominações

Respeitados que sejam os princípios há pouco assinalados, os comerciantes podem livremente alterar as firmas
ou denominações (art. 56º/1/a) a f) RRNPC)

E casos há em que os comerciantes têm de alterar.

1. Assim, por exemplo, se um comerciante individual muda de nome, essa mudança pode implicar
alteração da firma (recorde-se o disposto no art. 38º/1);

2. Se deixa de estar associado ou sócio pessoa cujo nome figura na firma ou denominação de uma
pessoa coletiva e não há o exigido consentimento, deve tal firma ou denominação ser alterada (art.
32º/5);

3. A aquisição de firma implica alteração da firma originária (art. 44º/1/4);

4. Alterando-se o objeto estatutário de uma sociedade ou outra entidade coletiva, pode ter de alterar-se
a respetiva forma ou denominação (art. 54º/2 RRNPC, art. 200º/3, art. 275º/3 CSC);

5. A transformação de sociedades (art. 130º ss CSC), de EPES em sociedades anónimas (art. 4º da Lei
11/90), de ACE em AEIE ou vice versa (art. 11º DL) exige alteração (ao menos) dos aditamentos
obrigatórios nas firmas ou denominações;

6. À firma de sociedade em liquidação deve ser aditada a menção ”sociedade em liquidação” ou “em
liquidação” (art. 146º/3 CSC);

7. A proibição do uso ilegal de uma firma ou denominação (art. 62º RRNPC) importa também alteração.

7.1.4. Transmissão

Sendo as firmas sinais distintivos de sujeitos, poderia pensar-se serem intransmissíveis. Não é, todavia, assim,
tanto aqui como em outros países.

Normalmente a firma distingue não apenas o comerciante mas também a(s) respetiva(s) empresa(s), liga
aquele a esta(s).

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Enquanto “coletor de clientela”, expressão recorrente na doutrina italiana, a firma pode ter considerável valor
económico. Interessa, pois, ao titular da firma poder realizar esse valor. E interessa a outros sujeitos poder
adquirir tal coletor de clientela.

Contudo, a livre transmissibilidade das firmas, sem transmissão das respetivas empresas daria azo a engano no
público (a clientela liga a firma a um ceto sujeito e empresa).

Ora, atendendo a estes diversos interesses, sobretudo aos primeiros, e ao facto de a empresa se ligar também
à empresa, tem sido permitida a transmissão daquela juntamente com esta.

Diz o art. 44º/1 RRNPC: “O adquirente, por qualquer título entre vivos, de um estabelecimento comercial, pode
aditar à sua própria firma a menção de haver sucedido na firma do anterior titular do estabelecimento, se esse
titular o autorizar, por escrito”. E o nº4 acrescenta: “É proibida a aquisição de uma firma sem a do
estabelecimento a que se achar ligada”

Isto mostra que não é, em qualquer caso, possível transmitir a firma sem o estabelecimento a que está ligado.
Pode transmitir-se estabelecimento sem firma; não se pode é transmitir firma sem estabelecimento.

O estabelecimento e firma têm relação de parcial cindibilidade. Podemos transmitir o estabelecimento com
firma a que se acha ligado e podemos transmitir estabelecimento sem firma; o que não podemos, é transmitir
firma sem estabelecimento a que está ligado.

Resulta do art. 44º a possibilidade de transmissão da firma entre vivos ou por morte.

A transmissão entre vivos de firma obedece, portanto, a 3 requisitos:

1. Em primeiro lugar, a transmissão da firma tem de fazer-se com a de um estabelecimento comercial a que
esteja ligada. Devendo entender-se que a transmissão do estabelecimento (e da firma) tanto pode ser
feita a título definitivo (trespasse) como a título temporário (locação, usufruto)

2. Depois, é necessário o acordo das partes – devendo o consentimento do transmitente da firma ser dado
por escrito (normalmente no documento que enforma a transmissão do estabelecimento). Quando o
transmitente seja uma sociedade cuja firma contenha nome de sócio (ou associado), além da autorização
daquele, +e ainda indispensável a do titular do nome – art. 44º/2

3. Por último, o adquirente deve aditar à sua própria firma menção de sucessão e a firma adquirida (cfr.
também o art. 38º/2)

Mergulhemos um pouco na história. Por 100 anos vigorou o art. 24º do Código Comercial que dizia “O novo
adquirente de um estabelecimento comercial pode continuar a geri-lo sob a mesma forma, se os interessados
nisso concordarem, aditando-lhe a declaração de haver nele sucessivo, e salvas as disposições dos artigos
precedentes”.

Perante esta norma, defenderam alguns autores que a firma do adquirente devia aparecer ao lado da
adquirida – aditando-lhe aquela a esta, esta àquela ou aquela a esta (consoante a vontade do adquirente).
Parece, porém, que a citada norma não exigia que à firma adquirida fosse junta a firma do adquirente.

Ora, em termos substanciais, a solução legal hoje vigente acolheu a interpretação do velho art. 24º em
segundo lugar referida. Seria reforçado o princípio da verdade, mas fica enfraquecida na prática a
transmissibilidade de firmas

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Direito Comercial I

A transmissão da firma de comerciante individual pode dar-se também mortis causa. Tal possibilidade é hoje
explicitada no art. 44º/3 do RRNPC: “no caso de aquisição por herança ou legado, de um estabelecimento
comercial, o adquirente pode aditar à sua própria a firma do anterior titular do estabelecimento, com a
menção de nela haver sucedido”

O art. 44º refere-se tão-somente à transmissão de firma mas não há razões para que semelhante regime se
não aplique à transmissão de denominações de entes coletivos comerciantes (e não-comerciantes). Também
neste sentido aponta o art. 43º/1

7.1.5. Tutela do direito à firma ou denominação

O direito à exclusividade de firma ou denominação constitui-se com o registo definitivo delas (art. 35º/3).

Para o correspondente âmbito de exclusividade, a proteção das firmas e denominações faz-se por meios
preventivos e meios repressivos.

1. Entre os primeiros, emitidos pelo Registo Nacional das Pessoas Coletivas, serviço a quem compete
velar pelo respeito dos requisitos da validade desses sinais (art. 45º/1 e ss e art. 78º/ RRNPC) – o
RNPC emite certificados de admissibilidade de firma ou denominação.

Sem tais certificados, diversos atos relativos à constituição ou alteração das firmas e denominações
não podem ser formalizados e/ou registados (art. 54º-56º e 58º).

E esses certificados não devem ser emitidos quando as denominações ou firmas escolhidas sejam
idênticas ou suscetíveis de confusão ou erro com as registadas no mesmo âmbito de exclusividade.

O certificado só é admitido depois deste controlo

Em relação às empresas na hora: o controlo presumivelmente existe na tal base de expressões de


fantasia

2. Por sua vez, falando agora nos meios repressivos, as firmas e denominações que, apesar de
definitivamente registadas, violem o princípio da novidade ou exclusividade, bem como outros
princípios, podem ser objeto de ações judiciais de declaração de nulidade, anulação ou revogação e
estão sujeitas à declaração, pelo RNPC de perda do direito ao respeito uso - art. 35º/4 e art 60º

Esta tutela diz respeito aos instrumentos que a lei consagra para permitir que alguém que já tem um
direito de uso exclusivo de uma firma, impeça que outra venha a adquirir direitos sobre uma firma que
viole o princípio da novidade e exclusividade.

Por outro lado, o uso ilegal de uma firma ou denominação, registada ou não, “confere aos
interessados o direito de exigir a sua proibição, bem como a indemnização pelos danos daí
emergentes, sem prejuízo da correspondente ação criminal, se a ela houver lugar ” (art. 62º)

Os titulares de firmas ou denominações não registadas não têm o direito à exclusividade delas. Porém, se
algum concorrente de um daqueles titulares usar firma ou denominação confundível (não registada e
posterior, entenda-se), podendo com isso prejudicá-lo ou obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo,
o referido titular do sinal não registado pode reagir com base no art. 371 CPI (concorrência desleal)

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Há, no entanto, titulares de firmas e denominações não registadas em Portugal que gozam dos diversos meios
preventivos e repressivos há pouco mencionados.

Esta tutela não carece de registo nos casos tutelados por um instrumento muito importante: a convenção de
união de países

 São os nacionais (e equiparados) dos países da União Internacional para a Proteção da Propriedade
Industrial que constituam validamente no estrangeiro firmas ou denominações usadas em Portugal ou
que aqui sejam notoriamente conhecidas.
 É o que resulta dos arts. 2º, 3º e 8º CUP (Convenção da União de Paris).
 Diz o último: “O nome comercial será protegido por todos os países da União sem obrigação de registo,
quer faça ou não parte de uma marca de fábrica ou de comércio”.
 Assim, v.g. se uma sociedade comercial espanhola por causa dos negócios que realiza regularmente com
portugueses, usa a sua firma em Portugal – mas aqui não registada – pode, por exemplo, pedir
judicialmente a proibição do uso de firma idêntica (registada ou não) adotada posteriormente (àquele
uso) por uma sociedade comercial portuguesa

7.1.6. Extinção do direito à firma ou denominação

Sendo as firmas e denominações dos comerciantes sinais distintivos dos mesmos para o exercício do comércio,
poderia pensar-se que a cessação das respetivas atividades mercantis implica a extinção dos correspondentes
sinais. Mas não é necessariamente assim

1) Se a atividade comercial cessa porque o comerciante falece, extingue-se logo a firma no caso de ele não ter
deixado estabelecimento comercial (ou porque nunca teve ou porque liquidou entretanto).

2) Caso tenha deixado empresa comercial, 3 hipóteses há que considerar:

 O estabelecimento comercial é transmitido, mas sem a firma do autor da sucessão – ela extingue-se;
 O estabelecimento é transmitido com a firma – ela extingue-se na medida em que se integra na firma
do adquirente (há uma nova firma, constituída pela combinação de duas – art. 44º/3);
 Não é transmitido o estabelecimento porque é liquidado – a firma extingue-se.

3) Se a atividade mercantil cessa porque o comerciante individual assim o decide, várias hipóteses se podem
considerar também:

 A pessoa tinha estabelecimento mercantil e, de imediato ou não, transmite-o com a sua firma – esta
extingue-se porque incorporada na nova firma do adquirente;

 A pessoa não tinha estabelecimento, ou tinha mas liquida-o ou transmite-o sem firma – o direito à
firma perdura, a menos que o RNPC (ou outro serviço de registo) declare a sua perda, oficiosamente,
ou a requerimento de qualquer interessado e mediante prova de que o titular da firma não exerce
atividade mercantil há pelo menos dois anos consecutivos (art. 61º/1/b)) ou que a firma não foi
inscrita no “ficheiro central de pessoas coletivas” nos prazos indicados no art. 61º/1/a) e 2

Cessando a atividade de sociedades comerciais ou de outras entidades coletivas-comerciantes, sem que as


mesmas se extingam, as respetivas firmas ou denominações extinguem-se quando se transmitam com os
respetivos estabelecimentos; caso a transmissão se não dê, por qualquer motivo, aqueles sinais podem
perdurar (recorde-se o citado art. 61º).

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Direito Comercial I

Se os sujeitos se extinguem, extinguem-se também as firmas ou denominações – quer se transmitam na fase


da liquidação com os respetivos estabelecimentos, quer não (a extinção destes sujeitos está em regra sujeita a
registo obrigatório)

Como dissemos no nº anterior, as firmas e denominações ilegalmente constituídas, apesar de registadas a


título definitivo, podem ser declaradas nulas, anuladas ou revogadas por sentença judicial; independentemente
da vida judicial, deve o RNPC declarar a perda do direito ao uso dessas firmas e denominações (art. 35º/4 e art.
60 RRNPC)

7.1.7. Natureza jurídica do direito à firma ou denominação

Em doutrina europeia antiga, parece ter dominado a conceção do direito à firma (ou denominação), enquanto
modalidade ou espécie do direito ao nome, como direito de personalidade.

É uma visão essencial infundada. O direito ao nome (das pessoas singulares), enquanto direito de
personalidade (art. 72º CCiv), apresenta as características próprias desta categoria de direitos: é
intransmissível, vitalício e vocacionalmente perpétuo, não se extingue pelo não uso, é essencialmente
extrapatrimonial

Ora, o direito à firma é transmissível, não é vitalício nem vocacionalmente perpétuo, extinguindo-se em
circunstâncias várias, inclusive durante a vida do titular e por não uso, e é essencialmente patrimonial

Na Alemanha, a doutrina hoje dominante considera o direito à firma como direito de natureza mista: não puro
direito de personalidade, nem puro direito patrimonial, mas sim um direito conjugando ambas as feições.

COUTINHO DE ABREU e ALEXANDRE SOVERAL MARTINS pensam que o mais razoável é ver as firmas e denominações
como bens imateriais (coisas incorpóreas) passíveis de ser objeto de direitos reais, designadamente, do direito
de propriedade.

 É igualmente a conceção dominante em Itália e França.

4.2. Escrituração e prestação de contas

4.2.1. Noção de escrituração mercantil

Art. 18º CComercial: os comerciantes são especialmente obrigados (…) ter escrituração mercantil, a fazer
inscrever no registo comercial os atos a ele sujeitos e a dar balanço e a prestar contas.

Consiste a escrituração comercial no registo ordenado e sistemático em livros e documentos de factos


(normalmente mas não necessariamente jurídicos) relativos à atividade mercantil dos comerciantes, tendo em
vista a informação deles e de outros sujeitos.

Sendo embora muito importante, a contabilidade (o registo em unidades monetárias de factos, operações e
situações patrimonial-contabilizáveis) não esgota a escrituração; esta compreende ainda, designadamente, a
documentação de correspondência expedida pelo comerciante e as atas de reuniões de órgãos (plurais, em
regra) de sociedade e outras entidades coletivas.

Leia-se o art. 40º: todo o comerciante é obrigado a arquivar a correspondência emitida e recebida, a sua
escrituração mercantil e os documentos a ela relativos, devendo conservar tudo pelo período de 10 anos.

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Direito Comercial I

4.2.2. Organização da escrituração

Por mais de um século prescreveu o Código Comercial, no seu art. 31º e ss, a obrigatoriedade de 4 livros de
escrituração para “qualquer comerciante”: livro de inventário e balanços, diário, razão, copiador.

Todos estes livros deixaram de ser obrigatórios com o DL 76º-A/2006, que alterou quase todo o título IV do
livro I do Código Comercial.

Agora, nos termos do art. 30º: “o comerciante pode escolher o modo de organização da escrituração mercantil,
bem como o seu suporte físico, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte” (este art. 31º obriga as sociedades
comerciais a possuir livros para atas e prevê algumas formalidades extrínsecas).

 O facto é salientado no preambulo do DL.

Notas breves suscitadas por esta reforma legislativa:

1) Não seria preferível eliminar obrigatoriamente dos livros de escrituração apenas para os pequenos
comerciantes?
2) Não seria preferível manter a obrigatoriedade de alguns desses livros (para os comerciantes não
pequenos) embora com disciplina modernizada?
3) A eliminação da necessidade de legalizar os livros nas conservatórias de registo comercial não implica a
eliminação da obrigatoriedade de livros de escrituração- o próprio legislador o confirma a propósito da
obrigatoriedade de atas….

Recordemos o art. 30º: “o comerciante pode escolher o modo de organização da escrituração mercantil” –
significará isto, designadamente, que o comerciante determinará o número e a sistematização dos livros e/ou
pastas documentais para a escrituração, bem como o modo mais analítico ou mais sintético e espaçado dos
registos dos movimentos patrimoniais.

Não pode significar o puro arbítrio do comerciante quanto ao quê e quanto ao como dos assentos escriturais.
Impõe-se verdade e clareza nos registos do que entra (e deve entrar), do que sai e do que permanece no
património mercantil.

O princípio estava bem inscrito no velho art. 29º: cumpria à escrituração dar a “conhecer fácil, clara e
precisamente” as operações e património comerciais. Ainda assim, o novo art. 29º declara que a escrituração
será efetuada de acordo com a lei.

E o novo artigo 41º (“as autoridades administrativas ou judiciárias, ao analisares se o comerciante organiza ou
não devidamente a sua escrituração mercantil”) confirma que há organização “devida” e indevida.

Fora do Código Comercial, há lei regulando a escrituração mercantil.

 Lei fiscal, por exemplo. Basta respigar no CIRC (art. 123º) que remete para o art. 117º CIRS.
 Subido relevo para a organização da escrituração mercantil têm os planos oficiais de contabilidade
 Temos agora o Sistema de Normalização Contabilística – art. 3º e 10º DL 98/2015 – “devem elaborar e
apresentar demonstrações financeiras respeitadoras de vários princípios e regras“
4.2.3. O carácter (não) secreto da escrituração mercantil

“Nenhuma autoridade, juízo ou tribunal pode fazer ou ordenar varejo ou diligência alguma para examinar se o
comerciante arruma ou não devidamente os seus livros de escrituração mercantil ” – assim rezava o art. 41º.

Dizia-se usualmente que esta norma consagrava o carácter secreto da escrituração comercial (dito
acompanhado por um outro: o segredo é a alma do negócio) – embora se acrescentasse também que o
“princípio do segredo” sofre diversas restrições.

52
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Mas, como sublinhámos antes da reforma de 2006, a norma apenas proibia o exame dos livros destinado a
verificar se eles estavam ou não devidamente “arrumados”; em circunstâncias variadas, atendendo aos
interesses em jogo, elementos da escrita podiam ou deviam ser revelados ou divulgados.

A afirmação crescente das necessidades de informação de sujeitos diversos tem vindo a acentuar o carácter
não secreto da escrituração mercantil.

O art. 41º CCom afirma, agora, a possibilidade de autoridades analisarem se o comerciante organiza ou não
devidamente a sua escrituração mercantil. Os dois artigos seguintes preveem a exibição judicial da escrituração
e dos documentos a ela relativos.

O art. 42º permite a exibição judicial por inteiro em questões de sucessão universal (morrendo um
comerciante, pode a exibição ser ordenada a favor dos herdeiros, legatários e credores de herança), comunhão
(cônjuge casado em regime de comunhão geral ou adquiridos pode exigir exibição em caso de divórcio ou
separação judicial de pessoas e bens), sociedade (em caso de dissolução ou saída de sócio, quando haja que
fixar o valor de liquidação de participação social, o sócio ou herdeiros podem exigir exibição) e insolvência (art.
36º/f), art. 24º/1/f)/g)/h) e art. 149º/1 CIRE).

Por força do art. 43º, pode proceder-se a exame judicial limitado, nos livros e documentos dos comerciantes, a
requerimento das partes ou oficiosamente, quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou
responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida.

Fora do Código Comercial as normas várias preveem a hipótese de a escrita de comerciantes ser examinada ou
publicitada:

a) Os funcionários encarregados de fiscalização de impostos podem examinar os livros e documentos


dos comerciantes para apuramento impostos – art. 77º CIVA e 125º CIRC
b) No domínio do direito de defesa de concorrência têm também as autoridades competentes o poder
de examinar a escritura e documentos profissionais
c) No âmbito do direito de informação dos sócios, estes têm a possibilidade de consultar respetiva
escrita – CSC
d) Os documentos de prestação de contas daa maioria das sociedades devem ser depositados nas
conservatórias de registo comercial e publicitados; vale mesmo para os EIRL e EPE
e) As comissões de trabalhadores têm o direito de ser informadas sobre a situação contabilística das
empresas

4.2.4. Força probatória da escrituração comercial

O art. 44º do Código Comercial estabelece um regime especial quanto à força probatória dos livros de
escrituração mercantil, quando invocados nos processos judiciais entre comerciantes e por factos do seu
comércio.

Os livros irregularmente arrumados ou escriturados fazem prova contra o comerciante a que pertençam; mas a
outra parte que deles queira beneficiar deve igualmente aceitar os assentos que lhe forem prejudiciais, salvo se
tiver livros arrumados ou outras provas em contrário (nº1 e 4).

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Os livros regularmente arrumados fazem prova não só contra o respetivo comerciante (nº1) mas também a seu
favor – salvo se o outro litigante apresentar assentos opostos em livros igualmente arrumados (nº2), situação
em que o tribunal decidirá pelo merecimento de quaisquer provas do processo (nº3), ou se fizer prova em
contrário (nº2).

“Se entre os assentos dos livros de um e de outro comerciante houver discrepância, achando-se os de um
regularmente arrumados e os do outro não, aqueles farão fé contra estes, salva a demonstração do contrário
por meio de outras provas em direito admissíveis” (nº4)

Art. 30º/4 CI: este artigo dispõe que perante uma situação em que insolvência é requerida por outrem que não
o devedor, o devedor, perante requerimento apresentado contra ele, pode opor-se ao pedido de declaração de
envolvência. Mas o artigo diz expressamente que a escrituração deve estar «devidamente organizada e
arrumada». Se não tem a sua escrituração devidamente arrumada e organizada terá dificuldade em provar a
sua inocência.

4.2.5. Prestação de contas

O art. 18º/4 continua a dizer que os comerciantes são obrigados dar balanço e a prestar contas

A estes deveres dedicava o Código com dois arts: o art. 62º (balanço) e art. 63º (prestação de contas).

Art. 62º: “Todo o comerciante é obrigado a dar balanco anual ao seu ativo e passivo nos primeiros 3 meses de
ano imediato”

O balanço é o documento onde compara o ativo com o passivo para revelar o valor do capital próprio ou
situação liquida (o valor do ativo aparece igual ao valor do passivo com o do capital próprio).

 É geralmente um dos principais documentos de prestação (anual) de contas, emparceirado com a


demonstração dos resultados por naturezas, a demonstração das alterações no capital próprio, a
demonstração dos fluxos de caixa pelo método direto e o anexo. E todos estes documentos são de
escrituração.

Ao invés do dito nos arts. 18º e 62º, nem todos os comerciantes têm o dever de prestar anualmente contas,
nomeadamente através de balanço: alguns (pequenos) comerciantes não têm de cumprir o SNC (art. 10º DL
158/2009)

A prestação de contas é relevante sobretudo no domínio das sociedades comerciais e civis de tipo comercial.

Os membros do órgão de administração devem elaborar e submeter anualmente aos órgãos cometentes da
sociedade o relatório de gestão, contas do exercício e demais documentos de prestação de contas previstos na
lei (art. 65º e ss, 189º/3 (…) CSC)

Se os documentos de prestação de contas não forem apresentados atempadamente, pode qualquer sócio
requerer ao tribunal que se proceda a inquérito (art. 67º/1 CSC); os termos a seguir no processo de inquérito
judicial são os previstos no citado art. 67º.

4.2.6. Conservação dos documentos de escrituração

Os comerciantes são obrigados a arquivar, com ou sem recurso a meios eletrónicos, os documentos
respeitantes à escrituração mercantil, bem como a correspondência emitida e recebida, devendo conservar
tudo pelo período de 10 anos (art. 40º CC). Relativamente aos livros de escrituração, o prazo conta-se a partir
da data do último assento ou lançamento – data a partir da qual os livros devem ser encerrados e arquivados.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Todavia, liquidando-se uma sociedade, o prazo de conservação é de 5 anos e deve contar-se a partir da data da
deliberação que aprova o relatório e as contas finais dos liquidatários e designa o depositário dos livros e
demais documentos de escrituração (art. 157º/4 CSC)

Falecendo um comerciante individual, transmitir-se-á a obrigação de conservar os documentos para herdeiros?

 Porque a obrigação não é de natureza estritamente pessoal, e porque os documentos mantêm utilidade
para a reconstituição e prova de factos anteriores à morte, respondemos afirmativamente.

4.3. Inscrições no registo comercial

4.3.1. Considerações gerais

O registo comercial publicita certos factos respeitantes a determinados sujeitos, tendo em vita a segurança do
tráfico ou comércio jurídico – art. 1º CRC

Os factos e entidades sujeitos a registo são os previstos na lei (princípio da tipicidade – arts. 1º e 10º/f) CRC) -
destacando-se os previstos nos arts. 1º e 10º.

Nos termos do art. 18º/3, devem os comerciantes fazer inscrever no registo comercial os atos a ele sujeitos.
Mas vê-se por aquelas normas do CRC que tal dever incumbe também a sujeitos que não são ou não podem ser
comerciantes – sociedades civis sob forma comercial, cooperativas, EPE, ACE, AEIE sem objeto comercial.

No entanto, nem todos os factos previstos naquelas normas do CRC têm de ser registadas. Sujeitos a registo
obrigatório são os mencionados no art. 15º.

Resulta deste art. 15º que os factos relativos a comerciantes individuais (art. 2º) estão sujeitos a registo
facultativo.

 O registo obrigatório quase não tem interesse para os comerciantes em nome de individual, mas tem
muito para as sociedades comerciais

Contudo, certos factos dos processos de insolvência relacionados com comerciantes individuais devem,
obrigatoriamente, ser registados, competindo a promoção de tais registos às sentenças judiciais – CRC art.
9º/i) e ss e CIRE, art 38º/2/b)

Depois da reforma de 2006 há duas marcadas formas de registo – art. 53º-A CRC:
O
1- Registo por transcrição ou extrato: consiste na extração dos elementos que definem a situação jurídica
conservador
das entidades sujeitas a registo constantes dos documentos apresentados- nº2 só leva a
 As atas de sociedades onde se elege um administrador são levas a registo por transcrição. O registo atos
conservador transcreve. conformes
com a lei

2- Registo por depósito: consiste no mero arquivamento dos documentos que titulam factos sujeitos a
registo – nº3
 A prestação de contas das sociedades são levadas ao registo por depósito. O conservador não vai
averiguar a sua legalidade ou veracidade.

Nota (aula): isto até 2006 isto não era assim. Se a inscrição no depósito for anterior a 2006, sabemos
que houve controlo da legalidade. Se for posterior, não houve esse controlo.

55
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Justamente porque são diferentes, os efeitos são diferentes.

 Art. 11º CRC: o registo por transcrição, definitivo (não por dúvidas) constitui presunção de que existe a
situação jurídica nos precisos termos em que é referida. O registo por transcrição gera uma presunção de
que a situação jurídica existe. Por exemplo, que X foi eleito.

Princípio da instância: o registo efetua-se, em regra, a pedido dos interessados. Só assim não é nos casos de
oficiosidade previstos na lei (art. 28º CRC). De alguns interessados e seus representantes, com legitimidade
para pedir atos de registo, dão nos conta os arts. 29º e ss

“A viabilidade do pedido de registo a efetuar por transcrição deve ser apreciada em face das disposições legais
aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando-se especialmente, a
legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos atos nele contidos” (art. 47º) –
princípio da legalidade.

As decisões dos funcionários recusando a prática do ato de registo nos termos requeridos podem ser
impugnadas hierárquica e contenciosamente nos termos dos arts. 101º

Princípio da publicidade: o carácter público do registo revela-se no facto de “qualquer pessoa” poder “pedir
certidões dos atos de registo e dos documentos arquivados, bem como obter informações verbais ou escritas
sobre o conteúdo de uns e outros” (art. 73º/1).

Por outro lado, alguns atos de registo são obrigatoriamente publicados (art. 70º e ss).

Tradicionalmente a publicação era feita em jornais oficiais e, em menor número, noutros jornais. O art. 19º DL
111/2005 modificou significativamente a situação, alterando o art. 70º/2 CRC: “as publicações referidas no
número anterior devem ser feitas em sítio na Internet de acesso público, regulado por portaria do Ministério da
Justiça, no qual a informação objeto de publicidade possa ser acedida, designadamente por ordem
cronológica”. Depois o art. 61º/c) do DL revogou o art. 70º/5 CRC, deixando de ser exigidas as publicações em
jornais não oficiais.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

4.3.2. Efeitos do registo

“O registo por transcrição definitivo constitui presunção de que existe a situação jurídica nos precisos termos
em que e definida” (art. 11º do CRC). As presunções de exatidão derivadas do registo são em regra ilidíveis (art.
350º CCiv)

O efeito central do registo é ser ele requisito de eficácia dos factos em relação a terceiros.

Em regra, os factos sujeitos a registo, mas não registados, são eficazes entre as partes ou seus herdeiros (art.
13º/1 CRC).

Não o são, porém, relativamente a terceiro:

 Quer isto dizer que os factos sujeitos a registo registados e os factos sujeitos a registo e publicação
obrigatória registados e publicados são oponíveis a terceiros depois da data do registo ou da publicação,
respetivamente (art. 14º/1/2);

 Por outro lado, os factos sujeitos a registo não registados e os factos sujeitos a registo e publicação
registados, ou não, e não publicados, são inoponíveis a terceiros (art. 14º/1/2)

Quais os terceiros para efeitos de registo comercial? De modo geral, podemos dizer que é terceiro quem não
seja parte no fato sujeito a registo, seu herdeiro ou representante (art. 13º/1 e 14º/e CRC).

Contudo, casos há em que o registo é constitutivo (não meramente declarativo), é requisito de eficácia
absoluta, não produzindo efeitos quer em relação a terceiros, quer em relação às próprias partes (e seus
herdeiros ou representantes) – art. 13º/1 CRC, art. 5º 112º, 160º CSC ,

Nota: há que distinguir o registo provisório e o registo definitivo. No registo provisório existe um prazo de
validade, ao contrário do registo definitivo. O provisório pode sê-lo por natureza ou por dúvidas.

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Direito Comercial I

4.4. Responsabilidade por dívidas comerciais contraídas por cônjuge comerciante

São da responsabilidade de ambos os cônjuges, quando casados sob o regime da comunhão de adquiridos ou
da comunhão geral de bens, as dívidas contraídas por qualquer deles no exercício do comércio, salvo se se
provar que não foram contraídas em proveito comum do casal (art. 1691º/1/d) CC). Por tais dívidas
“respondem os bens comuns do casal, e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de
qualquer dos cônjuges” (art. 1695º).

É um regime primordialmente tutelador do comércio.

 Na verdade, os credores dos que exercem o comércio não têm de provar (ao contrário do que sucede nos
casos previstos na alínea c) do art. 1691º) que as dívidas contraídas nesse exercício o foram em proveito
comum do casal;
 Por outro lado, respondendo por tais dívidas o património de ambos e de cada um dos cônjuges, facilitada
fica a obtenção de crédito pelos que exercem o comércio, facilitado fica o exercício das atividades
mercantis. Contudo, não descura a lei os interesses do cônjuge de quem contrai as dívidas e da
comunidade familiar.

Porquanto pode um ou outro cônjuge (ou ambos) provar que elas não foram contraídas em proveito comum
do casal.

Decorre do art. 1691º/1/d) (e do art. 342º) que os credores que pretendam valer-se do regime nela previsto
têm de provar terem as dívidas sido contraídas “no exercício do comércio”.

Mas não tem de ser assim quando seja um comerciante a contraí-las.

Reforçando a tutela dos credores dos comerciantes (e do comércio), diz o art.15º “as dívidas comerciais do
cônjuge comerciante presumem-se contraídas no exercício do seu comércio ”.

Para beneficiarem desta presunção, os credores têm apenas de provar que o sujeito contraente das dívidas é
comerciante e que as dívidas são comerciais – resultantes de atos de comércio, objetivos ou subjetivos, ou de
obrigações comerciais não derivadas de atos mercantis.

O art. 15º veio dar a mão ao credor do comerciante: se provares que o devedor é comerciante (e a prova é
fácil, faz-se em regra com o registo) e que a dívida é comercial, então presume-se que essa dívida foi contraída
no exercício do comércio, e ao beneficiar desta presunção, beneficia da aplicação do art. 1691º. Com isto, o
credor pode lançar mão do art. 1691º/d) e o credor pode atacar a totalidade do património do casal: bens
comuns e próprios de cada um dos cônjuges. Isto porque a dívida é comunicável. (!!!)

Ora, é em geral mais fácil provar que um ato é comercial do que provar que esse ato foi praticado no exercício
do comércio do seu autor. Por exemplo, o art. 15º é aplicável às dívidas cambiárias, dívidas tituladas por letras,
livranças, cheques – não sendo necessário provar a comercialidade substancial das mesmas (são dívidas
comerciais porque resultam de atos de comércio apesar de só formalmente mercantis); é igualmente aplicável
a dívidas resultantes de atos subjetivamente comerciais, ainda que não efetivamente conexionados com o
comércio dos seus autores. Em qualquer caso, compete ao cônjuge do comerciante, a este ou a ambos ilidir (ou
tentar ilidir) a presunção do art. 15º (provando que a dívida, apesar de comercial, não foi contraída no
exercício do comércio e do comerciante devedor); afastada ela, afastada ficará a aplicação do art. 1691º/1/d).

No plano dos interesses há dois momentos distintos: há um momento em que isto é um brinde para o credor; mas num certo
momento também será brinde para devedor. Quanto chegarmos ao dia para executar a dívida, para quem é bom? Para o
devedor. Mas antes desse dia, houve o dia em que o credor concedeu crédito ao comerciante, e eles precisam de crédito para
a sua atividade. E compreendemos que a obtenção de crédito é tão mais fácil, tão mais barata, quanto maior for garantia dada
ao credor. No momento em que peço crédito este regime é bom, porque posso dizer que venho cá com o que é meu, com o
que é da minha mulher, e com o que é dos dois. Nesse dia, o art. 15º é ótimo para o devedor comerciante, quando chegar 58 a
execução da divida é bom para o credor.
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

DOS CONTRATOS COMERCIAIS


1. INTRODUÇÃO

Na terminologia anglo-saxónica, as primeiras relações são as designadas relações business to business (entre
profissionais); as segundas, são as relações business to consumer.

 No mundo business to business temos um mundo de atos de comércio que são bilaterais: o ato é
comercial para ambas as artes.
 No mundo business to consumer, que é tendencialmente um ato unilateral.

Art. 99º CCom.: Embora o ato seja mercantil só com relação a uma das partes será regulado pelas disposições
da lei comercial quanto a todos os contratantes, salvo as que só forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo
respeito o ato é mercantil, ficando, porém, todos sujeitos à jurisdição comercial.

Quando esta disposição foi escrita, em 1988, tudo se reconduzia ao regime comercial e ao regime civil.

 Portanto, o direito comercial expande-se, abrangendo o que é civil, porque torna toda a relação sujeita
ao direito comercial.

Existe, atualmente, uma outra janela quando olhamos para esta realidade, para esta relação business to
consumer: o direito do consumidor, algo que não existia em 1988.

Uma das projeções centrais do fenómeno do consumo nas ordens jurídicas modernas consistiu na progressiva
autonomização dos chamados contratos de consumo, subordinando estes a um conjunto de normas especiais
que têm em vista a proteção do consumidor.

Ora, não se pode perder de vista que os contratos de consumo têm como contraparte natural um empresário.
Com efeito, muito embora na maioria das legislações atuais a contraparte contratual seja construída com
recurso ao conceito mais amplo de “profissional” constitui um dado insofismável que a esmagadora maioria
dos contratos consumeristas correspondem hoje a contratos celebrados entre empresários e consumidores:
como sublinha Leopoldo Sambucci “é hoje claro que os contratos de consumo são, ao mesmo tempo,
“contratos de empresa””.

 Esta asserção, de resto, é válida da contratação mercantil, como é o caso dos contratos bancários, de
seguro e de investimento financeiro.

Semelhante ligação tendencial entre os contratos comerciais e de consumo torna assim direta e indiretamente
relevante para os primeiros a recente regulação jurídica das relações contratuais consumeristas, cobrindo
matérias tais como deveres pré-contratuais, a formação do contrato, o conteúdo do contrato ou as suas
vicissitudes

O regime do direito do consumidor é um terceiro regime: não é comercial, mas também não é civil. É um outro
regime. E é um regime que olha para esta realidade de forma totalmente diferente. É uma janela que não faz
tudo comercial (como o faz o art. 99º).

Segundo este regime vemos atos comerciais, claro, mas não significa que ambos os lados sejam regulados pelo
direito comercial, porque o consumidor está sujeito ao direito do consumidor.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Temos, portanto, um regime muito complexo: (1) temos um contrato comercial em parte sujeito ao regime do
direito comercial e (2) em parte sujeito ao regime do direito do consumidor.

Os contratos comerciais não têm apenas de obedecer ao regime do direito comercial!

O direito comercial é seguramente a área do direito que é mais dinâmica. É a área que mais muda no nosso
Ordenamento Jurídico.

1.1. A grande relevância do princípio da autonomia privada na contratação mercantil

Vigora, entre nós, um princípio estruturante. Falamos do princípio da autonomia privada, que atribui aos
contraentes o poder de fixarem, em termos vinculativos, a disciplina que mais convêm à sua relação jurídica.

O princípio da autonomia privada não se prende apenas com a liberdade de celebrar ou não um contrato ou de
escolher a pessoa com quem vamos contratar. Este princípio permite-nos inventar contratos! Inventar
formulações.

E o direito comercial, inventa negócios, faz coisas que nunca se tinham feito, e faz isto constantemente.

1.1.1. Os contratos podem ser:


a. Contratos atípicos
b. Contratos legalmente inominados (mas socialmente típicos),
c. Contratos (legalmente) típicos:
 Uns sem paralelo no direito civil, como o contrato de agência,
 Outros com regime (em parte) especial relativamente ao tipo civil, como sucede com a
compra e venda (arts. 463ºss. CCom e arts. 874ºss. CCiv) e com o empréstimo/mútuo (arts.
364ºss. CCom e 1142ºss CCiv));

Grupos de contratos que vamos estudar:

1- Contratos que têm função de troca: compra e venda


2- Contratos que visam organizar associação de pessoas – segundo semestre
3- Contratos que têm uma função de distribuição: agência, concessão, franquia
4- Contratos que visam o financiamento, dar crédito: mútuo, swaps

Vamos estudar contratos típicos porque têm um regime legal, como a compra e venda. Mas também vamos
olhar, ainda que vagamente, para contratos atípicos legalmente, mas que são socialmente típicos (como o
franchising). Vamos ainda estudar contratos nominados (contratos que o legislador deu nome) mas que são
atípicos, porque não têm regime legal (swaps).

Estes contratos que estão feitos sobre a liberdade, autonomia da vontade têm limites. Limites que vêm do
regime imperativo de cada contrato, as há limites mais gerais, que vêm do regime das cláusulas contratuais
gerais, e que nos aparecem naquele segundo mundo do business to consumer.

1.1.2. Limites à liberdade contratual (regime das cláusulas contratuais gerais: DL nº 446/85)

Como é sabido, foi o Decreto-lei446/85 que instituiu, entre nós, o regime jurídico das cláusulas contratuais
gerais – diploma este que se mantém em vigor. Este interesse pelos contratos de adesão corresponde à grande
importância prática que eles revestem a atualidade. Com efeito, estamos perante uma “manifestação jurídica
da moderna vida económica” (MOTA PINTO).

60
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Uma das características mais marcantes do direito contratual contemporâneo é de um número significativo de
contratos ser celebrado em conformidade com as cláusulas previamente redigidas por uma das partes, sem
que a outra parte possa alterá-las. Daí serem designados contratos de adesão: mera adesão a cláusulas pré-
formuladas por outrem.

Estes contratos são normalmente celebrados com base em cláusulas ou “condições gerais” previamente
redigidas.

Podemos falar em características dos contratos de adesão em sentido amplo:

a) Pré-disposição
b) Unilateralidade
c) Rigidez
d) Generalidade
e) Indeterminação

Estas cláusulas não são, pois, o resultado das negociações. Pelo contrário, antecedem a eventuais negociações,
são elaboradas antes e independentemente de quaisquer negociações.

Uma das principais medidas de proteção do consumidor consiste na consagração de especiais mecanismos de
controlo dos contratos de adesão.

Os problemas são de 3 ordens:

a. O risco de o aderente desconhecer cláusulas que vão fazer parte do contrato


b. No plano do conteúdo, favorecem a inserção de cláusulas abusivas
c. No plano processual, mostram inadequação e insuficiência do normal controlo judiciário, que atua a
posteriori, depende da iniciativa processual do lesado, e tem os seus efeitos circunscritos ao caso
concreto

Um controlo eficaz terá de atuar em 3 direções:

1) Pela consagração de medidas destinadas a obter, em cada contrato que se venha a concluir, um efetivo e
real acordo sobre os aspetos de regulamentação contratual;
2) Pela proibição de cláusulas abusivas
3) Pela atribuição de legitimidade processual ativa a certas instituições, como o MP, ou organizações (como
as associações de defesa do consumidor) para desencadearem um controlo preventivo (que além de
permitir superar a habitual inércia do aderente, se mostra mais adequado à generalidade e
indeterminação que caracteriza este processo negocial) isto é, um controlo sobre as “condições gerais”
antes e independentemente de já haver sido celebrado um qualquer contrato.

Primeiro nível de controlo: controlo ao nível da própria formação do contrato - consentimento

Assim, no que respeita ao primeiro problema, a fim de combater o risco do desconhecimento de aspetos
significativos do contrato, impõe a lei, no art. 5º um dever de comunicação.

A comunicação deve ser feita de modo adequado, com a devida antecedência, procurando o legislador, deste
modo, possibilitar ao aderente o conhecimento antecipado da existência das condições gerais do contrato bem
como o seu conteúdo. Para esse efeito, exige-lhe também a ele um comportamento diligente.

 Consequência da violação do dever de comunicação, a cláusula que não foi comunicada considera-se
não escrita (art. 5º e 8º do DL).

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Acresce, a cargo de quem utilize as referidas cláusulas, um dever de informação, consagrado no art. 6º. O
predisponente tem o dever de esclarecer acerca do sentido e do alcance dessas mesmas cláusulas.

Este dever de informação pode ser de 2 tipos:

(2) Uma informação espontânea (há determinadas informações que o predisponente tem de prestar) e
(3) Uma informação provocada pelo aderente.

 Consequência da violação do dever de informação: a cláusula cujo alcance não foi explicitado
considera-se não escrita (art. 6º/1/2 e 8º do DL).

Segundo nível de controlo: controlo sobre o conteúdo do contrato – cláusulas proibidas

O legislador teve consciência que havia de fiscalizar diretamente o conteúdo das próprias cláusulas contratuais
gerais. Fê-lo de duas formas: impondo a sanção da nulidade de certo tipo de cláusulas, que expressamente
proíbe; consagrando uma ação inibitória, com finalidades preventivas

1. Estabeleceu listas de cláusulas absolutamente proibidas (art. 18º e 21º do DL), ou seja, cláusulas que em
qualquer contrato de adesão não podem aparecer.

 Se elas forem integradas num contrato de adesão com recurso a cláusulas contratuais gerais elas são
consideradas nulas.

2. Estabeleceu listas de cláusulas relativamente proibidas (suspeitas - art. 19º e 22º DL) que serão mesmo
consideradas proibidas tendo em conta um quadro negocial padronizado.

 Se elas de facto forem proibidas e forem incluídas num contrato elas são também nulas.

O legislador vem ainda considerar nulas, todas as cláusulas que em concreto violem o princípio da boa-fé.

Terceiro nível de controlo – ação inibitória

O legislador consagrou como forma complementar da tutela do aderente uma ação inibitória com finalidades
preventivas.

Vamos combater a inércia do aderente através da ação Inibitória (art. 25º e ss DL).

Esta ação é proposta antes de surgir qualquer litígio e não o aderente que vai propor a ação inibitória, mas sim
as entidades previstas no art. 26º do DL.

Têm legitimidade ativa, para este efeito, além do Ministério Público, também, em certos termos, associações
de defesa do consumidor, associações sindicais, profissionais ou de interesses económicos.

Estas entidades olham para as condições gerais dos contratos e vão analisá-las. Se entenderem que existem
cláusulas abusivas, vão pedir a um juiz para excluir essas cláusulas do contrato de adesão.

A sua finalidade é impedir a utilização futura de cláusulas proibidas por lei, procurando assim o legislador
superar inconvenientes de um controlo apenas a posteriori, com efeitos circunscritos ao caso concreto e
dependente apenas da iniciativa processual do lesado, o qual é vítima, frequentemente, da sua própria inércia
e da falta de meios para enfrentar um contraente poderoso.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

2. Fontes: de direito interno e de direito internacional

Temos fontes nacionais, internas, claro. Mas cada vez mais, em certas áreas, sobretudo naquele segundo
mundo, temos fontes europeias. Isto porque nesta matéria temos por um lado diretivas e regulamentos, e por
outro lado, a União Europeia têm-se feito diretivas que são de uma harmonização/uniformização máxima que
não permitem que os Estados se desviem das diretivas.

Fontes internas:

1- Autonomia privada: todo o direito dos contratos encontra-se dominado pelo princípio da autonomia
privada. Isso aparece logo consagrado no pórtico do edifício normativo dedicado pelo legislador
português à matéria dos contratos: art. 405º. Portanto, no respeito pelas balizas fixadas pelos
dispositivos imperativos da lei, serão as próprias partes contratantes a estabelecer o concreto conteúdo
das suas relações jurídicas, convertendo-se, por conseguinte, os direitos e as obrigações validamente
constituídos ao abrigo dos acordos entre si celebrados em verdadeira “lex inter partes”

2- Leis e regulamentos: a regulamentação dos contratos comerciais não pode naturalmente dispensar das
leis ordinárias e dos regulamentos de carácter imperativo e supletivo, pertinentes à interpretação,
integração e aplicação do respetivo regime jurídico. Saber que normas legais e regulamentos são esses,
é questão que só perante cada contrato em concreto poderá ser esclarecida em definitivo.

Para a generalidade dos contratos jusmercantis, serão de ter presentes as normas do Código Comercial
(incluindo disposições gerais, art. 96º-103º e disposições especiais art. 231º-484º) e do Código Civil
(preceitos relativos aos negócios jurídicos (art. 217º a 294º) e aos contratos em especial (art. 824º a
1250º)

É ainda necessário ter presente que foi sobretudo através de normas previstas em leis comerciais
avulsas que se processou a evolução jurídico-normativa da categoria dos contratos comerciais ao longo
do último séc.

Não se pode ainda perder em vista a crescente importância assumida pelas próprias normas
regulamentares emanadas de determinados organismos administrativos com especial projeção no
domínio juscomercial

3- Usos mercantis: fiel ao “pedigree” eminentemente consuetudinário do Direito Comercial os usos


mercantis – traduzidos em comportamentos ou praticas reiteradas no mundo dos negócios, reveladores
da observância uniforme e generalizada de regras de conduta – são também uma fonte muito
importante da regulação dos contratos comerciais.

São importantes as remissões para os “usos” feitas pelas normas legais sobre contratos comerciais (é o
caso do art. 232º, 382º e 399º). Mas não só. a demais legislação mercantil portuguesa é também fértil
em referencia aos usos mercantil.

Por outro lado, mesmo no silêncio da lei, não está excluído que os usos mercantis possam ter relevo
jurídico como elementos auxiliares de interpretação e integração dos contratos comerciais seja já em
virtude de expressa remissão feita no respetivo clausulado comerciais, seja já mesmo na falta desta (art.
218, 236º e 239º CC)

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Fontes internacionais

1- Direito comercial internacional e europeu: assistimos hoje a uma internacionalização e globalização


sem precedentes das relações jusmercantis, mormente das de índole contratual: nas últimas décadas
o volume do comércio mais do que quadruplicou, processando-se hoje diariamente, em breves
frações de segundos, uma miríade de contratos no valor de biliões ou mesmo triliões de euros em
empresas localizadas em Londres, NY, Pequim, separadas por milhares de km.

Estão neste caso, desde logo, as diversas convenções internacionais pertinentes aos diversos
contratos mercantis, de cuja esmagadora maioria Portugal é signatário. (Convenção de Haia de 1964,
Convenções de Berna 1890, Bruxelas 1924…etc)

Porventura mais relevantes são ainda as numerosíssimas normas comunitárias de harmonização dos
direitos europeus, as quais são justamente dedicadas à matéria dos contratos mercantis. Neste caso,
por ordem cronológica, os Regulamentos…

2- Lex mercatoria: não poderia faltar uma referência àquela que constitui uma “fonte” emergente do
Direito Comercial, verdadeiramente única e distintiva da sua natureza, a lex mercatória.

Com efeito, a referida internacionalização e globalização das transações comerciais, registada nas
últimas décadas do séc. XX, foi sendo acompanhada pela criação e sedimentação de um acervo estável
de normas criadas pelas próprias empresas e aplicáveis às suas relações contratuais transnacionais.

Ora, tais normas materiais, uniformes e objetivas representam hoje o típico “humus” em cujo seio
germina e se desenvolve a contratação mercantil num mundo económico globalizado.

Entre as componentes mais relevantes desta emergente “lei universal dos mercadores”, destacam-se
os usos mercantis internacionais coligidos e aprovados por organizações internacionais de comércio –
pense-se por exemplo, nos Incoterms (“international comercial terms”, regras internacionais de
interpretação uniforme da terminologia contratual comercial, nas Regras e usos Uniformes sobre
Créditos documentários de 1993, nas Regras Uniformes sobre garantias Autónomas de 1993 ou nas
Regras Uniformes sobre cobrança de 1995, todas elaboradas ela Câmara de Comércio Internacional –
os princípios gerais em matéria contratual elaborados por peritos nacionais reunidos sob a égide de
organizações internacionais, os diversos modelos contratuais, leis-modelo e códigos de conduta,
aprovados por organismos corporativos ou profissionais e apropria jurisprudência formada no âmbito
da arbitragem comercial internacional.

Não obstante seja discutido se estaremos diante uma verdadeira fonte autónoma do DC, tal corpo
normativo e principiológico atua hoje decerto, no mínimo, como direito dispositivo para o qual as
empresas remetem frequentemente a regulação das suas relações contratuais plurilocalizadas.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

3. A importante interseção com o direito do consumidor e a prevalência deste, quando aplicável, com
a relevante implicação de o âmbito do art. 99º se tornar muito limitado.

É assim em diversos aspetos:

3.1. Na atuação do comerciante no mercado (lei das práticas comerciais desleais – DL 57/2008)

3.2. Em determinados tipos contratuais (como a compra e venda sujeita a um regime especial quando se
trate de venda de bens de consumo – DL 67/2003)

3.3. Em formas de negociação (como a contratação à distância e fora do estabelecimento comercial,


contratação eletrónica e vendas automáticas) (a contratação robotizada e computorizada)

3.4. Em determinados setores de atividade (como o da banca e de serviços financeiros) e na prestação de


determinados bens ou serviços públicos essenciais (água, energia elétrica, gás, telecomunicações,
transportes públicos, vide Lei 23/96, que não cinge a sua aplicação ao “consumidor”, mas sim ao
“utente”, quer se trate de pessoal singular ou coletiva)

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

(1) CONTRATOS DE TROCA

1. Compra e Venda – art. 463º Código Comercial

O direito comercial assume, por regra, a definição feita no direito civil. Em tais casos, a técnica seguida pelo
legislador mercantil é a de pressupor a definição do direito civil e acrescentar-lhe apenas as notas específicas
de comercialidade.

É o que se passa com o contrato de compra e venda definido no código comercial no art. 463º: compra e venda
comercial é assim o contrato que preenche os elementos do art. 874º CCiv e que, além disso, preenche ainda o
requisito adicional de comercialidade.

 Nos termos daquela disposição, em geral, a nota distintiva do contrato comercial face ao civil reside no
intuito de revenda que subjaz ao momento ao momento aquisitivo do negócio.

A compra mercantil é aquela a que subjaz o intuito de revenda, no futuro, quer se trate de bens móveis em
geral (nº1: quanto a estes, o intuito deve ser revendê-los tal como foram adquiridos, ou “trabalhados”, isto é,
objeto de alterações que não tocam a essência do bem e que permitem continuar a identificar o mesmo bem,
não implicando portanto a venda de um bem novo), quer se trate de fundos públicos ou outros títulos
negociáveis (nº2), quer ainda de imóveis ou direitos sobre eles (nº4).

A venda de um móvel ou de fundos ou títulos é mercantil se a compra tiver sido feita para realizar a revenda –
no caso dos móveis, quer “em bruto, quer trabalhados” – significa isto que, em rigor, o pressuposto da
comercialidade de uma venda não está no próprio ato, mas num contrato que está a montante relativamente a
ele e, mais rigorosamente anda, no intuito que presidiu à atuação d vendedor: é assim o lado da compra que
domina em matéria de qualificação.

Por analogia do art. 463º/5, a compra e venda de empresas é mercantil, sem mais.

Da letra do resulta claramente que o intuito de revenda presente no momento da compra é condição
necessária e suficiente da comercialidade.
 A não execução ou concretização do intuito é irrelevante para a qualificação, do mesmo modo que o
intuito formulado ulteriormente à compra é também irrelevante. Esta conclusão é confortada quer pela
parte final do art. 464º/1 quer pela consideração do fim do art. 463º

Por outro lado, o art. 463º tem em vista comercializar a atividade de interposição nas trocas e o legislador
estendeu a comercialização mesmo às atuações ocasionais, mas análogas às comerciais.

Por outro lado, o intuito não tem de estar relevado no ato, e muito menos nos documentos em que ele for
inscrito, se for o caso. O intuito de revenda pode ser provado com recurso a elementos exteriores ao ato. Deve
contudo ser relevado pelo menos nas circunstâncias que o rodeiam, em termos de ser percetível para a outra
aparte.

1.1. Tripla possibilidade de regime (a que poderá juntar-se uma quarta, caso Portugal venha a ratificar
a Convenção de Viena sobre compra e venda internacional de mercadorias)

Resulta o que foi dito que um mesmo contrato pode ser qualificado simultaneamente como comercial e civil:
ele pode ser comercial por um lado e civil por outro.

Pode ainda considerar-se a possibilidade de o qualificar como compra e venda de bens de consumo, hoje
importando isso a aplicação da legislação de defesa do consumidor e, em especial, do DL 67/2003 – já o art.
464º/1, como se adiantou, considera não comerciais as compras de móveis destinados ao uso e consumo do
comprador ou família.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

No entanto, mesmo naqueles casos de atos omissos, a regra é a da aplicação integral ao contrato do regime
mercantil, exceto quanto às disposições que só são aplicáveis àquele sujeito, “por cujo respeito o ato é
mercantil” (art. 99º).

Há assim que verificar, em face de cada norma, se ela se aplica a todo o ato ou apenas ao seu lado comercial.
No entanto, de acordo com a lógica da legislação que tutela o consumidor, as suas disposições especiais
prevalecem sobre quaisquer outras.

Portanto, há uma tripla possibilidade de regime:

1) Direito Civil Comum: Código Civil, aplicável às compras e vendas entre não profissionais

2) Direito Comercial: Código Comercial, aplicável às compras e vendas entre profissionais/comerciantes,


as designadas como relações b2b

3) Direito do Consumidor: mormente, DL 67/2003, aplicável às relações entre profissionais e


consumidores, as designadas relações b2c

Note-se que este regime aplica à compra e venda tanto de bens móveis como de imóveis, estendendo-
se aos “bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada e de outra prestação de
serviços, bem como à locação de bens de consumo”, isto é, aplica-se ao fornecimento de bens
efetuado no âmbito de contratos distintivos da compra e venda (art. 1º-A/2 do DL 67/2003)

1.2. Modalidades
1.2.1. Compra e venda de bens futuros

Noção de bem futuro: bem materialmente ainda não existente; existente mas não da titularidade do vendedor;
de existência ou titularidade incerta.

Em geral, no âmbito das relações de direito privado, é permitida a compra e venda de bens futuros, quer
relativamente futuros quer absolutamente futuros.

Há no entanto diferenças entre o direito civil e o direito comercial:

A. Desde logo, tratando-se de ato civil, a venda de bens relativamente futuros (bens alheios) só é válida
se no contrato estiver estabelecido que “as partes os consideraram nessa qualidade” (art. 893º CCiv);

Ao passo que no Código Comercial se prevê a validade independentemente de tal requisito


(justamente porque o tráfico mercantil, assente na rápida circulação de bens e vendas de grande risco,
impõe a ampla possibilidade de compra e venda de bens futuros.)

B. Por outro lado, tratando-se de bens pertença de outrem, e mesmo que não haja menção acima
referida, a lei mercantil (art. 467º) fixa imperativamente a obrigação central do vendedor: ele fica
obrigado a adquirir a propriedade e a entrega-la ao comprador, sob pena de incorrem em
responsabilidade contratual – o contrato é valido, gera aquela obrigação e há incumprimento nos
termos gerais.

Ora, no Código Civil, para o ato ser válido, ou há uma simples obrigação de meios (art. 880º ex vi
893º) ou ficou estabelecida entre as partes ou a situação jurídica do bem e a natureza aleatória do
contrato (art. 880º/2).

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Só no caso de o ato ser nulo, por ser uma pura venda de bens alheios, além de uma obrigação de
convalidação, haverá lugar a responsabilidade nos termos especiais do Código Civil (art. 897º e 900º:
de qualquer modo, exige-se a boa fé do comprador)

C. Na venda de bens absolutamente futuros não há especialidades: a lei comercial permite-a, mas não
lhe associa quaisquer efeitos de regime especial. Nada obsta assim ao funcionamento da regra do art.
880º/1 CCiv: o vendedor tem o dever de exercer as diligências necessárias para que o comprador
adquira os bens.

CONCLUSÃO RESUMIDA – SUMÁRIOS:

Portanto, a compra e venda civil de bem futuro só é válida se as partes tomaram o bem como futuro. É nula se
o adquirente desconhecia, por exemplo, que o bem pertencia a terceiro na data de compra e venda, embora o
vendedor não possa opor a nulidade a adquirente de boa fé (art. 892º). Nesse caso, o vendedor tem apenas a
obrigação de exercer as diligências para que o comprador adquira o bem vendido (art. 880º).

Diferentemente, a compra e venda comercial de bem futuro é válida ainda que o comprador desconheça que
se trate de bem futuro (art. 467º CCom), ficando o vendedor obrigado a adquirir o bem para o entregar ao
comprador (art. 467º, § único, CCom) e não apenas a diligenciar no sentido de o adquirir. A sua obrigação não
é apenas de meios, como sucede na CV civil de bem futuro, mas de dare, incorrendo o vendedor em
responsabilidade contratual se o resultado (transmissão e entrega do bem) não se produzir

1.2.2. Compra e venda sobre amostra ou por designação de padrão

Art. 919º CCiv e art469º CCom

Uma modalidade especial da compra e venda é a compra e venda sobre amostra (art. 469º CCom).

São também frequentes na atividade comercial os contratos em que, no momento da celebração, o vendedor
se limita a identificar o produto mediante exibição de uma “amostra de fazenda” (empresário alimentar que
exibe ao comprador de lotes de azeite ou óleo uma pequena garrafa do produto) ou através da “qualidade
conhecida no comércio” (empresário de ourivesaria que vende a joalheiro artefactos fabricados em ouro
assegurando que este possui determinado quilate).

Apesar do seu parentesco funcional com as vendas sujeitas a prova e sobre amostra do CCiv (art. 919 e 925º),
esta modalidade encerra também particularidades

 Assim, ao passo que a eficácia do negócio mercantil fica sujeita à condição suspensiva da conformidade do
bem entregue com a amostra apresentada ou qualidade descrita, caindo assim no caso da sua não
verificação (art. 469º in fine CCom) o negócio civil equivalente permanece eficaz, aplicando-se-lhe as
regras da venda de coisas defeituosas (art.913º e ss CCiv).
 Soveral Martins considera em causa está uma condição suspensiva, apesar de alguns afirmarem
ser resolutiva

 Além disso, em homenagem aos interesses da segurança das transações comerciais, tenha-se em conta
que o negócio mercantil se torna perfeito sempre que o comprador não tenha reclamado de eventual
desconformidade da coisa vendida no ato da respetiva entrega (caso as tenha examinado nesse momento)
ou no prazo de 8 dias (no caso de falta de exame ou de exame posterior) – art. 471º do CC: apesar da lei
ser omissa sobre este aspeto, deve entender-se que o prazo legal é supletivo (podendo as partes
convencionar prazo de reclamação diverso), além de se começar a contar não a data da entrega ou
receção da coisa, mas apenas na data em que os defeitos da coisa vendida se tornaram conhecidos ou
cognoscíveis do comprador de acordo com o padrão de diligência exigível no tráfico comercial.

68
Maria Madalena Cavaleiro
Ver aulas práticas Direito Comercial I

O prazo começa a contar-se a partir da entrega, ou deverá contar-se só a partir do momento em que se
tornou possível a verificação da mercadoria?

 No Acórdão STJ de 22-09-2009, adotou-se uma postura generosa: o prazo começa a contar-se a partir
do momento em que se tornou possível a verificação da mercadoria.
 Soveral Martins considera que este não é o ponto de partida da lei. Os 8 dias contam-se a partir do
prazo da entrega – esta é a regra, do ponto de vista da segurança, rapidez e certeza jurídica.

1.2.3. Compra e venda de coisas que não estejam à vista nem possam designar-se por um padrão
(art. 470º CCom) (!)

1.3. Especialidades do regime jurídico – confrontam entre o regime civil e comercial

1.3.1. Preço

Na compra e venda civil, o preço, não tendo sido determinado pelas partes, poderá sê-lo por terceiro ou pelo
tribunal (art. 883º CCiv);

Na compra e venda comercial, se o terceiro, disso incumbido pelas partes, não determinar o preço, o contrato
é ineficaz (“fica sem efeito”), a não ser que as partes tenham convencionado diferentemente (art. 466º CCom).

1.3.2. Prazo de entrega

Na compra e venda civil, se as partes não fixarem prazo, é necessária interpelação para cumprimento (art.
777º, nº 1, CCiv);

Na compra e venda comercial, o prazo é, supletivamente, de 24 horas (nas coisas compradas à vista) (art. 473º
CCom) ou fixado por tribunal, nas coisas não à vista (art. 473º § único, CCom).

1.3.3. Efeitos sobre terceiros

Na compra e venda civil, o terceiro que adquire a non domino, caso tenha lugar a reivindicação da coisa, terá
de ser ressarcido pelo vendedor do montante que tiver pago;

Na compra e venda comercial, o adquirente (de boa fé) de um bem a comerciante terá, em caso de
reivindicação da coisa por um terceiro, direito a receber deste o valor pago ao comerciante (art. 1301º CCiv):
aquele que adquiriu o bem ao comerciante, ao ser desapossado, há-de receber o montante que pagou pela
aquisição, não correndo o risco de, perdendo o bem, não lograr ser ressarcido pelo comerciante-vendedor.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

1.5. Notas distintivas da compra e venda de bens de consumo

a. Casos de presunção de não conformidade do bem com o contrato (art. 2º/2) e presunção de que a não
conformidade revelada após o contrato existia na data da entrega (art. 3º/2)

 No direito do consumidor, o legislador presume que o vício já existia à data do negócio, ao


contrário do que acontecia no direito comercial. O que o legislador fez foi uma tutela que não
existe na compra e venda comercial.

Confrontar com o regime do art. 914º CCiv

b. Garantia (imperativa): 2 anos para bens móveis; 5 anos para bens imóveis.

Confrontar com o regime do art. 916º CCiv.

c. Direito de reparação, ou de substituição, ou redução adequada do preço ou resolução do contrato (art.


4º)

d. Prazo para o exercício de direito (art. 5º)

2. Escambo ou troca (permuta) – art. 463º


2.1. Noção

Designa-se por troca mercantil o contrato pelo qual as partes transferem reciprocamente a propriedade de
coisas ou outros direitos destinados a uma atividade comercial ou com intuito lucrativo, inexistindo qualquer
pagamento de um preço.

Esta figura contratual, conhecida por “escambo” ou “permuta”, encontra-se hoje exclusivamente prevista no
art. 480º do Código Civil. O seu traço distintivo reside na ausência de um preço: com efeito, a troca ou
escambo esgota-se na mera “permutação de utilidades” sem qualquer objeto de natureza monetária (dinheiro)
ou outra que desempenhe na economia contratual uma função de pagamento.

2.2. Exemplos

Tratando-se do mais antigo contrato conhecido, a troca mercantil continua a ser bastante utilizada no âmbito
de atividades comerciais: exemplos disso mesmo são as operações de troca de valores imobiliários (art. 178º
CMV), de swap (também conhecido por troca financeira, previsto no art. 2º/2/e) CVM), de switch e algumas
modalidades de “countertrade”.

2.3. Ausência de regime próprio – aplicação do regime da compra e venda, art. 480º CCom

Por outra banda, assinale-se ai da que o legislador omitiu um regime próprio para a troca mercantil, limitando-
se a mandar-lhe aplicar remissivamente as normas sobre a compra e venda mercantil (art. 480º CCom): são
assim aplicáveis, mutatis mutandis, as regras comuns que não pressuponham a contraprestação em dinheiro
(art. 874º e ss CCiv), bem como, designadamente, as regras específicas relativas À obrigação de entrega (art.
473º CCom) e ao cumprimento contratual (art. 468º - 474º CCom)

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

3. Locação mercantil

Designa-se por locação mercantil, o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra,
mediante retribuição, o gozo temporário de uma coisa móvel, imóvel ou suis generis destinada ou afeta ao
exercício de uma atividade comercial

A figura da locação mercantil está prevista no art. 481º e art. 482º do CCom.

A previsão refere-se unicamente ao aluguer mercantil, tendo sido configurada de forma particularmente
redutora:

 A uma, porque apenas se refere à locação de coisas móveis (“aluguer”) e não de imóveis
(“arrendamento”);

 À outra, porque aparece intimamente associada à compra e venda mercantil, na medida em que a
mercantilidade do aluguer pressupõe que a coisa alugada tenha sido comprada com esse fim (art. 481º e
463º in fine);

 Finalmente, porque não lhe foi tão-pouco associado um regime legal próprio, limitando-se o legislador
comercial a remeter para as disposições gerais aplicáveis (art. 482º), ressalvando o caso particular do
fretamento de navios.

Tal visão redutora foi ultrapassada pela evolução económica e legal:

a. Por um lado, paralelamente ao aluguer mercantil do art. 481º, deve ter-se em conta a existência de um
número crescente de contratos de aluguer atinentes ao tráfico comercial, sujeitos a regulação própria
(pense-se no cofre-forte) ou na locação financeira.

b. Por outro lado, e mais importante, devem hoje considerar-se igualmente como formas relevantes da
locação mercantil, para além do aluguer mercantil, o chamado arrendamento comercial – contrato
pelo qual o titular e prédio urbano ou rústico, mediante retribuição, concede temporariamente ao
titular de uma empresa o respetivo gozo para exploração desta (art. 1108º a 1013º CCiv) – e a locação
empresarial, contrato de transmissão temporária e onerosa do gozo de uma empresa (art. 1009º CCiv)

4. Reporte
4.1. Noção: natureza complexa mas unitária do reporte

Designa-se por contrato de reporte o contrato de compra a contado de títulos de crédito, valores imobiliários
ou outros instrumentos financeiros, e de revenda simultânea a termo desses títulos ou valores, por preço
determinado ou determinável, sendo a compra e venda feitas à mesma entidade.

A figura encontra-se prevista nos arts. 477º a 479º do CCom.

O reporte pode revestir diferentes modalidades operacionais. Assim, quanto à sua natureza, o reporte pode ser
bancário ou financeiro, consoante é realizado no mercado bancário por instituições creditícias ou no mercado
de capitais por intermediários financeiros, maxime em bolsa.

A função que este contrato tem é de financiamento, porque o preço a que vou vender será inferior ao preço a que
vou recomprá-las, para recuperar quem me refinanciou. O direito civil não permite isto porque na prática é uma
alienação como garantia do meu empréstimo. A alienação em garantia é proibido no direito civil, mas não no direito
comercial. Eu posso fazer uma compra e venda em que lhe imponho por cima uma put (opção de venda) ou uma cal
(opção de compra)

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

4.2. Função jurídica e económica (de financeiramente, sui generis)

Quanto à sua função, o reporte pode possuir finalidades creditícias (que o aproximam de um empréstimo
garantido), especulativas (perseguindo o lucro resultante de eventuais diferenciais entre os preços de compra e
revenda dos títulos, valores ou instrumentos) ou protetoras (visando a cobertura do risco de oscilações
negativas do preço ou cotação destes).

4.3. Prazo

Quanto ao prazo: o reporte pode ser diário, a termo certo ou aberto, consoante a revenda é feita no prazo de
um dia, em prazo superior ou renovada diariamente.

4.4. Efeitos

Quanto aos seus efeitos: a operação pode configurar-se com stricto sensu ou um deporte (consoante o preço
da retransmissão dos títulos é mais ou menos elevado do que o da sua transmissão, cabendo o diferencial ao
reportador ou reportado)

4.5. Distinção de outras figuras

O reporte deve ser devidamente distinguido decertas figuras vizinhas, tais como a venda a retro (art. 927º
CCiv), os derivados (especialmente, futuros e “fowards”), o empréstimo de fundos caucionados, o empréstimo
de títulos, a antecipação bancária ou determinadas operações e conta margem.

4.6. Aspetos do regime

O regime legal do contrato de reporte caracteriza-se por vários traços fundamentais

a. Desde logo, representa um negócio complexo e unitário, constituído por operações simultâneas de
compra e venda a contado e a prazo em que o reportador (quem dá dinheiro e recebe os títulos)
compra e revende firme a prazo, enquanto o reportado (dá títulos e recebe dinheiro) vende a pronto e
recompra a termo

b. Apesar da referência restritiva do legislador, o objeto do reporte pode consistir em títulos de crédito,
valores mobiliários ou mesmo outros instrumentos financeiros

c. O reporte é um negócio real quanto à constituição: a validade está dependente da entrega real ou
traditio dos títulos, valores ou instrumentos – art. 477º

d. Há ainda que ter em conta as particularidades do regime aplicável em caso do incumprimento do


contrato de reporte, bem assim como da eventual insolvência do reportador e reportado.

(2) Contratos de Cooperação – segundo semestre

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

(3) CONTRATOS DE DISTRIBUIÇÃO

Introdução

Ao falamos de contratos de distribuição temos em vista os contratos que disciplinam as relações entre o
produtor (importador) e o distribuidor, não os contratos com os consumidores.

Em regra, estes contratos têm como sujeitos o produtor, por um lado, e o distribuidor, por outro. E visam
escoar produtos, conquistar mercado e angariar clientela.

Vamos considerar apenas os contratos de agência, concessão e de franquia. Sublinhamos apenas porque eles
não esgotam as modalidades possíveis de contratos de distribuição. Constituem, em todo o caso, as espécies
mais frequentes e de maior relevo na atualidade.

1. Contrato de Agência
1.1. Noção

A lei define o contrato de agência em conformidade com as notas por que a jurisprudência e a doutrina
nacionais o iam já configurando. Notas que exprimem a função económico-social deste contrato.

O art. 1º do Decreto-lei 178/86, que define o contrato de agência, tem por fonte mais próxima o art. 1742 do
Codice Civile italiano. Mas a noção inicial foi ligeiramente modificada pelo Decreto-lei 118/93 por força da
Diretiva 86/653/CEE sobre o agente comercial.

 Tal modificação traduziu-se no facto de a atribuição ao agente de uma zona ou círculo de clientes ter
deixado de ser elemento essencial do contrato.

O contrato de agência remonta ao séc. XIX, é fruto da evolução económica e industrial.

No plano do direito comparado:

Registe-se que foi o Código Comercial alemão (1897) a primeira lei no mundo a ocupar-se do agente comercial.

Relativamente ao direito italiano, o contrato di agenzia é regulado pelo Codice Civile, devendo estas normas
ser completadas com a regulamentação estabelecida em acordos económicos coletivos.

 O art. 1742º define a agência como o contrato em que “uma parte assume estavelmente o encargo de
promover, por conta da outra mediante retribuição, a conclusão de contratos numa zona
determinada”. A lei destaca a finalidade destes contratos: promoção de negócios.

Quanto ao direito francês importa distinguir o agente comercial dos denominados VRP (voyageurs,
représentants at placiers e représentants de commerce).

[…]

1.2. Elementos essenciais

O art. 1º do Decreto-lei 178/86 ao consagrar a noção do contrato de agência, fá-lo enunciando os seus
elementos essenciais. A análise destes elementos permitirá identificar o contrato de agência e compreender
melhor a sua função económico-social, ao mesmo tempo que nos levará a percorrer parte importante do
diploma legal, onde se desenvolvem ou explicitam soluções em harmonia com tais elementos. É o que
passamos a fazer.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

1.2.1. Obrigação de o agente promover celebração de contratos

É esta a obrigação fundamental do agente.

 Envolve toda uma complexa e multifacetada atividade material, de prospeção do mercado, angariação
de clientes, difusão dos produtos e serviços, negociação, etc, que antecede e prepara a conclusão dos
contratos, mas na qual o agente já não tem de intervir.

Não se trata de mera atividade publicitária, antes a obrigação de promover a celebração de contratos.
Compreende um vasto e diversificado leque de atos com o objetivo último de conquista e/ou desenvolvimento
do mercado.

Deve o agente publicitar, é certo, os bens e serviços do principal; mas deve também, designadamente, visitar
clientes, fornecer-lhes catálogos, amostras, listas de preços, etc.

O conteúdo desta obrigação terá de ser preenchido de acordo com a função que cabe ao agente desempenhar,
enquanto intermediário privilegiado para a conquista do mercado, tendo em conta o seu savoir-faire, a
confiança que inspira, o seu relacionamento direto e pessoal com os clientes e os laços de fidelidade que gera.
E ter-se-á de ter sempre presente o espírito de colaboração que preside à celebração deste contrato, assim
como o dever de o agente de zelar pelos interesses do principal, o que faz dele um contrato de gestão de
interesses alheios, em ordem à realização plena do fim contratual (art. 6º)

O contrato de agência, por si só, não confere ao agente poderes para celebrar contratos com terceiros, isto é,
com os clientes. O agente limita-se a fomentar a sua conclusão e a prepará-los, mas não lhe cabe a celebração
dos contratos que promove, exceto se tiverem sido concedidos os indispensáveis poderes para tal.

 Não se confunde, por isso, o contrato de agência com o mandato, contrato que envolve tipicamente a
prática de atos jurídicos (art. 1157º CCivil).

Mesmo que o agente tenha sido autorizado a celebrar contratos, tratar-se-á de simples atividade acessória,
complementar da obrigação fundamental de promover celebração de contratos!

[mas isso não significa que não tivesse sigo julgados aplicáveis à agência (antes do DL 178/86), por analogia, disposições do
mandato comercial (art. 231º e ss CComercial)]

Se o principal tiver conferido ao agente poderes para celebrar contratos, nos termos do art. 2º, este atuará em
nome do primeiro. !

Problema que pode colocar-se: é se o agente a quem tenham sido concedidos poderes para celebrar contratos
gozará também do poder de decidir, por si, se o contrato é ou não de concluir, e em que termos, ou se tal
poder de decisão compete ao principal.

 Tudo dependerá, fundamentalmente, do sentido e da amplitude dos poderes que o principal atribui ao
agente. O que parece de aceitar é que a atribuição de poderes para celebrar contratos, nos termos do art.
2º não vai conferir ao agente, em princípio, esse poder de decisão.

Será assim de partir do princípio de que ao poder de representação do agente nas relações com terceiros – que
a lei limita à celebração de contratos – não corresponde um poder de gestão nas relações internas, uma vez
que a decisão continua a pertencer ao principal.

Note-se que o facto de o agente não gozar de poderes de representação não obsta a que lhe possam ser
apresentadas, nos termos do art. 2º/2 reclamações ou outras declarações, assim como não impede a lei de lhe
atribuir uma restrita legitimidade processual ativa (nº3)

74
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Também o poder para cobrar créditos depende de autorização do principal (art. 3º/1), embora a lei presuma
essa autorização, em dados termos, se o agente gozar de poderes de representação (nº2). Tendo sido
encarregado de cobrança de créditos, o agente goza do direto a uma comissão especial (art. 13º/f))

Assim sendo, dependendo dos poderes para celebrar contratos com os clientes, bem como para efetuar
cobrança de créditos quid iuris se ao gente atua sem tais poderes, celebrando negócios e/ou cobrando créditos
sem autorização?

a. De acordo com as regras gerais, esses negócios serão ineficazes em relação ao principal, se não forem
por ele ratificados (art. 268º CC).

A lei da agência considera, no entanto, que há ratificação se o principal, tendo tido conhecimento da
celebração do negócio e do conteúdo essencial do mesmo, não manifestar ao cliente de boa fé, no
prazo de 5 dias a contar desse conhecimento, que se opõe ao negócio – art. 22º/2

b. Quanto à cobrança de créditos não autorizada (art. 3º/3), será vista como uma prestação do cliente a
terceiro, que, em princípio, não extinguirá a sua obrigação em face do principal, nos termos do art.
770º do Código Civil.

Porém, o art. 3º/3 da lei da agência ressalva o disposto no art. 23º.

Este preceito legal, o art. 23º, consagra uma regra muito importante sobre a representação aparente, e
abrange, em certos termos (1) quer os negócios celebrados por agente sem poderes de representação, (2) quer
a cobrança de créditos por agente não autorizado.

O problema da aparência não é específico do contrato de agência, antes um problema geral de direito, em sede de tutela
da confiança de terceiros e com expressão a vários níveis. Mas reveste particular interesse no domínio da agência, razão
porque o legislador interveio, dedicando o Capítulo III, “à proteção de terceiros”

Para lá da solução consagrada quanto à representação sem poderes (art. 22º), o mencionado capítulo abre
logo com uma norma que estabelece um dever de informação a cargo do agente (art. 21º), destinado a fazer
transparecer o conteúdo do da relação interna que o liga ao principal.
O art. 23º
Por último, quanto à representação aparente, contém a lei uma norma, o art 23º, que consagrou uma solução, consagra o
que se afigura justa e equilibrada, para situações em que o agente, apesar a sua falta de poderes princípio da
representativos e/ou de cobrança de créditos, atuou, no entanto, como se os tivesse, criando no cliente a tutela da
aparência
aparência de estar a contratar ou a pagar a um agente munido dos respetivos poderes.

O negócio concluído pelo agente, assim como a cobrança de créditos, serão eficazes, pese embora a sua falta
de poderes, “o negócio celebrado por um agente sem poderes de representação é eficaz perante o principal se
tiverem existido (1) razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso
que justifiquem a confiança do terceiro de boa fé na legitimidade do agente, (2) desde que o principal tenha
igualmente contribuído para fundar a confiança do terceiro ” (art. 23º/1)

A proteção condida pela norma depende da ocorrência, cumulativa, de requisitos objetivos e subjetivos.

Os contratos que o agente promove são normalmente contratos pelos quais o principal irá vender os seus bens
ou prestar serviços que fornece. E por isso é que a agência é um contrato de distribuição. Mas o âmbito da
agência é mais alargado, pois nada impede que a promoção de contatos seja dirigida à aquisição dos bens e
serviços para o principal.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

1.2.2. Atuação por conta do principal

A lei disciplina a relação interna entre o agente e o principal. Distinta desta serão as relações com terceiros,
nomeadamente as que, a culminar o processo de negociações conduzidas pelo agente, o principal estabeleça
com os clientes angariados por aquele.

No exercício da sua atividade e de acordo com a sua função, o agente atua sempre por conta do principal. Isso
significa que os atos que pratica se destinam ao principal, se repercutem na esfera jurídica deste.

[É esta a nota que diferencia as várias modalidades de distribuidores entre si, pois o concessionário e o
franquiado atuam por conta própria, como veremos]

Discute-se se atuar por conta de outrem não significará ao mesmo tempo atuar no interesse desta pessoa. Não
há dúvida que ele prossegue os interesses do principal e deve zelar pelos interesses deste (art. 6º)

1.2.3. Autonomia

O agente é independente e atua com autonomia. Contudo, a autonomia do agente, em face do principal, não é
absoluta, pois ele deve conformar-se com as orientações recebidas, adequar-se à política económica da
empresa e prestar regulamente contas da sua atividade.

 Mas estas e outras obrigações não devem prejudicar a sua autonomia – art. 7º/a)

Em conformidade com esta nota essencial, a lei permite salvo convenção em contrário, o recurso a subagentes
(art. 5º) e prevê, não havendo estipulação com sentido diverso, que as despesas pelo exercício normal da sua
atividade ficam a cargo do agente (art. 20º)

1.2.4. Estabilidade

O agente exerce a sua atividade de modo estável, tendo em vista não uma operação isolada, mas um número
indefinido de operações.

 A estabilidade é compatível com prazos curtos e pode limitar-se a eficácia do contrato a certos períodos. A
atividade não se pode é limitar à prática de um ato isolado, devendo tratar-se de uma atividade com
continuidade.

 O contrato funda uma relação contratual duradoura que não se extingue por um ato de cumprimento.

Os contraentes podem vincular-se por tempo indeterminado ou nada convencionarem a tal respeito; neste
último caso, presume-se que foi celebrado por tempo indeterminado – art. 27º.

Se o contrato continuar a ser cumprido após o decurso do prazo, a lei considera que se transformou em
contrato – art. 27º/2.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

1.2.5. Retribuição

A agência é um contrato oneroso.

A retribuição determina-se, fundamentalmente, com base no volume de negócios conseguido pelo agente. Este
é remunerado em função dos resultados obtidos, assumindo, pois, um carácter variável, sob a forma de
comissão ou percentagem calculada sobre o valor dos negócios alcançados.

Mas nada obsta a que a comissão possa cumular-se com qualquer importância fixa acordada entre as partes.

É nos arts. 15º a 18º que a lei trata da retribuição do agente, designadamente, do direito à comissão.

1.3. Delimitação

Contrato de mandato (art. 1157º CCivil)

Distinguem-se porque o contrato de agência não implica a prática de quaisquer atos jurídicos.

 Em ambos os casos atuam por conta de outrem, mas essa atuação é diversa: o agente pratica
fundamentalmente atos materiais e o mandatário pratica atos jurídicos. E mesmo que agente seja
autorizado a celebrar contratos, trata-se de uma atividade acessória, complementar.

 O agente não tem, em regra, direito a reembolso pelas despesas do exercício normal da sua atividade
(art. 20º), ao invés do mandatário (art. 1167º CCivil); quanto ao mandatário comercial, é remunerado
independentemente do resultado do seu trabalho (art. 232º CComercial)

Contato de mediação

O agente atua de modo estável, no âmbito de uma relação duradoura que estabelece com o principal,
obrigando-se a promover os negócios deste e a defender os seus interesses; diferentemente se passam as
coisas com o mediador, pese embora os pontos que apresentam em comum.

Têm em comum o facto de ambos atuarem como intermediários, procurando que determinado negócio venha
a concretizar-se e preparando a sua conclusão.

Diferenças:

a. O agente atua por conta do principal; o mediador age com imparcialidade, no interesse de ambos os
contraentes, sem estar ligado a qualquer deles por relações de colaboração, de dependência ou de
representação.

b. O mediador é tipicamente uma pessoa independente, a quem qualquer outra pode recorrer, em
determinado momento, cessando a relação contratual, em regra, logo que concluído o negócio; o mesmo
não sucede com o agente ligado ao principal por relações de colaboração duradoura, sendo a estabilidade
um elemento principal do contrato de agência.

c. O mediador intervém ocasionalmente, só quando solicitado para determinado ato concreto; o agente
exerce uma atividade material contínua.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

2. Contrato de concessão comercial

A distribuição comercial efetua-se através de esquemas contratuais diversos. Um deles, é o contrato de


concessão e as partes que o subscrevem são o concedente e o concessionário. Mantém-se como contrato
legalmente atípico.

É bastante significativa, mesmo entre nós, a jurisprudência relativamente a este contrato.

2.1. Noção e características

ANTÓNIO PINTO MONTEIRO compreende a concessão como “um contrato-quadro que faz surgir entre as partes
uma relação obrigacional complexa por força da qual uma delas, o concedente, se obriga a vender à outra, o
concessionário, e esta a comprar-lhe, para revenda, determinada quota de bens, aceitando certas obrigações —
mormente no tocante à sua organização, à política comercial e à assistência a prestar aos clientes — e
sujeitando-se a um certo controlo e fiscalização do concedente”

Como contrato-quadro, o contrato de concessão comercial funda uma relação de colaboração estável,
duradoura, de conteúdo múltiplo, cuja execução implica a celebração de futuros contratos entre as partes,
pelos quais o concedente vende ao concessionário, para revenda, nos termos previamente estabelecidos, os
bens que este se obrigou a distribuir.

Pese embora a afinidade com aspetos fundamentais do contrato de agência, trata-se de contratos distintos,
pois o concessionário, ao contrário do agente, atua em seu nome e por conta própria e adquire a propriedade
da mercadoria (pelo menos, em princípio) compra para revenda e assume os riscos da comercialização.

Portanto, o concessionário:
a) Assume a obrigação de compra para revenda, tendo os termos desses negócios futuros logo
estabelecidos;
b) Age em seu nome e por conta própria (assume os riscos da comercialização);
c) Integra-se na cadeia de distribuição do concedente, mediante a adoção, variável na sua intensidade, de
elementos identificadoras do concedente e de comunhão de política comercial.

3. Contrato de franquia (franchising)

Este contrato surge na linha de evolução em que sobressai a crescente ingerência na atividade de distribuição.

Neste sentido, ele constitui um desenvolvimento do contrato de concessão e representa a mais estreita forma
de cooperação entre empresas independentes e o mais elevado grau de integração do distribuidor (franquiado)
na rede da outra parte (o franquiador), em termos de gerar no público a convicção de ser o próprio fabricante,
ou uma sua filiar, a encarregar-se da distribuição.

3.1. Noção e características

A designação da figura (franchise = privilégio) evoca a ideia de que a comercialização dos bens é direito ou
“prerrogativa soberana” do produtor, o qual poderá conceder a outrem o privilégio de os vender.

ANTÓNIO PINTO MONTEIRO entende que a franquia é “o contrato pelo qual alguém (franquiador) autoriza e
possibilita que outrem (franquiado), mediante contrapartidas, atue comercialmente (produzindo e/ou vendendo
produtos ou serviços), de modo estável, com a fórmula de sucesso do primeiro (sinais distintivos,
conhecimentos, assistência…) e surja aos olhos do público com a sua imagem empresarial, obrigando-se o
segundo a atuar nestes termos, a respeitar as indicações que lhe forem sendo dadas e a aceitar o controlo e a
fiscalização a que for sujeito”

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

São claras as vantagens decorrentes da utilização deste contrato para o franquiador: ele passa controlar e a
dirigir, através de empresas independentes, a distribuição dos bens como se fosse uma sua filial a agir, mas
sem os pesados custos e riscos inerentes a tal situação. permite-lhe zelar pela qualidade de serviços. Difundir o
seu nome, marcas, insígnias e recebe contrapartidas pela fórmula que criou e assim ai explorando.

O franquiado, por sua vez, beneficia ainda da possibilidade de comercializar bens já conhecidos do públicos,
utilizando marcas e sinais distintivos de uma grande empresa, de projeção internacional, muitas vezes. Poupa,
assim, investimentos que de outro modo teria de suportar. Beneficia ainda da assistência técnica e
conhecimentos que lhe são transmitidos pelo franquiador. Passa a beneficiar do poderio e renome de uma
grande empresa.

Nota: o franchising não se esgota nem reduz a um contrato de distribuição.

4. Ausência de regime legal diretamente aplicável e vocação do regime legal da agência (aplicação por
analogia, atenta na proximidade funcional)

O contrato de concessão e o contrato de franquia são contratos legalmente atípicos, sem um regime legal
diretamente aplicável.

É metodologicamente correto, perante um contrato legalmente atípico, atender às regras dos contratos mais
próximos, que tenham a sua disciplina fixa fixada na lei.

Entendemos que aos contratos de concessão e franquia podemos aplicar o regime do contrato de agência, por
analogia, atenta na sua proximidade funcional. É este o contrato mais vocacionado para tal; é o contrato mais
próximo, funcionalmente. É esta a posição da jurisprudência e da doutrina dominante.

Podemos apontar algumas notas que demostram a proximidade funcional entre os contratos:

 Colaboração entre as partes.


 Relação duradoura que estabelecem.
 Integração na rede.
 Obediência às instruções e diretrizes do dono do negócio.
 Controlo a que os distribuidores se submetem.
 Obrigação de zelar pelos interesses do dono do negócio e de promover a distribuição dos seus bens e marcas.

5. Cessação do contrato

Os problemas são comuns às várias espécies de contratos distribuição. Isso não significa que não haja
particularidades. Por exemplo, o destino dos bens em stock, no termo do contrato de concessão comercial ou
de franquia, problema que, em princípio, não se põe no contrato de agência.

Formas de cessação

As regras do art. 24º valem para qualquer contrato de distribuição, bem como para os contratos duradouros.
Portanto, o contrato pode cessar: por acordo das partes, caducidade, denúncia ou resolução.

Há que referir o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais (Decreto-lei 446/85) o que é suscetível de
assumir especial importância em sede de denúncia e de resolução do contrato (art. 18º/j), 19º/f) e 22º/c)/h)/i)
e nº2 /b))

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

1. Mútuo acordo: o art. 25º, por razões de segurança, prescreve que o acordo pelo qual as partes decidem
pôr termo à relação contratual deve constar de documento escrito. E essa nota resultaria em regra dos
princípios gerais (art. 406º). Trata-se de um acordo que deverá reunir os requisitos de validade do negócio
jurídico.

2. Caducidade: dá-se caducidade quando o contrato cessa automaticamente, sem necessidade de qualquer
manifestação de vontade das partes. Logo que ocorra certo evento, o contrato cai por si: é o que
acontece, por exemplo, com o decurso do prazo, nos contratos por tempo determinado.
 Os eventos que levam à caducidade do contrato de agência constam do art. 26º. O elenco é
exemplificativo.

3. Denúncia: trata-se de uma forma típica de fazer cessar relações duradouras por tempo indeterminado.

Qualquer das partes, livre e discricionariamente, através de declaração unilateral recetícia dirigida à outra
parte, pode fazer cessar o contrato. É um direito potestativo de que goza.

Mas esta faculdade restringe-se aos contratos por tempo indeterminado e constitui uma forma de obviar
a vínculos perpétuos.

Quanto aos requisitos:


(1) A denúncia exerce-se livremente, sem que o contraente que dela se socorre tenha de apresentar
qualquer motivo ou justificação.
(2) Deve comunicá-lo à outra parte com determinada antecedência relativamente à produção de efeitos
extintivos, isto é, deve respeitar um tempo de pré-aviso.

No caso da agência, deve essa comunicação revestir a forma escrita (art. 28º). Mediante o pré-aviso, o
contraente que denuncia o contrato comunica à outra parte que ele cessará uma vez decorrido o prazo do
pré-aviso. O contrato mantém-se enquanto o prazo não se esgota.

Quid iuris se quem denuncia o contrato não respeita o pré-aviso? Ou indica um prazo inferior ao mínimo
legalmente estabelecido ou aquele que fora convencionalmente fixado?
 Numa situação dessas, a denúncia será ilícita, incorrendo o contraente faltoso na obrigação de
indemnizar o outro pelos danos causados pela falta – ou insuficiência – do pré-aviso. A
indemnização processar-se-á nos termos gerais, abrangendo danos emergentes e lucros cessantes.

E se quem denuncia o contrato o faz sem ele tenha vigorado um determinado período de tempo
minimamente razoável?
 Ter-se-á que indemnizar a outra parte pelos danos sofridos, solução que decorre do princípio da
boa fé.

4. Resolução: a resolução necessita de ser motivada, carece de fundamento, embora possa efetivar-se
extrajudicialmente (art. 436º CC). A resolução opera tanto nos contratos por tempo indeterminado como
nos restantes e opera imediatamente, sem qualquer aviso prévio, logo que recebida a declaração
resolutiva.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

A lei da agência estabelece dois fundamentos de resolução (art. 30º/a)/b)), os quais podemos considerar
aplicáveis, por analogia, aos contratos de concessão e de franchising.
 Alínea a) – incumprimento de obrigações; violação do contrato
 Alínea b) – ocorrência de determinadas situações que tornam inexigibilidade de manutenção do
contrato

Indemnização de clientela do agente

Sem prejuízo de qualquer outra indemnização, consagra o art. 33º, a favor do agente, uma dita “indemnização
de clientela”. Trata-se de uma medida interessantíssima, de grande significado e alcance e de natureza jurídica
complexa.

Logo na redação inicial do DL 178/86 foi consagrada a indemnização de clientela. Optou o legislador português
pelo modelo alemão. Entretanto, a diretiva 86/653/CEE veio impô-la, mas talvez o haja feito em termos que
não se afiguram os mais adequados. (…)

Requisitos de que depende a sua atribuição ao agente:

 Os requisitos estão consagrados nas alíneas a), b) e c) do art. 33º/1. São requisitos positivos, a provar
pelo agente, que devem verificar-se cumulativamente.
 Há, depois, requisitos negativos que obstam ao pagamento da indemnização de clientela, a provar
pelo principal, e que constam do nº3 da mesma norma.
 E há ainda requisitos sobre o exercício do direito à indemnização de clientela, maxime, quanto ao
prazo para o agente ou herdeiros fazem valer o seu direito (nº4)

Mas há um pressuposto inicial: a indemnização de clientela pressupõe a cessação do contrato. É muito claro a
este respeito o art. 33º/1.

Requisitos:

1) É necessário, em primeiro lugar, que o agente tenha angariado novos clientes para a outra parte ou
aumentado substancialmente o volume de negócios com a clientela já existente – alínea a)
2) Quanto aos benefícios a auferir pelo principal – alínea b) – não se mostra necessário que eles já
tenham ocorrido, bastando que, de acordo com um juízo de prognose, seja bastante provável que eles
se venham a verificar, isto é, que a clientela angariada pelo agente constitua, em si mesma, uma
chance para o principal.
3) No que respeita à alínea c), pretende a lei fundamentalmente evitar acumulações, deixando de
justificar-se a compensação devida ao agente, a título de indemnização de clientela, caso o principal,
por exemplo, haja concordado continuar a pagar-lhe, após o termo do contrato, uma certa quantia
pelas operações negociais que leve a efeito com os clientes por ele angariados.
4) Relativamente às circunstâncias mencionadas no nº3 que excluem a indemnização de clientela, não
será pacífica a posição atual respeitante às que dependem de factos imputáveis. A nosso ver, será
sempre discutível a questão de saber se a indemnização de clientela se justifica ainda que o contrato
tenha cessado por razões imputáveis ao agente.

Indemnização de clientela do concessionário e do franquiado

O que acabámos de expor acerca da indemnização de clientela constitui como que uma espécie de doutrina
geral que valerá também, mutatis mutandis, para o concessionário e o franquiado, se lhes for de aplicar, por
analogia, o disposto no referido art. 33º da lei da agência. E essa tem sido uma questão muito discutida,
particularmente no direito alemão.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Entendemos que a indemnização poderá beneficiar outros sujeitos, para além dos agentes, como os
concessionários e os franquiados, sempre que a analogia se verifique.

É que os contratos de concessão e de franquia envolvem, frequentemente, como sabemos, uma atividade e um
conjunto de tarefas similares às da agência, estado os contraentes unidos, de modo idêntico, por relações de
estabilidade e de colaboração e comungando de um objetivo comum.

 Num primeiro momento, há que averiguar em cada caso concreto se o distribuidor, pese embora
juridicamente atue por conta própria, desempenhou funções, cumpriu tarefas e prestou serviços
semelhantes aos de um agente, em termos de ele próprio dever considerar-se como um relevante
fator de atração da clientela.
 Num segundo momento, há que averiguar se a norma que se convoca é adequada ou se ajusta ao
contato de concessão. Importa refletir, para o efeito, sobre a ratio legis, a fim de vermos se a norma
pode aplicar-se analogicamente.

No tocante à indemnização de clientela regulada nos arts. 33º e 34º há dois aspetos a ter em conta:

1) É necessário que os serviços que prestaram, tarefas que cumpriram, funções que exerceram possam
ser considerados fator relevante de atração da clientela. Estará então preenchido o primeiro requisito
para a aplicação analógica da norma

2) É ainda necessário, em segundo lugar, que o concedente ou franquiador venham a beneficiar dessa
clientela, que isso seja previsível.

E é aqui que reside uma dificuldade: no contrato de agência é o principal quem contrata os clientes,
ou o agente, mas por conta e em nome do principal (art. 2º); no contrato de concessão, ao invés, é o
concessionário quem celebra os contratos com os clientes e fá-lo em seu nome e por sua conta, o
mesmo sucedendo no “franchising”.

Parece que será de atribuir ao concessionário e ao franquiado a indemnização de clientela prevista no


art. 33º, por aplicação analógica da norma.

Retoma dos bens em “stock”

Problema particularmente delicado, mormente no âmbito do contato de concessão comercial, é o de saber se


o concedente, no termo do contrato, estará obrigado à retoma dos bens em stock.

É aqui que, ao contrário do que acontece com o agente, o concessionário adquire, via de regra, a propriedade
dos bens ao concedente. Ora, extinto o contrato, o concessionário ficará impedido de revender esses bens,
apesar de lhe pertencerem, por se tratar de bens de marca e ele ter deixado de ser “representante” desta, em
virtude de ter cessação a autorização que o contrato lhe conferia.

 Podem ser avultados os prejuízos que esta situação pode acarretar ao concessionário ou franquiado.
 Daí que as partes devam ter o cuidado em regular previamente este ponto.

82
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Na falta de cláusula, não será de impor ao concedente ou ao franquiador a obrigação de retoma dos bens em
stock (por ausência de base legal/contratual),

 Quando a cessação é devida a culpa do concedente/franquiador, poderá haver obrigação de retoma


ou tais prejuízos serem imputados na indemnização a que ele tem direito.
 Por outro lado, a solução também poderá ser contrariada em alguns casos pela via hermenêutica ou
integração (art. 236º e 239º), designadamente à luz do principio da boa fé, se for de concluir que tais
compras teriam sido feitas sob condição resolutiva.
 Também se poderia recorrer a uma interpretação conforme a vontade hipotética das partes (art.
239º)

(4) CONTRATOS DE FINANCIAMENTO

1. Empréstimo Bancário

Designa-se por empréstimo ou mútuo bancário o contrato pelo qual o banco (mutuante) entrega ou se obriga a
entregar uma determinada quantia em dinheiro ao cliente (mutuário), ficando este obrigado a restituir outro
tanto do mesmo género e qualidade, acrescido dos correspondentes juros.

O contrato de empréstimo bancário constitui uma modalidade especial do contato de empréstimo (art. 1142º
CCiv, art. 394º e ss CCom).

 Esta especialidade reside essencialmente no plano dos sujeitos contratantes (o mutuante é uma empresa
bancária), do objeto contratual (que consiste em dinheiro legal ou escritural, investindo
fundamentalmente o cliente mutuário na propriedade da quantia mutuada) e da sua finalidade (ficando
frequentemente o mutuário obrigado a utilizar a quantia mutuada apenas para fins legais ou contratuais
predeterminados).

O mútuo distingue-se de comodato de uma forma muito simples:

 No comodato, quem empresta uma coisa, recebe-a de volta;


 No mútuo, há uma transferência de propriedade. O mutuário é obrigado a restituir, mas não restitui a
mesma coisa, antes restitui “outro tanto do mesmo género e qualidade” (art. 1142º in fine).

Em relação ao mútuo bancário para além do mutuante ser uma empresa bancária, um banco, encontramos
como objeto contratual dinheiro (legal ou escritural) e não uma outra coisa fungível!

No caso do mútuo civil, tem-se entendido maioritariamente que este é um negócio real quanto à constituição,
e portanto só se dá a constituição do mútuo com a entrega da coisa (art. 1144º). Relativamente ao mútuo
bancário, a leitura tem sido diferente: para além do mutuante ser um banco, encontramos como objeto do
mútuo não um bem ou outra coisa fungível, mas dinheiro.

O empréstimo bancário é uma modalidade de empréstimo mercantil (art. 394º e ss).

 Se o empréstimo é mercantil, exige-se que a coisa cedida seja destinada a qualquer ato mercantil (art.
394º e ss); e o art. 396º vem aligeirar as exigências em matéria de prova

 O empréstimo bancário, ao invés, não tem como pressuposto que a coisa cedida seja destinada à prática
de um ato mercantil. Não tem essa exigência porque contamos com uma norma, o art. 362º “São
comerciais todas as operações de bancos tendentes a realizar lucros sobre numerário, fundos públicos ou
títulos negociáveis (…) ”. Este artigo considera os empréstimos bancários, atos objetivos de comércio sem
que a coisa cedida seja destinada a um ato mercantil.

83
O art. 1143º estabelece uma série de regras para o mútuo civil, mas que não valem para o mútuo bancário,
porque temos o DL 32 765 e 344/78.
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

O regime deste contrato encontra-se disperso por um conjunto heterogéneo de normas legais

a. Assim, quanto à sua formação, os empréstimos bancários estão sujeitos a mera forma escrita, qualquer
que seja o seu valor (artigo único do Decreto-lei 32 765 de 1943), sem prejuízo da exigência de forma
especial em determinadas modalidades especiais de mútuo (escritura pública ou documento particular
autenticado nos mútuos garantidos com consignação de rendimento ou hipoteca imobiliária voluntária,
nos termos do art. 660º e 714º CCiv; cf. todavia, arts. 1º e 2º Decreto-lei 255/93).

b. Quanto ao seu conteúdo, os empréstimos podem revestir diferentes modalidades, algumas das quais com
relevância na sua disciplina jurídica:

 Segundo o critério do seu vencimento, os empréstimos podem ser de curto, médio e longo prazo,
consoante, respetivamente, se vencem em prazo inferior a 1 ano entre 1 e 5 anos, ou superior a 5
anos (Decreto-lei 344/78);

 Segundo o critério das suas garantias, os empréstimos podem ser caucionados ou a descoberto,
consoante o sue cumprimento é ou não assegurado por garantias pessoais ou reais;

 E segundo o critério do número de mutuantes, os empréstimos podem ser simples ou sindicados,


consoante são negociados por um ou vários bancos consorciados, no caso de montantes
particularmente elevados.

c. Por outro lado, tal como empréstimo mercantil, o empréstimo bancário é tipicamente um negócio
oneroso, vencendo juros: as taxas de juro encontram-se atualmente liberalizadas, sendo fixadas por
acordo entre instituição de crédito e o mutuário, podendo ser fixas ou variáveis (maxime, por referencia a
índices, v.g. Euribor, Ribor) e podendo ser pagas numa única ou em várias prestações, periodicamente, no
termo do contrato, por desconto no capital.

Outras especialidades relevantes incluem a permissão de se convencionar a sua cobrança antecipada


em operações de desconto de letras, extratos de fatura e warrants e a capitalização de juros vencidos
há mais de 3 meses (art. 5º/1/6) e ainda a cobrança de uma sobretaxa supletiva de 2% (art. 7º/1/3 do
DL 344/78).

d. Finalmente, no que concerne à sua extinção, retenha-se ainda que a revogação do empréstimo bancário
por parte do cliente mutuário pressupõe a restituição da quantia mutuada ao banco mutuante.

2. Abertura de crédito

Designa-se por abertura de crédito o contrato pelo qual o banco (creditante) se obriga a colocar à disposição
do cliente (creditado) uma determinada quantia pecuniária (acreditamento ou “linha de crédito”), por tempo
determinado ou não, ficando este obrigação ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respetivos
juros e comissões

Basicamente, o que o banco faz é disponibilizar o acesso a uma quantia pecuniária. Os termos dessa
disponibilidade vão variar consoante o que for convencionado.

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Direito Comercial I

Este contrato desempenha uma forte função prática, servindo os interesses de ambas as partes.

 Para o creditado, ele assegura de antemão a disponibilização dos fundos necessários para concretizar um
determinado negócio em vista em condições financeiras e operacionais mais vantajosas do que no caso um
empréstimo bancário (que implicaria o pagamento imediato de juros, além de lhe permitir mobilizar o
montante disponibilizado na estrita medida das suas necessidades).

 Para o creditante, ele assegura o encaixe de uma remuneração sem risco, consistente na comissão de
abertura de crédito acrescida, relativamente aos fundos disponibilizados não utilizados, de uma comissão
de imobilização.

Este contrato pode revestir diferentes modalidades:

a. De acordo com o critério da sua realização, a abertura pode ser simples ou em conta-corrente,
consoante o crédito disponibilizado é mobilizável de uma só vez ou em tranches, incluindo a faculdade
de renovação automática de “plafond” de crédito mediante entradas.

 Pode estabelecer-se que o contrato se renova de cada vez que o cliente realizar pagamentos
para fazer baixar o valor que estava em dívida; é possível haver essa renovação da linha de
crédito;

b. Segundo o critério das suas garantias, a abertura pode ser caucionada ou a descoberto, consoante o
cumprimento das obrigações do cliente creditado seja ou não assegurado por garantias reais ou
pessoais.

O contrato de abertura de crédito constitui um contrato atípico, sem regime legal próprio, embora nominado
(art. 362º CC): trata-se, todavia, de um contrato socialmente típico, sedimentado na praxis comercial e
bancária (mormente, cláusulas contratuais gerais e usos bancários).

Na abertura de crédito vamos ter de recorrer ao regime de mútuo, que é o tronco de várias operações de
crédito.

Assim, quanto à sua formação, muito embora não sujeito a qualquer exigência legal especial (art. 219º CCiv), a
prática bancária subordina a sua celebração invariavelmente a documento escrito ou mesmo, em certos casos
especiais, a forma mais solene (v.g. abertura de crédito associada a garantias hipotecárias).

Quanto ao seu conteúdo, o contrato é fonte de determinados direitos e deveres: entre estes, destacam-se a
obrigação de disponibilização da soma pecuniária por parte do banco creditante – a qual pode ser cumprida
através de prestações de tipo diverso (v.g. entrega direta de dinheiro, descontos bancários, pagamentos de
cheques sacados pelo creditado), podendo as partes estipular livremente pressupostos ou limites à sua
realização) – e a obrigação de pagamento de comissões e juros pelo cliente creditado (art. 5º/2 DL 344/78) não
sendo inusual, a prestação de garantias de reembolso do crédito por parte deste.

NOTA: Estas aberturas podem ser convencionadas de forma que a quantia seja disponibilizada numa conta bancária que
depois pode ser movimentada. E isto pressupõe uma série de contratos, desde logo, um contrato de abertura de conta.
Pode também pressupor um contrato ou convenção de cheque (contrato que cliente celebra com o banco). Pode ser
também uma abertura de crédito para o desconto de uma letra – e aqui já combinamos este contrato com títulos de credito.
Por exemplo, imaginemos que o cliente de um banco é fornecedor de uma determinada entidade no âmbito de uma venda
de mercadoria, a crédito. Sacou-se uma eta, que o cliente aceitou, com data de vencimento de 3 meses (pagável em 3
meses). O cliente pode aceitar usar essa letra de câmbio de um contrato de abertura de crédito para descontar a letra junto
do banco e receber o dinheiro

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

3. Crédito documentário

Designa-se de crédito documentário o contrato pelo qual um banco (emitente), a pedido de um cliente
(ordenante), se obriga, mediante negócio unilateral (carta de crédito), a pagar ou mandar pagar uma dada
quantia pecuniária um terceiro (beneficiário) contra a apresentação de documentos.

O crédito documentário desempenha uma função relevantíssima na contratação mercantil internacional,


reforçando as garantias e segurança das transações comerciais.

Assim, por exemplo, no âmbito de uma compra e venda de mercadorias entre empresários sedeados em
diferentes países, o comprador ou importador ordena ao seu banco que abra crédito documentário a favor do
vendedor ou exportador, na sequência do que o a banco emite uma carta de crédito comercial em favor deste
último, nos termos da qual o emitente procederá ao pagamento ao vendedor contra a entrega por este àquele
de documentação que titule a existência e conformidade contratual das ditas mercadorias.

O banco tem como cliente o comprador, o comprador contrata com o seu banco que este (o banco) irá realizar
um pagamento ao vendedor, quando o vendedor entregar ao banco os documentos comprovativos da entrega
da mercadoria ao transportador.

Normalmente temos 3 contratos a funcionar em paralelo: o contrato de compra e venda, o contrato de


crédito documentário e contrato de compra e venda de transporte. E por vezes temos um quarto: contrato de
seguro.

Normalmente, este documento que o banco emitente vai emitir (negócio unilateral a favor do vendedor) é um
documento em que o banco se obriga a pagar, sem verificar a natureza das relações ou se há vícios ou não, se
houve incumprimento ou não... etc. O que está convencionado é que estas cartas são de carácter
independente e autónomo (pode não ser assim).

E isto serve para dar segurança, na medida em que o vendedor quando recebe aquela carta pode ficar
descansado; pode expedir mercadoria, sabendo que se apresentar os documentos ao banco, vai receber a
quantia devida.

O banco emite essa carta de crédito a favor do exportador, afirmando que se apresentar os documentos
especificados, paga a quantia devida, independentemente das relações entre o vendedor e o comprador.

Este contrato pode assumir diferentes modalidades:

 De acordo com o critério do poder do ordenante anular a ordem de pagamento, o crédito


documentário diz-se revogável ou irrevogável (o qual constitui a regra, já que apenas neste último
caso funciona como uma garantia de pagamento);

 De acordo com o critério do tipo de utilização do crédito documentário, este pode ser à vista, por
aceite, por pagamento diferido ou por negociação.

Contrato atípico e inominado, o regime do crédito documentário encontra-se fundamentalmente previsto nas
chamadas “Regras e Usos Uniformes Relativos aos Créditos Documentários” elaboradas pelas CCI: ilustração
lídima do relevo da “lex mercatoria” enquanto fonte juscomercial emergente, tais normas consubstanciam hoje
uma verdadeira disciplina jurídica uniforme e de vocação universal sobre a matéria.

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Direito Comercial I

Este regime é complexo:

a. Quanto à sua celebração, o crédito documentário tem sempre na sua origem um contrato comercial de
base, usualmente, internacional (maxime, compra e venda), que estipula a vontade das pares de a ele
recorrerem como forma de pagamento e garantia.

b. Relativamente ao seu conteúdo, o contrato abrange uma tríplice ordem de relações jurídicas: a relação
entre o comprador (ordenante) e vendedor (beneficiário); a relação entre comprador e banco (emitente)
e a relação entre banco e vendedor.

Normalmente, o banco emitente está situado no país do importador, e isso pode criar alguma desconfiança
junto do exportador. Por esse motivo, frequentemente intervêm outros bancos.

Podemos ter um banco no país do vendedor/exportador, meramente notificador, apenas notificando o


vendedor que a carta de crédito foi emitida; mas esse banco pode ser algo mais, pode ser confirmador: banco
pode confirmar a carta de crédito, e ao confirmar, está a obrigar-se a pagar se o banco emitente não pagar.

Podemos ter ainda um outro banco, um banco que intervém por conta do vendedor. E neste caso, este banco
que intervém por conta do vendedor entra em contacto com o banco emitente ou com o banco confirmador,
dizendo que tem junto de si os documentos e que é ele que vai apresentar documentos ao banco emitente. As
relações passam a operar apenas entre bancos.

Isto pressupõe também que no contrato de compra e venda se estabeleçam várias exigências e requisitos para
que este contrato de crédito documentário seja celebrado. Exigências, por exemplo, quanto à qualidade dos
bancos, quanto ao seu grau de confiança. Se estamos a exigir na compra e venda a intervenção de um banco
emitente, é importante que o banco não seja recente, que não tenha capitais “de um país qualquer”. É
importante atender à sua qualidade e ao seu grau de confiança; o banco não deve ser desconhecido do
comércio internacional.

Relativamente aos termos em que o transporte é celebrado:

É muito frequente recorrer-se a outras cláusulas-tipo do leque de cláusulas disponibilizadas pelas CCI. A CCI é
também responsável pela elaboração e atualização de cláusulas muito importantes, que são as Incoterms.
Estes incoterms são termos que não substituem compra e venda internacionais de mercadorias, mas são
termos que são utilizados para regular aspetos da compra e venda de mercadorias internacionais.

Estes termos resolvem o problema da transferência do risco: para o vendedor quanto mais cedo se transfere o
risco para comprador, melhor. Estes termos regulam também a questão da entrega: o momento em que se
considera cumprida obrigação de entrega.

Se utilizarmos um destes termos, temos de conhecer muito bem o regime que lhe está associado, que resulta
dos documentos elaborados pela CCI.

Os Incoterms dividem-se em 4 grandes grupos e cada um é identificado por uma letra:

a) Eterms
b) Fterms
c) Cterms
d) Dterms

Cada uma destas letras significa que à medida que avançamos, cada vez que passamos para letra seguinte,
aumenta o conjunto de obrigações do vendedor. Aumenta também o risco que está a assumir até que
mercadoria chegue ao comprador.

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Direito Comercial I

E isto vai também definir quem tem interesse em celebrar contrato de seguro em relação a quê
 Se o risco se transfere para comprador até determinado momento, até ao momento em que o risco se
transfere, quem tem interesse em fazer seguro é o vendedor; quando se transfere, quem tem interesse
em fazer seguro é comprador.

Falamos de risco pela perda ou avaria da mercadoria. É muito importante definir quando se transfere o risco.
Isto não tem a ver com questões de cumprimento ou incumprimento, mas com questões de perda ou avaria.

Uma cláusula Eterm (EXW- exwork): para o comprador é tudo menos desejável colocar um termo destes no
contrato de compra e venda. Se assim fosse, o vendedor cumpre a sua obrigação de entrega ao deixar, por
exemplo, mercadorias no meio da selva, e o comprador é que tem o risco de ir busca-las. Ele é que terá de
negociar o transporte, o que não se coaduna com um crédito documentário, porque nesta ótica quem tem de
tratar do transporte é o comprador...

Uma cláusula Cterm seria mais adequada, que significa carrige. A cláusula que vai adequar-se a um contrato de
compra e venda com recurso a crédito documentário é uma cláusula que obrigue o vendedor a colocar a
mercadoria junto do transportador e a contratar o transporte. O vendedor fica obrigado a arranjar um
transportador recebendo em troca documentos que permitam ao comprador português levantar as suas
mercadorias quando chegar a um porto português. O que normalmente é negociado é que o transporte é
contratado pelo vendedor, de forma a que o vendedor, quando entrega as mercadorias ao transportador,
receba um documento que permita depois ao comprador levantar mercadorias do local e destino.

É frequente negociar um transporte marítimo em regime de conhecimento de carga: quando vendedor


entrega mercadorias para transporte, ao transportador, vai receber em troca o conhecimento de carga. Nesse
conhecimento de carga, (1) o capitão do navio irá eventualmente colocar reservas se entender que mercadoria
não está em condições; (2) e entender que está em condições, considera o conhecimento de carga limpo.
Quando é emitido limpo, sem reservas, então isto prova que, pelo menos de forma aparente, a mercadoria não
tinha vícios. Isto é fundamental.

Se o transportador, através de capitão, emite conhecimento com reservas, numa situação destas o banco
emitente da carta de crédito não deve pagar aquela quantia. Quando se deu entrega ao transportador, a
mercadoria já não estava em condições.

Outra questão: como é que a mercadoria é transportada? Dentro de contentor?

O transporte de contentores tem um risco sério: muitas vezes o vendedor quando vai levar o contentor ao
transportador tem muitas vezes de deixar o contentor num parque de contentores.

Se o vendedor celebra um contrato em que o risco se transfere para comprador só quando a mercadoria é
entregue ao transportador, há uma janela temporal em que o vendedor tem o risco a correr pela sua conta:
na realidade ele já não tem controlo sobre a mercadoria mas o risco conta por sua conta até entrega ao
transportador.

4. Locação financeira

Designa-se locação financeira o contrato pelo qual uma das partes (locador) se obriga, mediante remuneração,
a ceder à outra (locatário) o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida para o efeito pelo
primeiro a um terceiro (fornecedor), ficando o último investido no direito de a adquirir em prazo e por preço
determinados – art. 1º Decreto-lei 149/95

 É um contrato em que há concessão de gozo com possibilidade de se tornar proprietário no fim do


prazo acordado.

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Direito Comercial I

Este contrato de locação é um contrato de financiamento, permitindo ao locatário aceder ao gozo do bem sem
necessidade de gastar desde o início o custo correspondente. As rendas que vão sendo pagas, serão utilizadas
para amortizar o custo do bem no caso de, no final do contrato, querer adquiri-lo.

Nota: a aquisição do bem, ou construção do bem tratando-se de um imóvel, foi previamente obtida pelo
locador. O contrato em causa é um contrato em que a coisa que vai ser objeto de locação é uma coisa que foi
comprada ou construída por indicação do locatário. Este é um aspeto distintivo da locação em geral. Vamos ter
aqui uma relação que envolve vários intervenientes: antes de mais, o fornecedor ou construtor do bem, que
será normalmente contactado pelo interessado em ter o gozo do bem, para obter informações sobre o preço,
características do bem…

A locação financeira é um instrumento de financiamento com vantagens evidentes:

 Para o locador, o qual, convocando a propriedade da coisa durante a vigência contratual, beneficia de
uma garantia superior àquelas que usufrui por regra nas demais operações creditícias ativas;

 Para o locatário, já que representa uma forma de financiamento integral da coisa utilizada sem
endividamento direto, além das diversas vantagens contabilísticas e fiscais associadas; e para o
fornecedor, uma forma suplementar particularmente eficaz de escoamento dos bens que produz ou
comercializa.

Entre os seus inconvenientes, saliente-se o custo mais elevado em face de outras modalidades alternativas de
crédito e financiamento bancário (maxime, empréstimo bancário).

O contrato de locação financeira é um contrato nominado e típico, previsto e regulado no Decreto-lei 149/95,
sendo igualmente relevante o Decreto-lei 72/95 (relativo às sociedades de locação financeira) e a convenção de
Otawa (para contratos internacionais)

Este contrato constitui uma operação que, celebrada entre um banco ou instituição creditícia especializada
(sociedade de locação financeira (art.3º/g) e 4º/1/b) RGIC)) e uma pessoa singular ou coletiva, é caracterizado
pelos seguintes elementos fundamentais:

 A obrigação do locador adquirir ao fornecedor a coisa imóvel ou móvel indicada pelo locatário (mediante
celebração do contrato de compra e venda), concedendo temporariamente a este último o gozo da
mesma;
 A obrigação do locatário pagar ao locador uma “renda”, que funciona simultaneamente como retribuição
pelo serviço financeiro e amortização do financiamento prestados
 E o direito do locatário comprar a coisa pelo respetivo preço residual no termo do contrato.

Este contrato pode revestir numerosas modalidades. Assim, a locação financeira pode ser:

1. Imobiliária ou mobiliária, tendo por objeto bens imóveis ou móveis v.g. Aviões, navios, automóveis;
2. Material ou imaterial, incidindo sobre bens corpóreos ou incorpóreos, v.g. Empresas, marcas, ações,
sistemas informáticos;
3. Empresarial ou consumista, consoante celebrada por empresa ou entidade em conexão com a sua
atividade profissional ou por consumidor;
4. Total ou parcialmente amortizada, consoante a soma dos pagamentos realizados pelo locatário cobre a
integralidade ou apenas parte do “preço” da operação de financiamento;
5. Normal ou restitutiva, consoante o bem objeto do contrato foi adquirido a um fornecedor ou ao próprio
locatário.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Admite-se hoje o leasing restitutivo: o locatário, antes da locação, vende o bem ao locador. Depois, celebram
um contrato de leasing.

Durante muito tempo, discutiu-se se esta figura por causa da proibição do pacto comissório (que permite ao
credor garantido fazer sua a coisa objeto de garantia): achava-se que se podia usar este leasing restitutivo para
contornar aquela figura. Do que neste caso, a transferência da titularidade para o credor faz-se antes e
independentemente do incumprimento. Entende-se, portanto, que não há tentativa de contornar a proibição
do pacto comissório.

Finalmente, é também significativamente vasto o seu regime jurídico:

1. O contrato de locação financeira de bens móveis está sujeito a forma escrita (documento particular) – art.
3º/1

SOVERAL MARTINS considera que esta exigência formal prevalece sobre a exigência que resulta do Código
de Registo de Bens Móveis, e portanto é só esta a exigência (que vale para móveis sujeitos ou não a
registo)-

No caso de bens imóveis, apenas se exige adicionalmente o reconhecimento presencial das assinaturas
das partes no caso de bens imóveis, exceto se estas forem realizadas diante de oficial de registo – art.
3º/2

Está também sujeito à competente publicidade registral, na locação financeira de bens imóveis e móveis
registáveis (art. 3º DL 149/95, art. 2º/1/l) CRPred);

2. «O prazo de locação financeira de coisas móveis não deve ultrapassar o que corresponde ao período
presumível de utilização económica da coisa. O contrato de locação financeira não pode ter duração
superior a 30 anos, considerando-se reduzido a este limite quando superior». (art. 6º/1/2).

Na falta de convenção entre as partes, não havendo estipulação de prazo, o contrato de locação
financeira considera-se celebrado pelo prazo de 18 meses ou 7 anos consoante se trate de coisas móveis
ou imóveis (art. 6º/3)

3. O conteúdo contratual abrange diversos direitos e deveres, que se encontram exemplificativamente


enunciados na lei (art. 9º e 10º);

Art. 9º/b): é obrigação do locador conceder o gozo do bem para fins a que se destina. Conceder gozo não
é assegurar o gozo da coisa durante a vigência de todo o contrato.

Art. 10º/j): muito importante é justamente a obrigação de efetuar seguro do bem locado.

Porque assim é, o locatário vai ter direitos mesmo em relação ao próprio fornecedor ou empreiteiro - art.
13º: O locatário pode exercer contra o vendedor ou o empreiteiro, quando disso seja caso, todos os direitos
relativos ao bem locado ou resultantes do contrato de compra e venda ou de empreitada. Quem celebrou
a compra e venda com o fornecedor ou empreiteiro foi o locador. Se a coisa sofre de um qualquer vício, o
locador só se obriga a conceder o gozo, não a assegurá-lo. Por isso mesmo, o locatário tem a possibilidade
de demandar o fornecedor, vendedor daquele bem, para exercer os direitos que resultam do contrato de
compra e venda.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

4. “Tratando-se de bens de equipamento, é permitida a transmissão entre vivos, da posição do locatário nas
condições previstas pelo art. 115º do DL 321-B/90 (…)” – art. 11º

Nota: esta remissão está hoje desatualizada! Este artigo era de um DL que consagrava o regime jurídico
do arrendamento urbano. Este art. 115º tratava do regime da transmissão da posição de arrendatário em
caso de trespasse de estabelecimento comercial ou industrial.

Em regra, o locatário de um bem de equipamento pode transmitir a posição de locatário em caso de


trespasse do seu estabelecimento comercial ou industrial sem necessidade ede consentimento do locador
(art. 1124º). Isto é assim em regra! Só volta a surgir a possibilidade de o locador se opor à transmissão da
posição do locatário se (nº3) o locador puder provar que o cessionário que vai adquirir a posição, não
oferece garantias bastantes à execução do contrato.

5. O contrato se pode extinguir por caducidade e resolução. O contrato pode ser resolvido por qualquer das
partes com fundamento no incumprimento da outra parte (art. 17º); e o legislador bastou-se com a mera
prova da respetiva comunicação para efeitos de cancelamento do registo (art. 17º/2).

E a praxis contatual consagra frequentemente, com o beneplácito da jurisprudência portuguesa maioritária, que para
além do dever de restituição do bem locado, a obrigação de pagamento das rendas vencidas do bem locado, a
obrigação de pagamento das rendas vencidas até à efetiva restituição e ainda de 20% do valor das rendas vicendas.

Embora se trate de um contrato de locação na verdade, o regime geral de resolução por incumprimento
no geral é o regime que resulta do Código Civil. A lei estabelece que o credor tem a possibilidade de
converter a simples mora em incumprimento definitivo através da fixação de um prazo de cumprimento

O art. 18º prevê os casos específicos de resolução: dissolução, liquidação ou verificação de qualquer dos
fundamentos de celebração de falência do locatário.

 Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de
compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de
cancelamento do registo da locação financeira, a efetuar por via eletrónica sempre que as
condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua
entrega imediata ao requerente – art. 21º

O regime visa dar celeridade ao tratamento dos casos em que há incumprimento por parte do locatário. O
art. 21º trata das situações em que resolvido ou extinto o contrato, se o locatário não restitui o bem,
devendo fazê-lo, é possível requerer uma providência cautelar para obter rapidamente a entrega.

Nota final: a locação financeira é um contrato muito utilizado no mundo dos big players. É um contrato muito
utilizado como leasing internacional – convenção Otawa

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

5. Cessão financeira – factoring

Denomina-se cessão financeira o contrato pelo qual uma das partes cede ou se obriga a ceder a outra
(cessionário financeiro ou factor), mediante remuneração, a totalidade ou parte dos créditos de curto prazo de
que é titular sobre um ou mais terceiros (devedor cedido).

Tal como a locação, a cessão financeira é um mecanismo jurídico de financiamento bancário extremamente
divulgado, já que, pese embora alguns inconvenientes (designadamente, os custos inerentes às comissões de
cobrança e garantia e a perde de autonomia da gestão financeira e comercial do aderente), apresenta algumas
importantes vantagens para o aderente, desempenhando simultaneamente uma função de financiamento (ao
permitir a transformação imediata de créditos em fundos líquidos), de segurança (mormente no factoring
próprio ou sem recurso, ao permitir a transferência para o facto do risco do incumprimento ou insolvência dos
devedores) e de simplificação (libertando-o de tarefas e custos acessórios relacionados com a gestão e
cobrança de créditos)

O contrato de cessão financeira é um contrato legalmente atípico, embora nominado e socialmente típico.

Na verdade, o legislador português, no âmbito da disciplina das chamadas sociedades de “factoring” prevista
no Decreto-lei 179/95 limitou-se, outrossim, a atribuir-lhe um nomen iuris, a delimitar genericamente o objeto,
mediante a definição de atividade de cessão financeira ou factoring (art. 2º/1) e a estabelecer alguns aspetos
mínimos de regime jurídico daquele contrato (art. 7º e 8º)

 O conteúdo de um contrato de factoring identifica-se através da caracterização da própria atividade de


factoring – art. 2º

Vamos ter:

a. Factor, o sujeito a quem vão ser cedidos os créditos (cessionário)


b. Cedente de crédito, que é designado de aderente;
c. Devedor: quem tem de cumprir aquele crédito que está a ser documentado, que está a ser decido a
favor do factor.

Conquanto assente sobre a figura geral da cessão de créditos, cujas regras lhe são, em princípio,
supletivamente aplicáveis (art. 577º e ss CCiv), este contrato exibe características distintivas próprias: no
essencial encontramo-nos predominantemente diante de um contrato-quadro, celebrado entre um banco ou
instituição creditícia especializada (sociedade de factoring: cf. art. 3º/h) e 4º/b) RGIC) e uma empresa, que
regula e baliza a celebração futura de uma multiplicidade de contratos individuais de cessão de créditos entre
cedente e cessionário financeiros-

A cessão financeira ou factoring pode revestir diferentes modalidades:

 Fala-se assim em cessão financeira doméstica ou internacional, consoante o aderente se obriga a ceder
ao “factor” créditos decorrentes de contratos celebrados com um sujeito do mesmo ou de outro Estado;

 Incompleta ou completa, consoante o factor apenas se dispõe a prestar ao aderente os seus serviços de
cobrança e gestão de créditos ou também um serviço de financiamento, concedendo-lhe antecipações
sobre o valor nominal dos créditos cedidos;

 Própria ou imprópria, também designada sem ou com recursos consoante o facto assume o risco de
incumprimento dos devedores cedidos ou não;

 Aberta ou fechada, consoante postula ou não a notificação do devedor cedido pelo aderente.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Portanto, a cessão de créditos pode ser feita com recurso ou sem, com antecipação ou sem.

 O que é mais útil para o cedente/aderente, é que a cessão de créditos seja sem recurso e com
antecipação. Se é sem recurso, o cessionário/factor, depois de não conseguir cobrar créditos junto do
devedor, não pode vir exigir do cedente.

 O cedente terá mais interesse numa cessão com antecipação, porque recebe antes do vencimento a
totalidade ou parte do montante constante dos documentos, descontando logo à cabeça o serviço
prestado pela sociedade de factoring. Evidentemente que também pode ser feito esse contrato de
factoring sem essa antecipação

Finalmente, no que concerne ao seu regime jurídico, são múltiplos os aspetos a considerar:

 Quanto à sua formação, os contratos de cessão financeira devem revestir forma escrita (art. 7º/1 ab
initio), consistindo caracteristicamente em contratos de adesão sujeitos ao controlo da LCCG.

 Quanto ao seu conteúdo, elas devem integrar a disciplina do conjunto das relações entre o factos e o
aderente (art. 7º/1 in fine), de entre os quais merecem destaque:

 Por parte do aderente, as obrigações de exclusividade (apenas pode ter um único factor), de
notificação (dos devedores cedidos) e de remuneração (maxime, comissões de cobrança);

 E, por parte do factor, as obrigações de prestação de serviços e cobrança, gestão de créditos


e outros de creditação em conta-corrente do aderente dos montantes dos créditos vencidos,
de antecipação de pagamentos de créditos não vencidos (art. 8º/2/3 DL 179/95) e de
assunção do risco de incumprimento do devedor cedido (salvo cláusula de cessão com
recurso ou pro solvendo)

Há duas coisas que são quase sempre convencionadas:

1- Exclusividade: o factor exige muitas vezes exclusividade

2- Obrigação de globalidade, de garantir a globalidade: garantir que não é só com aquele factor que vai
negociar, como é com ele que vai ceder todos os seus créditos. Muitas vezes o factor quer limitar a
possibilidade de o cedente escolher clientes.

Também há uma convenção internacional para factoring internacional: é uma convenção adotada para
factoring internacional mas mais uma vez tem muita importância no comércio internacional.

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Direito Comercial I

(5) CONTRATOS DE INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA

1. Aspetos gerais
1.1. Noção

Denominam-se de intermediação financeira os negócios jurídicos entre um intermediário financeiro e um


cliente (investidor) relativos à prestação de atividades de intermediação financeira.

Estes contratos estão regulados no Código dos Valores Mobiliários

Estes contratos encontram-se previsto e regulados autonomamente nos arts. 321º a 343º. O seu estudo
coenvolve duas ordens de considerações fundamentais – os contratos de intermediação em geral e em
especial. Antes de passarmos à análise dos vários tipos contratuais singulares, cumpre deixar brevemente
alguns traços gerais.

1.2. Características

Desde logo, os contratos de intermediação financeira constituem uma categoria contratual autónoma: com
efeito, os diferentes tipos contratuais individuais previstos nos arts. 325º e ss CVM representam um conjunto
ou classe de contratos financeiros que se encontram subordinados a um regime jurídico mínimo comum.

Importa sublinhar que se trata indubitavelmente de contatos comerciais: não apenas os jusfinanceiros em geral
tiveram a sua origem histórica no Código Comercial, como os contratos de intermediação representam hoje
verdadeiros contratos de empresa, na medida em que são (quase) exclusivamente celebrados por empresas
constituídas sob a forma de instituições de crédito (art. 2º RGIC), de empresas de investimento (art. 293º/2
CVM) e de sociedades gestoras de fundos de investimento mobiliário (art. 29º RJOIC)

Quanto aos respetivos sujeitos, estes contratos caracterizam-se por serem necessariamente concluídos, em
regra, entre intermediários financeiros (art. 289º/2 CMV) – sem prejuízo da possibilidade da sua
representação por “agentes vinculados” em determinadas atividades (art. 292º/b), art. 294º-A a 294º-D do
CVM) e a sua conclusão excecional por outras pessoas singulares ou coletivas (maxime as contempladas no art.
289º/3 CVM) – e investidores ou clientes.

 Com a alteração de 2018 do CVM, já não se fala em investidores qualificados ou não qualificados, mas
em investidores profissionais (art. 30º CVM), investidores não profissionais ou contraparte elegível
(por referência ao art. 317º) (!)

Basicamente o que está previsto é que a tutela que é conferida pela lei aos investidores não profissionais é
uma tutela muito maior, muito mais intensa, do que a tutela conferida a um investidor não profissional ou à
contraparte elegível.

Há aqui um regime que está pensado para tratar de forma diferente o que é diferente.

Esta proteção visa combater algo que é muito grave, que é a assimetria de informação. Há quem acredite
piamente no funcionamento das mercadorias, que as mercadorias livres são sempre eficientes. O grande
problema é um problema de assimetria das informações, porque há sempre quem tenha mais informação do
que os outros.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Quanto ao seu objeto, estes contratos exibem duas notas comuns fundamentais.

 De um lado, enquanto veículos instrumentais do exercício de intermediação financeira, tais contratos


têm por objeto imediato a prestação de serviços de intermediação, sendo por isso reconduzíveis, na
sua maioria, ao mesmo macrotipo negocial (prestação de serviços) e profundamente tributários da
disciplina geral da intermediação financeira (art. 289º ss CVM).

 De outro lado, tais contratos têm por objeto mediato não apenas os tradicionais valores mobiliários
mas genericamente qualquer tipo de instrumento financeiro, incluindo ainda instrumentos
monetários e instrumentos derivados.

O intermediário é alguém que pode atuar nessa qualidade. As atividades de intermediação financeira vêm
identificadas no CVM, nos arts. 289º e ss.

1.3. Espécies

Servindo-nos da própria classificação legal das atividades de intermediação financeira (art. 289º CVM)
podemos agrupar os contratos de intermediação financeira em dois grandes conjuntos:

a) Os contratos de investimento têm por objeto a prestação de serviços de investimento em


instrumentos financeiros. Incluem-se, entre outos, os contratos elativos a ordens para operações
sobre instrumentos financeiros (arts. 325º e ss CVM); gestão de carteira (arts 335º e s. CVM),
assistência (art. 337.º CVM), colocação (art. 338º CVM), tomada firme (art. 339º CVM), negociação
por conta própria (art. 346º CVM), consultoria para investimento (arts. 294º, 301º, 320º CVM).

b) Os contratos auxiliares têm por objeto a prestação de serviços auxiliares dos anteriores (art. 291º
CVM), incluindo os contratos de assistência (art. 337º CVM), de recolha de intenções de
investimento (art. 342º CVM), de registo e depósito (art. 343º CVM), de empréstimo (art. 350 CVM),
de consultoria empresarial (art. 291º/d) do CVM) e de análise financeira (art. 12º- A e ss, 304º-D do
CVM).

1.4. Regime jurídico

Os contratos de intermediação financeira encontram-se, desde logo, balizados pelo regime geral do exercício
da atividade financeira, incluindo os variados deveres gerais que impendem sobre os intermediários
financeiros: entre estes, refiram-se os deveres de categorização dos investidores (arts. 30º, 110º-A, 317º a 312-D CVM),
os deveres de boa fé, diligência, lealdade, transparência e segredo profissional (art. 304º CVM), os deveres de organização
empresarial, incluindo a obrigatoriedade de sistemas de “compliance”, gestão de risco e auditoria interna (arts. 305º e ss),
etc. [arts. 306º e ss até 316º]

Por outra banda, estes contratos estão ainda sujeitos a um regime específico ou próprio, de aplicação mais ou
menos transversal.

 Assim, no que concerne aos contratos de intermediação celebrados com investidores não qualificados,
o legislador prescreve a forma escrita, impõe a existência de conteúdo contratual mínimo (art. 321º-A
CVM) e consagra a admissão de contratos de adesão.

 Já no que concerne aos contratos de intermediação celebrados fora do estabelecimento, consagrou-se


um direito de arrependimento ou desistência contratual dos investidores não qualificados durante um
prazo de 3 dias após a conclusão do contrato de gestão ou ordem de execução, no caso de inexistir
anterior relação de clientela (art. 322º)

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Direito Comercial I

Enfim, em relação à generalidade dos contratos e clientes, foram ainda previstas regras próprias em sede de
informação (art. 323º a 323º-C) de responsabilidade contratual (art 324º/1) e de prescrição (art. 324º/2)

2. Contratos de investimento

2.1. Ordens sobre instrumentos financeiros

As ordens relativas a instrumentos financeiros constituem declarações negociais tendentes à celebração de


contratos de comissão, de mandato, ou de mediação entre um intermediário financeiro e um investidor para a
realização de negócios sobre instrumentos financeiros.

 São ordens que dizem respeito a operações sobre instrumentos financeiros.

 Falamos de um cliente que celebra um contrato com um intermediário financeiro para que dê
execução a uma ordem que o cliente vai dar.

Nota: podemos falar de um instrumento financeiro que é negociado, por exemplo, num mercado
regulamentado como a Bolsa de Valores. E este mercado vai exigir o funcionamento em conjugação com vários
sistemas.

a. Vamos ter um sistema centralizado que garante que há controlo sobre os instrumentos financeiros.

b. Vamos ter um sistema de negociação, que é um sistema que vai conseguir um encontro entre ofertas
(como falamos em sistemas de negociação apoiados em sistemas informáticos isto é feito em segundos).

c. E vamos ter um sistema de liquidação que vai garantir que o comprador vai chegar a quem comprou e
que quem comprou pague o que devia e o dinheiro chegue às contas de quem deve.

Temos aqui 3 sistemas a funcionar.

Sistema de negociação: se eu quiser comprar ou vender ações das carteiras de títulos que tenho em minha
titularidade, não vou ao mercado literalmente vener; tenho de arranjar quem possa justamente transformar as
minhas ordens em ofertas no sistema de negociação. É dada uma ordem a um intermediário financeiro e este
das duas uma: ou tem um poder próprio para introduzir uma oferta no sistema de negociação, ou tem de
arranjar alguém que vai atuar por sua conta.

As operações sobre instrumentos financeiros podem ser realizadas por intermédios financeiros por conta
alheia (dos clientes ou investidores: cf. art. 290º/1/a)/b)) ou ainda por conta própria (atuando aqueles como
contraparte destes: cf. arts. 290º /1/e) e art.346º CVM)

Relativamente ao primeiro dos casos, que agora nos interessa, podem distinguir-se:

 Negócios de cobertura: os quais celebrados entre intermediário e cliente têm por objeto conceder ao
primeiro os poderes necessários para celebrar negócios de execução
 Negócios de execução: os quais celebrados entre intermediário e terceiro por conta do cliente, têm por
objeto a aquisição, alienação ou outros negócios sobre instrumentos financeiros.

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Direito Comercial I

O negócio jurídico de cobertura celebrado entre intermediário e investidor, com vista à concretização dos
negócios de execução, constituirá usualmente um contrato de comissão, regido pelas normas do CVM adiante
referidas e, subsidiariamente, pelas regras gerais do contrato de comissão (arts. 266º e ss CC) e do mandato
não representativo (art. 1178º e ss CCiv)

Paralelamente, há ainda que considerar a receção e a transmissão de ordens por conta alheia (art. 290º/1/a)).

 Atividade prodrómica relativamente à negociação de instrumentos financeiros propriamente dita,


situada a montante desta, ela consubstanciar-se-á, por via de regra, num contrato de mandato
mercantil concluído entre o investidor, emissor da ordem, e o intermediário, recetor da mesma, que
se vincula a retransmiti-la a um outro intermediário financeiro que a executará.

 Mas ela pode também assumir a forma de contrato de mediação, já que nos termos do art. 290º/2 tal
atividade “inclui a colocação em contacto de dois ou mais investidores com vista à realização de uma
operação”.

Regime legal das ordens relativas a instrumentos financeiros encontra-se previsto nos arts. 325º a 334º CVM,
sendo ainda de ter presente o art. 4º/1/e) RGIC.

Salientem-se alguns aspetos deste regime:

1- As ordens dos clientes podem ser dadas por via oral ou escrita (art. 327º/2 CVM) e estão sujeitas a prazo
de validade (art. 327º-A)

2- A receção das ordens pelo intermediário financeiro deve ser imediatamente seguida da verificação da
legitimidade do ordenador e da adoção de procedimentos que permitam fixar o exato momento da
receção (art. 325º)

3- Que o intermediário tem em regra um dever de aceitação das ordens recebidas, sem prejuízo de estar
investido num poder e até dever de recursa dessa aceitação em determinadas situações previstas na lei
(art. 326º)

4- O cliente ordenador pode proceder à revogação ou modificação das ordens dadas em certos termos (art.
329º CVM)

5- O intermediário está vinculado a um conjunto de regras em matéria de tratamento das ordens dos seus
clientes que incluem a observância da prioridade cronológica da receção (art. 328º/2) e a adoção de uma
política de agregação e afetação de ordens (art. 328º-A e art. 328º-B)

6- O intermediário assume uma obrigação del credere perante o cliente, garantido o cumprimento das
obrigações assumidas pelas contrapartes dos negócios realizados em execução das ordens daquele (art.
334º)

7- E particularmente relevante, que o cumprimento das ordens deve ser realizado segundo um princípio de
execução nas melhores condições (best execution) no quadro de uma política de execução adotada pelo
intermediário e comunicada atempadamente ao ordenador (arts. 330º a 333º)

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Direito Comercial I

2.2. Colocação

Designam-se genericamente contratos de colocação os contratos celebrados entre um ou vários intermediários


financeiros e um emitente, pelo qual aquele ou aqueles se obrigam, mediante remuneração, a colocar
determinados instrumentos financeiros (maxime, valores mobiliários) no âmbito de uma oferta pública de
distribuição.

Como é sabido, as ofertas públicas de distribuição encontram-se subordinadas a um princípio geral de


intermediação financeira obrigatória: trata-se de ofertas de subscrição ou de venda, o omitente dos valores
mobiliários está vinculado a recorrer aos serviços de um intermediário financeiro para a respetiva colocação
(art. 113º/1/a).

Este serviço de colocação pode assumir 3 modalidades fundamentais, todas elas qualificadas pelo legislador
como serviços de investimento: art. 290º/1/d) – colocação simples, colocação com garantia e colocação com
tomada firme.

 No contrato de colocação simples o intermediário financeiro assume perante o emitente a obrigação


de desenvolver os seus melhores esforços tendentes à distribuição dos valores mobiliários (art. 338º):
estamos, portanto, fundamentalmente diante de uma obrigação de meios ou de diligenciado
intermediário na colocação dos valores, que não se responsabiliza pelo respetivo resultado ou
sucesso, correndo assim o risco da colocação da emissão por conta do emitente.

 No contrato de colocação com garantia, o intermediário, para além da obrigação anterior, vincular-se
ainda a adquirir para si ou para outrem, a totalidade ou parte dos valores mobiliários que não hajam
sido subscritos pelo público (art. 340º): aqui, diferentemente do caso precedente, o intermediário
assume o risco de colocação da emissão, variando apenas a sua extensão em função do alcance da
garantia (total ou parcial) e da percentagem dos valores mobiliários não colocados.

 Por último, no contrato com tomada firme o intermediário obriga-se a subscrever e adquirir de
imediato os valores mobiliários e, posteriormente, a colocar estes junto do público por sua própria
conta e risco nos termos acordados (art. 339º): também aqui o intermediário assume o risco da
emissão, só que adquirindo logo a priori e necessariamente os valores mobiliários antes da própria
colocação e não, como sucede no caso anterior, a posterior e eventualmente após tal colocação, caso
os tais valores não viessem a ser integralmente colocados.

Reflexo da complexidade operacional e financeira das ofertas públicas de distribuição, o legislador prevê
também como obrigatória a celebração de um contrato de assistência (art. 113º/a) e 337º/2) – que dá origem
a um contrato autónomo – e, numa disposição de especial relevo, consagra expressamente a possibilidade de
formação de consórcios de colocação: tais consórcios são constituídos com base num contrato de consórcio
celebrado entre dois ou mais intermediários financeiros, mediante acordo prévio do emitente cabendo ao
chefe do consórcio um papel fundamental na organização da colocação e na representação dos consortes (art.
341º)

2.3. Gestão de carteira

Designa-se por contrato de gestão de carteira o contrato celebrado entre um intermediário financeiro (gestor)
e um investidor (cliente) através do qual o último, mediante retribuição, confia ao próprio a administração de
um património financeiro de que é titular com vista a incrementar a respetiva rentabilidade.

O contrato de gestão de carteira, instrumento central de outro dos serviços de investimento (art. 290º/1/c))
encontra-se fundamentalmente previsto e regulado nos arts. 335º e 336º.

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Direito Comercial I

Economicamente, tal contrato representa um mecanismo através do qual o proprietário de uma “carteira” de
ativos financeiros, impossibilitado de a gerir pessoalmente (por falta de preparação técnica, disponibilidade ou
outra razão) opta por mandatar uma entidade profissional especialmente habilitada para a tarefa de
conservação e rentabilização.

Juridicamente, ele representa um negócio de natureza típica, sinalagmática, onerosa, forma, de adesão e
duradouro: particularmente relevante, a gestão de carteiras encontra o seu eixo operatório num mandato
mercantil, como e confirmado, não apenas pela praxis contratual como pelos próprios dados legais nacionais e
europeus (art. 199º-A/1/d RGIC, art. 1º/3 DL 163/94 e art. 4º/9 da Diretiva 2004/39/CE)

No tocante ao respetivo regime jurídico, existem diversos aspetos a considerar:

 Desde logo, a celebração de um contrato de gestão de carteira obedece, por regra, à forma escrita,
devendo ainda, atenta a sua habitual natureza de contrato de adesão, as respetivas cláusulas
contratuais gerais ser comunicadas previamente à CMVM (art. 321º/4).

Depois relativamente aos respeitos sujeitos, são partes do contrato de gestão de carteira:

 Um intermediário financeiro – maxime um banco ou sociedade gestora de patrimónios


 E um investidor – ou seja, qualquer pessoa singular ou coletiva que seja titular ou pretenda vir a sê-lo
de um conjunto de instrumentos financeiros nos quais investiu as suas poupanças.

Depois, relativamente ao objeto, o contrato vai endereçado fundamentalmente ao desenvolvimento de uma


atividade complexa de administração de bens alheios levada a cabo por um intermediário financeiro, por conta
e no interesse do cliente (objeto imediato) que incide sobre uma carteira individualizada de instrumentos
financeiros (art. 355º) (objeto mediato)

Por último, o contrato é fonte de um conjunto de direitos e deveres diversos para ambas as partes:

 Do lado do gestor, avultam as obrigações de execução diligente da prestação gestória que se configura
como uma mera obrigação de meios, e não de resultado (art. 335º), de acatamento das instruções do
cliente (art. 336º), de prestação de informação mínima (art. 312º-D) e obtenção de informação junto
do cliente por forma a realizar o juízo da adequação das operações de gestão (art. 324º-A) e de
observância de regras especiais em caso de subcontratação (art. 308º-C).

 Do lado do cliente, avulta a obrigação de remuneração, que tanto pode abranger em sentido amplo as
remunerações principais (representam a contrapartida da atividade nuclear de gestão de carteira
propriamente dita – “comissão de gestão”) como as acessórias (que visam corresponder a
determinados serviços complementares ou complexos)

2.4. Consultoria para Investimento – não explicitado na aula

Designa-se de consultoria para investimento o contrato celebrado entre um intermediário financeiro ou um


consultor em investimento mobiliário (consultor) e um cliente (consulente ou investidor) através do qual o
primeiro se obriga perante o último, mediante remuneração, à prestação de um aconselhamento
personalizado relativo a transações respeitantes a instrumentos financeiros.

O contrato de consultoria pra investimento encontra-se genericamente previsto no art. 294º CMV para além
de outras disposições contidas no mesmo diploma (art. 301º, 314º-A e 320º), em leis avultas ou em
regulamentos administrativos.

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Direito Comercial I

Figura que consubstancia no essencial uma prestação de serviços profissionais individualizados de


aconselhamento no âmbito dos produtos negociados no mercado de capitais, ela distingue-se de outras figuras
contratuais afins, designadamente, os contratos de gestão de carteira, mediação de investimento, análise
financeira e consultoria empresarial (arts. 335º, 290º, 291º/c) e d) respetivamente).

Aspetos do regime jurídico:

a. Desde logo, no que respeita aos seus sujeitos, o contrato de consultoria pra investimento, ao invés do
que acontece na maioria dos demais contratos de intermediação, pode ser celebrado, além dos
intermediários financeiros, por outro tipo de entidades: são os consultores para investimento (art.
294º/4/b)), pessoas singulares ou coletivas devidamente autorizadas e registadas junto da CMVM para
o exercício exclusivo e independente de uma atividade de consultoria para investimento em valores
mobiliários (arts. 294º/5/6, art. 301º, art. 320º CVM).

b. Por outro lado, no que tange ao seu objeto, a prestação de serviços de consultoria abrangerá, em
princípio, toda a gama de modalidades previstas no art. 485º CCiv (conselhos, recomendações,
informações), efetuada numa base individual e relativa à tomada de decisões de investimento ou
desinvestimento em instrumentos financeiros

c. Finalmente, quanto ao seu conteúdo, o legislador previu expressamente, para além da subordinação
do consultor aos princípios e deveres gerais integradores do estatuto jurídico e contratual dos
intermediários financeiros (arts. 304º e ss, art. 312º e ss, art. 321º e ss), um conjunto de deveres
especiais de informação, seja perante consulente, seja perante a autoridade de supervisão.

2.5. Negócios por conta própria

Dizem-se negócios por conta própria os negócios sobre instrumentos financeiros, mormente contratos, que são
concluídos por um intermediário financeiro como contraparte de um seu cliente.

A atividade negocial dos intermediários financeiros no âmbito do mercado de capitais pode ser realizada por
conta alheia ou própria:

 No primeiro caso, o intermediário atua por ordem e conta dos seus clientes, assumindo aquele a sua
função primordial de mediação entre oferta e procura no mercado de capitais

 No segundo caso, pelo contrário, o intermediário atua por sua própria conta e risco, repercutindo-se
os efeitos jurídicos e económicos dos negócios sobre o seu próprio património, com vista à realização
de uma pluralidade de finalidades.

A negociação por conta própria traduz-se usualmente no cruzamento de ordens dos clientes com a carteira
própria do intermediário, intervindo assim este como contraparte nos negócios sobre instrumentos financeiros
dos seus próprios clientes.

Trata-se de uma prática bem conhecida e enraizada no mercado de capitais, permitida por lei (desde com o
acordo ou confirmação escrita dos clientes e no respeito das regras em matéria de conflitos de interesse, além
da necessidade de observância de determinados deveres gerais e especiais de informação), perseguindo
frequentemente finalidades especulativas e de arbitragem e podendo revestir diferentes intensidades.

Esta prática, de resto, ganhou um novo e poderoso estímulo, com a recente consagração expressa da
“internalização sistemática” como forma organizada de negociação (art. 198º/1/c) e art. 201 CVM).

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Direito Comercial I

O legislador português tipificou ainda alguns contratos jusfinanceiros especificamente associados à


negociação por conta própria. É o caso do contrato de fomento de mercando, previsto no art. 348º, qu designa
o contrato celebrado por um intermediário financeiro e a entidade gestora do mercado que tem por objeto e
finalidade a criação de condições para a comercialização regular num mercado de determinada categoria de
instrumento financeiro (cf. ainda art. 351º CVM)

Outro exemplo é o contrato de estabilização de preços, previsto noa art. 349º CVM, que denomina o contrato
celebrado entre um intermediário financeiro e o oferente no âmbito de oferta pública de distribuição de
determinada categoria de valores mobiliários, com vista À realização de operações exclusivamente destinadas
a reduzir flutuações excessivas dos preços dos valores oferecidos e autorizadas pela entidade de supervisão.

2.6. Outros – não lecionado

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CAPÍTULO III - EMPRESAS

1. Para uma abordagem despreconceituosa ou não conceptualista das empresas no direito

1.1. Conceções metajurídicas de empresa perante as conceções jurídicas

Para resolver o problema da determinação da empresa em sentido jurídico (saber em que consiste ela, o que a
caracteriza e distingue de outros fenómenos jurídicos), começam muitos autores por definições de empresa
em sentido meta ou pré-jurídico (empresa enquanto produto da vida)

 Alguns desses autores, porém, fazem de tal começo pouco mais que mero “exercício de estilo” – as
análises metajurídicas de empresa não se traduzem em algo de significativo no posterior tratamento
jurídico do problema

 Outros autores partem do pré-jurídico para, já a esse nível, e mais explícita ou implicitamente, e de
forma mais ou menos direta, colherem o fenómeno jurídico-empresarial.

Descoberta a pré-jurídica “natureza da coisa” – empresa, há que transpô-la para o direito…. Pode pois dizer-se
que é aqui aceite o “método ontológico” de definir ou de formar conceitos: a empresa seria dado ôntico, dar-
se-ia na realidade do ser, nesta havendo que captá-la; depois, cumpriria ao direito acolher no seu regaço o
descoberto…

Deve rejeitar-se este método!

a. Primeiro, não está provado que a empresa apresente inequívoca identidade no mundo do ser e permita,
portanto, uma inequívoca captação. Pelo contrário: investigações de diferentes quadrantes (económicos,
sociológicos) têm-nos proporcionado imagens variadas dela; e as divergências rejeitam-se no próprio seio
de cada ramo do saber.

b. Segundo: mesmo que se alcançasse a definição pré-jurídica de empresa, era mister provar que o direito
recebia cabalmente ou tinha de receber essa definição. Ora, o direito não recebe inteiramente essa
hipotética definição ou os significados mais correntes do signo “empresa” nos domínios extrajurídicos.

Por outro lado, pode dizer-se não ter o direito de receber cabalmente os conceitos forjados nos domínios
extrajurídicos que vimos referindo. É reconhecida a interdependência da economia e do direito, do social e
do jurídico. É reconhecida também a correspondente autonomia relativa desses estratos: o direito não é
um mero reflexo especular das realidades jurídicas. E essa autonomia manifesta-se também a nível dos
conceitos. Inseridas no direito, as expressões correntes, económicas, sociológicas, transmudam-se em
expressões jurídicas, cujo sentido há-de ser apreendido de acordo com o respetivo contexto problemático
e sistemático-funcional.

Assim sendo, é preferível partir dos dados jurídicos, percorrer os terrenos do direito. Captar a empresa como
categoria jurídica. E é o percorrer despreconceituoso pelos terrenos do direito que nos possibilitar delimitar as
várias espécies de empresas.

Isto não significa, porém, que se deva atender exclusivamente às informações e indícios jurídicos. o direito
refere sempre a empresa a algo que existe na realidade empírica. É preciso atender também às informações
que se colhem nos já assinalados terrenos extrajurídicos. E o recurso a dados metajurídicos mais se imporá
quando no direito (maxime, na lei) não houver definições formalizadas de empresa.

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2. Conceções jurídicas de empresa


2.1. Terminologia

Para designar o fenómeno jurídico-empresarial, tem-se recorrido preferencialmente às palavras “empresa” e


”estabelecimento”. Será legítimo o emprego sinonímico destes vocábulos? Serão sinónimos?

A questão tem sido posta entre nós quase só no quadro do direito comercial. E a resposta costumava ser
afirmativa. Nos termos mais recentes, porém, parece dominar a posição contrária.

A grande maioria da doutrina portuguesa, e essa é também a orientação da Escola de Coimbra, entende que
esses dois vocábulos são sinónimos.

Em tese geral, COUTINHO DE A BREU pensa ser legítima a utilização sinonímica dos dois vocábulos, e tomando em
conta quer o espaço jurídico-mercantil quer outros domínios.

 Com efeito, mesmo as leis não se opõem a tal equipolência – exemplos no livro
O legislador umas vezes usa uma palavra, outras vezes usa outra
 Por outra banda, a linguagem corrente também não se opõe à equivalência “empresa ”-
“estabelecimento”.

COUTINHO DE ABREU considera, portanto, que a clareza ou o rigor do discurso jurídico não sofrem, em regra,
com o emprego sinonímico dos dois vocábulos. Menos ainda quando no discurso é afirmada, explícita ou
contextualmente, a sinonímia.

Deve ser dito, entretanto, que a questão terminológica está longe, muito longe, da questão ou questões
essenciais suscitadas pelas realidades jurídico-empresariais.

a. Por exemplo, dizer que se perfilha a sinonímia de empresa e estabelecimento é nada dizer ainda sobre
o que caracteriza ou distingue a empresa ou estabelecimento.
b. Optar pela sinonímia não é comprometer-se com um único significado para empresa ou
estabelecimento.
c. Reconhecer que tanto empresa como estabelecimento se mostram quer como sujeitos, quer como
objetos, é quase nada ainda para a caracterização de tais objetos e sujeitos.

É por isso assinalável a equivocidade que às vezes resulta das críticas a posições pró-sinonímia. A sinonímia
implicaria que empresa e estabelecimento designam uma mesma e única realidade.

Empresa = estabelecimento = x

Ora, no que respeita à posição por COUTINHO DE ABREU defendida, a implicação referida é falsa. Empresa ou
estabelecimento, em sinonímia, designam realidades várias, de harmonia com os diversos contextos
problemáticos, sistemático-funcionais e local-temporais.

2.2. Principais aceções de empresa

No direito, as empresas revelam-se hoje em duas aceções principais:

a) Em sentido subjetivo – empresas como sujeitos jurídicos que exercem uma atividade económica

b) Em sentido objetivo – empresas como instrumentos ou estruturas produtivo-económicos objetos de


direitos e de negócios

Tais aceções não equivalem ou correspondem de modo a poder formar-se um conceito unitário de empresa,
um conceito geral que valha para todas as espécies empresariais e em todos os ramos do direito.

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Direito Comercial I

As empresas em sentido subjetivo evidenciam-se principalmente no direito (de defesa) da concorrência.

No âmbito do direito comunitário-europeu da concorrência são empresas, primordialmente, os sujeitos


jurídicos que exercem uma atividade económica e têm possibilidade de, em cooperação, restringir a
concorrência e afetar as trocas comerciais entre os Estados-membros, ou a possibilidade de, individual ou
coletivamente, explorar de forma abusiva uma posição dominante, com afetação do comércio
intracomunitário.

As empresas aparecem aqui, com efeito, em sentido subjetivo, como sujeitos de direitos e deveres: só os
sujeitos jurídicos se comprometem a “práticas concertadas”, celebram “acordos”, “contratos”, são passíveis de
sanções, etc. podem ser pessoas singulares ou coletivas, bem como sociedades, associações ou outras
entidades sem personalidade jurídica.

Estes sujeitos jurídicos, para serem considerados empresas, têm de exercer uma atividade económica,
implicante de troca de bens, incluindo serviços.

Todavia, tal atividade não tem necessariamente de ser dirigida à obtenção de lucros. Nem tem de ser
suportada por uma organização de trabalho dependente e/ou de outros fatores produtivos (não se exige uma
organização de meios autonomizável em face do direito, a atividade pode depender tão-só da pessoa do
sujeito): é possível serem considerados empresas inventores que comercializem as respetivas invenções,
artistas que explorem comercialmente as suas prestações artísticas, profissionais liberais.

A noção de empresa vigente no direito comunitário da concorrência influenciou bastante a noção


portuguesa de empresa

O legislador português fez nas duas últimas leis o que o legislador comunitário não havia feito:

Prescreveu no art. 2º da lei de 2003 e no art. 3º da lei de 2012 uma noção de empresa

Diz o art. 3º da Lei 19/2012:

Esta noção repete quase integralmente o que aparecia no nº 1 do art. 2º da Lei 18/2003, que quase reproduzia
a noção oferecida pelo TJ em numerosos acórdãos.

Porém, a noção atual não repete a última palavra da noção de 2003: em vez de funcionamento, temos agora
financiamento.

(…)

Art. 3º: a qualificação das entidades como empresas não depende do respetivo “estatuto jurídico”.

Com efeito, as empresas podem situar-se nos “setores privado, público e cooperativo”(art. 2º/1).

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Direito Comercial I

Por outro lado, as empresas podem apresentar formas diversas, sujeitas a regimes (gerais) diferenciados.

 Assim, as empresas do setor privado podem ser entidades coletivas, com ou sem personalidade jurídica e
pessoas humanas ou singulares.

Estas incluem os comerciantes, agricultores, artesãos, profissionais liberais, cientistas que comercializem
as suas invenções, artistas que explorem as suas prestações artísticas… Repita-se: algumas destas pessoas
(“empresas”) não exploram empresas em sentido objetivo, as atividades que desenvolvem são
essencialmente pessoais, não suportadas por organizações de trabalho dependente e/ou de outros fatores
produtivos.

 No setor público, integra-se, principalmente, as empresas públicas estaduais, regionais e locais, de


carácter societário ou institucional (como as EPE, entidades públicas empresariais)

 No (sub) setor cooperativo, relevam as cooperativas de primeiro grau e algumas cooperativas de grau
superior (maxime, união de cooperativas)

O art. 3º/2 considera “como uma única empresa” o “conjunto de empresas” juridicamente distintas mas que
“constituem uma unidade económica” ou “mantêm laços de interdependência” decorrentes nomeadamente,
de situações previstas nas quatro alíneas do preceito.

Existirá “unidade económica” nas sociedades em relação de grupo (art. 488º CSC) e nos conjuntos de empresas
em que, apesar de não haver relação de grupo, uma delas (sociedade ou não) domina totalmente, ou quase, de
modo direto ou indireto, uma ou mais sociedades, não gozando esta(s) de real autonomia na determinação dos
seus comportamentos no mercado.

Por sua vez, os “laços de interdependência” decorrem do facto de a empresa ter as características previstas nas
alíneas a), b), c) e d).

(…)

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Direito Comercial I

3. AS EMPRESAS EM SENTIDO OBJETIVO


3.1. Empresas comerciais quanto ao objeto
3.1.1. Empresas comerciais

Depois de sabermos o significado do comércio em sentido jurídico, não é difícil concluir que são comerciais as
empresas através das quais são exercidas atividades de interposição nas trocas – maxime, compras de coisas
para revenda e vendas de coisas adquiridas para revender (art. 463º CCom) -, atividades industrial-
transformadoras (art. 230º/1), de serviços – agenciamento de negócios, exploração de espetáculos públicos
(art. 230º/3/4), operações de banco (art. 362º e ss) –, etc.

Em suma, são comerciais as empresas cujo objeto se traduza na realização de atos (ou atividades)
objetivamente mercantis.

Em que consiste a empresa mercantil?

Diversos negócios (compra e venda, locação, troca, doação, comodato, constituição de usufruto, etc)
incindindo sobre o estabelecimento comercial são reconhecidos pelas ordens jurídicas hodiernas, e desde há
bem mais do que um século.

Pois bem, da diversificada e quotidiana praxis jurídico-negocial colhe-se um conjunto de indicações que
constitui autêntica predefinição de estabelecimento.

Assim, além de negociável o estabelecimento é:

 Um valor ou bem económico ou patrimonial;

 Transpessoal: cindível ou isolável da pessoa que o criou, ou da pessoa a quem pertença em dado momento
– como se demonstra pelos casos de transmissão definitiva, inter vivos ou mortis causa;

 Duradouro: não tem de ser perpétuo, mas tem de haver um mínimo de estabilidade

 “Não só transferível e assumível, mas retrotransferível e reassumível” – facto evidenciado nas


transmissões temporárias,

 Reconhecível: sou capaz de dizer que este é o restaurante onde estou e o restaurante onde estava ontem

 Irredutível, algo que contradistingue os negócios como negócios sobre o estabelecimento e que não se
confunde com outros bens – a ele ou não ligados.

Como distinguível bem jurídico nos aparece o estabelecimento, portanto. Mas bem complexo, feito de vários
bens ou elementos.

 Quais eles sejam, não é possível dizê-lo com precisão. Variam consoante os tipos ou formas de
estabelecimento, variam de empresa para empresa, dentro dum mesmo grupo tipológico, variam num
e mesmo estabelecimento, consoante as fases por que passe.

Os estabelecimentos assentam em determinados elementos mas não são os seus elementos. O


estabelecimento tem outro valor, um valor diferente dos seus elementos. O estabelecimento compõe-se dos
seus elementos, mas não vale os seus elementos: em regra, vale mais; mas pode valer menos, neste último
caso, o que acontece é que o estabelecimento fecha. (!)

106
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

O estabelecimento assenta na heterogeneidade dos seus e elementos e este conjunto é na verdade uma
organização. A coisa distintiva desta organização é a combinação dos seus elementos orientada para uma
determinada finalidade. (!)

Em termos gerais, podemos no entanto apontar alguns desses elementos:

a. Coisas corpóreas: prédios, máquinas, ferramentas, mobiliário, matérias-primas, mercadorias, etc

b. Coisas incorpóreas: invenções patenteadas, modelos de utilidade, desenho ou modelos, marcas,


logótipos
 O direito à marca é um elemento incorpóreo, é um direito, um elemento daquela organização. Tão
importante que não conseguiremos reconhecer essa organização se lhe retirássemos esse
elemento!

c. Bens não coisificáveis (jurídico-realmente): prestações de trabalho e de serviços e certas situações de


facto com valor económico – o saber fazer (ou tecnologia, no sentido de conhecimento não patenteados
e/ou não patenteáveis de carácter científico, técnico ou empírico, aplicados na prática empresarial,
incluindo os “segredos de negócios” – art. 318º CPI)

Alguns elementos são essenciais ao funcionamento do estabelecimento, como uma máquina de café num café,
mas não distingue ou individualiza o estabelecimento. A máquina de café não é um elemento que distinga o
estabelecimento, mas é um elemento se o qual o estabelecimento não funciona. O mesmo se pense em
relação ao fornecimento de luz: é um elemento sem o qual o estabelecimento funciona, mas para a
identificação da organização é irrelevante

Deflui desta enumeração exemplificativa que limitamos os elementos ou meios das empresas aos “fatores
produtivos” (os objetos e instrumentos de trabalho ou capital e o trabalho) e a outros bens que
primordialmente individualizam ou identificam empresas – v.g. logótipos, recompensas, marcas. Mas nem
todos pensam assim.

Um considerável número de juristas entende que as empresas são compostas pelas situações e relações de
facto com valor económico há pouco referidas (posições advenientes da organização interna das empresas, das
experiencias negociais acumuladas, do know-how, relações com fornecedores, financiadores, clientes), por
coisas (corpóreas ou incorpóreas), direitos (de crédito, reais e outros de carácter absoluto) e obrigações
(ligadas à exploração das empresas)

(1) Ora, afora o saber-fazer, não parece que as citadas situações e relações de facto com valor económico
devam ser qualificadas de elementos ou meios empresariais. !

A empresa exige organização. Mas a organização, sendo de meios, não se confunde com eles nem ela
própria é elemento componente da empresa; é sim um modo de ser ou de estar dos meios empresariais
(inter-relacionados).

Os financiadores, fornecedores, clientes também não merecem aquela qualificação. Eles estão de algum
modo ligados à empresa. Todavia, tais ligações ou relações não são internas mas externas à mesma; não
são dela componentes; o campo de forças onde se situam está fora do, embora ligado, núcleo da
empresa.

107
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

A este propósito, a discussão tem versado principalmente sobre a clientela. A clientela de uma empresa
pode ser definida como o círculo ou quota de pessoas (consumidores, em sentido amplo) que com essa
empresa contactam.

Tal círculo pode ser constituído por consumidores relativamente habituais ou fixos (clientela “fiel” e
clientela “orgânica” – se os consumidores habituais estiverem ligados à empresa por contratos
duradouros) e/ou por consumidores ocasionais, variáveis (clientela “ocasional” ou “de passagem”).

 Clientela fiel: conjunto de clientes que regularmente se dirigem ao estabelecimento


 Clientela ocasional: clientes esporádicos
 Clientela de passagem: é o caso dos clientes que se dirigem a um restaurante de um aeroporto

Três posições:
Quanto a saber se a clientela é ou não elemento da empresa, as opiniões dividem-se.
(1) A clientela é  Em França, a opinião dominante vê-a como elemento
um elemento,
tal como a  Em Itália, a controvérsia centrou-se em saber se a clientela é um bem verdadeiro e próprio
firma (autónomo objeto jurídico) ou simples qualidade de azienda – tese dominante

(2) A clientela
são relações de
 Na Alemanha, apesar de alguns “clássicos” verem a clientela como qualidade de empresa, a
facto, não conceção que a vê como elemento dela parece dominar.
existe um
direito à  Entre nós, uns dizem-na elemento, outros não.
clientela. Se
existisse, então
o titular do COUTINHO DE ABREU entende que a clientela não é, em rigor, elemento da empresa. Não tanto por ela
estabeleciment não ser objeto de um direito real ou absoluto, nem objeto autónomo de tutela jurídica, mas por não
o tinha um ser um meio ou instrumento estrutural-funcionalmente inserido na organização produtiva que a
direito sobre a empresa é – sendo antes algo de consequente ao funcionamento da “máquina” produtiva.
clientela
Mas também não parece, para COUTINHO DE ABREU , que seja mera qualidade da empresa: não é o
(3) É uma
atributo ou propriedade interno-caracterizadora da empresa.
relação de
facto que tem
Existe sim uma íntima ligação entre empresa e clientela. Aquela é instrumento produtor de bens para
valor
troca – implicando isso a conquista e o assegurar de clientes. Uma empresa pode existir algum tempo
económico e
que em alguns sem clientela, mas não é capaz de subsistir duradouramente sem ela.
aspetos tem
proteção
jurídica

108
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

(2) Tal como já temos vindo a considerar, os meios empresariais são objetos de relações jurídicas, logo,
de direitos subjetivos dos sujeitos das empresas, a que correspondem deveres ou obrigações.

Daí uma congruência do discurso referido supra: fala-se nuns casos em coisas e bens para noutros se
falar de direitos e obrigações relativos a essas coisas e bens.

Mas isto seria de somenos importância se não se desse o facto de a referência aos direitos,
obrigações, etc, ser feita em termos mais ou menos indiscriminados. Na verdade, é praticamente
indiferente dizer elementos empresariais de uma máquina ou o direito de propriedade sobre ela, as
prestações laborais (trabalho) ou o direito de crédito a elas relativas (em ambos os casos são meios de
empresa os objetos dos citados direitos). Já não e indiferente dizer elementos empresariais a
generalidade dos contratos, créditos e débitos.

Com efeito, os créditos de um empresário ou sujeito de empresa ligados à exploração empresarial


mas cujos objetos não sejam meios de estabelecimento (por exemplo, um crédito de 50000€ sobre
um cliente por venda de mercadoria) não devem considerar-se elementos empresariais, não são nem
fatores produtivos nem meios primordialmente identificadores da empresa.

(!) Para ORLANDO CARVALHO já não é assim: o dinheiro, os créditos e as dívidas são fatores de produção
(!)

O mesmo se diga dos contratos conexionados com a exploração do estabelecimento mas cujos objetos
(imediatos) não sejam elementos empresariais (por exemplo, um contrato de fornecimento de fios
celebrado entre empresário e produtor dos fios; meios de estabelecimento serão estas matérias
quando adquiridas pelo sujeito da empresa)

Depois de tudo o que foi dito, ainda menos razões vislumbramos para qualificar de meios empresariais
os débitos resultantes de exploração dos estabelecimentos (por exemplo, uma dívida de 200000€
derivada da compra de uma máquina já entregue – esta sim, é elemento de empresa)

Argumentar em contrário com base na inclusão das dívidas em negócios sobre estabelecimentos é
insuficiente. Porquanto, por um lado, a citada cláusula é no mínimo equivoca; por outro, nem tudo o
que se transfere negocialmente com o estabelecimento terá de ser considerado elemento
empresarial; por outro lado ainda, o património dos empresários não se confunde com as empresas
dos mesmos.

109
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

(3) Como elemento empresarial é às vezes referido o dinheiro.

Também em regra COUTINHO DE ABREU entende que o dinheiro não é elemento empresarial – não
porque seja “um bem de todo neutro, incapaz de caracterizar o que quer que seja” mas por ser um
bem exterior ao processo produtivo e à respetiva estrutura empresarial sustentadora: está antes (na
aquisição dos meios da empresa) e depois (resultado da realização ou comercialização dos produtos).

Para se entender melhor esta posição, convém recordar singelamente os três estádios ou fases o
“processo cíclico do capital” expostos por Marx.

D-M  P  M’ – D’

Na primeira fase, o dinheiro converte-se em mercadorias; na segunda, temos o processo de produção,


na terceira as mercadorias ou produtos são transformados em dinheiro.

Relativamente aos meios/elementos da empresa, interessa considerar aquele segundo estádio (P) os
fatores nele utilizados (M) e os respetivos produtos (M’) enquanto se mantiverem vinculador à
estrutura produtiva.

Contudo, poderá dizer-se que o dinheiro, bem como créditos e débitos, podem ser elementos de
certas empresas: empresas bancárias e outras “de crédito” e “financeiras”

Os bens de que o estabelecimento é feito ou, mais restritivamente, os seus “fatores produtivos” não são
meramente agregados ou somados, não se encontram numa simples relação de intermutabilidade ou
comutatividade. Estão articulados, interrelacionados, estruturados estavelmente, com vista à consecução de
um fim (económico-produtivo).

Quer dizer, o estabelecimento é uma organização.

Dizendo de outra maneira, o estabelecimento é um sistema: um complexo de elementos em interação, uma


unidade complexa, isto é, global, não elementar e original, um “todo (que) é mais do que soma das suas
partes”, com propriedades novas ou emergentes.

Além disso, o estabelecimento descobre-se como sistema “aberto”, em intercâmbio com o exterior, com o
“mercado”; nele se cruzam fluxos entrando (objetos e instrumentos de trabalho) e saindo (produtos); é um
centro de trocas sistemáticas.

 Desse intercâmbio resultam as já referidas relações de facto de valor económico com clientes,
fornecedores, financiadores. Relações de facto que constituem como que um “campo de forças” ligado à
empresa.

O estabelecimento manifesta-se ainda como um sistema autossubsistente, capaz de se bastar com os


resultados das suas trocas, e autónomo – um ente com identidade própria, como tal reconhecido no mundo
macroeconómico.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Zonas de fronteira do estabelecimento com o não-estabelecimento

(1) O estabelecimento, a organização produtiva apta a funcionar, mas que ainda não entrou em funcionamento –
não possuindo, portanto, “valores de exploração” ou, ao menos, clientela efetiva?

Se o estabelecimento comercial é identificado com a clientela, ou com o “direito à clientela”, a resposta mais
natural será a de que ele não existe antes de a organização ter funcionado, antes da abertura ao “público”. (!)

Resposta idêntica será dada por quem veja na clientela um elemento fundamental do estabelecimento. E à
mesma conclusão se tem chegado por outras vias.

A razão determinante da proteção jurídica do estabelecimento está, diz-se, na tutela do seu aviamento – e
este só surge com a exploração, com o exercício do estabelecimento.

Afirma-se, por outro lado, no quadro do direito italiano, que, sendo a clientela um “complexo de bens
organizado pelo empresário para o exercício da empresa”, esta destinação só pode ser rigorosamente
determinada com o início de uma “autêntica” atividade de empresa.

Resposta diversa é há muito tempo dada pela doutrina portuguesa. COUTINHO DE ABREU entende que, embora
não funcionado ainda, um complexo de bens de produção organizados pode ser considerado
estabelecimento comercial.

Sê-lo-á se, à partida, em abstrato, já se revelar (minimamente) apto para realizar um fim económico-produtivo
jurídico-comercialmente qualificado – apto para garantir clientela que lhe permita “viver”, reproduzir os
respetivos processos produtivos – e se esse fim não for informado pela natureza do sujeito que porá o
complexo em funcionamento, nem por outras circunstâncias objetivamente reconhecíveis.

 Se assim for, existe já um bem jurídico novo, uma organização produtiva não redutível a bens meramente
agregados, um (micro) sistema identificável, autonomizado no interior do (macro) sistema de produção
económica.

 Os elementos (fatores produtivos, como os designa ORLANDO DE CARVALHO) integram a organização. Se a


organização está (quase) completa então, mesmo não estando ainda a funcionar, mas estando apta a
funcionar, temos sem duvida um estabelecimento!

O direito não pode deixar de vê-lo como verdadeiro estabelecimento.

Se, por exemplo, um desses complexos, com abertura ao público anunciada para a próxima semana, e
instalado num prédio tomado em arrendamento, é hoje alienado, não se vê como não deva aplicar-se ao
negócio o regime próprio do trespasse de estabelecimento comercial: não necessidade de autorização do
senhorio para transmissão da posição de arrendatário (art. 1112º/1/a) CCiv).

Havendo já estabelecimento, apesar de não funcionar, há já também aviamento. O estabelecimento está


aviado, preparado ou disposto para o caminho: possui capacidade produtiva, aptidão para realizar o fim para
que foi criado. A força ou a qualidade em que o aviamento objetivo ou real se traduz deriva logo da
organização dos elementos do estabelecimento.

Não faz sentido que, na falta de qualquer elemento, que pode ser crucial para o estabelecimento funcionar,
mas não é crucial para a sua identificação, neguemos a designação de estabelecimento comercial.

111
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

A existência de clientela efetiva não é, pois, necessária. E quanto exista, a clientela é apenas uma das
manifestações do aviamento do estabelecimento ao lado de outras, como as relações com fornecedores,
financiadores, etc.

Imaginemos que o estabelecimento está apenas no plano ideal, é uma ideia, um plano. Por muito que seja um
plano minucioso, não há organização.

(2) É possível considerar estabelecimento comercial, como tal negociável, um complexo de bens produtivos que
ainda não encontrou em funcionamento e que carece, para isso, e um ou mais elementos?

 Antes de funcionar, um complexo daquele tipo não possui, ainda, normalmente, “valores de
exploração”: não foi tecida rede de clientes, fornecedores e financiadores.

 Por outro lado, faltam-lhe bens sem os quais não funcionará. Assim sendo, dir-se-á: não existe ainda
estabelecimento, ele está “em formação”, não está formado.

Olhe-se, por exemplo, para este complexo: há um pavilhão industrial (fachada - Alcatifas) devidamente dividido
(com espaços para escritório, produção, etc) com posto de transformação elétrica, quadro elétrico e com
instalações de água. Veem-se máquinas instaladas. Sabe-se que o dono do complexo, já com firma registada,
contratou empregados, e estabeleceu contratos com fornecedores e clientes, enviando até catálogos.

Não estamos perante um estabelecimento comercial, apesar de algumas matérias-primas ainda não estarem
disponível ou faltar uma máquina?

Muitos continuarão a dizer que não, porque ainda não entrou em funcionamento nem está pronto para fazê-lo.
Nós dizemos que já existe.

Por razões semelhantes às referidas supra, quando respondemos à questão da existência de estabelecimento
sem valores de produção. Claro que ainda não está em funcionamento, mas já estamos perante um conjunto
de bens heterogéneos e complementares devidamente organizados com vista à consecução de determinado
fim.

Como tal, poderá o nosso complexo ser objeto, por exemplo de locação, não tendo de se negociar
separadamente o prédio, mobiliário, máquinas, logótipo.

Mas pergunta-se: em casos destes, qual o mínimo de bens e valores necessário para identificar empresa?
Qual o critério para se reconhecer um “salto qualitativo” do conjunto-agregado de bens não individualizável
para o estabelecimento?

Não é possível enumerar em abstrato os elementos do âmbito mínimo do estabelecimento enquanto objeto
negociável.
 Pode é dizer-se, em termos gerais, que esse âmbito há de envolver os bens que, combinados,
projetarem no público a imagem de uma nova organização-unidade com potencial para atuar
autonomamente no mundo da produção para a troca.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Analisemos agora duas questões relativas a estabelecimento que tenha já entrado em funcionamento
(empresas, portanto, com valores de exploração, relacionadas com clientes, fornecedores e financiadores, e
com projeção e reputação entre o público em geral)

(3) Frequentíssimos casos há de negociação de bens qualificados como estabelecimento pelas partes, apesar de
convencionada a exclusão de elementos que dos estabelecimentos dos transmitentes faziam parte.

Vende-se restaurantes sem mesas, cadeiras, máquinas de café…

Significa isto não serem verdadeiras empresas os objetos de tais negócios?

Não é possível responder a priori.

A própria lei admite expressamente a transmissão de estabelecimento desfalcados de um ou outro


elemento. Apesar de desfalcado, ainda que impossibilitado de reentrar em funcionamento logo após o
negócio, o conjunto de bens transmitidos pode ser suficiente para inculcar continuar-se em presença da
organização produtiva publicamente identificada como sendo empresa x

Mais: porque já funcionou, porque já possui valores de exploração, a empresa depende agora menos dos seus
elementos, dos “valores ostensivos”.

 De outra maneira (aula prática): Quando mais o estabelecimento funciona, menos depende dos seus
elementos do seu lastro ostensivo para se afirmar como valor de posição no mercado.

“Quanto mais um estabelecimento comercial funciona, de menor número de valores ostensivos necessita para
se afirmar como valor de posição no mercado” – é a formulação da lei tendencial oferecida por ORLANDO DE
CARVALHO.

Para ser transmitida, a empresa que já funcionou depende menos dos seus elementos, portanto. Mas continua
a depender deles; o “âmbito mínimo de entrega” não pode ser postergado, não podem ser excluídos os bens
necessários para exprimir a permanência do sistema-todo diferente da soma das partes.

(4) Vamos à outra questão: um incêndio, por exemplo, provoca a destruição total dos elementos materiais de
um estabelecimento. Este subsiste?

Apesar de a atividade empresarial ter ficado temporariamente suspensa, os bens que restam servirão para
exprimir a permanência (em estado mais ou menos latente) de uma concreta organização produtiva
qualificável como estabelecimento.

Os elementos restantes continuam, ou podem continuar, na esfera patrimonial do sujeito – e o direito tutela
essa continuação, enquanto elementos componentes de um estabelecimento.

Podem restar, por exemplo, patentes, marcas, a firma, contratos de trabalho, o saber-fazer…

Por outro lado, ligadas ao estabelecimento mantêm-se, em repouso, relações de facto com clientes,
fornecedores e financiadores

113
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Acrescentemos outra ideia: ORLANDO DE CARVALHO entende que um estabelecimento é uma organização
concreta de fatores produtivos enquanto valor de posição de mercado. (!!!!) Este é o elemento/critério
definidor do estabelecimento. Organizações há muitas. Mas a organização é um valor de posição de mercado

Eu posso ter uma desgraça que destrua tudo ou posso decidir renovar as instalações, mas a empresa é a
mesma, porque o valor de posição de mercado permanece/prevalece!

Questão: por opções de gestão, posso introduzir elementos diferenciadores, posso deixar de ter a mesma
organização?

(5) Para terminar esta caminhada ao longo da fronteira do estabelecimento e não-estabelecimento, referíramos
as secções e sucursais de empresa

Um estabelecimento comercial pode integrar várias secções, mais ou menos individualizadas.

A secção, enquanto estiver dentro do estabelecimento comercial, não é algo à parte. Pode ter alguma
autonomia, mas enquanto lá estiver inscrita não é um estabelecimento.

Exemplo: Continente e a secção da padaria.

O armazém onde é guardada a farinha da padaria, o local de venda ao público integrado na empresa têxtil, etc,
são secções componentes de empresas. São divisões ou repartições necessárias ou úteis para a realização da
atividade empresarial. Típico delas é o facto de, em geral, não poderem sobreviver ao acaso da empresa.

Mas pode acontecer que consiga fazer dessa parte um todo, um destaque, para que assim destacada, seja
um todo do negócio e que seja transmitida e seja um estabelecimento. Pode acontecer, por exemplo, que o
Continente concessione a padaria a alguém e que seja gerida de forma autónoma.

Entre a simples secção e o estabelecimento está a sucursal, ou agência ou delegação. Caracterizada, por um
lado, pela dependência em relação à empresa, de que é parte, e por outro lado, por uma certa independência.

 É dependente porque nela se efetuam apenas negócios integrantes do objeto da empresa, e está sujeita à
direção geral da empresa.

 Goza de certa independência porque além de separada espacialmente do estabelecimento principal,


possui contabilidade relativamente separada e personalidade judiciária (art. 13º CPC); alem disso, quem
está à frente da sucursal tem certa liberdade de gestão e competência para celebrar negócios em que o
objeto da empresa se traduz.

Por exemplo, tenho uma loja de pneus em Coimbra e abri outra loja de pneus em Penacova. Nestes casos
parece que a sucursal pode ser estabelecimento.

Porque a sucursal goza da apontada autonomia, não é difícil perceber a possibilidade de ela deixar de se
identificar com o todo empresarial de que faz parte, de se transformar em autónomo estabelecimento
comercial – sobretudo quando seja alienada separadamente.

NOTA: Uma organização é uma organização que se destina à troca, à produção de bens e serviços para
transação no mercado. As organizações por muito completas e bem equipadas, quando se destinam apenas ao
autoconsumo, porque não se destinam à produção de serviços ou bens para o mercado, não são
estabelecimento comercial, não são empresa. É uma organização na mesma, mas não tenho estabelecimento.
Só no dia em que decidir rentabilizar é que nesse momento a organização “ascende” a estabelecimento.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

É ou não o estabelecimento comercial uma unidade jurídica, um bem jurídico a se stante? É ele um objeto
jurídico unitário, com tutela autónoma? Há uma disciplina do todo, para além da disciplina visando cada um
desses elementos e diversa da que resultaria se se tomasse em conta tão-só a mera soma destes?

Os autores portugueses têm sustentado ser um estabelecimento comercial uma unidade jurídica. E têm sido
indicadas em apoio da tese várias normas legais.

(…)

Intimamente ligado à questão da unidade jurídica está o problema de saber se o estabelecimento comercial é
uma coisa e, nomeadamente, uma coisa que possa ser objeto do direito de propriedade (e de outros direitos
reais).

Em coerência com o facto de o estabelecimento ser uma unidade jurídica objetiva, e dado ser “coisa tudo
aquilo que pode ser objeto de relações jurídicas” (art. 202º CCiv), o estabelecimento é uma coisa (e coisa
móvel – art. 205º).

No entanto, nos termos do art. 1302º CCiv “só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem ser objeto do
direito de propriedade regulado neste código”.

Para quem considere o estabelecimento coisa corpórea, o problema fica logo resolvido.

Parece, todavia, mais correto considerá-lo coisa imaterial (não pura).

À primeira vista, muito estranho se afigura conceber o estabelecimento como coisa incorpórea.

Mas há que refletir o seguinte: o estabelecimento, integre ou não bens materiais, não é igual à soma dos seus
elementos. É antes uma organização ou um sistema, algo diferente dessa soma, que não constituirá
maquinação especialmente engenhosa conceber, juridicamente, esse distinto ente como coisa incorpórea
(complexa). (!)

Tal como se não entolha como atentado à lógica afirmar a possibilidade de coexistência entre um direito de
propriedade sobre o todo, o estabelecimento e os direitos (de propriedade ou não) sobre as suas partes.

Além de não estar vedada a hipótese de, no próprio contexto do Código Civil, certas coisas incorpóreas serem
objeto de propriedade, o certo é que diversas normas supõem, ou afirmam mesmo poder o estabelecimento
ser objeto de direito de propriedade (art. 94º/3, art. 1112º/1/a), art. 1682º-A/1, art. 1889/1/c), art. 1938/1/a),
art. 1559º e 1560º/1/a) CCiv + art. 152º/2/d), 246º/2/c) CSC + art. 44º RRNPC)

Apesar do que ficou dito não ser ainda bastante para cabal compreensão de empresa comercial, convém deixar
já aqui uma definição da mesma.

Para Coutinho de Abreu, empresa ou estabelecimento comercial, em sentido objetivo, é uma unidade jurídica
fundada em organização de meios que constitui um instrumento de exercício relativamente estável e autónomo
de uma atividade comercial.

Orlando de Carvalho: “é uma organização concreta de fatores produtivos como ou enquanto valor de posição de
mercado”.

 Ou seja, o estabelecimento não é só o lastro ostensivo, mas também o seu valor de posição de mercado.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

ORLANDO CARVALHO: o “lucro” não é essencial à empresa. O conceito de empresa mencionado não faz qualquer
menção ao lucro ou ao escopo lucrativo. E de caso pensado não o faz. Porquanto, se é inegável que as
empresas são normalmente instrumentos para a consecução de lucros, ficou já provado que o referido escopo
não é essencial à definição de diversas espécies empresariais: as empresas públicas não tem necessariamente
um fim lucrativo; as empresas cooperativas (bem como ACE e AEIE) não são instrumentos talhados para a
consecução de lucros – e quando são conseguidos, não são repartíveis pelos associados; as associações e
fundações que explorem empresas não Têm propriamente escopo lucrativo.

QUESTÃO: o dono pode ser proprietário do estabelecimento (por exemplo, restaurante) e não ser proprietário
de nenhum dos elementos (imóvel, toalhas, talheres, etc)? Como relaciono a titularidade jurídica sobre cada
um dos elementos?

Num restaurante há muitos elementos: o dono do restaurante pode ter arrendado o espaço, pode ter feito
contrato de leasing sobre equipamento da cozinha, pode ter aluguer de toalhas. Pode ter uma diversidade de
títulos jurídicos para cada um dos elementos inscritos na organização.

Será isto possível? A resposta é sim.

Esta questão, nalguns ordenamentos jurídicos é muito discutível, pois há ordenamentos jurídicos que só
consideram que se pode ser proprietário de coisas corpóreas. Mas no ordenamento jurídico português este
constrangimento não existe, porque pode existir propriedade sobre coisa incorpórea.

Mas há um constrangimento: para haver propriedade tem de haver coisa, objeto. E qual é o objeto? É
discutido, mas parece que a melhor qualificação é que entende o objeto como coisa composta funcional
(ORLANDO CARVALHO).

 Ela não tem composição física, mas estão ligados pela função a que se destinam. Os elementos passam a
integrar a coisa, que é uma coisa composta e funcional. Quanto à natureza, parece ser um bem
incorpóreo suis generis. E é suis generis porque isto resulta de muitos elementos.

O que é essencial para o titular do estabelecimento não é o título em si mesmo; para o estabelecimento
enquanto valor, enquanto bem, é irrelevante se o imóvel é propriedade, se é locação, se é arrendamento, se é
comodato. O que é essencial para a organização é que o titular tenha possibilidade de usar imóvel na
organização.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

4. NEGÓCIOS SOBRE AS EMPRESAS

4.1. TRESPASSE
4.1.1. Noção e forma

Com referência a estabelecimentos (“comerciais” ou “industriais”) é muito antigo na legislação portuguesa o


emprego da palavra trespasse. Esse emprego verifica-se em diversos atos legislativos atuais, cumprindo
destacar o Código Civil (art. 1112º), o CSC (art. 152º/2/d)), o CDA (art. 100º/1/2 e 145º) e CRCSPSS (art.
209º/2).

Todavia, nenhuma destas leis define trespasse; nem se colhe delas um regime global do mesmo. Não admiram,
portanto, os desencontros doutrinais e jurisprudenciais no domínio da compreensão e alcance do conceito de
trespasse.

Contudo, dos preceitos assinalados, é possível retirar já algumas conclusões

(1) Objeto de trespasse é estabelecimento. Mas que não tem de ser comercial, em sentido jurídico.
Comercial, apenas, terá de ser para efeitos dos arts. 100º e 145º CDA; o estabelecimento “comercial ou
industrial” do art. 1112º abarca também empresas não jurídico-mercantis; e os arts. 152º/2/2 CSC e art.
209º/2 CRCSPSS são aplicáveis às diferentes espécies empresariais

(2) O trespasse traduz uma transmissão com carácter definitivo, é transmissão da propriedade de
estabelecimento.

Resulta isto, nomeadamente, do facto de a divisória entre o trespasse e as disposições temporárias do


estabelecimento estar suficientemente marcada no Código Civil (art. 1112º e 1109º), no CSC (art.
152º/2/d) e art. 246º/2/c)) e no CRCSPSS (art. 209º/2). Tal transmissão pode por conseguinte ser
efetuada através de negócios variados, tais como a (compra e) venda, amistosa ou executiva (incluindo a
realizada em processo de insolvência), a troca, a dação em cumprimento, a realização de entrada social
(art. 25º e ss CSC).

(3) Para alguns efeitos, o trespasse traduz-se em negócios necessariamente onerosos: é assim para efeitos
do direito de preferência do senhorio (art. 1112º/4) e da liquidação de sociedade (art. 152º/2/d) CSC –
estão em causa interesses patrimoniais dos sócios ou credores).

Não assim em outros casos. As razões da disciplina fixada nas restantes normas citadas valem tanto para
os negócios onerosos como para os gratuitos; a doação pode, portanto, operar um trespasse.

(4) O trespasse aparece em todos os preceitos acima assinalados significando negócios inter vivos.

 Com efeito, o art. 1112º/1 começa com “é permitida a transmissão por ato entre vivos” e o nº4
aplica-se apenas à venda e à dação em cumprimento;

 Segundo o art. 152º/2/d) CSC, é o liquidatário quem procede ao trespasse do estabelecimento social
– e a sociedade está “moribunda” mas não “morta” (art. 146º/2; só se considera extinta “pelo
registo do encerramento da liquidação”: art. 160º/2);

 No CDA, a conclusão é confirmada confrontando os arts. 100º/1 e 106º/1/b) e os arts. 145º e 147º;

 No art. 209º/2 CRCSPSS é estatuída a responsabilidade solidária do “cessionário” e do “cedente”

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O trespasse é uma espécie de substantivo coletivo: cabem lá dentro diferentes negócios
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Em suma, o trespasse é definível como transmissão da propriedade de um estabelecimento por negócio entre
vivos. Este conceito é suficientemente clássico e preciso para representar o trespasse como conjunto de figuras
negociais diversas e, simultaneamente, para exprimir as notas essenciais e comuns que, para lá das diferenças,
congregam as diversas figuras negociais sob uma mesma designação.

Algumas notas da aula teórica:

 Um consultório médico é uma organização de meios e esta organização não é um estabelecimento,


porque não é um valor transferível; não se pode vender o consultório sem o médico. O que conta é
apenas o médico. Podemos também pensar no escritório de um advogado.

 Mas pode não ser assim. Podemos pensar numa clínica: as pessoas dirigem-se à clínica e não àquele
médico em específico. Ou imaginemos que estamos num escritório com 200 advogados que estão
sempre a entrar e a sair.

Podemos, portanto, ter esta dessubjetivação, que permitirá que se cumpra o requisito de ser um
estabelecimento. Cumprido esse requisito, o estabelecimento será, em princípio, transferível. Mas tem de
haver estabelecimento. Dessubjetivizar, não significa que a organização não precisa de pessoas para trabalhar;
e também não significa um “tanto faz”: não significa que se substitua um grande cirurgião, de renome, por um
qualquer cirurgião acabado de chegar ao mercado. Existe uma margem de possibilidade de troca, mas se não
houver dessubjetivação, não existe.

Quanto à forma

Durante muito tempo, a forma exigida para o trespasse foi a escritura pública; depois do ano de 2000 passou a
exigir-se simples escrito. Hoje, depois do NRAU, deve entender-se que o simples escrito continua como forma
necessária.

É verdade que o nº3 do art. 1112º refere-se literalmente à transmissão da posição de arrendatário (prevista no
nº1). Mas porque sucedeu ao homólogo art. 115º/2 RAU (“o trespasse deve ser celebrado por escrito, sob
pena de nulidade”), porque o atual art. 1112º (ao invés de normas antecessoras) correspondentes abrange
também a transmissão da posição de arrendatário para continuação do exercício de profissão liberal e porque
há que atender a outras normas do sistema, deve o art. 1112º/3 ser interpretado extensivamente no sentido
da exigência de escrito para o trespasse.

 A transmissão de firma, que não pode ser feita sem a transmissão do estabelecimento, exige escrito
(art. 44/1/4 RRNPC);
 A transmissão de marca ou de logótipo (envolvida naturalmente na transmissão do estabelecimento)
exige escrito (art. 31º/5/6, art. 04º-B/3 CPI).

Seria estranho que a transmissão destes elementos (acessórios) requeresse escrito e não o requeresse a
transmissão do conjunto, o negócio unitário de trespasse do unitário estabelecimento (com ou sem aqueles
elementos).

Por outro lado, a transmissão da posição de arrendatário do trespasse deve ser comunicada ao senhorio (art.
1112º/3). Esta comunicação precisará, normalmente, de ser acompanhada de cópia ou exemplar do contrato
de trespasse. Pressupõe isto, bem se vê, escrito enformando tal contrato.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

4.1.1.1. Âmbitos de entrega

Num concreto negócio de trespasse gozam as partes de liberdade para excluírem da transmissão alguns
elementos do estabelecimento.

 Todavia, tal exclusão não pode abranger os bens necessários ou essenciais para identificar ou exprimir
a empresa objeto do negócio.

PEDRO MAIA: dizer que quando A transmite a B um estabelecimento, transmite todos os elementos que o
compõem e integram é uma resposta desconforme com a realidade do tráfego e com as necessidades do B.
Dizer que se A transmitir stand de automóveis a B terá de transferir também resmas de papel é desnecessário e
inútil na ótica de PEDRO MAIA. Impensável em termos práticos e impensável olhando aos princípios do direito
privado. As partes são livres de conformarem o bem que se transmite.

Desrespeitando-se o âmbito mínimo, necessário ou essencial, de entrega (constituído, portanto, pelos


elementos necessários e suficientes para a transmissão de um concreto estabelecimento), impossibilitado fica
o trespasse; objeto do negócio translativo serão então singulares bens (ou conjuntos de bens) de um
estabelecimento, não o próprio estabelecimento.

Dizer a priori ou em abstrato quais os elementos integrantes do âmbito mínimo é, dessemo-lo já, inviável.

 Pode dar-se o caso de um determinado trespasse não poder dispensar a transmissão de uma firma, ou
uma marca, ou uma patente ou um prédio, ou certas máquinas, um certo know-how.

E podemos mesmo dizer: há elementos que se transmitem porque o estabelecimento se transmitiu e há


estabelecimentos que se transmitem porque se transmitiram certos elementos. Existe aqui uma relação de dois
sentidos.

Distinguimos 3 âmbitos de entrega

Âmbito imperativo ou máximo

Âmbito convencional

Âmbito natural

O estabelecimento é composto por elementos porque estes têm uma vida jurídica autónoma.

Tenho um problema grande na negociação de estabelecimento que não tenho quando negoceio um telemóvel.
Num telemóvel, os seus elementos não têm via jurídica autónoma. Quando negoceio um telemóvel, negoceio o
bem com tudo aquilo que o integra, porque tem uma vida jurídica só.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Como os vários elementos de um estabelecimento têm vida jurídica autónoma, o acordo para transmitir
estabelecimento é suficiente, por si, para que se transmita cada um dos elementos? A resposta é: depende.
Depende se esse elemento integra o âmbito natural ou convencional.

 Há elementos relativamente aos quais o acordo das partes inclui naturalmente a transmissão desses
elementos: falamos do âmbito natural

Esses elementos, porém, podem ser excluídos. Se as partes não os excluírem, acompanha
naturalmente a negociação do estabelecimento. Essa exclusão decorre de uma outra vontade.

 Depois há elementos que pertencem ao âmbito convencional: os elementos só passam se houver


vontade de transmitir aquele elemento. Só se transmitem quando haja acordo das partes, quando
haja convenção específica. E note-se que o acordo pode ser expresso ou tácito. Tem é de existir.

Portanto, fazem parte do âmbito natural de entrega os elementos que se transmitem naturalmente com o
estabelecimento trespassado, isto é, os meios transmitidos ex silentio, independentemente de estipulação ad
hoc; tais bens, não havendo cláusulas a excluí-los, entram na esfera jurídica do trespassário.

Estaremos perante um problema de determinação do âmbito natural de entrega quando, por exemplo, em um
escrito de trespasse o estabelecimento é identificado apenas pelo seu objeto de localização, não se
inventariando quaisquer elementos e posições jurídicas a transmitir; ou quando se mencionam alguns
elementos, mas a título exemplificativo.

Com maior ou menor segurança, é possível enumerar diversos elementos que integram normalmente este
âmbito de entrega.

(1) Vejamos primeiro os meios empresariais cuja propriedade pertença ao trespassante:

1. Por força de lei (supletiva), incluem-se no âmbito natural os logótipos e as marcas.

Art. 31º/5: “se no logótipo ou na marca figurar nome individual, a firma ou a denominação social do
titular (…) é necessária cláusula para a sua transmissão”.

Quer dizer, se na marca não constar o nome do titular, ela é transmitida naturalmente com o
respetivo estabelecimento, não precisando de cláusula ad hoc.

2. Quanto a outros elementos, o silêncio das partes é acompanhado com o silêncio da lei. Sabemos no
entanto que o estabelecimento é uma organização de meios ou elementos para o exercício de uma
atividade de produção destinada à troca.

Sejam ou não essenciais para a existência da empresa, todos esses bens contribuem para a
organização e são parte do estabelecimento. Sabemos também que ele é bem jurídico complexo-
unitário, e coisa. O mais razoável será portanto que aqueles elementos sobre que pesa o silencio se
transmitam naturalmente.

Trespassado o estabelecimento, fica o trespassante obrigado a entregar o complexo de bens que o


compõem.

Entre esses bens contam-se: máquinas, utensílios, mobiliário, matérias primeiras, mercadorias,
inventos patenteados, modelos de utilidade, desenhos ou modelos.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

3. E os prédios? Os prédios têm suscitado mais controvérsia. A jurisprudência entendia tradicionalmente


que, na falta de estipulação, o trespasse não implica a transmissão do prédio (do trespassante) onde o
estabelecimento funciona. Na doutrina, a pertinência dos imóveis no âmbito natural é afirmada por
uns e negada por outros.

Coutinho de Abreu não descortina razões que validem um tratamento diferenciado do prédio em face
de bens que tal como ele fazem parte do estabelecimento. Tanto mais quanto é certo não ser em geral
desprezível a importância dos imóveis.

Para já não falar dos estabelecimentos absolutamente vinculados, o peso dos imóveis na estrutura
organizatório-exploracional das empresas é em muitos casos determinante (pense-se em hotéis,
pavilhões desportivos, etc).

Em muitos outros casos, os prédios são feitos à medida das empresas respetivas, são projetados em
função de específicas atividades empresariais.

Por conseguinte, quando num contrato de trespasse se não faça menção à transmissão do prédio e
não se conclua, por interpretação do negócio, que ele foi excluído, deve concluir-se que a propriedade
do mesmo foi naturalmente transmitida.

ORLANDO DE CARVALHO, por sua vez, entende que os direitos reais sobre imóveis não estão no âmbito
natural, pois é necessária, para que se transmita, uma vontade ad hoc. Há que levar uma vontade
mais, que não tem de ser expressa. E então, para Orlando carvalho, este elemento integra o âmbito
convencional ou máximo.

COUTINHO DE ABREU, rematando este primeiro ponto, assenta este princípio: o trespasse coenvolve
naturalmente a transmissão da propriedade de todos os elementos que a esse título pertenciam ao
trespassante – podendo em alguns casos alguns desses elementos não se transmitir, quando a exclusão resulte
de disposição legal ou é consequência mediata de uma cláusula negocial ou corresponde à vontade real e
concordante das partes.

(2) Vejamos agora os elementos empresariais na disponibilidade do trespassante a título obrigacional (o


trespassante tem o gozo desses bens por ser titular de direitos de crédito):
ÂMBITO
1. Por força da lei, as prestações laborais a que os trabalhadores subordinados se haviam obrigado
MÁXIMO
perante o trespassante continuam em princípio a contar-se entre os elementos do estabelecimento
trespassado. Orlando de
Carvalho
Prescreve, com efeito, o art. 128º CT: “Em caso de transmissão, por qualquer título, da titularidade de
empresa, estabelecimento ou ainda de parte da empresa ou estabelecimento que constitua uma
unidade económica, transmitem-se para o adquirente a posição do empregador nos contratos de
trabalho dos respetivos trabalhadores”.

2. Por sua vez, o art. 1112º/2 tem o seguinte teor: é permitida transmissão por ato entre vivos da
posição do arrendatário sem dependência da autorização do senhorio, no caso de trespasse de
estabelecimento comercial ou industrial.

A menos que o prédio pertença ao âmbito mínimo, o trespasse não implica necessariamente a
transferência do prédio por via de transmissão da posição do arrendatário ou por outra via de tipo
obrigacional.

121
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Mas não envolverá naturalmente o trespasse a transmissão da posição do arrendatário? Coutinho de


Abreu está com aqueles que respondem afirmativamente. Devendo ainda acrescentar-se que outros
autores, apoiando-se explícita ou implicitamente numa conceção restritiva de âmbito natural, chegam
a resultados praticamente idênticos.

Arrazoado semelhante vale para a transmissão da posição do locatário financeiro. Diz-se com efeito o
art. 11º/1 DL 149/95: “tratando-se de bens de equipamento, é permitida a transmissão entre vivos da
posição do locatário nas condições previstas pelo art. 115º do DL 321-B/90”.

Resulta de outras normas a não inclusão no âmbito natural (nem no âmbito convencional) de outros elementos
empresariais a que o trespassante tem direito por título obrigacional.

1. É o que sucede, por exemplo, com as patentes, modelos de utilidade, desenhos ou modelos e marcas
objeto de licença de exploração (art. 32º/1/8 “salvo estipulação em contrário, o direito obtido por
meio de licença de exploração não pode ser alienado sem consentimento escrito do titular do direito”)

2. E o mesmo acontece com as máquinas, móveis, veículos, etc, alugados ou emprestados – art.
1059º/2 (“a cessão da posição do locatário está sujeita ao regime geral dos arts. 424º e seguintes”: é
pois exigida a autorização do locador) e art. 1135º (“é obrigação do comodatário “não proporcionar a
terceiro o uso da coisa, exceto se o comodante o autorizar”).

3. Dissemos que certas situações de facto com valor económico, como o saber-fazer, podem ser
elementos de uma empresa.

Pois bem, apesar de o saber-fazer não dever ser considerado coisa objeto do direito de propriedade
ou de outros direitos reais, ele deve ser comunicado-transmitido pelo trespassante ao trespassário,
sendo tal um efeito natural do negócio de trespasse.

No âmbito convencional de entrega incluem-se os elementos empresariais que apenas se transmitem por mor
de estipulação ou convenção, expressa ou tácita, entre trespassante e trespassário.

1. Nele se integram a firma (art. 44º/1 RRNPC: “o adquirente, por qualquer título entre vivos, de um
estabelecimento comercial pode aditar à sua própria firma a menção e haver sucedido na firma do
anterior titular do estabelecimento, se esse titular o autorizar, por escrito”), o logótipo e a marca
quando neles figure nome individual, firma ou denominação do titular do estabelecimento (art. 31º/5
CPI)

2. Os créditos do trespassante ligados à exploração da empresa mas cujos objetos não sejam meios de
estabelecimento não devem considerar-se elementos ou meios empresariais.
 Todavia, podem ser transmitidos juntamente com o estabelecimento desde que trespassante e
trespassário nisso concordem; farão então parte do âmbito convencional de entrega.

É o que resulta dos arts. 577º e ss CCiv: por acordo expresso ou tácito entre trespassante-credor e
trespassário, pode o primeiro ceder simples créditos ao segundo, “independentemente do
consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou
convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do
credor ” (art. 577º/1 e 583º)

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Orlando de Carvalho: depende se são puros ou impuros. Os créditos impuros inserem-se no âmbito de
relação mais abrangente. Esses créditos impuros vão surgindo ao longo do desenvolvimento de
relação contratual que se mantém. Uma coisa é vender x e ficar com crédito. (isto não é no âmbito de
uma relação mais desenvolvida). Outra coisa é um contrato de assistência técnica ou fornecimento, e
ao longo do desenvolvimento vão surgindo créditos e débitos. No caso dos créditos puros integrariam
o âmbito convencional. Os créditos impuros, pertenceriam ao âmbito natural.

3. Os contratos (posições contratuais do trespassante) ligados à exploração da empresa mas cujos


objetos imediatos não sejam elementos do estabelecimento, bem como os débitos resultantes da
exploração de estabelecimento, também não devem ser considerados elementos ou meios
empresariais.

 Mas podem igualmente ser transmitidos com o estabelecimento trespassado.


 Contudo, tais posições contratuais e débitos não fazem parte, em regra, de qualquer dos âmbitos
de entrega; nem sequer do âmbito convencional – pois, ainda em regra, a respetiva transmissão
exige a intervenção de terceiros.

Em relação às posições contratuais do trespassante:

COUTINHO DE ABREU: assim, para os contratos (posições contratuais do trespassante), e ressalvadas as


hipóteses previstas na lei, valem as regras dos arts. 424º e ss: é necessário não apenas o acordo entre
ambos, mas também o consentimento do contraente cedido (art. 424º/1 CCiv).

ORLANDO CARVALHO, por sua vez, entende que são duas coisas diferentes. Portanto, para este, as
posições contratuais pertencem ao âmbito natural.

Portanto: houve transmissão? Se houve, perguntamos: houve consentimento? Existem algumas


normas que se referem a este problema, como é o caso do art. 1112º. Mas e nos casos em que não
existam?

Há duas respostas doutrinais:


 Aplica-se o art. 424º: é necessário o consentimento, tirando os casos excecionais (como o art.
1112º)
 Aplica-se o art. 1112º por aplicação analógica, porque constitui a consagração de um
princípio geral. Para proteger o valor deste bem, dispensa-se o consentimento.

Para a generalidade da doutrina este art. 1112º é uma exceção. Para outros, é a consagração de um
princípio geral aplicável a outros casos.

O regime do art. 1112º dispensa o consentimento de uma parte, a parte civil, em homenagem aos
interesses do estabelecimento comercial. É para a tutela do direito comercial que se desprotege a
parte civil, o senhorio. O regime deste artigo é uma tutela do estabelecimento comercial em desvalor
de uma outra parte, que é o proprietário do imóvel.

123
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Mais debatida que a cessão de posições contratuais ou de créditos tem sido a transmissão singular de
dívidas. Talvez por neste domínio serem mais vinculados os virtuais conflitos de interesses.

 De um lado, os interesses dos credores do trespassante reclamando a transmissão das dívidas


ou, de preferência, a responsabilização de trespassante e trespassário uma vez que pode o
trespassante envolver diminuição da garantia patrimonial dos créditos e ser a impugnação
paulatina impossível – arts. 610º e ss CC, maxime art. 610º/b) e art. 612º/1 primeira parte).

 Do outro lado, os interesses do trespassário reclamando a não transmissão dos débitos, pelo
menos contra a sua vontade.

De harmonia com o art. 595º, a transmissão a título singular de dívidas referentes a estabelecimento
só pode verificar-se por acordo entre trespassante e trespassário, ratificado pelos credores, isto é,
com aprovação ou assentimento destes, ou por acordo entre o trespassário e os credores, com ou sem
consentimento do trespassante. Em qualquer dos casos, a transmissão só exonera trespassante
havendo “declaração expressa” dos credores (respondendo solidariamente com o trespassário caso
não haja essa declaração)

Por conseguinte, ainda que num escrito se diga que o estabelecimento é trespassado com todo o seu
ativo e passivo, esse facto, por si só, não significa assunção pelo trespassário das dívidas do
trespassante relativas ao estabelecimento; a transmissão de débitos exige o consentimento dos
credores.

Excecionalmente o trespassário pode ter de responder por dívidas anteriores ao trespasse. É assim nos
casos regulados pelo art. 285º/6 CT (transmitente da posição de empregador responde solidariamente
pelos créditos de trabalhador emergentes do contrato d trabalho, da sua violação ou cessação, bem
como pelos encargos sociais correspondentes…) e art. 209º/2 CRCSPSS e nos casos de trespasse de
EIRL.

4.1.1.2. Obrigação implícita de não concorrência

A obrigação de não concorrência decorrendo implicitamente dos negócios de alienação das empresas (sem
necessidade, portanto, de qualquer estipulação ad hoc) é desde há muito reconhecida pela jurisprudência e
doutrina de largo número de países, tendo sido admitia entre nós pela primeira vez em páginas da RLJ com
quase um século.

O trespassante de estabelecimento (e, em princípio, uma ou outra pessoa mais) fica em princípio, obrigado a,
num certo espaço e durante certo tempo, não concorrer com o trespassário (e sucessivos adquirentes) –
nomeadamente, fica vinculado a não iniciar atividade similar à exercida através do estabelecimento
trespassado.

Têm sido avançados variados fundamentos para a obrigação: princípio da boa fé na execução dos contratos,
princípio da equidade, usos do comércio, concorrência desleal, garantia contra evicção, dever de o alienante
entregar a coisa alienada e assegurar o gozo pacífico dela.

 Este último fundamento, com alguma tradição entre nós, parece ser o preferível.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

A empresa que o trespassante tem de entregar é um bem complexo, com certos valores de organização e, em
regra, de exploração. Normalmente, o alienante conhece as características organizativas da empresa e
mantinha relações pessoais com financiadores, fornecedores e clientes. Seria pois particularmente perigosa a
concorrência por ele exercida; essa concorrência diferencial poria em risco a subsistência da empresa alienada,
impediria uma efetiva entrega da mesma ao adquirente.

A obrigação implícita de não concorrência pode intervir na generalidade dos negócios incluíveis no conceito de
trespasse: na venda (voluntária, executiva e falencial), na troca, realização de entrada social, dação em
cumprimento, doação.

A alienação de participações (ou partes ou quotas) sociais – mesmo tratando-se da totalidade das
participações numa sociedade – não se identifica com a alienação da empresa social.

 Objeto da primeira são as quotas – permanecendo a empresa na esfera jurídica da sociedade;


 Objeto da segunda é a própria empresa, transferida da sociedade para outro sujeito.

Não obstante, nalgumas hipóteses e para certos efeitos, a alienação da totalidade ou da maioria das quotas
sociais é equiparável ao trespasse da empresa social.

Sê-lo-á para efeitos da obrigação implícita de não concorrência?

 Não, dirão os formalistas – o objeto de uma e outra alienação é diverso: além as partes sociais, aqui o
estabelecimento. Mas é legítimo afirmar que aquela alienação opera uma transmissão indireta da
empresa, é instrumento de uma transferência “substancial” do estabelecimento.
 Destarte, se o alienante (ou alienantes) das partes sociais, dada a posição de controlo que tinha na
sociedade, for capaz de exercer uma concorrência particularmente qualificada ou diferencial, fica
obrigado a não concorrer perante o ou os adquirentes (“coligados”) das quotas.

Além do trespassante, outras pessoas podem ficar vinculadas pela obrigação implícita de não concorrência.

1. É o caso do cônjuge do trespassante (sendo indiferente o regime de bens do casamento e a qualidade de


bem comum ou próprio do estabelecimento eventualmente a adquirir pelo cônjuge).

Afora o facto de o trespassante poder intervir na administração de empresa adquirida pelo cônjuge (art.
1678º/2/f)/g)/3 CCiv) e de a dívidas provenientes da exploração de tal empresa poderem responsabilizar
ambos os cônjuges (art. 1691º/1 art. 1695º CCiv), o cônjuge do trespassante beneficiaria normalmente
dos conhecimentos deste relativos à organização, clientes, fornecedores, etc. do estabelecimento
trespassado.

2. É o caso, também dos filhos do trespassante, quando com ele tenham colaborado na exploração da
empresa transmitida (para lá de poderem ter retirado proveito financeiro, direto e/ou indireto, dessa
exploração e do trespasse, eles possuem aptidão para uma concorrência diferencial).

3. E nos casos em que trespassante é uma sociedade, ficam vinculados pela obrigação, além dela, também os
sócios?

Alguns podem ficar. Nomeadamente aqueles que possuem os conhecimentos relativos à empresa
trespassada indispensáveis a uma concorrência qualificada – ou porque exerciam ativamente funções de
administração, ou porque detinham participação social dominante e exerciam efetivo controlo sobre
sociedade.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

4. Entre os sujeitos ativos ou credores da obrigação implícita da não concorrência conta-se não apenas o
primeiro trespassário mas também os eventuais sucessivos trespassários

Esta obrigação de não concorrência tem limites ela justifica-se apenas na medida em que seja necessária para
uma entrega efetiva do estabelecimento trespassado.

Tem de ter, por conseguinte, limites objetivos, espaciais e temporais.

De contrário, haveria violação do princípio da liberdade de iniciativa económica (art. 61º CRP) e das regras de
defesa da concorrência.

Os sujeitos passivos da obrigação não ficam evidentemente proibidos de exercer qualquer atividade
económica. Não podem é (re)iniciar o exercício de uma atividade concorrente com a exercida através da
empresa trespassada, de uma atividade económica no todo ou em parte igual ou sucedânea. Todavia, estes
sujeitos não ficam impedidos tão-somente de adquirir, para exploração, estabelecimento com objeto similar ao
alienado.

 Outros comportamentos lhes são interditos: passarem a desempenhar funções de direção/administração


em empresa alheia e concorrente da trespassada, entrarem em sociedade com objeto idêntico ao do
estabelecimento alienado, nela passando a exercer funções de administração ou ficando a deter posição
controladora.

Depois, a obrigação implícita de não concorrência tem limites espaciais e temporais: vale apenas nos lugares
delimitados pelo raio de ação do estabelecimento trespassado, e durante o tempo suficiente para se
consolidarem os valores de organização e/ou de exploração da empresa transmitida na esfera de um
adquirente-empresário razoavelmente diligente.

Se os obrigados a não concorrer violarem a obrigação, pode o trespassário exercer os direitos previstos nas
normas respeitantes ao não cumprimento de obrigações.

 Assim, pode designadamente exigir indemnização por perdas e danos (art. 798º CCiv), ou resolver o
contrato de trespasse (art. 801º/2) ou intentar ação de cumprimento (art. 817º) e requerer sanção
pecuniária compulsória (art. 829º-A), ou exigir que o novo estabelecimento do obrigado seja encerrado
(art. 829º/1)

Coutinho de Abreu autonomiza a ação de encerramento em relação à ação de cumprimento.

Soveral Martins não vê onde é que realmente se pode fundar uma diferença, porque a ação de cumprimento (não concorrer) o
que se está a pedir é que não concorra. A ação de cumprimento teria de ser com fundamento no art. 817º.

Mas vejamos que a ação de cumprimento é de cumprimento de obrigação de não concorrer, e portanto, é uma obrigação de
fechar o estabelecimento.

Soveral Martins tem dificuldade em ver porque é que Coutinho autonomiza as duas possibilidades. Se é uma ação de
cumprimento é cumprimento de obrigação de não concorrer, o que pressupõe que o estabelecimento feche. Então, o
cumprimento será o cumprimento de uma obrigação de não concorrer.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Note-se, por último, que a obrigação implícita de não concorrência pode ser afastada por estipulação
contratual (o sujeito dos interesses patrimoniais tutelados pela obrigação é o trespassário que deles pode
dispor).

Significa a cláusula de livre concorrência a inexistência de verdadeiro trespasse, havendo simples alienação ed
elementos empresariais? Ou uma efetiva transmissão do estabelecimento, ainda que desvalorizado? Só a
análise dos concretos casos permitirá responder.

4.1.1.3. No caso concreto

O que estivemos a falar é enquadrável em abstrato. Mas temos um problema específico.

Temos de transmitir todos os elementos? Não.

E podemos não transmitir nada? A resposta também é não, porque o estabelecimento comercial é um valor
suis generis mas que se compõe de elementos que o constituem.

O estabelecimento não é a soma dos seus elementos, mas carece de uma organização.

Expressão de ORLANDO CARVALHO: o estabelecimento é um lastro ostensivo de elementos, de realidades visíveis


para o direito, mas o estabelecimento não é isso. É um valor de posição no mercado.

Então, não pode ser tudo, nem pode ser nada. Então o que se tem de transmitir em concreto para dizer que se
transmitiu?

 Ora, a solução é uma solução de caso concreto! A resposta não vale para todos os estabelecimentos
ou categorias de estabelecimento. A resposta varia.

 E varia porque é preciso que no caso em concreto, os elementos transmitidos sejam os


necessários/suficientes para identificar, transportar e sensibilizar o valor de posição de mercado.

 Quando quero transmitir de A para B este valor suis generis que se relaciona com a organização, não o
tenho de transmitir todo, mas tenho de transmitir valores ostensivos que permitam ao público, aos
clientes, fornecedores identificar, através destes elementos, a mesma posição de valor de mercado
que se verificava no anterior titular.

É necessário que seja possível transportar e mais do que isso, identificar e sensibilizar!

Qual é esse núcleo de elementos? É o chamado núcleo mínimo de elementos. Os elementos deste âmbito
mínimo são elementos que em concreto podem estar num daqueles âmbitos.

E se excluírem um elemento do elemento mínimo do âmbito natural? Ou do âmbito convencional?

Para ORLANDO CARVALHO havia solução mágica, um passo mágico.

 Imaginemos que há um elemento do âmbito convencional e as partes não o incluíram. Por exemplo, um
direito de propriedade. Mas imaginemos que esse elemento faz parte do âmbito mínimo.

 Quiseram transmitir o estabelecimento não integraram direito real sobre imóvel? Então o direito real não
passa.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

 Não é dono do imóvel porque o direito real não passou. As partes transmitiram estabelecimento? Sim.
Então tem de haver um direito que satisfaça necessidade dele de dispor do imóvel.

 Portanto, tem um direito obrigacional de dispor do imóvel. E quem diz isto aqui, diz isto para qualquer
elemento: quer não tenham convencionado nada, quer a tenham excluído do âmbito natural.

(!) Qual a estatuição do art. 1112º? Se houver trespasse dispensa-se o consentimento do senhorio para
cessão da posição do arrendatário. A cessão da posição de arrendatário!

Não dispensa o consentimento do senhorio para o trespasse! Porque no trespasse é o dono a transmitir o
estabelecimento/empresa! E o senhorio nada tem a ver com essa transmissão.

4.1.1.4. Trespasse de estabelecimento instalado em prédio arrendado

“A cessão da posição do locatário está sujeita ao regime geral dos arts. 424º e ss sem prejuízo das disposições
especiais deste capítulo” – art. 1059º/2 e art. 1038º/f) CCiv

Pois bem, uma das disposições especiais era o art. 1118º, revogado pelo art. 3º/1/a) DL 321-B/90; por sua vez o
NRAU revogou o RAU e repôs no CCiv o art. 1112º cujo nº1 alínea a) retoma disposição idêntica.

Assim, em caso de trespasse de estabelecimento comercial ou industrial instalado em prédio arrendado, o


trespassante-arrendatário pode ceder a sua posição de arrendatário ao trespassário sem necessidade de
autorização do senhorio.

É uma norma expressiva da tutela ou defesa da circulação negocial dos estabelecimento e, eventual e
concomitantemente, da própria manutenção deles. Significa isto que se protege o interesse dos trespassantes
em transmitirem, sem entraves dos senhorios, estabelecimentos integrando direito de arrendamento, bem
como o interesse dos trespassários em adquirirem empresas o mais possível valiosas e funcionais, e ainda o
interesse económico-geral na continuidade e desenvolvimento das empresas.

O art. 1112º/2 diz que não há trespasse quando:

 Alínea a): quando a transmissão (da posição do arrendatário!) não seja acompanhada de
transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que
integram o estabelecimento

 Alínea b): quando a transmissão vise o exercício, no prédio, de outro ramo de comércio ou indústria
ou, de um modo geral, a sua afetação a outro destino

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Interpretando à letra aquela alínea a), concluir-se-ia que o trespassante de um estabelecimento exige a
transferência de todos os seus elementos, bastando a falta de um deles para que de trespasse não pudesse
falar-se; inexistindo trespasse, a cessão da posição de arrendatário seria ilícita sem consentimento do senhorio
e fundamento de resolução do contrato de arrendamento (art. 1083º/2/e CCiv).

 Há autores que assumem uma posição radical, assumindo uma interpretação à letra desta alínea: o
legislador entende que para este efeito é necessária a transferência de todos os elementos e portanto
desconsidera-se o âmbito mínimo: todos os elementos têm de ser transferidos.
Alguns
Mas esta posição é rejeitada pela doutrina maioritária, como por exemplo, por ORLANDO DE CARVALHO, autores,
COUTINHO DE ABREU, SOVERAL MARTINS , PEDRO MAIA. ainda,
entendem
 ORLANDO CARVALHO entende que esta alínea é apenas um indício de que não houve trespasse que esta
alínea
Ora, já sabemos que o estabelecimento existe e como tal se transmite quando existem os elementos do seu consagra
âmbito mínimo e se transferem esses mesmos elementos. Havendo estabelecimento e sendo transferidos os uma
bens constituintes do âmbito essencial de entrega, não há como negar o trespasse. Se exigíssemos a presunção
transmissão de todos os elementos isso levaria a situações irrazoáveis.

Portanto, e de outra perspetiva, para que o art. 1112º/1 não tenha aplicação, não é suficiente que o senhorio
prove não ter sido transmitido um ou mais elementos componentes do estabelecimento; terá de provar que
sem esse(s) elemento(s) não subsiste aquele concreto estabelecimento, que o mesmo não pode ter sido
efetivamente negociado, tendo havido antes simulação de trespasse.

 Para Soveral Martins, não tem necessariamente que existir uma simulação, pois para que esta tenha lugar,
é necessário existir acordo entre declarante e declaratário acompanhado de uma intenção de prejudicar
terceiros; e, muitas vezes, as partes não têm esta intenção, mas simplesmente não conhecem os regimes
jurídicos e julgam que, ao excluir aqueles elementos, ainda estão a celebrar um trespasse. O que pode
haver, na verdade, é um erro.

Para efeitos da alínea b) considera-se não haver trespasse quando, no momento do negócio, havia intenção de
dar outro destino ao prédio; o cessionário da posição de arrendatário tinha em vista, não a continuação do
mesmo estabelecimento, sim a constituição, no mesmo prédio, de estabelecimento novo ou a aplicação do
imóvel a fins não comerciais ou industriais (habitação, por exemplo).

 Esta é a posição de COUTINHO DE ABREU, que exige apenas a intenção de mudança do adquirente.

A intenção de mudança de destino pode ser revelada logo por declarações constantes no escrito do negócio de
trespasse ou por declarações externas mas concomitantes. Mais provável, porém, é ela ser revelada por factos
posteriores.

 Exemplo: A declara vender e B declara comprar um bar que funciona em prédio de C. 2 meses depois, B
reabre prédio, verificando-se que nele passou a funcionar somente um restaurante. C não terá especiais
dificuldades em resolver o contrato, com base em inexistência de trespasse e de consentimento seu para
a cessão da posição de arrendatário, provando que a mudança de destino do prédio revela que B
pretendeu adquirir não propriamente um estabelecimento-bar, mas antes, essencialmente, posição de
arrendatícia.

SOVERAL MARTINS e PEDRO MAIA entendem, pelo contrário, que “visar” pressupõe um intuito comum do
trespassante e trespassado, tanto mais que a lei fala em “transmissão que vise”, e quem irá transmitir é o
trespassante.

129
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

O art. 1112º termina com um enunciado normativo perturbador. Nos termos do nº5: “quando, após a
transmissão, seja dado outro destino ao prédio, o senhorio pode resolver o contrato”

Defendeu-se já que esta norma não cria uma causa autónoma de resolução e/ou seria indispensável:

 Se a mudança de destino significa que não houve trespasse, a situação está já prevista na alínea b) do
nº2;
 Se, apesar da mudança, houve trespasse, não há fundamento de resolução (alínea a) do nº1), salvo se o
contrato de arrendamento não permitia destinar o prédio a outro fim – caso em que o fundamento de
resolução se encontra já no art. 1083º/2/c)

Também Coutinho de Abreu considera que a norma é criticável.

Mas entende que ela cria fundamento autónomo de resolução. E não é prejudicada pela norma da alínea b) do
nº2 (os campos de aplicação não coincidem necessariamente). O alcance prático desta fica, isso sim, diminuído.

Por outro lado, há diferenças de regime consoante se aplique uma e outra norma! Recorde-se o exemplo
apresentado há momentos:

a) A transformação do bar revelou não ter havido trespasse (art. 1112º/a/b)). O senhorio C pode resolver o
contrato de arrendamento com fundamento no art. 1083º/2/e) (cessão ilícita). Mas pode fazê-lo
também com fundamento no nº5.

b) Apesar da transformação do bar em restaurante, houve trespasse (A e B negociaram objetivamente o


estabelecimento-bar, B no momento do negócio não tinha em vista exercer no prédio outro ramo de
comércio jurídico).

Dir-se-ia que, se o concreto contrato de arrendamento comportasse outros fins comerciais (incluindo
restauração) – art. 1027º, 1028º e 1067º - não havia lugar para resolução – B (tal como A
anteriormente), enquanto proprietário, podia perfeitamente converter o estabelecimento adquirido em
outro estabelecimento; era assim (e bem) no direito pregresso.

Mas é para casos destes que o novo nº5 (não o art. 1083º/2/c)) oferece ao senhorio fundamento próprio
para a resolução!

A ratio da norma será: a lei concede ao trespassante e ao trespassário o benefício consagrado no art.
1112º/1/a) a fim de facilitar a transmissão negocial do estabelecimento; se este estabelecimento, cuja
circulação se promoveu, não se mantiver, deverá então o senhorio poder interferir na relação
arrendatícia, resolvendo o contrato.

c) Com base em inexistência de trespasse e de autorização para a cedência da posição de arrendatário, C


pode não só resolver o contrato de arrendamento, mas também responsabilizar civilmente A e/ou B
quando os atos ilícitos e culposos destes (na cessão não autorizada da posição arrendatícia) lhe causem
danos.

Existindo trespasse e subsequente mudança de destino, pode C resolver o contrato de arrendamento


(nº5), mas não terá direito a indemnização.

O art. 1112º/3 repete que a transmissão da posição do arrendatário, sem dependência de autorização do
senhorio, deve ser comunicada a este.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Sendo ineficaz relativamente ao senhorio a cedência da posição de arrendatário não comunicada


atempadamente, aquele, se não tiver reconhecido o cessionário como tal (art. 1049º), pode resolver o contrato
de arrendamento, de acordo com o previsto no art. 1083º/2/e) (cessão ineficaz).

Mas, normalmente, a resolução não será decretada pelo tribunal (art. 1084º/1), pelo simples facto de a
comunicação não ter ocorrido no prazo de 15 dias. É necessário, como se diz no art. 1083º/2, que o
incumprimento “pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do
arrendamento”.

Interessa, evidentemente, ao senhorio que lhe seja comunicada a cessão da posição de arrendatário: tem o
direito de saber quem aparece como novo inquilino e de verificar se houve ou não trespasse válido que lhe
imponha novo inquilino.

Mas, havendo trespasse válido, o senhorio não tem poderes para recusar o trespassário como arrendatário.

 Pelo que, para conduzir à resolução, não será em geral suficiente uma pequena ultrapassagem do prazo de
15 dias. Será suficiente, por exemplo, um atraso de vários meses que tenham impedido o senhorio de,
bem mais cedo, denunciar o contrato de arrendamento (art. 1110º/1, 1101º/c) e NRAU art. 28º/3/a)).

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Direito Comercial I

4.2. LOCAÇÃO DE ESTABELECIMENTO

4.2.1. Noção e algum regime

A locação de estabelecimento é definível como o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à
outra o gozo temporário de um estabelecimento mediante retribuição.

Esta noção ajusta-se perfeitamente à noção de locação, em geral, do art. 1022º CCiv.

Pretendemos com isso sublinhar 3 pontos:

a. Os estabelecimentos podem ser “locados”


b. A locação de estabelecimento é contrato nominado, tanto na doutrina como na lei
c. Tal contrato é também típico, está regulado na lei

Este último ponto é agora, pós-NRAU, mais nítido. Sob a epígrafe “locação de estabelecimento”, o art. 1109º
prescreve que tal contrato “rege-se pelas regras da presente subsecção”, com as necessárias adaptações.

Vejamos então as normas desta subsecção aplicáveis e sondemos as necessárias adaptações

Nos termos do art. 1110º/1 CCiv “as regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação dos contratos
para fins não habitacionais são livremente estabelecidas pelas partes, aplicando-se na falta de estipulação em
contrario, o disposto quanto ao arrendamento para habitação”.

Portanto, as partes na locação de estabelecimento estipulam livremente a duração do contrato (prazo certo ou
duração indeterminada).

 Contudo, se nada tiverem estipulado, não se aplica o disposto quanto ao arrendamento para
habitação (art. 1094º/3), antes se considera o contrato celebrado com prazo certo, pelo período de 5
anos – assim determina o nº 2 do art. 1110º

O regime da denúncia do contrato de locação de estabelecimento é estabelecido livremente pelas partes; na


falta de estipulação, aplica-se em princípio o disposto para o arrendamento habitacional (art. 1110º/1).

 Assim, tendo o contrato sido celebrado com prazo certo, na falta de regime convencionar para a
denúncia, vale o previsto no art. 1098º/3/4/5 (denúncia pelo locatário; o locador de estabelecimento
não tem esse direito), exceto se o prazo certo de duração for o supletivo (5 anos), caso em que não
poderá o locatário denunciar o contato com antecedência inferior a 1 ano (art. 1110º/2).

 Se o contrato tiver sido celebrado por duração indeterminada, o regime supletivo da denúncia, pelo
locatário e agora também pelo locador, será o contante dos arts. 1110º e 1101º/c).

O art. 1110º/1 refere-se também à oposição à renovação, tendo em vista os contratos com prazo certo. O que
supõe, já se vê, a possibilidade de prorrogação (“renovação”).

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Direito Comercial I

Quanto a esta possibilidade, aquela norma não remete para o art. 1096º/1; aplicar-se-á o art. 1054º.

 Ora, nenhuma destas normas se aplicará ao contrato de locação de estabelecimento, que, não sendo
contrato de arrendamento, caducará findo o prazo (art. 1051º/a)).
 Porém, podem as partes prever a prorrogação do contrato., bem como regras relativas à oposição à
renovação; se o não fizerem deverá aplicar-se o art. 1055º.

Segue-se o art. 1111º relativo a obras de conservação.

 Dado que estão aí em causa obras em prédios e relações entre senhorio e arrendatário, e porque a
locação e estabelecimento não é arrendamento de prédio, nem as partes dela são, enquanto tais,
senhorio e arrendatário, aquele artigo é inaplicável à locação de estabelecimento.

Quanto à forma do contato de locação de estabelecimento, é aplicável a primeira parte do art. 1112º/3: sob
pena de nulidade, deve o contrato ser celebrado por escrito.

O art. 1112º/2 tem também alguma utilidade. Por exemplo:

 Pertencendo ao locador d estabelecimento o prédio onde ele funciona, não há locação de


estabelecimento s enão forem incluídos no negócio elementos do âmbito mínimo da empresa ou se as
partes visarem “o exercício, no prédio, de outro tamo de comércio ou indústria ou, de modo geral, a sua
afetação a outro destino” (alíneas a) e b)) – havendo sim contrato de arrendamento;

 Pertencendo o prédio a terceiro, também não há locação de estabelecimento se se verificarem aquelas


condições – havendo agora subarrendamento, que será ilícito sem autorização do senhorio (arts.
1038º/f), 1049º, 1083º2/e) e 1109º/2)

Damo-nos conta da aplicabilidade, com adaptações, à locação de estabelecimento de preceitos fora dessa
subsecção.

Mais alguns: 1031º, 1032º-1035º, 1036º, 1037º, 1038º, 1039º-1042º, 1043º-1046º, 1047º-1050º, 1057º, 1058º,
1059º/2

4.2.2. Âmbitos de entrega

Tal como nos casos de trespasse, a locação de estabelecimento não pode prescindir dos elementos necessários
ou essenciais para a identificação da empresa objeto do negócio; o âmbito mínimo tem de ser respeitado

Salvo qualquer outra coisa resulte da lei ou do contrato, é de entender que os elementos empresariais se
transferem naturalmente para o locatário. É que, além do mais, o estabelecimento transmite-se a título
meramente temporário e, enquanto é explorado pelo locatário, mantém-se ligado ao locador e está adstrito à
satisfação de necessidades de um e de outro.

Assim, integra-se no âmbito natural de entrega a generalidade dos meios empresariais pertencentes em
propriedade ao locador.

 Por exemplo, prédios, máquinas, ferramentas, matérias primeiras, mercadorias, inventos patenteados,
modelos de utilidade, desenhos ou modelos, recompensas.
 E também o logótipo e marcas (art. 31º/5 e art. 304º-P/3 CPI)

É certo que estes artigos supõem a transmissão do estabelecimento. Todavia, a locação, enquanto transmissão
temporária do estabelecimento, não pode deixar de ser abrangida.

133
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Atendamos agora aos elementos empresariais que se encontrem na esfera jurídica do locador a título
obrigacional.

 A posição de empregador decorrente dos contratos de trabalho para o locador transmite-se, pelo
período da locação, para o locatário. É o que resulta do art. 285º CT.

 Quando o estabelecimento funciona em prédio arrendado, já de entender-se que se transmite


naturalmente para o locatário da empresa o gozo do prédio

 Coisa semelhante deve valer para os bens empresariais detidos pelo locador de estabelecimento a
título de locação financeira ou de simples aluguer – o cedente de exploração da empresa continua
locatário dos bens e o gozo destes transfere-se temporariamente pra o cessionário da empresa, sem
necessidade de convenção das partes nem de autorização do locador dos referidos bens.

 E coisa semelhante deve ainda valer para as patentes, modelos de utilidade, desenhos ou modelos e
marcas objeto de licença de exploração (o direito obtido por meio de licença não é alienado para o
locatário licenciante – art. 32º/8 CPI)

Em face do art. 44º/1 RRNPC há-de entender-se que a firma integra-se no âmbito convencional de entrega,

QUESTÃO

Dissemos que, com a locação de um estabelecimento, diversos elementos empresariais de propriedade do


locador se transferem para o locatário. A que título se dá essa transferência? Fica o locatário com a
propriedade deles, com um direito locatício sobre eles ou com um outro poder jurídico?

Deve entender-se que a propriedade dos meios empresariais fica com o locador, não se transmite para o
locatário.

 O negócio da locação incide sobre o estabelecimento unidade jurídica-coisa, não sobre singulares
elementos seus;
 O direito locatício sobre o todo com que fica o locatário não pode logicamente implicar direitos de
propriedade sobre as partes.

Por outro lado, a propósito de um dos elementos da empresa (o prédio), o art. 1109º/1 não parece dar azo a
hesitações ao falar de transferência temporária do gozo do mesmo.

Com que direito, então, o locatário transforma e/ou aliena bens constituintes do capital circulante e aliena
bens do capital fixo que é necessário substituir?

 Este poder ou direito de disposição sobre os meios empresariais não se funda no direito de
propriedade, mas sim no poder-dever de exploração de estabelecimento.

Na verdade, o locatário tem não apenas o direito de explorar-gozar o estabelecimento mas também o dever de
o fazer – sob pena de a empresa sofrer diminuição no seu valor económico ou mesmo extinguir-se.

Se o locatário arbitrariamente encerrar, total ou parcialmente, temporária ou definitivamente a empresa, ele


viola contrato de locação e o locador pode requerer a resolução (art. 1047º). Pois bem, o exercício de tal
poder-dever implica necessariamente os referidos consumo e alienação de elementos empresariais.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

4.2.3. Obrigações de não concorrência

Enquanto durar a locação, o locador (e eventualmente outras pessoas) está obrigado a não concorrer num
determinado espaço com o locatário – está obrigado a não iniciar atividade igual ou semelhante à exercida
através do estabelecimento locado.

Tal obrigação não é implícita. Ela resulta de expressas disposições legais: art. 1031º/b) e 1037º. É obrigação do
locador assegurar o gozo da coisa locada para os fins a que se destina, não lhe sendo permitido praticar atos
que impeçam ou diminuam esse gozo.

E pode o locatário, na vigência do contrato de locação, iniciar o exercício de uma atividade concorrente com a
exercida através da empresa locada e no espaço delimitado pelo raio de ação desta sem o consentimento do
locador?

 A resposta deverá ser negativa. Tal comportamento provocaria uma diminuição do valor do
estabelecimento locado e significa a violação do dever de manutenção e restituição da coisa a cargo
do locatário art. 1043º)

Terminado o contrato e na ausência de um possível pacto de não concorrência, fica o ex-locatário obrigado a
não concorrer com o ex-locador? As respostas têm sido diversificadas.

O princípio é o da liberdade de iniciativa económica e de concorrência.

É certo que o ex-locatário pode aproveitar o conhecimento sobre a clientela e a organização empresariais
adquiridos durante a locação. Mas compete ao locador tomar em devida conta esse risco.

Também os simples assalariados de um empresário podem, extinta a relação laboral, aproveitar-se igualmente
de tais conhecimentos para se estabelecerem – sendo pacífico que eles gozam, salvo estipulação em contrato,
de liberdade de trabalho (art. 136º CT).

Depois, os citados conhecimentos, além de terem sido adquiridos pelo locatário no decurso de uma exploração
pela qual ele pagou ao locador, eram também pertença deste ou estavam ao seu alcance (art. 1038º/b) e
podem continuar a ser usados na exploração de arrendamento restituído.

4.2.4. Locação de estabelecimento e arrendamento

A locação de estabelecimento, mesmo quando envolve prédio(s), não é contrato de arrendamento (art. 1023º).
Apesar de o art. 1109º afirmar que ela se rege pelas regas da subsecção VIII.

O mesmo artigo logo acrescenta: com as necessárias adaptações. E verificámos serem aplicáveis em maior
número as normas da locação não específicas dos arrendamentos prediais.

Também não é um contrato misto, associando o arrendamento de prédio ou fração e o aluguer de


estabelecimento ou dos móveis componentes do estabelecimento.

 O enunciado do art. 1109º/1 sugere em alguma medida essa perspetiva

Não obstante, a locação de estabelecimento prevista no art. 1109º é negócio unitário com objeto (mediato)
também unitário: o estabelecimento, feito embora de elementos vários.

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Direito Comercial I

O gozo do prédio-elemento do estabelecimento é transferido para o locatário a título não autónomo, não há
específico negócio incidindo no prédio; o prédio não é dado em arrendamento nem subarrendado – o locador
de estabelecimento e proprietário do imóvel não passa a senhorio, o locador de estabelecimento e
arrendatário do imóvel não cede a sua posição arrendatícia nem subarrendada.

Questão muitas vezes discutida nos tribunais e nos papéis de doutrina era a necessidade, ou não, de o senhorio
autorizar a cedência de gozo do prédio arrendado aquando da locação de estabelecimento nele instalado.

 Paulatinamente foi-se tornando dominante a tese da desnecessidade de autorização do senhorio.

Andou bem o NRAU a consagrar no art. 1109º/2 a desnecessidade de autorizar a cedência do gozo do prédio.
Apesar de o ter feito sem rigor linguístico: o que “não carece de autorização do senhorio” não é “a
transferência temporária e onerosa de estabelecimento instalado em local arrendado”, é sim a transferência
do gozo do prédio integrado no estabelecimento.

Até ao NRAU havia alguma divergência na jurisprudência e doutrina sobre se era obrigação do arrendatário de
prédio e locador de estabelecimento comunicar ao senhorio a cedência de gozo do prédio integrado na locação
da empresa.

Também aqui o art 1109º/2 consagrou a solução mais acertada: a transferência do gozo do prédio deve ser
comunicada ao senhorio no prazo de 1 mês.

Faltando a comunicação no prazo referido, a cedência do gozo do prédio é ineficaz em relação ao senhorio.
Que poderá, por isso (salo se tiver reconhecido o beneficiário da cedência como tal – art. 1049º), resolver o
contrato de arrendamento: art. 1083º/2/e). Mas, como dissemos a propósito do trespasse, a falta de
comunicação tem de, pela sua gravidade, tornar inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento.

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Direito Comercial I

RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS

1. Introdução. Recuperação de empresas em processo de insolvência. Recuperação de empresas através


de Processo Especial de Revitalização. Recuperação de empresas através de RERE

Atualmente, as leis preveem especificamente para a recuperação de empresas:

1. Dois processos judiciais:


1.1. O processo insolvencial com plano de insolvência – art. 192º e ss CIRE
1.2. O processo especial de revitalização – PER, regulado nos arts. 17º-A e ss CIRE

2. Um procedimento extrajudicial: o RERE (Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas), regulado na


Lei 8/2018

Não há crise que não dê em fartura… legislativa.

O plano de insolvência é aplicável a devedores (entidades coletivas e patrimónios autónomos com ou sem
empresas, e pessoas singulares com empresas não pequenas: art. 2º, 249º e 250º) em situação de insolvência
ou equiparada (isto é, em situação de insolvência iminente) – art. 3º.

O PER é aplicável, agora (depois das alterações introduzidas pelo DL 79/2017), não a qualquer devedor, mas
somente a “empresa” que esteja em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente
iminente – não ainda, portanto, em situação de insolvência, mas que nesta provavelmente desembocará se a
situação de cresce não for debelada (art. 17º-A/1).

Por sua vez, o RERE aplica-se a pessoas singulares, entidade coletivas (com ou sem personalidade jurídica) e
patrimónios autónomos que tenham, ou explorem, ou sejam empresas e que estejam em situação económico
difícil ou em situação de insolvência iminente (Lei 8/2018, arts. 2º/2 in fine, art. 3º/1/2).

2. Recuperação de empresas em processo de insolvência


2.1. Algumas notas sobre o processo de insolvência

Este processo é geralmente designado como processo de execução coletiva.

Se nada for acordado no plano de insolvência, o processo de insolvência atuará como processo de execução
coletiva, visando a liquidação do património do devedor.

Se houver plano de insolvência, tudo depende do que foi acordado, pois existem várias modalidades:

a. Plano de recuperação
b. Plano de liquidação
c. Plano de natureza mista

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

A empresa era no CREF destinatário central (logo o art. 1º/1). E aquele Código apresentava, no art. 2º, uma
“noção de empresa”. Que, embora não fosse inútil era em grande medida falhada: a grande maioria das
normas do CREF tomava a empresa em sentido bem diferente do estabelecido no art. 2º.

O CIRE, não querendo ficar atrás, oferece também uma noção de empresa – substancialmente idêntica à do
antecessor – no art. 5º: “Para efeitos deste Código, considera-se empresa toda a organização de capital e de
trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica”.

Esta definição tem (ainda mais) escassa utilidade no CIRE.

Porquanto: a empresa não é essencial para a determinação do âmbito de aplicação subjetivo do Código; a
grande latitude da atividade-objeto empresarial relevante (“qualquer atividade económica”) resulta já do art.
2º CIRE (os sujeitos aí indicados são comerciantes e não comerciantes, as atividades podem ser jurídico-
mercantis ou não); o significado normativo das dezenas de referências à empresa que apareciam no Código até
às alterações introduzidas pelo DL 79/2017 alcançava-se, em regra, com facilidade.

2.1.1. O processo de insolvência e o plano de insolvência. O art. 1.º, 1, do CIRE e a aparente


imprescindibilidade de um plano de insolvência. Crítica

O processo de insolvência, enquanto processo de execução universal, visa satisfazer conjuntamente os


credores de um devedor.

Dispõem os credores de duas vias principais para aproveitarem as forças patrimoniais do devedor:

(1) Ou vão pela liquidação dos bens integrantes da massa insolvente e consequente repartição dos
resultados distribuíveis
(2) Ou se decidem por um plano de insolvência onde regulam autonomamente, respeitados que sejam
certos limites legais, o modo por que serão satisfeitos os seus interesses.

Na formulação originária do art. 1º CIRE, estas duas vias principais apareciam como alternativas sem ordem de
precedência; competia aos credores decidir livremente qual delas segui. Aparentemente, segundo a
formulação do art. 1º introduzida pelo DL 16/2012 (para troika ver), deixou de ser assim.

Diz agora o art. 1º/1 CIRE: “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como
finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente,
na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na
liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores. ”

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Esta redação dá azo a equívocos.

(1) Um: o processo de insolvência exige sempre plano de insolvência (quer para a recuperação quer para a
liquidação).

No entanto:
 Não existe plano de insolvência para pessoas singulares não empresárias ou titulares de pequenas
empresas (arts. 249º e 250º);
 Os sujeitos legitimados para apresentar plano de insolvência não têm, em geral, o dever de
apresentá-lo (cfr. Art. 193º);
 Só há plano de insolvência se ele for aprovado pelos credores (art. 209º e ss);
 A liquidação da massa insolvente processa-se nos termos previstos na lei (art. 156º e ss), salvo se
existir plano de insolvência regulando essa liquidação (art. 192º/1).

(2) Outro equívoco: a recuperação de empresa compreendida na massa insolvente, quando possível, tem
primazia sobre a liquidação.

Mas ainda agora vimos que não tem de haver plano de insolvência/recuperação; mesmo que a
recuperação de empresa seja (objetivamente) viável, nada na lei obriga os credores a aprovarem plano de
recuperação – eles continuam livres de optar pela liquidação.

2.1.2. Quem pode ser declarado insolvente. Sujeitos da declaração de insolvência. Comerciantes e
não comerciantes. Empresários e não empresários

Quem está sujeito a declaração de insolvência?

Atendendo ao art. 2º é possível compor 3 grupos:

a) “Quaisquer pessoas singulares ou coletivas” (art. 2º/1/a))


Enquanto pessoas coletivas, podem pois ser declarados insolventes associações, fundações, sociedades
comerciais, sociedades civis de tipo comercial, sociedades civis simples personalizadas, ACE, AEIE…

b) O segundo grupo reúne entidades ou sujeitos de natureza coletiva mas não personalizados.

Por exemplo, associações sem personalidade jurídica e comissões especiais (art. 2º/1/c)), sociedades
civis simples (art. 2º/1/d)), sociedades comerciais e sociedades civis de tipo comercial antes do registo
definitivo do ato pelo qual são constituídas (art. 2º/1/e)), cooperativas antes do registo da constituição
(art. 2º/1/f)).

Fica agora claro que estes sujeitos sem personalidade jurídica podem também ser declarados
judicialmente insolventes.

Da letra do art. 125º/1/3 do CREF parecia resultar claramente que tais entidades não eram passíveis da
declaração de falência. Coutinho de Abreu propugnou, contudo, que os enunciados normativos daqueles
números deviam ser interpretados extensivo-teleologicamente de modo a sujeitar igualmente esses
sujeitos à falência.

c) No terceiro grupo temos a herança jacente (art. 2º/1/b) do CIRE), o estabelecimento individual de
responsabilidade limitada (art. 2º/1/g)) e quaisquer “outros patrimónios autónomos” (art. 2º/1/h)

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Os sujeitos passivos da declaração de insolvência não têm de ser comerciantes, mantém-se, pois, o corte
(iniciado pelo CREF) com o longo passado em que a falência era instituto (tendencialmente) privativo dos
comerciantes.

Os sujeitos em causa não têm de ser empresários.

Inclusive, o plano de insolvência não pressupõe a existência de empresa na massa insolvente (art. 192º/1 CIRE)
– embora esse instrumento seja utilizável sobretudo quando haja empresa (art. 1º e 195º/2/b)/c)). Não
obstante, há aspetos do regime da insolvência dependentes da existência ou inexistência de empresa.

2.1.3. A situação de insolvência

O processo de insolvência pode ter lugar quando o devedor está, não só, numa situação de insolvência atual,
mas também quanto está numa insolvência iminente

2. A insolvência atual, por sua vez, tem duas sub-modalidades (art. 3º/1/2):

1.1. Art. 3º/1: situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas.

Fala-se a este propósito, recorrendo a terminologia anglo-saxónica, no catch flow (fluxos de caixa).
O que interessa é ver se o devedor consegue ou não gerar fluxos de caixa para ir pagando as suas
obrigações vencidas.

Este é o critério geral que vale para qualquer devedor.

1.2. O art. 3º/2 consagra um outro critério (especial) para avaliar se devedor está numa situação de
insolvência atual, que só se aplica a alguns devedores: as pessoas coletivas e os patrimónios
autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por
forma direta ou indireta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja
manifestamente superior ao ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.

Por exemplo, se tivermos uma sociedade em nome coletivo como devedora, sabemos que ela tem
sócios com responsabilidade pessoal ou limitada pelas dívidas da sociedade. No entanto, essa
sociedade em nome coletivo pode ter como sócios só outras pessoas coletivas (de
responsabilidade limitada ou ilimitada) ou pode ter como sócios pessoas humanas.

Se a partir das normas contabilísticas se verifica que o passivo é manifestamente superior ao ativo,
estamos perante insolvência atual.

Isto é assim porque estamos justamente perante situações em que a responsabilidade vai parar, não vai
chegar a determinadas pessoas singulares. Vai parar em algum momento. Se não temos essas pessoas
singulares a responder pessoal e ilimitada, o que a lei diz é: alto! Há risco acrescido para credores.
Estamos a lidar com decisões que não se refletem no património individual das pessoas humanas.

São situações em que há um limite para se chegar a pessoas singulares. E porque assim é, temos um caso
em que não se pode deixar que a bola de neve cresça.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Porque se falamos de casos em que o que responde pela dívida são entidades e não as pessoas humanas
que estão por trás delas, se deixarmos a bola a crescer, quando há crise e se fecha a torneira de crédito,
eles deixam de pagar… E os credores têm lá o património.

 Mas o passivo é manifestamente superior ao ativo, pelo que não há bens suficientes no património
para pagar todos os créditos que recaiam sobre aquele devedor.

O que está em causa é isto  O critério do nº1 da insolvência atual (catch flow) permite que alguém que
tenha passivo manifestamente superior ao ativo, se tiver crédito, continue a pagar as obrigações vencidas.

Se só tivéssemos este critério, quem conseguisse crédito, mesmo que o passivo estivesse a crescer,
poderia continuar a pagar as obrigações vencidas. Os devedores podem ir conseguindo obter crédito para
pagar obrigações vencidas e vão empurrando o problema. Isto consegue-se gerir durante algum tempo. !

Se não tivéssemos o critério do art. 3º/2 a bola de neve poderia ir aumentando e aumentando. E com
este critério, sabemos que quando o passivo for manifestamente superior ao ativo, é possível a
declaração de insolvência, iniciar processo de insolvência com esse fundamento (!)

Há no art. 3º/3 formas de tentar fazer uma nova leitura do património do devedor e que finalmente o
passivo deixe de ser manifestamente superior ao ativo.

2. Insolvência iminente: não vem caracterizado no CIRE

Em situação de insolvência iminente só o devedor é que pode requerer a declaração de insolvência. Os


credores não podem requerer declaração da insolvência com base em insolvência iminente. Mas a lei não
a caracteriza.

Apresenta sim uma noção de situação económica difícil, a propósito do PER: art. 17º/b: «Para efeitos do
presente Código, encontra-se em situação económica difícil a empresa que enfrentar dificuldade séria para
cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir
obter crédito»

Isto é muito importante porque através desta caracterização podemos iniciar o PER, no momento em que
as coisas ainda se podem recuperar. Podemos também iniciar o RER.

Mas não se pode iniciar um processo de insolvência com base numa situação económica difícil. Mas sim
quando houver insolvência iminente.

Como é que ela se distingue da situação económica difícil? Na perspetiva de SOVERAL MARTINS : existe uma
situação de insolvência iminente quando para além de uma situação económica difícil, também se prevê
como mais provável que, num futuro próximo, essa mesma entidade devedora não esteja em condições de
cumprir as suas obrigações que venham então a vencer.

Ou seja, para haver insolvência, além da situação económica difícil para cumprir as suas obrigações, há que
fazer um juízo de prognose, de previsão do que vai acontecer num futuro próximo, e que esse juízo
prognose nos permita concluir que é mais provável um plano de insolvência atual do que a hipótese
contrária

Quanto ao período a ter em conta: é mais provável que a entidade devedora fique em situação de
insolvência atual do que a hipótese contrária.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Além disso, é necessário saber qual é o período a ter em conta! Se temos de fazer juízo de prognose para
futuro próximo, qual o período a ter em consideração?

 Alguns autores: 6 meses, para todos os devedores;


 Outros: 3 meses, para todos os devedores;
 Outros: 1 ano, para todos os devedores;
 Soveral Martins: o que é necessário é verificar qual é o período de tempo para aquele devedor que
vai carecer para realizar o completo ciclo produtivo acompanhado dos recebimentos a que tenha
direito. Temos de ver, para cada devedor, qual o período normal. E os contabilistas conseguem fazê-
lo, vendo o histórico, fazendo projeções, mapas de liquidez…

Isto interessa quando é o próprio devedor que se apresenta à insolvência! Porque os credores não podem
requerer um processo de insolvência com base em insolvência iminente

Já sabemos que os devedores podem apresentar-se à insolvência. E podem fazê-lo numa situação de
insolvência atual ou iminente.

Em certos casos, os devedores têm inclusivamente o dever de apresentação à insolvência.

Esses casos vêm identificados no artigo 18º/1: O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro
dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo
3.º, ou à data em que devesse conhecê-la.

Nº2 - Excetuam-se do dever de apresentação à insolvência as pessoas singulares que não sejam titulares de
uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência.

 Para os devedores que não são pessoas singulares, haverá sempre o dever de apresentação à insolvência;
 As pessoas singulares que não sejam titulares de empresas não têm dever de apresentação de
insolvência.

Portanto, são pressupostos da declaração de insolvência:

(1) Insolvência atual ou iminente.


(2) Se for iminente, apenas pode apresentar-se à insolvência o devedor. Isto porquê? Para evitar que haja
pressão dos credores sobre os devedores para que paguem sem estarem numa situação de insolvência.

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Direito Comercial I

MAIS ALGUNS ASPETOS:

Embora nalguns casos exista este dever de apresentação à insolvência, diz o nº1 que ele ocorre quando
devedor esteja em situação de insolvência tal como descrita no art. 3º/1: quando há impossibilidade de
cumprir obrigações vencidas. Se é à luz das outras situações de insolvência (critério da folha de balanço ou
insolvência iminente) parece que não há.

 Alguns autores entendem que pode haver este dever de apresentação à insolvência à luz de outras
situações que não a descrita no art. 3º/1
 Soveral Martins pensa que não, pois há uma expressa remissão para o art. 3º/1.

O art. 20º abre possibilidade para que outros legitimados possam requerer declaração de insolvência. São eles:
qualquer credor, Ministério Público em representação das entidades cujos interesses estão confiados ou ainda
quem for legalmente responsável pelas suas dívidas.

Pensemos numa sociedade em nome coletivo, que tem sócios de responsabildiade individual e ilimitada pelas
dívidas daquela sociedade: qualquer um dos sócios é legalmente responsável pelas dívidas, e portanto podem
requerer o processo de insolvência, de modo a não ficarem a olhar e a ver a bola a crescer, já que respondem
pelas dívidas

Razão: pretende-se impedir que a bola de neve continue a crescer

O processo de insolvência é uma forma, como Soveral Martins costuma dizer, de organizar a desgraça. É
preferível ter uma desgraça organizada do que um caos. E estamos a falar da organização da desgraça porque o
processo de insolvência também serve para proteger o devedor. Para já não falar da hipótese de recuperação,
claro.

2.1.4. Efeitos da declaração de insolvência. Em particular, os efeitos sobre o devedor e a eventual


qualificação da insolvência como culposa. A situação dos afetados pela qualificação da
insolvência como culposa

Se há apresentação do devedor à insolvência há um aceleramento do processo (fast track). Isso resulta do art.
28º. Passa-se logo para a declaração à insolvência em 3 dias úteis.

Se na realidade é um dos outros legitimados do art. 20º a requerer insolvência, o problema que temos de
enfrentar é este: o devedor pode não concordar. E então há um prazo para deduzir oposição. E então, vai
demorar mais tempo… Há prova, instrução, audiência, há prazo para o juiz apreciar prova e o que ocorreu na
audiência e preparar sentença.

Essa sentença vai ter teor previsto no art. 36º. A sentença vai fixar um prazo para os credores virem reclamar
créditos e é nesta fase que o processo envolve mais pessoas! Agora, os credores são todos chamados

Há a nomeação de um administrador de insolvência.

E a insolvência terá efeitos sobre créditos, sobre o devedor, sobre os negócios em curso e efeitos processuais.

(1) Efeitos sobre o devedor – art. 81º. Em regra, a declaração de insolvência priva imediatamente o
insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos
bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.

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Direito Comercial I

(2) Art. 46º/1/2: a massa insolvente é constituída, em regra, por todo o património do devedor à data da
declaração da insolvência e pelos bens que ele adquira na pendência do processo; no entanto, os bens
isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os
apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta.

(3) Cabe ao administrador da insolvência – não ao insolvente – administrar e dispor dos bens da massa
insolvente (património autónomo do devedor que é afetado ao pagamento das dívidas da massa e da
insolvência – art. 46/1 e 47º e ss).

Compete-lhe obter dinheiro através da alienação de bens da massa, ou/e continuar a atividade
empresarial que o insolvente vinha desenvolvendo (art. 55º/1)
.
(4) Se o insolvente dispuser de um objeto da massa, o ato é ineficaz, não produz efeitos (art. 81º/6). A
ineficácia é, agora, absoluta.
 Este responderá apenas pela restituição do que lhe houver sido prestado pela contraparte do
insolvente “apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa” (art. 81º/6 e 473º CC).
 Mas se o ato do insolvente for benéfico para a massa (para os credores), será lícito, então, o
administrador da insolvência ratificar o ato.

(5) No que diz respeito aos créditos, art. 91º: a declaração de insolvência determina o vencimento de
todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.

Tudo o que tinha prazo, considera-se, agora, como vencido. É justamente para obrigar que venham
todos ao processo reclamar os seus créditos. Pretende-se nivelar: estão todos no mesmo plano e são
tratados da mesma maneira.

(6) Um efeito processual muito importante, e que mostra porque é que o processo de insolvência
pretende organizar a desgraça, resulta do art. 85º: declarada a insolvência, todas as ações em que se
apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor,
ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as ações de
natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de
insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento
na conveniência para os fins do processo.

Mais importante que ao art. 85º é o art. 88º: a declaração de insolvência determina a suspensão de
quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam
os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer
ação executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a
execução prossegue contra estes.

Isto é muito importante que leva ao abuso. Isto é o que se chama “porto seguro”.

(7) Embora não seja um efeito direto, é um efeito que pode resultar de uma abertura de um incidente de
qualificação de insolvência: art. 36º.

Na sentença de declaração da insolvência ou em momento posterior pode o juiz declarar aberto o


incidente de qualificação da insolvência (art. 36º/1/i), art. 188º, art. 36º/4), a fim de apurar se ela é
culposa ou fortuita (art. 185 e 189º).

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Direito Comercial I

Não é necessário que este incidente de qualificação de insolvência seja aberto; o juiz é que vai decidir
se sim. Se for aberto, há duas coisas podem acontecer: (1) ou o juiz entende que insolvência é fortuita
(2) ou que é culposa.

Se for culposa, hoje resultam daí eventuais consequências muito graves. Se levar à qualificação como
culposa, essa qualificação levará a que o tribunal tenha de identificar afetados da insolvência como
culposa. E esses afetados, serão responsáveis pessoalmente pelo valor que não seja possível pagar em
sede de insolvência – art. 189º/2/e)

Às vezes o património integrado na massa insolvente, pode não chegar para pagar aos credores.

A insolvência é culposa, nos termos do art. 186º/1: A insolvência é culposa quando a situação tiver
sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos
seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de
insolvência.

Se o próprio devedor ou administrador de direito ou de facto, cria ou agrava situação de insolvência


com dolo ou culpa grave, a insolvência é culposa.

E outros sujeitos podem ser afetados pela qualificação – art. 189º/2/a). Estas pessoas todas, e outras
em enumeração exemplificativa, podem ser afetados.

 Soveral: considera que só aqueles três é que podem, pela sua atuação, levar à qualificação da
insolvência como culposa.
 Coutinho: considera que todos os afetados podem levar à qualificação da insolvência como
culposa

Era tradicional entre nós a inibição legal do falido pessoa singular para o exercício do comércio, como consequência
imediata da declaração de falência. Deixou, e bem, de ser assim: só ficam proibidos de exercer o comercio as pessoas
singulares afetadas pela qualificação e insolvência como culposa.

Não parece que a inibição para o exercício do comércio seja qualificável como incapacidade. Ela não se funda em
défices nas faculdades pessoais dos afetados, e visa proteger não os inibidos, mas o comércio; os sujeitos proibidos
de comerciar, e a inobservância da inibição não provoca a invalidade dos atos correspondentes.

Deve, pois, a inibição de comerciar ser qualificada como incompatibilidade absoluta – impossibilidade legal do
exercício de comércio por pessoa afetada pela qualificação da insolvência como culposa.

Se a pessoa proibida de comerciar violar a proibição, exercendo profissionalmente o comércio, torna-se comerciante?
Parece que não. Não deve poder ostentar o título de comerciante e ter o correspondente estatuto quem está
legalmente impedido de comerciar.

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Direito Comercial I

Referimos, em primeiro lugar, que um dos efeitos da declaração de insolvência é passar a disposição e
administração dos bens da massa.

 Mas há casos em que é possível em que o devedor continue a administrar bens da massa: tem de
haver empresa na massa, mas é possível (mas não é o regime regra) – art. 223º e ss.

Será possível apenas aos casos em que na massa insolvente esteja compreendida uma empresa .

Isto é assim por enquanto, mas não é a regra. Há uma proposta de diretiva que almeja estabelecer como regra
a administração do devedor. O devedor continua como administrador da massa e poder dispor dela embora
com limitações. Talvez num futuro próximo passe a ser

Outro aspeto muito importante: o plano de insolvência não pode ser utilizado por qualquer devedor.

O art. 250º é muito importante e tem como epígrafe «Inadmissibilidade de plano de insolvência e da
administração pelo devedor»: aos processos de insolvência abrangidos pelo presente capítulo não são
aplicáveis as disposições dos títulos IX e X

Quais os processos deste capítulo? Temos de ir ao art. 249º. Ou não são empresários, ou são apenas titulares
de pequenas empresas tal como caracterizadas no art. 249º.

O que se diz é que se se tata de devedor pessoa singular não empresário ou se se trata de um devedor pessoa
singular de uma pequena empresa tal como é ali qualificada, esses sujeitos não podem recorrer à
administração por devedor nem ao plano de insolvência. Quanto muito podem recorrer ao plano de
pagamentos.

Mencionar, ainda, a este propósito, que no art. 189º vão indicar-se um conjunto de efeitos da sentença
qualificação como culposa.

 Um dos efeitos será identificar afetados, responsabilizar os afetados pela diferença que falta pagar.
 Mas temos mais consequências: que será declarar as pessoas afetadas inibidas para exercício do
comércio - alínea c) do nº 2 art. 189º.

2.1.5. O plano de insolvência. Em especial, o plano de recuperação


2.1.6. Modalidades. O plano de recuperação
2.1.7. Quem pode apresentar proposta
2.1.8. Conteúdo possível do plano de recuperação. Medidas

O plano de insolvência é um instrumento de natureza jurídico-negocial utilizável pelos credores que contém,
em documento particular, primordialmente medidas de recuperação de empresa do devedor insolvente.

 Se este continuar a explorar a empresa, os credores esperam satisfazer-se basicamente com os resultados
empresariais;
 No caso de a empresa ser transmitida, satisfazem-se os credores principalmente com (parte de) o produto
da venda e/ou a aquisição de participações em nova sociedade por troca de créditos sobre o insolvente.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

O plano de insolvência pode apresentar 3 modalidades:

a) Plano de Recuperação
b) Plano de Liquidação
c) Plano de Natureza Mista: de recuperação e liquidação

Algumas notas sobre o plano de insolvência - o CIRE, logo no art. 1º, a propósito do plano de insolvência,
refere-se à “recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”. Convém, no entanto, chamar
atenção para alguns pontos.

a) O «plano de insolvência», mesmo quando aplicado a empresários, não tem de visar a recuperação da
empresa.

Embora o desígnio recuperativo do plano deva ser considerado primordial (art. 1º), é certo que aquele
instrumento pode ser utilizado com objetivos que não passam pela recuperação empresarial (pode o plano
regular uma liquidação mais ou menos atomística da empresa) – arts. 1º e 192º/1

b) A «recuperação» de empresa de que o CIRE trata deve ser entendida em sentido amplo.

Em sentido estrito, uma empresa (em sentido objetivo) é ou pode ser objeto de medidas de recuperação se
não está em condições de gerar lucros ou, ao menos, receitas suficientes para cobrir os respetivos custos
de produção.
 A recuperação implica uma reorganização da empresa, de modo a (re)adquirir as condições de
“vida” autónoma.

Ora, é possível que o plano de insolvência preveja tão-só a continuidade ou manutenção da empresa, na
titularidade do insolvente ou de terceiro (arts. 195º/2/b)/c) e 199º).

Esta manutenção está igualmente compreendida no significado normativo de “recuperação de empresa”

c) Mesmo na via geral da liquidação do património do insolvente está possibilitada, e potenciada, a


recuperação-manutenção de empresa; mas já não, naturalmente na esfera jurídica do insolvente.

Diz, com feito, o art. 162º: “a empresa compreendida na massa insolvente é alienada como um todo, a não
ser que não haja proposta satisfatória ou se reconheça vantagem na liquidação ou na alienação separada
de certas partes ”

Vimos há pouco, na alínea b), que o plano de insolvência pode também prever a transmissão de empresa
para terceiro.
 Nestes casos, porém, o terceiro adquirente que mais releva é a sociedade (ou sociedades)
constituída(s) e organizada(s) nos termos indicados no plano (entre outros, o art. 199º).

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Direito Comercial I

d) À via da liquidação nos termos do CIRE e à vida do plano de insolvência não correspondem duas formas
(especiais) de processo; há unicamente o “processo de insolvência” (art. 1º/1 CIRE).

Apesar do nome do Código («da Insolvência e da Recuperação das Empresas»), evocativo do precedente
“Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência” (CREF), de 1993, que
consagrou dois processos distintos (um de recuperação, outro de falência).

Por outro lado, o CIRE não dá prevalência a qualquer daquelas vias, nem prefere, portanto, a recuperação
de empresa à liquidação; confere aos credores o poder de decidir.

Podem apresentar proposta de plano:

a) O devedor (quando se apresenta à insolvência ou posteriormente – art. 24º/3);


b) O administrador da insolvência (disso encarregado por deliberação da assembleia de credores que
aprecia o relatório dele – art. 36º/n), art. 155º/1/c), art. 156º/3/4 – ou por própria iniciativa;
c) Um credor ou grupo de credores com créditos correspondentes pelo menos a 1/5 do total dos créditos
não subordinados e qualquer responsável legal pelas dívidas da insolvência – art. 193º.

NO CIRE vamos encontrar uma série de providências ou medidas de recuperação de empresa. É possível
estatuir num plano de insolvência várias medidas de recuperação de empresa dependendo fundamentalmente
da imaginação e vontade dos credores.

 O CIRE não mantém a taxatividade das providências de recuperação que o CREF consagrara (concordata,
reconstituição empresarial, reestruturação financeira e gestão controlada).

Ainda assim, o legislador do novo Código não se coibiu de indicar numerosas medidas. Algumas delas, aliás,
não podiam ser acordadas pelos credores na ausência de permissão legal (nomeadamente art. 198º/2). E
algumas dessas medidas são idênticas ou afins das previstas nos CREF.

Esta determinação do conteúdo do plano de insolvência vai passar por um diálogo entre quem apresenta plano
(devedor, administrador, credores com alguma importância, pessoas responsáveis pelas dívidas do insolvente).
Mas essa pessoa o que faz é antes de apresentar o plano, conversar com credores que tenham importância
suficiente para aprovar o plano.

Não vale a pena apresentar propostas que se sabe que não vão passar. Quem vai apresentar o plano, seja
devedor ou administrador, é bom que antes da apresentação da proposta procure negociar com credores que
tenham importância suficiente.

 Normalmente, são os bancos. Eventualmente pode haver necessidade de diálogo com SS ou autoridade
tributária, mas normalmente são os bancos que vão poder fazer passar o plano de insolvência.

É importante saber o que acontece em relação a matérias não reguladas no plano de insolvência. O art. 197º é
muito importante em relação a isso:

Na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência:


a) Os direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios não são afetados pelo plano;
b) Os créditos subordinados consideram-se objeto de perdão total;
c) O cumprimento do plano exonera o devedor e os responsáveis legais da totalidade das dívidas da
insolvência remanescentes.

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Quase todas as providências com incidência no passivo do devedor exemplificadas no art. 196º/1 do CIRE eram
adotáveis em concordata e/ou reestruturação financeira.

Aí se fala de perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, com ou sem cláusula “salvo regresso
de melhor fortuna“; condicionamento do reembolso de todos ou parte dos créditos às disponibilidades do
devedor; modificação dos prazos de vencimento (pactuando-se moratórias, designadamente) ou das taxas de
juro dos créditos; constituição de garantias; cessão de bens aos credores.

Outra medida: o saneamento por transmissão (art. 199º CIRE), que assenta na constituição de uma ou mais
SWAP
sociedades para a exploração de um ou mais estabelecimentos adquiridos à massa insolvente, aproxima-se da
“reconstituição natural” regulada no CREF.

 Mas o novo Código não reincide em alguns pontos de regime criticáveis no anterior instituto, não
suscitando juízos de inconstitucionalidade.

Normalmente, a nova sociedade será constituída principalmente por credores da insolvência que adquirem as
respetivas participações sociais (partes, quotas ou ações) em contrapartida da cessão à sociedade de créditos
sobre o insolvente.

O plano de insolvência, em anexo, contém o estatuto social e prevê quanto ao preenchimento dos órgãos.

Deve ainda o plano discriminar o(s) estabelecimento(s) a adquirir pela nova sociedade à massa insolvente
“mediante contrapartida adequada” (art. 199º). Uma vez que a empresa (no todo ou em parte) se mantém,
essa contrapartida equivalerá ao menos à soma dos “valores de continuidade” dos elementos empresariais
(art. 153º/2 e art. 195º/2/c) parte final)

A sentença homologatória do plano de insolvência constitui título bastante para a “constituição da nova
sociedade ou sociedades e para a transmissão em seu benefício dos bens e direitos que deva adquirir, bem
como para a realização dos respetivos registos” - art. 217º/3/a)

O saneamento da empresa pode ser tentado mantendo-se a empresa na titularidade e exploração do devedor
insolvente (sem transmissão, portanto) – art. 195º/2/b).

Cabe neste quadro inclusive a “administração pelo devedor” (art. 223º e ss). Apesar de estar prevista num
título próprio (título x), ela pressupõe plano de insolvência – art. 224º/2/b)/3 e art. 228º1/e)

Surpreendentes são algumas das “providências específicas de sociedades comerciais” indicadas no art. 198º.

O art. 198º contém uma série de providências quanto a sociedades comerciais. O plano de insolvência pode
conter medidas importantes que em regra estariam reservadas a deliberação dos sócios, e agora passam a
intervir os credores.

A ideia é esta: se falamos de um devedor em insolvência, agora é como se os credores fossem titulares da
sociedade. Este é um pensamento liberal. Mantém-se um regime que em grande parte ainda é o regime
original, sendo esta redação ainda de 2004, anterior à grande reforma.

É razoável o disposto no nº1: o plano de insolvência pode ser condicionado à adoção e execução, pelos órgãos
sociais competentes, de certas medidas – por exemplo, um aumento de capital deliberado pelos sócios.

Já o disposto no nº2 (associado a outros números) afigura-se, para Coutinho de Abreu, desajustado. Aí se diz
que pode ser adotado “pelo próprio plano de insolvência” – pelos credores da sociedade insolvente, sem
qualquer intervenção (decisiva) dos órgãos sociais (do sócio único ou da coletividade dos sócios,
nomeadamente) – o seguinte:

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a) Redução do capital social para cobertura de prejuízos, incluindo a redução a zero ou a montante inferior
ao mínimo legal se, neste caso, for acompanhada de aumento do capital para montante igual ou superior
àquele mínimo;

 Porém, a redução a zero “só é admissível se for de presumir que, em liquidação integral do
património da sociedade, não subsistiria qualquer remanescente a distribuir pelos sócios” (nº3)

b) Aumento do capital social a subscrever por terceiros ou por credores (designadamente mediante a
conversão de créditos sobre a insolvência em participações sociais), com ou sem respeito pelo direito de
preferência dos sócios previsto legal (art. 266º e 458º CSC) ou estatutariamente.

Porém, a supressão do direito de preferência só é lícita se o capital social for previamente reduzido a zero,
ou se ela não acarretar “desvalorização das participações que os sócios conservem” (nº4).

 Na primeira hipótese, a supressão do direito de preferência significa a exclusão dos sócios da


sociedade – tenham ou não qualquer responsabilidade pela situação de insolvência, estejam ou não
disponíveis para recapitalizar a sociedade…

 Quanto à segunda hipótese, dificilmente se poderá dizer que a não participação dos sócios em
aumento de capital não acarreta desvalorização das suas participações; ainda que as novas
participações sejam emitidas pelo valor real, os sócios atuais verão as respetivas posições relativas
enfraquecidas – e isto traduzir-se-á normalmente em diminuição do valor comercial das
participações.

c) Outras alterações dos estatutos da sociedade (além dos aumentos e reduções do capital); transformação
da sociedade (adoção de um tipo diferente); alteração dos órgãos sociais (mudança de titulares dos órgãos
de administração e de fiscalização, parece) – alíneas c), d) e e) do nº2.

Porém, a adoção destas medidas depende geralmente da estatuição no plano de um aumento de capital
que proporcione a credores e/ou terceiros maioria de votos (maioria qualificada pelo menos com
referência às alíneas c) e d) ) – nº5

d) Exclusão de todos os sócios de sociedade em nome coletivo ou em comandita simples (acompanhada da


admissão de novos sócios) ou dos sócios comanditados de sociedade em comandita por ações
(acompanhada de redução de capital zero), recendo os sócios excluídos “contrapartida adequada, caso as
partes sociais não sejam destituídas de qualquer valor” (alíneas f) e g) do nº2 e nº6).
Exclusão de todos os sócios de responsabilidade ilimitada, gerentes ou não, com ou sem influência na
criação ou agravamento da situação de insolvência, seja ou não culposa a insolvência!... E exclusão até dos
sócios comanditários de sociedade em comandita simples.

Estas são medidas que, segundo a legislação societária, em regra, somente aos sócios é facultado tomar,
poderem ser impostas pelos credores da sociedade. É estranho que o Código não se baste com permitir aos
credores disporem do património da sociedade ou condicionarem a continuação dela à adoção de medidas
pelos órgãos respetivos (art. 198º/1) e lhes permita ainda infundirem alterações tão drásticas na organização
pessoal da sociedade.

150
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Nas sociedades anónimas, há uma diretiva de consolidação, de 2017, que veio unir diretivas, e essa diretiva
obriga que as legislações dos Estados-membros, nesta matéria, imponham a tomada destas decisões por
acionistas. Têm de ser acionistas a deliberar aumentos ou reduções de capital.

 Portanto, o nº2 do art. 198º viola a 2ª Diretiva em matéria de sociedades (Diretiva 77/91/CEE aplicável às
sociedades anónimas), que não permite aos credores sociais decidir qualquer aumento (com ou sem
direito de preferência dos sócios) ou redução do capital (art. 25º, 29º, 30º) – v. agora os arts. 68º, 72º,
73º da Diretiva (UE) 2017/1132.

Tanto é assim que justamente a proposta de diretiva que está agora em discussão prevê precisamente uma
alteração deste regime na outra diretiva comunitária.

2.1.9. Assembleia de credores e votação da proposta. Aprovação


2.1.10. Homologação ou recusa de homologação. Efeitos da homologação

Se o juiz admitir a proposta (ou propostas) de plano de insolvência (art. 207º) notificará as entidades
mencionadas no art. 208º para, querendo, emitirem parecer sobre elas. E convocará a assembleia de credores
para discutir e votar a(s) proposta(s) de plano (art. 209º).

Porém, a assembleia não poderá realizar-se antes de transitada em julgado a sentença de declaração de
insolvência, de esgotado o prazo para a impugnação da lista de credores reconhecidos (art. 128º e ss,
sobretudo o art. 130º/1) e da realização da assembleia de apreciação do relatório (art. 36º/n)): art. 209º/2, na
redação introduzida pelo DL 200/2004.

Ou seja, só depois da declaração da insolvência é que há possibilidade de recuperação através do plano de


insolvência.

E note-se: não está garantido que haja recuperação! O plano de recuperação, para já, tem de ser apresentado.
Depois, é necessário que seja aprovado pelos credores. E mesmo que seja aprovado pelos credores, tem de
passar por um controlo: tem de ser homologado pelo juiz

Para que a hipótese de recuperação empresarial pareça plausível aos credores em assembleia de discussão de
proposta de plano de insolvência, é naturalmente importante que a empresa não se encontre paralisada e
mantenha o maior ativo possível.

Ora, entre o início do processo de insolvência e a verificação das condições do art. 209º/2, há o risco de serem
tomadas decisões (em particular pelo devedor, primeiro, e pelo administrador de insolvência, depois) que
comprometam a manutenção da empresa.

151
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

O Código prevê, porém, algumas medidas que diminuem o risco. Assim:

1. Antes da declaração de insolvência, pode o juiz ordenar medidas cautelares, designadamente nomear um
administrador judicial provisório para administrar o património do devedor ou assistir este na administração – art. 31º
e 33º);

2. Antes da assembleia de credores de apreciação do relatório, o administrador da insolvência deve prever à continuação
da exploração da empresa (art. 55º/1/b)), a menos que considere mais vantajoso encerrá-la (total ou parcialmente) e
respeite as exigências do art. 157º;

3. A assembleia de credores de apreciação do relatório delibera sobre o encerramento ou manutenção em atividade da


empresa ou parte(s) dela (art. 156º/2) e pode determinar a suspensão da liquidação e partilha da massa insolvente se
encarregar o administrador da insolvência de elaborar um plano – art. 156º/3;

4. A suspensão da liquidação e partilha é decretável ainda pelo juiz, quando requerida por proponente de plano de
insolvência e se mostre necessária para não pôr em risco a execução do plano proposto – art. 206º/1, mas ver o nº2;

5. O administrador da insolvência deve obter o consentimento da comissão de credores, para vender a empresa (ou
parte dela) ou alienar bens necessários à continuação da exploração da empresa (não encerrada) – art. 161º;

6. Mesmo a liquidação de bens da massa insolvência sobre que recaiam garantias reais poderá ser, pelo menos,
retardada, se tal se mostrar necessário ou conveniente para a manutenção da empresa – art. 166º

Na assembleia de credores, presidida pelo juiz (art. 74º), têm direito de participar os credores (com ou sem
direito de voto), bem como outras pessoas (sem direito de voto, naturalmente) – art. 72º.

Para se poder deliberar sobre o plano de insolvência é necessário que estejam presentes ou representados na
assembleia de credores cujos créditos constituam, pelo menos 1/3 do total dos créditos com direito de voto
(art. 212º/1 e 211º/1). Em geral, os créditos (não subordinados) conferem um voto por cada euro ou fração
(art. 73º).

Porém, em assembleia para apreciação de plano não conferem direito de voto, nos termos do art. 212º/5: “os
créditos subordinados de determinado grau, se o plano decretar o perdão integral de todos os créditos de graus
hierarquicamente inferiores e não atribuir qualquer valor económico ao devedor ou aos respetivos sócios,
associados ou membros, consoante o caso.” (também o nº4)

A votação da(s) propostas de plano de insolvência realizar-se-á, por norma, na assembleia (art. 212º/1, art.
210º); mas é possível que o juiz determine “votação por escrito” (fora de assembleia) – art. 211º

Em qualquer caso, a proposta considerar-se-á aprovada se obtiver “mais de 2/3 da totalidade dos votos
emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se
considerando como ta as abstenções” – art. 212º/1

(!) O plano de insolvência aprovado pelos credores necessita, para que seja plenamente eficaz, de ser
homologada por sentença judicial – art. 217º

152
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Segundo o art. 215º, o juiz recusa oficiosamente a homologação em certos casos.

 Um é de ter havido “violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao
seu (do plano) conteúdo”.

Vício de procedimento “não negligenciável” existirá, por exemplo, quando um credor sem direito de voto
tenha sido admitido à votação e os seus votos se relevem decisivos para a obtenção de alguma das maiorias
exigidas no art. 212º/1, ou quando um credor tenha “vendido” os seus votos (art. 194º/3).

Quanto aos vícios de conteúdo relevantes, importa ressaltar a violação de normas legais impondo
determinados consentimentos.

Assim, por exemplo, é ilegal:

 O plano segundo o qual o devedor pessoa singular deva continuar a exploração da empresa sem que ele
tenha declarado por escrito a disponibilidade para o efeito (art. 202º/1. ver também art. 224º);

 O plano que disponha, sem consentimento das autoridades públicas competentes, o perdão ou redução,
etc. dos créditos tributários (e da segurança social);

 Ou o plano dispondo a conversão de créditos em participações sociais (relativas à sociedade insolvente ou


a nova sociedade) sem anuência dos respetivos titulares, prestada por escrito ou através de voto
favorável à proposta do plano (art. 202º/2).

Contudo, quanto a esta última hipótese, há que ressalvar os casos em que a lei dispensa o consentimento.

Prescreve, com efeito, o art. 203º/1: não carece de consentimento dos respetivos titulares a conversão de
créditos comuns ou subordinados em participações sociais referentes à sociedade insolvente ou a nova
sociedade (bem como a extinção desses créditos por contrapartida da atribuição de opções de compra de
participações sociais que resultem da conversão de créditos de grau superior) quando tais participações sejam
ações livremente transmissíveis (em mercado regulamentado, logo que possível).

Voltemos ao art. 215º.

O juiz recusa ainda oficiosamente a homologação do plano de insolvência quando, no prazo razoável que
estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos que devem
preceder a homologação (sobre umas e outros, art. 201º/1/2)

Em outra banda, o juiz recusa a homologação do plano por solicitação de interessado(s) (devedor-não
proponente do plano, credor, sócio, associado ou membro do devedor) que haja(m) manifestado nos autos a
sua oposição antes da aprovação do plano, quando o requerente demonstre em termos plausíveis que a sua
situação ficará pior com o plano do que sem ele, ou que o plano proporciona a algum credor um valor
patrimonial superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor de
eventuais contribuições a que fique obrigado – art. 216º

Mas também aqui não recusará o juiz a homologação quando o plano cumpra as condições previstas nas
alíneas do nº3 do art. 216º e o oponente (mostrando embora alguma das situações referidas nas alíneas do
nº1) seja o devedor, seu sócio, associado ou membro, ou um credor comum ou subordinado (uma vez mais se
salvaguarda a posição dos credores garantidos e privilegiados) – art. 216º/3.

153
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Se o plano é homologado, o art. 217º estabelece: Com a sentença de homologação produzem-se as alterações
dos créditos sobre a insolvência introduzidas pelo plano de insolvência, independentemente de tais créditos
terem sido, ou não, reclamados ou verificados.

Os efeitos produzem-se mesmo em relação a quem votou contra, independentemente também de tais créditos
tenham sido reclamados ou não.

É possível manter em funções o administrador da insolvência para fiscalizar o plano de insolvência.

Encontramos no art. 215º fundamentos para recusa de homologação e no art. 216 fundamentos de
não homologação a pedido dos interessados

154
O PER é um processo especial, por contraposição ao processo geral de insolvência (que por Maria Madalena Cavaleiro
sua vez já é especial na óptica do processo civil) – portanto, é um processo especialíssimo. Direito Comercial I

5.1. Processo especial de revitalização – PER

A declaração de insolvência é visto como algo negativo por muitos empresários.

 Não é assim em muitos outros países, nomeadamente nos EUA e nos países anglo-saxónicos. Nestes
países, os empresários são declarados insolventes várias vezes ao longo da sua vida.

O facto da recuperação só ser possível após declaração de insolvência, faz com que as pessoas não queiram a
presentar-se à insolvência. Há um estigma à volta da declaração de insolvência.

Isto levou a que, depois da grande crise, se introduzisse no CIRE um processo de recuperação de empresas, que
possibilita recuperação destas antes da insolvência. O PER foi introduzido para evitar este estigma da
declaração da insolvência.

Na verdade, o facto de essa recuperação só ser possível após a declaração de insolvência, levava a que muitos
empresários atrasassem a declaração de insolvência, o que tornava quase impossível a recuperação porque já
era muito tarde. Se tivesse declarado insolvência mais cedo, talvez tivesse sido possível recuperar a empresa
no âmbito daquele processo de insolvência.

O PER tem duas sub-modalidades

(1) O PER, na modalidade regulada nos arts. 17º-A a 17º-H do CIRE, destina-se a permitir à “empresa” em crise
ou desvitalizada (em situação económica difícil ou de insolvência iminente) estabelecer negociações com os
seus credores a fim de concluir com eles acordo (“plano de recuperação”) conducente à sua revitalização (art.
17º-A /1)

Nesta modalidade, o PER é um processo judicial.

O processo é iniciado mediante requerimento da empresa ao tribunal, acompanhado de várias declarações e


documentos:

a. Declaração escrita da empresa manifestando a convicção de que reúne condições para ser recuperada;
b. Declaração subscrita por contabilista certificado ou por ROC atestando que a empresa não está
insolvente;
c. Declaração escrita em que a empresa e um ou mais credores (não especialmente relacionados com ela)
titulares de, em regra, pelo menos 10% dos créditos não subordinados manifestam a vontade de
encetarem negociações para a revitalização da empresa;
d. Proposta de plano de recuperação (arts. 1º/2, 17º-A/2 e 17º-C/1/2/3/6)

Nota: hoje, com as alterações introduzidas em 2017, só pode ser utilizado por devedores empresários.

O PER ao contrário do que se passa no processo de insolvência vai iniciar-se a requerimento do devedor
empresário. E há uma grande diferença: não se inicia a requerimento do credor, MP ou qualquer responsável
pelas dívidas do devedor. Mas claro, o devedor sozinho não consegue nada.

 Tanto não consegue que são necessários todos aqueles documentos e declarações dos credores e
contabilistas.

155
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Verificando-se os pressupostos para o prosseguimento, o juiz nomeia por despacho administrador judicial
provisório (art. 17º-C/4)

Todos os credores são convidados pelo devedor a participar nas negociações, todos eles podendo ser
participantes (nº 1 e 7 do art. 17º-D).

 E todos eles têm oportunidade para reclamar créditos (nº 2, 3 e 4 desse artigo).
 Findo o prazo para impugnações da lista provisória de créditos, as negociações (sob orientação do
administrador judicial provisório) devem ser concluídas no prazo de 2 ou (se houver prorrogação) 3
meses (nº5, 8, 9).

Depois do referido despacho do juiz, e enquanto durarem as negociações, as ações para cobrança de dívidas
contra a empresa, não podem ser propostas e são suspensas as instauradas antes; estas ações extinguir-se-ão
se e quanto o plano de recuperação for aprovado e homologado (com trânsito em julgado), salvo se ele previr a
sua continuação (art. 17º-E).

O art. 17º-E nº8 (aditado pelo DL 79/2017) proíbe a suspensão de certos “serviços públicos essenciais”
enquanto durarem as negociações.

8 - A partir da decisão a que se refere o número anterior e durante todo o tempo em que perdurarem as negociações,
não pode ser suspensa a prestação dos seguintes serviços públicos essenciais:

a) Serviço de fornecimento de água;


b) Serviço de fornecimento de energia elétrica;
c) Serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados;
d) Serviço de comunicações eletrónicas;
e) Serviços postais;
f) Serviço de recolha e tratamento de águas residuais;
g) Serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos.

Por outro lado, depois do citado despacho do juiz nomeado administrador judicial provisório, a empresa fica
impedida de, sob pena de ineficácia, praticar atos de relevo especial para o processo sem autorização do
administrador (art. 17º-E/2 a 5 e 17º-C/4 remetendo para o art. 34º).

Art. 17º-G: Caso a empresa ou a maioria dos credores prevista no n.º 5 do artigo anterior concluam
antecipadamente não ser possível alcançar acordo, ou caso seja ultrapassado o prazo previsto no n.º 5 do
artigo 17.º-D, o processo negocial é encerrado, devendo o administrador judicial provisório comunicar tal facto
ao processo, se possível, por meios eletrónicos e publicá-lo no portal Citius.

Então, o que vamos encontrar neste artigo é a existência do que os anglo saxónicos designa de bypass – via de
comunicação que aberta entre processo especial de revitalização e processo de insolvência.

156
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Nº4: Compete ao administrador judicial provisório na comunicação a que se refere o n.º 1 e mediante a
informação de que disponha, após ouvir a empresa e os credores, emitir o seu parecer sobre se aquela se
encontra em situação de insolvência e, em caso afirmativo, requerer a respetiva insolvência, aplicando-se o
disposto no artigo 28.º, com as necessárias adaptações, e sendo o processo especial de revitalização apenso ao
processo de insolvência.

Ao remeter para o art. 28º, está a promover uma declaração imediata da situação de insolvência.

Soveral Martins entende que esta solução é inconstitucional, por violação do princípio da garantia da defesa
constitucionalmente protegido (art. 20º) da necessidade de se respeitar direitos de defesa de quem vê contra
si apresentado um processo em tribunal. Há mesmo a violação do próprio princípio do contraditório.

Vejamos que o devedor não tem direito de se opor a esse requerimento do administrador judicial provisório.
Deveria ser aberta fase para que o devedor pudesse, se quisesse, deduzir oposição. E isso não está previsto.
Uma coisa é o administrador judicial provisório ouvir o devedor anteriormente.

 Há decisões de tribunais superiores já no sentido de considerar esta norma inconstitucional.


 Alguns tribunais entendem que o AJP está a atuar em representação do devedor e era como se fosse
ele a apresentar-se à insolvência. Soveral acha esta interpretação abusiva.

Há decisões dos tribunais nos dois sentidos.

O plano de recuperação, enquanto instrumento jurídico-negocial, pode conter quaisquer providências não
proibidas por lei.

 Por exemplo, perdão parcial de dívidas, diminuição das taxas de juro por créditos, moratórias para
satisfação de créditos, promoção de aumento do capital (de sociedade), obrigação de um ou mais
credores emprestarem dinheiro à empresa ou disponibilizarem-lhe, a crédito, meios de produção,
constituição de garantias a favor de credores.

Os dois últimos exemplos ligam-se ao art. 17º-H “As garantias convencionadas entre a empresa e os seus
credores durante o processo especial de revitalização, com a finalidade de proporcionar àquela os necessários
meios financeiros para o desenvolvimento da sua atividade, mantêm-se mesmo que, findo o processo, venha a
ser declarada, no prazo de 2 anos, a sua insolvência” – nº1.

A estatuição aplicar-se-á às garantias constituídas no decurso das negociações do PER e autorizadas pelo
administrador judicial provisório (arts. 17º-E/2 e art. 161º/3/f)).

Por sua vez, diz o art. 17º-H nº2: “Os credores que, no decurso do processo, financiem a atividade da empresa
disponibilizando-lhe capital para a sua revitalização gozam de privilégio creditório mobiliário geral, graduado
antes do privilégio mobiliário geral concedido aos trabalhadores”.

Estes negócios de financiamento são também insuscetíveis de resolução em benefício da massa insolvente, no
caso de vir a ser declarado insolvente – art. 120º/6

157
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

A resolução em benefício da massa insolvente é um instituto previsto pelo CIRE para fazer regressar à massa
insolvente bens que tenham saído antes da declaração de insolvência. Há certos bens que poderão ter saído da
massa insolvência e não deveriam. Porquê? Porque pode ter havido atuação do devedor para preparar
insolvência (passar udo para nome dos filhos)

O que acontece aqui é que estas garantias são postas ao abrigo dessa possibilidade: mantêm-se mesmo que
fim do processo, ao fim de 2 anos, seja declarada insolvência, que é o prazo para pedir resolução em benefício
da massa

É assim em relação a estas garantias para tentar evitar que os credores em causa sejam influenciados pela
possibilidade futura de resolução

Para efeitos deste Código, os créditos sobre a insolvência são:


a) ‘Garantidos’ e ‘privilegiados’ os créditos que beneficiem, respetivamente, de garantias reais, incluindo os
privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente,
até ao montante correspondente ao valor dos bens objeto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em
conta as eventuais onerações prevalecentes;
b) ‘Subordinados’ os créditos enumerados no artigo seguinte, exceto quando beneficiem de privilégios
creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de
insolvência; - art. 48º
c) ‘Comuns’ os demais créditos.

Se até ao termo das negociações a empresa depositar no tribunal um plano de revitalização, este, decorrido
certos prazos, é sujeito a votação (art. 17º-F /1/2/3)

 A votação é feita por escrito, “sendo os votos remetidos ao administrador judicial provisório, que os
abre em conjunto com a empresa” (art. 17º-F/6).

Atribuem direito de voto os créditos que constam da lista definitiva de créditos (art. 17º-D nº4) ou, se esta
ainda não existir, os créditos não impugnados incluídos na lista provisória (art. 17º-D nº3) e ainda os créditos
impugnados relativamente aos quais haja probabilidade séria de virem a ser reconhecidos (art. 17º- F nº5)

 Em qualquer caso, porém, não conferem direito de voto os créditos que não sejam afetados pelo
plano de recuperação – art. 212º/2/a), aplicável por analogia.

No caso de o plano de recuperação não ser aprovado por unanimidade quando tenham votado credores cujos
créditos representem pelo menos 1/3 do total dos créditos com direito de voto, mais de 2/3 dos votos emitidos
sejam a favor e mais de metade dos votos favoráveis corresponder a créditos não subordinados (alínea a)); ou
obtiver, a favor, a maioria dos votos emissíveis e mais de metade destes votos favoráveis corresponda a
créditos não subordinados (alínea b)).

As alíneas a) e b) do nº5 do art. 17º-F terminam com a mesma frase: “não se considerando como tal [?] as
abstenções”. Ora, porque o voto escrito há de ser a favor ou contra o (a proposta de) plano de recuperação,
nos termos do art. 211º/2 para que remete para o art. 17º-F nº6, não admitindo portanto a abstenção
propriamente dita, aquela frase parece ter sentido de que para o cômputo das maiorias referidas, não valem
como votos a favor ou contra, principalmente, os votos em branco (documentos assinados mas sem qualquer
declaração-voto)

158
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

O plano de recuperação aprovado é objeto de decisão de homologação ou não homologação do juiz (art. 17º-F
nº7).

 Para as causas de não homologação vale, com adaptações, o disposto nos arts. 215º e 216º - art. 17º-
F nº7.
 Quanto aos efeitos da não homologação, o nº8 remete para os nº2, 3, 4, 6,7 do art. 17º-G.
 “A decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os
seus créditos ou participado nas negociações” – art. 17º-F nº10.

(2) A segunda modalidade do PER está regulada no art. 17º-I, que remete abundantemente para artigos
anteriores. O que aqui importa realçar é o facto de o PER, nesta modalidade, iniciar-se com a apresentação ao
tribunal, pela empresa, de um acordo extrajudicial de recuperação assinado por ela e por credores seus que
representem pelo menos a maioria de votos prevista no nº5 do art. 17º-F, acompanhado de outros
documentos (art. 17º-I nº1)

 O que vamos encontrar é um caso em que toda a negociação do plano se passou fora do processo judicial;
antes do processo.

159
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

4.3. Regime extrajudicial de recuperação de empresas – RERE

O RERE, criado pela Lei 8/2018, “regula os termos e os efeitos das negociações e do acordo de reestruturação
que seja alcançado entre um devedor e um ou mais dos seus credores, na medida em que os participantes
manifestem, expressa e unanimemente, a vontade de submeter as negociações ou o acordo de reestruturação
ao regime previsto na presente lei” (art. 2º/1)

Nada impede que um devedor (potencialmente beneficiário do RERE) negoceie com credor(es) um acordo de
recuperação mas sem que fiquem sujeitos ao RERE quer o processo negocial, quer o acordo.

Por outro lado, podem as partes submeter ao RERE tanto as negociações como o acordo de reestruturação, ou
tão só o acordo de reestruturação.

E é possível que apenas o processo negocial (dirigido embora à conclusão de um acordo de reestruturação)
fique sujeito ao RERE: quando as negociações não cheguem a bom termo e sejam encerradas (art. 16º/1/b), c),
d))

Pressupostos para a aplicação do RERE:

1. Às negociações e/ou acordos de reestruturação que envolvam “entidades devedoras” referidas nas
alíneas a) a h) do art. 2º CIRE (pessoas singulares e coletivas, entidades coletivas sem personalidade
jurídica, patrimónios autónomos) – “com exceção das pessoas singulares que não sejam titulares de
empresa”

 Ou seja, as pessoas singulares têm de ser empresários/titulares de empresa

No caso dos que não são singulares, não tem de ser titulares de empresas  parece ser a melhor
leitura para Soveral Martins.

2. Que estejam em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente (art. 3º/1/a)/b)).

Como se vê, o destinatário central voltou a ser o “devedor” (ou expressão equivalente) – logo nos arts. 2º/1/2
e 3º/1 a 6 – não a “empresa”.

1) Os “devedores” têm de ser titulares de empresas (em sentido objetivo)?

 Sim, se forem pessoas singulares, como deflui claramente da exceção estabelecida na parte final
da alínea a) do art. 3º/1.

2) Quanto às outras entidades referidas neste preceito, e pese embora o nome dado ao Regime (que inclui
“empresas”) e ao facto de ele visar primordialmente entidades empresárias (a propósito, a parte final do
art. 2º/2), têm de ser empresas?

 A resposta é negativa.

 O RERE é aplicável às entidades referidas (por remissão) no art. 3º/1/a), que mesmo quando não sejam
titulares de empresas, estejam sujeitas ao SNC (DL 158/2009)): o protocolo de negociação é
obrigatoriamente acompanhado pelos “documentos de prestação de contas do devedor, relativos aos 3
últimos exercícios”;

 De outra banda, as finalidades do “acordo de reestruturação” (alteração da composição, das condições ou


da estrutura do ativo ou do passivo, etc,: art. 2º/2) compatibilizam-se bem com essas entidades.

160
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Para que as negociações, visando um acordo de reestruturação, sejam disciplinadas pelo RERE é necessário que
o devedor e credores com créditos não subordinados correspondentes, pelo menos, a 15% do passivo daquele
assinem um “protocolo de negociação” e promovam o seu depósito na Conservatória do Registo Comercial
(art. 6º/1/2/4). (!)

O prazo das negociações resultantes do protocolo não podem exceder 3 meses a contar da data do depósito
(art. 6º/5).

O conteúdo do protocolo é estabelecido livremente pelas partes, embora deva integrar os elementos
mencionados no art. 7º/1.

 Este artigo, nos nº2 e 4, refere outros elementos que podem ser incluídos no protocolo.
 E o nº3 do mesmo artigo manda que o protocolo seja acompanhado por certos documentos. Entre os
elementos obrigatórios, registe-se aqui o previsto no art. 7º/1/e): “Acordo relativo à não instauração
pelas partes, contra o devedor no decurso do prazo acordado para as negociações, de processos
judiciais de natureza executiva, de processos judiciais que visem privar o devedor da livre disposição
dos seus bens ou direitos, bem como de processo relativo à declaração da insolvência do devedor”

Do depósito do protocolo, decorrem vários efeitos. Aludamos a alguns.

1. “Após o depósito do protocolo de negociação, o devedor fica obrigado a manter o curso normal do seu
negócio e a não praticar atos de especial relevo, tal como definidos no art. 161º CIRE, exceto se
previstos no referido protocolo ou se previamente autorizados por todos os credores, diretamente ou
através de comité de credores”.

2. Quanto às obrigações dos credores, diz o art. 10º/1: “Sem prejuízo do direito à resolução do protocolo
de negociação motivado por violação grosseira pelo devedor das obrigações dele decorrentes, após o
depósito naquele, os credores não podem desvincular-se dos compromissos aí assumidos antes de
decorrido o prazo máximo previsto para as negociações, embora possam cessar a participação ativa
nas mesmas”.

E, tendo em vista o tortuoso art. 10º/4, parece que os credores, mesmo que exerçam o direito de
resolução do protocolo, continuam obrigado durante aquele período a não instaurar as ações
previstas no art. 7º/1/e).

3. Se um credor tiver requerido a declaração de insolvência do devedor, este processo suspende-se logo
que aquele passe a participar nas negociações protocoladas, se a insolvência não houver sido ainda
declarada (art. 11º/1)

Voltamos a encontrar um porto seguro.

4. Depois de o devedor comunicar aos prestadores de certos serviços essenciais o depósito do protocolo
de negociação, ficam eles impedidos de interromper o fornecimento de tais serviços com fundamento
em dívidas anteriores ao depósito – art. 12º.

5. Art. 13º: Se, após o depósito do protocolo de negociação, o devedor ficar em situação de insolvência,
aferida nos termos dos n.os 1 a 3 do artigo 3.º do CIRE, a contagem do prazo de apresentação do
devedor à insolvência apenas se inicia após o encerramento das negociações, não sendo nesse caso
admissível prorrogação do prazo das negociações ao abrigo da presente lei.

161
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Algumas notas breves, agora, sobre o “acordo de reestruturação”:

O acordo é celebrado por escrito e as assinaturas de quem o subscreve dos que eventualmente depois a ele
aderem (por termo de adesão) necessitam de reconhecimento (art. 20º). E deve ser depositado
eletronicamente na Conservatória do Registo Comercial, produzindo efeitos, em regra, só depois do depósito
(art. 22º/1 e 23º/1).

O conteúdo do acordo “é fixado livremente pelas partes, podendo compreender, designadamente, os termos de
reestruturação da atividade económica do devedor, do seu passivo, da sua estrutura legal, dos novos
financiamento a conceber ao devedor e das novas garantias a prestar por este” (art. 19º/1. Ver também 2º/2).

Por norma, somente os créditos e garantias de quem seja parte do acordo podem ser afetados nos termos nele
fixados (art. 19º/5).

Há que contar, porém, com o disposto no art. 29º “Se o acordo de reestruturação for subscrito por credores que
representem as maiorias previstas no art. 17º-I nº1 CIRE, ou a ele vierem posteriormente a aderir os credores
suficientes para perfazer aquela maioria, pode o devedor iniciar um PER com vista à homologação judicial do
acordo de reestruturação, devendo nesse caso acautelar que este cumpre o previsto no art. 17º-I /4 do CIRE”.

 O art. 29º estabelece um bypass, uma via de comunicação com o PER (já não com o PI)

Havendo homologação judicial, a eficácia do acordo é alargada aos demais credores (não partes) – ver os
artigos 17º-I /6 e 17º-F CIRE

Entretanto, é de notar que a redução das obrigações do devedor estipulada no acordo determina, salvo
cláusula em contrário, a redução proporcional das obrigações dos condevedores e dos terceiros garantes (art.
19º/7)

“Sem prejuízo de o acordo de reestruturação poder dispor diversamente, o seu depósito determina a imediata
extinção dos processos judiciais declarativos, executivos ou de natureza cautelar, que respeitem a créditos
incluídos no seu acordo de reestruturação e dos processos de insolvência, desde que a mesma não tenha ainda
sido declarada, que hajam sido instaurados contra o devedor por entidade que seja parte no acordo de
reestruturação, independentemente de o crédito que funda o pedido ter sido incluído ou não no acordo de
reestruturação” (art. 25º/1)

Note-se, por fim, o que diz o art. 28º: “Caso o devedor venha a ser ulteriormente declarado insolvente, são
insuscetíveis de resolução em benefício da massa insolvente, os negócios que hajam compreendido a efetiva
disponibilização ao devedor de novos créditos pecuniários, incluindo sob a forma de deferimento de
pagamento, e a constituição, por este, de garantias respeitantes a tais créditos pecuniários, desde que os
negócios jurídicos hajam sido expressamente previstos no acordo de reestruturação, ou no protocolo de
negociação que o preceder que o acordo de reestruturação contenha a declaração prevista no nº3 do artigo
anterior.”

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

SINAIS DISTINTIVOS

1. Introdução

Estudaremos agora de modo sistemático os sinais distintivos de empresas (logótipos e recompensas,


normalmente) e de produtos (marcas, denominações de origem e indicações geográficas).

Tradicionalmente, estes signos, em particular as marcas (bem como as firmas e os velhos nomes e insígnias de
estabelecimentos), são agrupados sob a designação genérica “sinais distintivos do comércio”. Todavia, não são
sinais privativos do comércio (em sentido jurídico ou extrajurídico), não individualizam somente empresas
mercantis e produtos da mercancia; e não são atos de comércio objetivos, nem são utilizáveis apenas por
comerciantes.

Daí também a sua inclusão, não no Direito Comercia propriamente dito mas num outro autónomo ramo
jurídico que se vem chamando “direito industrial” ou “direito de propriedade industrial”, essencialmente
codificado entre nós no Código da Propriedade Industrial.

Não obstante, justifica-se tratar destes sinais neste Curso.

2. Logótipos

Durante longas décadas, o direito português pôs à disposição dos interessados dois sinais especificamente
individualizadores das empresas (em sentido objetivo): nome de estabelecimento e insígnia de
estabelecimento (sinal nominativo o primeiro, dominantemente figurativo ou emblemático o segundo).

O logótipo, enquanto sinal distintivo registável, fez a sua estreia no CPI de 1995. Mantém-se no CPI atual
(2003).

Na versão original deste, aos logótipos aplicavam-se diretamente os arts. 301º a 304º, por remissão, eram
aplicáveis “as disposições relativas aos nomes e insígnias de estabelecimento”.

Coexistiam, portanto, os 3 sinais distintivos – para, primeiramente, distinguir “estabelecimentos” (os dois mais
velhos) ou “entidades” (os logótipos).

Também o jovem CPI sofreu alterações várias. Uma delas foi operada pelo DL 143/2008, que efetuou “a fusão
de 3 modalidades de direitos de propriedade industrial (nomes, insígnias de estabelecimento e logótipos) numa
só (logótipos), esta agregação permite distinguir com mais clareza as diversas modalidades de proteção da
propriedade industrial, evitando o recurso e diversos registos e a diversos pagamento para um mesmo fim”.

Mais precisamente, aquele DL revogou os artigos do CPI relativos ao nome e insígnia de estabelecimento
(designadamente os arts. 282º a 300º), revogou também os citados arts. 301º a 304º e aditou ao CPI, além de
outos, os arts. 304º-A a 304º-S para os logótipos.

É verdade que os nomes e insígnias de estabelecimentos vão sobreviver durante algum tempo (ver o art. 11º
do DL 143/2008, especialmente o seu nº5) – mas a morte está anunciada. E enquanto perdurarem, aplicam-se-
lhes, no essencial, as disposições do CPI dedicadas aos logótipos (art. 12º e 13º do citado DL)

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Logótipo: é o signo suscetível de representação gráfica para distinguir “entidade” ou sujeito e, eventualmente,
estabelecimento(s) deste (art. 304º-A e 304º-B CPI)

(1) O logótipo serve primordialmente para distinguir sujeitos (individuais ou coletivos, públicos ou privados:
art. 304º-B) que prestem serviços ou produzam bens destinados, total ou parcialmente, ao mercado (art.
304º-A).

(2) O sujeito titular de logótipo não tem de ser empresário. Não tem de ter empresa ou estabelecimento.

Quando tenha estabelecimento, é natural, mas não é necessário, que use logótipo para individualizá-lo e
distingui-lo de outros estabelecimentos (em função que era típica do nome e/ou da insígnia).

Os bombeiros não exercem comércio, não são empresários, mas podem registar logótipo e distinguirem-
se através dele.

Isto mesmo é assinalado na segunda parte do art. 304º-A nº2: o logótipo pode “ser utilizado,
nomeadamente, em estabelecimento, anúncios, impressos ou correspondência”.

Podemos pois dizer que o logótipo é normalmente sinal distintivo bifuncional: distingue sujeitos e
estabelecimentos.

Curiosamente, um mesmo sujeito, que só pode ter uma firma ou denominação, pode ter vários logótipos; nos
dizeres da lei, “a mesma entidade pode ser individualizada através de diferentes registos de logótipo” (art.
304º-C nº2). Talvez para permitir que um sujeito com diversos estabelecimentos individualize cada um com
logótipo distinto.

Mas parece que uma mesma entidade, tendo ou não estabelecimento, tenha um ou vários estabelecimentos,
pode aceder à pluralidade de logótipos.

2.2. Composição e princípios formadores


2.2.1. Elementos componentes

“O logótipo pode ser constituído por um sinal ou conjunto de sinais suscetíveis de representação gráfica,
nomeadamente por elementos nominativos, figurativos ou por uma combinação de ambos” (art. 304º-A nº1)

São possíveis, portanto:

1) Logótipos nominativos: compostos por nomes ou palavras, incluindo os nomes, firmas ou


denominações, completos ou abreviados, dos respetivos titulares.
2) Logótipos figurativos: formados por figuras ou desenhos.
3) Logótipos mistos: combinando elementos nominativos e figurativos.

Nisto, aproximam-se das marcas (ver art. 222º/1) e afastam-se das firmas e denominações (sempre
nominativas).

Também como vale para as marcas, os logótipos poderão ser constituídos por outros sinais representáveis
graficamente (os exemplos do art. 304º- nº1 não são taxativos): conjuntos de letras e/ou números,
combinações de cores, e ainda, talvez, certos sons e formas tridimensionais (mas não as formas de produtos,
que podem constituir marcas: art. 222º/1, art. 223º/1/b))

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

2.2.2. Princípio da capacidade distintiva

Enquanto sinais distintivos de entidades (e, muitas vezes, de estabelecimentos), os logótipos hão-de ser
constituídos de modo a poderem desempenhar função individualizador-diferenciadora (cfr. art. 304º-A/2)

Por falta de capacidade distintiva, não são registáveis logótipos compostos exclusivamente por sinais referidos
a entidade, estabelecimento, atividade ou produto que sejam específicos, genéricos ou descritivos, ou se
tenham tornado de uso comum, ou sejam forma natural, funcional ou esteticamente necessária de algo, ou
sejam cores simples (não combinadas de forma peculiar) – ver o art. 304º-H/1/b)/c) que remete para o art.
223º/1/b) a e).

Contudo, são excecionalmente registáveis logótipos constituídos tão-só por sinais específicos, genéricos,
descritivos ou de uso comum quando estes, antes do registo e depois do uso e publicidade que deles haja sido
feito (como logótipos), tenham adquirido caráter distintivo (secondary meaning) – art. 304º-H nº2.

2.2.3. Princípio da verdade

O logótipo não tem de conter indicações acerca da natureza, composição, atividade, etc., do respetivo titular
(pode ser inteiramente fantasioso).

 Mas se contiver, tais indicações ou referências hão-de ser verdadeiras;


 não é registável um logótipo decetivo ou enganoso.

Assim, por exemplo, deve ser recusado o registo de logótipo que contenha:

a) Sinais “suscetíveis de induzir em erro o público, nomeadamente sobre a atividade exercida pela entidade
que se pretende distinguir” (art. 304º-H/3/d))
b) A Bandeira Nacional (entre outros elementos), quando isso possa levar a supor, erradamente, que os
produtos têm origem em entidade oficial (art. 304º-H nº5 alínea a) e b))
c) Nomes ou retratos de pessoas sem a devida autorização (art. 304º-I nº1 alínea d));
d) Referência a determinado prédio rústico ou urbano que não pertença ao requerente do registo (art. 304º-I
nº3 alínea c))

2.2.4. Princípio da novidade

Para cumprir a função individualizador-diferenciadora, o logótipo de um sujeito deve ser distinto, inconfundível
ou novo relativamente a logótipos de outros sujeitos.

Nos termos do art. 304º-I/1/a), é fundamento de recusa de registo “a reprodução ou imitação, no todo ou em
parte, de logótipo anteriormente registado por outrem para distinguir uma entidade que se pretende distinguir,
se for suscetível de induzi o consumidor em erro ou confusão” (ver também alínea f))

Um logótipo não é novo relativamente a outro quando, atendendo às respetivas grafia e/ou sonoridade,
figuração ou ideografia (consoante a composição dos logótipos) – mormente dos núcleos caracterizantes –, o
consumidor médio (o consumidor de normal capacidade, diligência e atenção) não consegue distingui-los,
antes os confunde, tomando um pelo outro e um sujeito por outro ou, não os confundindo embora, crê
erroneamente referirem sujeitos especialmente relacionados (crê, v.g. que duas sociedades autónomas estão
em relação de grupo)

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Deflui do citado art. 304º-I nº1 alínea a) que a novidade dos logótipos é exigida tão-só em relação a entidades
que exercem atividades idênticas ou afins (atividades concorrentes) – vale aqui o chamado princípio da
especialidade; sujeitos com atividades diferentes podem ter logótipos iguais ou semelhantes.

Mas há exceções:

(1) É fundamento de recusa do registo do logótipo o facto de ele ser confundível com um anterior que goze de
prestígio em Portugal, ainda que pertença a um sujeito exercendo atividade não concorrente, quando o
logótipo posterior pudesse beneficiar indevidamente do caráter distintivo ou do prestígio do logótipo anterior,
ou pudesse prejudicá-los (art. 304º-I nº2 remetendo para o art. 243º)

(2) Por outro lado, mesmo quando as respetivas atividades são idênticas ou afins, pode um sujeito conseguir o
registo válido de logótipo confundível com um já registado em nome de outro sujeito: desde que este nisso
consinta (art. 304º-J remetendo para o art. 243º)

2.2.5. Princípio da licitude (residual)

Segundo o art. 304º-I é fundamento de recusa do registo de logótipo:

1. A reprodução ou imitação, total ou parcial, de marca anteriormente registada por outrem para produtos
idênticos ou afins ou produzidos ou fornecidos pela entidade que pretende o registo de logótipo, se for
suscetível de induzir o consumidor em erro ou confusão (nº1 alínea b));

2. A infração de outros direitos de propriedade industrial ou de direitos de autor (nº1, alínea c) e nº3 alínea
b));

3. A reprodução ou imitação, sem autorização, de firma ou denominação alheias, ou de parte característica


das mesmas, se for suscetível de induzir o consumidor em erro ou confissão (nº3 alínea a)).

Por sua vez, manda o art. 304º-H que seja recusado o registo de logótipo que:

1. Contenha certos símbolos, brasões, emblemas ou distinções, salvo autorização (nº3 alíneas a) e b));
2. “Expressões ou figuras contrárias à lei, moral, ordem pública e bons costumes” (nº3 alínea c))
3. (tão-só) a Bandeira Nacional ou alguns dos seus elementos (nº4)
4. Ou, entre outros componentes, a Bandeira Nacional, quando isso seja suscetível de provocar
desrespeito ou desprestígio dela ou de algum dos seus elementos (nº5 alínea c))

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

2.3. Conteúdo e extensão do direito sobre o logótipo

Em princípio, o direito de propriedade sobre logótipo constitui-se pelo registo do mesmo no INPI. O registo
dura por 10 anos, mas é indefinidamente renovável por iguais períodos – art. 304º- L

O titular de logótipo pode, naturalmente, usá-lo para se dar a conhecer, utilizando-se por exemplo em
estabelecimento, anúncios, impressos ou correspondência (art. 304º-A e nº2). E tem, nos termos do art. 304º-
N, “o direito de impedir terceiros de usar, sem o seu consentimento, qualquer sinal idêntico ou confundível, que
constitua reprodução ou imitação do seu” logótipo.

1. Bem entendido, os terceiros não estão impedidos de usar “qualquer sinal” (posterior) confundível com
o logótipo em qualquer circunstância.

2. Não estão impedidos de usar, em atividade económica, signos confundíveis em função distintiva (dos
sujeitos, de estabelecimentos, de produtos) – cfr. também o art. 334º;

3. Por outro lado, o uso destes signos só é proibido quando suscetível de induzir os consumidores em
erro ou confusão (ressalva-se, porém, a hipótese de o logótipo ser de prestígio)

A proteção do logótipo registado, traduz-se principalmente no seguinte:

 O respetivo titular tem legitimidade para reclamar contra pedido de registo (feito por outrem) de
logótipo ou outro sinal não “novos” (cfr. art. 17º), bem como para requerer judicialmente a anulação
do registo de tais sinais (v.g. arts. 304º-R, nº1, art. 266º/1 e art.239/1/b));

 O respetivo titular tem direito de exigir judicialmente (inclusive em procedimento cautelar: art. 338º-I)
e, sendo caso disso, o indemnizem (art. 338º-L); a propriedade de logótipo é tutelada contra-
ordenacionalmente (art. 334º)

2.4. Transmissão dos logótipos

Sendo os logótipos sinais que distinguem primordialmente sujeitos, dir-se-ia serem intransmissíveis ou, tal
como vale tradicionalmente para as firmas, transmissíveis tão-somente com estabelecimentos a que se achem
ligados. Não é assim, hoje…

Segundo o art. 304º-P, um logótipo não usado em estabelecimento pode, como a marca, ser transmitido
autonomamente (desvinculado de qualquer outro bem), salvo se esta for suscetível de induzir os consumidores
em erro quanto à individualização do transmissário.

É o que resulta do nº1 (em confronto com o nº2): “Os registos de logótipo são transmissíveis se tal não for
suscetível de induzir o consumidor em erro ou confusão”.

Haverá possibilidade de indução em erro ou confusão quando, por exemplo, o logótipo contém nome, firma ou
denominação do transmitente.

Diz, por sua vez, o nº2: quando seja usado num estabelecimento, os direitos emergentes do pedido de registo
ou do registo de logótipo só podem transmitir-se, a título gratuito ou oneroso, com o estabelecimento, ou parte
do estabelecimento, a que estão ligados.

E transmitindo-se um estabelecimento, transmite-se naturalmente com ele o respetivo logótipo – salvo se este
contiver nome, firma ou denominação do titular, caso em que é necessária convenção (expressa ou tácita);
arts. 304º-P nº3 e art. 31º/5.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

A transmissão de logótipo por ato entre vivos “deve ser provada por documento escrito” (art. 31º/6) –
normalmente o documento que enforma a transmissão do estabelecimento, quando aquele com este seja
transmitido.

A transmissão de logótipo, por ato inter vivos ou não, está sujeito a averbamento no INPI (art. 30º/1). Só
depois do averbamento produz a transmissão do logótipo efeitos em relação a terceiros (art. 30º/2).

2.5. Extinção do direito sobre logótipo

O registo de logótipo é nulo, segundo o art. 304º-Q, nº1, nas hipóteses previstas no art. 33º/1, ou nos casos
em que o registo tenha sido concedido com violação do disposto no nº 1, 3, 4, 5 do art. 304º-H (proibições
absolutas de registo).

“A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado” (art. 33º/2) e a respetiva declaração tem de
ser feita por tribunal (art. 35º/1).

O registo é anulável quando na sua concessão tenha sido desrespeitado o disposto no art. 304º-I (proibições
relativas de registo) – art. 304º-R nº1.

 A ação de anulação pode ser proposta pelo MP ou qualquer interessado (art. 35º/2) no prazo de 10 anos
a contar da data do despacho de concessão do registo; mas o direito de ação não prescreve se o pedido
de registo tiver sido feito de má-fé (com conhecimento da existência de proibições relativas do registo
conseguido) – art. 304º-R nº2 e 3

O registo de logótipo caduca quando tiver expirado o seu prazo de duração ou por falta de pagamento de taxas
(art. 37º/1)

 E caduca também, nos termos do art. 304º-S: “a) Por motivo de encerramento e liquidação do
estabelecimento ou de extinção da entidade;/ b) Por falta de uso do logótipo durante 5 anos consecutivos,
salvo justo motivo”

 A primeira parte da alínea a) do art. 304º é muito estranha. O logótipo, repita-se, é sinal que distingue
primordialmente sujeito ou entidade; o sujeito, se possuir estabelecimento(s), tem a faculdade (não
obrigação) de nele(s) usar logótipo.

Como pode, então, caducar o registo por causa de encerramento e liquidação de estabelecimento em que
o logótipo não era usado, ou de estabelecimento em que era usado mas mantendo o sujeito outro ou
outros estabelecimentos (com uso atual ou potencial do logótipo), ou do único estabelecimento ou de
todos os estabelecimentos do sujeito quando, ainda nesta hipótese, ele tem possibilidades de adquirir ou
constituir estabelecimentos e de nele voltar a usar (antes de 5 anos volvidos) o logótipo?

Ora bem, se para algumas destas hipóteses bastaria interpretar restritivamente o preceito em questão,
não assim para outras. Por antinomia lógica e normativa desse preceito com o sistema disciplinador dos
logótipos, deve o mesmo ser interpretado revogatoriamente.

O titular de logótipo pode também renunciar ao respetivo direito (art. 38º)

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

3. Marcas
3.1. Noção, espécies, funções

Com respeito à noção, diremos simplesmente que as marcas são signos (ou sinais) suscetíveis de representação
objetiva e autónoma destinados sobretudo a distinguir certos produtos de outros produtos idênticos ou afins.

Esta definição afasta-se um pouco da que decorre de diversos atos normativos. Diz, por exemplo, o CPI, no art.
222º/1: “A marca pode ser constituída por um sinal ou conjunto de sinais suscetíveis de representação gráfica
(…) que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas”

Ora, “produtos ou serviços” (tal como “bens ou serviços”, outra expressão recorrente no direito) é redundante.

Os “produtos” são bens que resultam da “produção”, da atividade produtiva bens materiais ou corpóreos e
bens imateriais ou serviços.

Por outro lado, os bens assinalados por uma determinada marca não têm de ser “de uma empresa”; como
veremos neste número, podem ser produtos de não-empresa, e produtos (ainda que idênticos e afins) de mais
que uma empresa.

Por outro lado ainda, não visam em regra as marcas individualizar certos bens de determinados sujeitos
relativamente a qualquer bens de outros sujeitos; veremos nos números seguintes que vigora também aqui,
ainda que com derrogações, o chamado princípio da especialidade.

Depois, deixa de aparecer na noção a nota da representação “gráfica” (caracteres, desenhos, formas
geométricas), porque a Diretiva de 2015 (art.3º/b)) deixou de exigir esse modo de representação.

Isto abrirá portas para o registo, principalmente, de mais marcas sonoras (não apenas sons musicais
representáveis em pentagrama, mas também outros sons representáveis em espectrograma ou de outro
modo)

Vejamos agora algumas espécies de marcas, agrupadas segundo critérios variados.

Tendo em conta a natureza das atividades a que se ligam, fala-se de:

1. Marcas de indústria: assinalam produtos da indústria transformadora e extrativa;


2. Marcas de comércio: assinalam bens comercializados por grossistas e retalhistas;
3. Marcas de agricultura: assinalam os produtos da agricultura em sentido amplo;
4. Marcas de serviços: assinalam atividades do chamado setor terciário, v.g. de agências de viagens e de
publicidade, bancos, seguradoras, hotéis, empresas de radiodifusão, televisão, transformadoras) – cfr.
art. 225º/a)/b)/e).

Atendendo aos elementos componentes, pode falar-se as de marcas:

1. Marcas nominativas: constituídas por nomes ou palavras;


2. Marcas figurativas: formadas por figuras ou desenhos;
3. Marcas constituídas por letras ou números ou cores;
4. Marcas mistas: juntam elementos nominativos e figurativos ou letras e números, etc;
5. Marcas sonoras ou auditivas: constituídas por sons representáveis – v.g. sons musicais sinalizadores de
programas de rádio ou televisão;
6. Marcas tridimensionais ou de forma (com 3 dimensões – comprimento, largura e altura – ou volume);
7. Marcas simples: constituídas por um so elemento, nominativo ou figurativo, etc.
8. Marcas complexas: compostas por vários elementos do mesmo género ou não

Cfr. Arts. 222º, art. 223º/1/b)/e)

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Olhando agora para os possíveis titulares destes sinais, começaremos por referir que as marcas tanto podem
pertencer:

1. A empresários (sujeitos de empresas em sentido objetivo)


2. Como a não-empresários.

Tradicionalmente, as leis da maior parte dos países permitiam a titularidade de marcas individuais registadas
somente a empresários. A situação é hoje diferente.

 Por exemplo, na França, na Itália e na Alemanha podem as marcas pertencer também a não-
empresários.

 Em Portugal, o art. 76º/4 do CPI de 1940 atribuía já o direito de usar marcas aos “artífices”
assalariados (não empresários, portanto). A possibilidade de não empresários obterem o registo de
marcas ficou alargada depois do DL 40/87 que alterou aquele art. 76º.

No atual CPI, o art. 225º (semelhante ao art. 168º do Código de 1995) começa por afirmar que “o direito ao
registo da marca cabe a quem nisso tenha legítimo interesse, designadamente (…)”

Assim, nada impede que, por exemplo, os inventores não empresários adotem marcas para assinalar os
produtos das suas patentes (para depois as transmitirem ou cederem em licença), as holding “puras” (que não
exploram empresas) tenham marcas, as “estrelas” do cinema ou da moda constituam marcas com os seus
nomes para as transmitirem ou cederem em licença… Também o Estado (entendido em sentido amplo) pode
ter marcas para produtos de organismos não empresariais (cfr. art. 224º/2)

Por sua vez, é prevista a hipótese de “o agente ou representante do titular de uma marca registada num dos
países membros da União (de Paris) ou da OMC mas não registada em Portugal pedir o registo dessa marca em
seu próprio nome (…)” – art. 226º).

É de interpretar amplamente “agente ou representante, de modo a abranger mandatários, comissários,


agentes propriamente ditos, concessionários, etc. ora, sabemos já que estes sujeitos (ou alguns deles) não têm
sempre de ser empresários

Ao lado das chamadas (1) marcas individuais é costume colocar (2) as marcas coletivas (que, diga-se também
agora, não pertencem normalmente a sujeitos empresários).

 Não significa isto, porém, que a propriedade destas marcas seja coletiva ou de uma pluralidade de
sujeito.

Na verdade, cada marca coletiva pertence a um só sujeito – mas que há de ser entidade coletiva.

Outra nota caracterizadora essencial destas marcas são usadas para bens produzidos, por norma, por diversos
e autónomos sujeitos.

O CPI, nos termos do art. 228º e ss, divide as marcas coletivas em:

1. Marcas de associação: pertencem a associações de pessoas singulares e/ou coletivas e são ou podem
ser usadas pelos respetivos associados)

2. Marcas de certificação ou de garantia: pertencem a pessoas coletivas que controlam a existência de


determinadas qualidades em produtos ou que estabelecem normas técnicas a que eles ficam sujeitos).

[…]

170
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Quanto ao regime de proteção, há que distinguir:

1. Marcas registadas
2. Marcas não registadas, de facto ou livres,
3. … devendo ainda acrescentar-se que as marcas notórias e as de prestígio, mesmo quando não
registadas, gozam de proteção especial (art. 241º e 242º).

Retornemos à noção de marcas.

Começámos por dizer que elas têm por função primordial distinguir produtos. Mas distingui-los como? Em si
mesmos ou relacionando-os com determinada fonte produtiva ou de proveniência?

Segundo a conceção tradicional e dominante (pelo menos até à pouco, a função distintiva das marcas equivale
essencialmente ou sobretudo a uma função de indicação de origem ou proveniência dos produtos – as marcas
indicam que determinados bens provêm de determinada origem).

Origem por alguns autores entendida de forma estrita – numa empresa (a marca garante que os respetivos
produtos provêm de uma mesma e única empresa) – e de modo alargado por outros, atendendo aos
fenómenos das marcas coletivas (de associação). De grupo e das cedidas em licença (não exclusiva).

Ainda segundo a conceção tradicional-dominante, a função de indicação de origem é a única função das marcas
juridicamente tutelada (as chamadas funções publicitária e de garantia de qualidade seriam tão-só indireta ou
reflexamente protegidas).

Todavia, cedo se ergueram vozes pondo em causa a função de indicação de origem das marcas. E disse-se
que a marca é muitas vezes um sinal “anónimo”, sem qualquer menção ao titular ou à empresa, que uma
mesma marca pode ser usada por diferentes empresas de um grupo, por diversas empresas a título de licença,
etc.

Posição que importa realçar é a de Vanzetti.

 Durante muitos anos este autor começa por justificar a sua anterior posição: o Ordenamento Italiano
estabelecia uma ligação incindível entre marca e empresa desde o momento do pedido do registo,
passando pelo período devida da marca até ao momento terminal.
 Perante novos dados que apagaram aquela ligação incindível, continuar a falar tranquilamente de uma
função jurídica de indicação de origem da marca é, escreve o autor, impossível.
 Acrescenta Vanzetti que nume estudo de 1977, tendo também em vista ordenamentos europeus
admitindo a cessão livre de marcas, pugnava ainda pelo reconhecimento da função única de indicação de
origem.
 Mas conclui agora que se a cessão é livre, não poderá a marca garantir uma origem empresarial contante
(o consumidor não pode ter a certeza de que determinado produto marcado provirá amanhã da empresa
de que provém hoje).

Para pôr em questão a tradicional função de origem, C OUTINHO DE ABREU acrescenta: ela falha laramente nas
marcas coletivas de certificação (cfr. art. 230º CPI), bem como nos casos em que é legitimo dois ou mais
sujeitos não ligados por quaisquer relações jurídico-económicas usarem a mesma marca para produtos
idênticos ou semelhantes – cfr. art. 243º (possibilidade de registo de marca confundível com outra
anteriormente registada quando o titular desta autorize) e art. 267º (coexistência de marcas idênticas por
tolerância do titular da marca primeiramente registada).

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Posto isto, dizemos que a função distintiva das marcas não se confunde ou identifica com a de indicação de
origem ou proveniência.

 Esta, embora deva continuar a ser reconhecida, é apenas parte – e nem sempre presente – daquela.

Pela outra parte, sempre presente, as marcas destinam-se a distinguir os produtos através de outras
mensagens. Como qualquer signo, as marcas comunicam ideias por intermédio de mensagens. O titular e/ou os
utentes legítimos da marca (os emissores) comunicam por ela ao público (recetor) algo respeitante a produtos
(referente) – comunicam, no mínimo, que os produtos assinalados com a marca são produtos individualizados
e distintos (ainda que a diferença resida tao só no signo…) de outros bens da mesma espécie (marcados – com
outros signos -, ou não).

Será a função distintiva a única função jurídica das marcas?

Olhe-se para o art. 241º/1: “Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, o pedido de registo será igualmente
recusado se a marca, ainda que destinada a produtos ou serviços sem identidade ou afinidade, constituir
tradução, ou for igual ou semelhante, a uma marca anterior que goze de prestígio em Portugal ou na
Comunidade Europeia, se for comunitária, e sempre que o uso da marca posterior procure tirar partido indevido
do carácter distintivo ou do prestígio da marca, ou possa prejudicá-los. ”

Como se vê, a proteção alargada das marcas de prestígio é agora assegurada por específico normativo relativo
às marcas. Proteção essa que rompe com o princípio da especialidade, não se limitando a prevenir ou impedir
riscos de confusão. Já não está em causa a tutela da função distintiva das marcas. O que está em causa é a
tutela direta e autónoma da função atrativa ou publicitária excecional das marcas de prestígio. Embora
radicadas em determinados produtos, estas marcas ganham asas e libertam-se em grande medida da função
distintiva, aparecendo como símbolos de excelência.

Mas digamos um pouco mais sobre as marcas de prestígio e a sua proteção especial

Embora devendo ser conhecidas de parte significativa do público interessado, tais marcas não têm de ser
super-notórias ou célebres; o fenómeno é não só quantitativo mas também qualitativo. Para serem de
prestígio, as marcas, além de notórias, hão de ter boa reputação (boa “imagem”) – assente na boa qualidade
dos produtos respeitos e, eventualmente, na singularidade e originalidade dos signos.

A proteção especial de marca de prestígio é concedida, recordemos, “sempre que o uso da marca posterior
procure tirar partido indevido do caráter distintivo ou do prestígio da marca, ou possa prejudicá-los” – art.
242º/1.

Não haverá aproveitamento ilícito (“tirar proveito indevido”), impeditivo do registo e uso da “marca posterior”,
quando o titular da marca de prestígio nisso consinta.

O uso da marca posterior tirará partido “do caráter distintivo” da marca prestigiada quando faça supor
erradamente que os produtos assinalados por uma e outra marca provêm da mesma entidade ou de entidades
diversas mas negocialmente relacionadas.

E tirará partido do “prestigio da marca” reputada quando se verifique “transferência de imagem” de qualidade
e de acreditamento no mercado desta marca para aquela.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Por sua vez, o uso do sinal posterior prejudicará o caráter distintivo da marca de prestígio quando provoque
“aguamento” ou banalização desta – que perde a sua posição singular ao passar a assinalar produtos de outro
sujeito mais ou menos “distantes” daqueles a que ela tem estado associada.

E prejudicará o prestígio da marca quando desencadeie indesejáveis associações: por ser aplicado quer a
produtos de piro qualidade, quer a produtos “incompatíveis” com os assinalados pela marca prestigiada
(chocolates e preservativos, doces e raticidas, perfumes e queijos, bebidas e lixivias…).

Têm também as marcas uma função de garantia de qualidade direta e autonomamente tutelada pelo
direito?

Resposta tradicional: não. A função de garantia de qualidade não será autónoma, seria tão-só uma função
derivada da função distintiva, mais precisamente da função de indicação de proveniência – garantindo a marca
a constância da proveniência dos produtos, garante consequentemente a constância da qualidade dos mesmos
produtos (o produtor, querendo conservar e aumentar a clientela dos produtos marcados, tenderá muito
provavelmente a manter as qualidades essenciais desses bens); de resto, o produtor não estaria impedido de
alterar a qualidade dos produtos marcados.

COUTINHO DE ABREU: sim.

Por um lado, não se vê como possa negar-se uma autónoma função de garantia relativamente às marcas
coletivas de certificação (função essa que não tem que ver com a de indicação de origem) – ver arts. 230º e
231º/1/a).

Por outro lado, agora quanto às marcas “individuais”, há que ter em conta o art. 269º/2/b): o registo caduca
se, após a data em que o registo foi efetuado, a marca se tornar suscetível de induzir o público em erro,
nomeadamente acerca da natureza, qualidade e origem geográfica desses produtos ou serviços, no seguimento
do uso feito pelo titular da marca, ou por terceiro com o seu consentimento, para os produtos ou serviços para
que foi registada.

O preceito, note-se, não impõe uma constância qualitativa em sentido estrito. São naturalmente permitidas
melhoras qualitativas; e também não são ilícitas pioras não essenciais ou sensíveis de qualidade (produto
mantém-se substancial e qualitativamente idêntico).

Ilícitas (conducentes à caducidade) são apenas as diminuições de qualidade suscetíveis de induzir o público em
erro, ou seja, as deteriorações qualitativas sensíveis e ocultas ou não declaras ao público. Assim, havemos de
concluir que também as marcas individuais cumprem uma função de garantia de qualidade autonomizável da
função distintiva.

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3.2. Princípios informadores da constituição das marcas


3.2.1. Princípio da capacidade distintiva

Os sinais, para serem marcas, hão-de ser capazes de individualizar e distinguir produtos (cfr. art. 222º,
223º/1/a)).

Por falta de capacidade distintiva, não podem ser marcas “os sinais constituídos, exclusivamente, por indicações
que possam servir no comércio para designar a espécie, a qualidade, a quantidade, o destino, o valor, a
proveniência geográfica, a época ou meio de produção do produto ou da prestação do serviço, ou outras
características dos mesmos” (art. 223º/1/c)).

De outro modo: não são marcas os sinais (exclusivamente) específicos, descritivos e genéricos.

1. Específicos são os signos que designam ou denotam a “espécie” dos produtos – nomes comuns dos
produtos ou figuras que os exprimem.

Por exemplo: a palavra “ovo” ou o retrato de um ovo não podem ser marcas de ovos.

2. Descritivos referem-se diretamente a características ou propriedades dos produtos.

Por exemplo: referem-se à “qualidade” (“Pura lã” para vestuário, desenho de 5 estrelas para azeite), à
“quantidade” (“1 kg” para pedaços de presunto, “1 Litro” para vinho), ao “destino” (“Cabedais”, para
pomada), ao “valor” (“Pechincha”), à “época de produção do produto ou da prestação do serviço” (“A
toda a hora”, para os serviços de uma clínica), à “proveniência geográfica” (“Coimbra” para louças
fabricadas nesta cidade).

3. Genéricos: designam um género ou categoria de produtos onde se incluem os produtos (espécie) que se
pretende marcar com um desses sinais.

Por exemplo: “Refresco” para laranjadas).

Também não podem ser marcas, por falta de capacidade distintiva, os signos constituídos exclusivamente
por sinais que se tenham tornado de uso comum para designar certos bens (p. ex., desenho retratando
um peixe, para artigos de pesca) ou para qualificar quaisquer produtos (por exemplo, “Super”, “Ótimo”,
“Excelência”, “Extra”, “Ideal”, “Delux”) – cfr. art. 223º/1/d).

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Quando estrangeiras, as denominações específicas, descritivas, genéricas e de uso comum já podem valer
como marcas?

1. Se elas forem conhecidas do público português ou dos círculos de clientes interessados, a resposta é
negativa.

2. Caso contrário, há que distinguir:

 Se as denominações pertencerem a uma das línguas comunitário-europeias, parece que a regra deve
ser a da inadmissibilidade das mesmas como marcas – Portugal é parte do mercado “comum” ou
“único” onde circulam livremente produtos e pessoas; não é lícito, pois, ficarem os titulares das
marcas registadas no nosso país beneficiados em face dos produtores nacionais e estrangeiros sem
possibilidade de noutros países registarem e usarem tais marcas e sem possibilidade de com idêntica
facilidade chegarem a estrangeiros sem possibilidade de noutros países registarem e usarem tais
marcas e sem possibilidade de com idêntica facilidade chegarem a estrangeiros residentes ou em
trânsito no nosso país.

 Se as denominações pertencerem a línguas exóticas ou mortas e muito pouco conhecidas, então já


poderão ser marcas – tais denominações aparecem não como específicas, descritivas, etc., mas como
de fantasia.

Todos estes sinais sem capacidade distintiva são irregistáveis como marcas quando apenas eles estejam em
causa, quando se pretenda registar marcas exclusivamente compostas por tais sinais.

Não assim quando eles sejam tão-só um dos elementos (ao lado de outros com capacidade distintiva) das
marcas – cfr. art. 223º/2.

Contudo, excecionalmente, são registáveis marcas constituídas exclusivamente por sinais específicos,
descritivos, genéricos ou de uso comum quando estes, antes do registo e depois do uso e publicidade que deles
foi feito, tenham adquirido caráter ou capacidade distintiva (Diretiva, art. 3º/3 CPI e art. 238º/3).

Acolheu-se, portanto, a doutrina do secondary meaning de origem anglo-saxónica: um signo sem significado
originário distintivo (enquanto marca) adquire através de certo uso um segundo ou “secundário” (no tempo)
sentido, passando a distinguir em termos de marca determinados produtos.

São possíveis as marcas tridimensionais, já o dissemos, que podem ser constituídas designadamente pela
“forma do produto ou da respetiva embalagem” (art. 222º/1). Mas nem todas as formas dos produtos ou das
embalagens são suscetíveis de constituir marcas. Não podem ser marcas as formas sem qualquer capacidade
distintiva nem as formas cujo caráter distintivo não releva no campo das marcas, relevando antes noutros
domínios da propriedade industrial.

Dizendo de outra maneira: não são marcas as formas natural, funcional ou esteticamente necessárias.

a. É o que resulta do art. 223º/1/b): não satisfazem as condições para serem marcas “os sinais
constituídos, exclusivamente, pela forma imposta pela própria natureza do produto, pela forma do
produto necessária à obtenção de um resultado técnico ou pela forma que confira um valor substancial
ao produto”.

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Direito Comercial I

“Forma imposta pela própria natureza do produto”: é a forma usual ou normal de que se revestem os bens a
cujo género ou espécie pertence o produto (p. ex., um atesoura, que por definição é formada por duas lâminas
que se movem em trono de um eixo comum; um parafuso, seja cilíndrico ou cónico; uma garrafa de forma
cilíndrica para bebidas).

“Forma do produto necessária à obtenção de um resultado técnico”: é a forma dada a um objeto de que resulta
um aumento da utilidade ou melhoria do aproveitamento do mesmo (mais facilmente manejável, mais
resistente, menos custoso, etc) e que poderá ser protegida como “patente” ou como “modelo de utilidade”
(ver arts. 51º e ss, art. 117º e ss).

 A lei não permite que as formas funcionais deste tipo sejam apropriadas a título de marcas, tuteladas
por tempo potencialmente ilimitado (art. 225º);
 Podem, eventualmente, ser apropriadas apenas a título de patentes ou de modelos de utilidade, cuja
duração não pode exceder 20 e 10 anos, respetivamente (art. 99º, 142º).

“Forma que confira um valor substancial ao produto”: é a forma cujo caráter estético ou ornamental influi
decisivamente no valor comercial dos produtos e que pode ser protegida (temporariamente) como “desenho
ou modelo” (art. 173º e ss.).

Por conseguinte, só as formas “arbitrárias” ou não “necessárias” podem ser marcas (p. ex., a forma de uma
garrafa oval para aguardentes velhas, a forma invulgar de frascos para perfumes).

Ainda por falta de capacidade distintiva, uma única cor não pode ser marca; é possível, porém, constituir uma
marca com duas ou mais cores, quando forem combinadas entre si ou com gráficos, dizeres ou outros
elementos por forma peculiar e distintiva – art. 223º/1/e).

3.2.2. Princípio da verdade

O princípio da verdade não tem “manifestações positivas necessárias” (o sinal pode ser de mera fantasia); a
marca é verdadeira se não for decetiva ou enganosa.

Estatui o art. 238º/4/d) CPI que a irregistabilidade das marcas que, em todos ou alguns dos seus elementos,
contenham “sinais que sejam suscetíveis de induzir o público em erro, nomeadamente sobre a natureza,
qualidades, utilidade ou proveniência geográfica do produto ou serviço a que a marca se destina”.

O ponto relativo à “proveniência geográfica” aconselha a considerar algumas hipóteses

1. O sinal geográfico (nominativo, designadamente) é verdadeiro (os produtos a que a marca se destina são,
p. ex., fabricados na localidade referida pelo sinal): pode ser incluído na marca.

2. Os produtos em causa não são originários da localidade ou região indicada pelo sinal geográfico:

a. O sinal é uma “denominação de origem” ou uma “indicação geográfica” (ver arts. 305º e ss) – não
pode fazer parte de marca, esta é irregistável porque decetiva;

b. Embora não seja denominação de origem nem indicação geográfica o nome geográfico é bastante
conhecido e suscetível de induzir o público em erro quanto à proveniência (p. ex., “Cuba” para
charutos fabricados em Lisboa com tabaco português): tal nome não pode integrar a marca
registável;

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Direito Comercial I

c. O nome geográfico, pouco ou muito conhecido, surge aos olhos do público como denominação de
fantasia ou arbitrária (p. ex., “Estoril” para cigarros fabricados em Beja): porque não decetivo, pode
ser ou fazer parte da marca.

3.2.2. Princípio da licitude (residual)

De acordo com o art. 238º:

b. É recusado o registo de marca que contenha certos símbolos, brasoes, emblemas ou distinções, salvo
autorização (nº 4/a)/b));
c. “Expressões ou figuras contrárias à lei, moral, ordem pública e bons costumes” (nº 4/c));
d. (tão-só) a bandeira nacional ou alguns dos seus elementos (nº 5);
e. Ou, entre outros componentes, a bandeira nacional, quando tal seja suscetível de provocar desrespeito
ou desprestígio dela ou de algum dos seus elementos (nº 6).

Outros fundamentos de recusa do registo de marca aparecem no art. 239º.

Tem interesse mencionar aqui especialmente:

a. A reprodução ou imitação, total ou parcial (em marca), de logótipo anteriormente registado


pertencente a sujeito que produz bens idênticos ou afins àqueles a que a marca se desta, se for
suscetível de induzir o consumidor em erro ou confusão (nº 1/b));

b. A infração de outros direitos de propriedade industrial (nº 1/c));

c. A reprodução de nomes ou retratos de pessoas sem autorização (nº 1/d));

d. A reprodução ou imitação, total ou parcial, de firma ou denominação que não pertençam ao requerente
de marca não autorizado, se for suscetível de induzir o consumidor em erro ou confusão (nº 2/a)); a
infração de direitos de autor (nº 2/b)).

2.3.4. Princípio da novidade e especialidade

Será ainda recusado o registo das marcas que sejam, diz o art. 239º/1/a), “reprodução ou imitação, no todo ou
em parte, de marca anteriormente registada por outrem para produtos ou serviços idênticos ou afins, que possa
induzir em erro ou confusão o consumidor ou que compreenda o risco de associação com a marca registada”.

Têm, pois, as marcas de ser novas, distintas ou inconfundíveis; mas tal novidade apenas tem de afirmar-se no
âmbito de produtos idênticos ou afins (art. 245º/1/b)) – vigora aqui o princípio da especialidade.

Da articulação dos arts. 239º/1/a) CPI e art. 5º/1 da Diretiva sobre as marcas, resulta o seguinte quadro dos
casos em que o registo de marca deve ser recusado:

a. A marca cujo registo se requer é idêntica à marca anteriormente registada por outrem, e os produtos
respetivos soa também idênticos;
b. Ambas as marcas são idênticas e os produtos são afins, existindo consequentemente um risco de erro ou
confusão para os consumidores (ou utilizadores);
c. As marcas são semelhantes e os produtos idênticos, com risco de erro ou confusão para os consumidores;
d. Tanto as marcas como os produtos são semelhantes ou afins, derivando daí a possibilidade de os
consumidores serem induzidos em erro ou confusão.

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Quando é que existe afinidade entre os produtos, semelhança entre marcas (ou imitação) e risco de
confusão?

a. São afins ou semelhantes os produtos com natureza ou características próximas e finalidades idênticas
ou similares (p. ex., vinho maduro e vinho verde, esferográficas e canetas)

b. São afins os produtos de natureza marcadamente diversa mas com finalidades idênticas ou semelhantes
(p. ex., fios de linho e fios de seda para confeções).

Nos dois casos, trata-se de bens “concorrentes”, intermutáveis ou substituíveis (satisfazem necessidades
idênticas).

Ainda, são afins os bens não intermutáveis ou substituíveis que o público destinatário crê razoavelmente terem
a mesma origem, por serem economicamente complementares (p. ex., artigos de couro e pomadas para tratar
e conservar couro, fios de lã e vestuário de lã, câmaras de vídeo e videocassetes) ou por razões (p. ex.,
aguardentes e vinhos, automóveis ligeiros e tratores agrícolas).

Não se deverá ir para lá destas fronteiras.

Parece irrazoável, por exemplo, que à sombra do argumento da crescente concentração/diversificação das
empresas se entenda serem similares (por ser crível provirem da mesma origem) todos os produtos de
jardinagem, desde as máquinas de aparar a relva até às sementes de plantas.

Por outro lado, também será irrazoável relativizar o conceito de afinidade dos produtos através da ponderação
das marcas: a semelhança dos produtos dependeria da semelhança das marcas – quanto mais semelhantes
fossem estas, mais se poderia se poderia afirmar a afinidade entre os respetivos produtos – e de outras
características das mesmas, especialmente da sua afirmação comercial ou notoriedade – quanto mais
conhecida fosse uma marca, maior a possibilidade de se afirmar a afinidade entre os produtos assinalados por
essa marca e outros produtos).

A relativização deve atuar não a propósito da afinidade dos bens mas a propósito do risco de confusão
(dependente da correlação afinidade dos produtos/semelhança das marcas).

As semelhanças ou parecenças entre as marcas podem ser, principalmente, de natureza gráfica, figurativa ou
fonética (art. 245º/1/c)).

A grafia e/ou a fonética interessam particularmente para as marcas nominativas e as constituídas por letras
ou números, bem como para as marcas mistas em que elementos daquele género prevaleçam. Para as marcas
figurativas e tridimensionais interessa sobretudo atender à figura e configuração.

Não obstante, as semelhanças podem ser também de ordem sonora – não fonética (marcas auditivas). E há que
contar ainda com as parecenças ideográficas ou conceituais (para quaisquer tipos de marcas).

Andou bem o novo Código (art. 245º/1/c)) ao acrescentar “ou outra” à tríade “gráfica, figurativa ou fonética”
que aparecia no art. 193º/1/c) da lei anterior.

No juízo sobre a similitude, devem as marcas ser apreciadas global ou sinteticamente; não devem ser
dissecadas analiticamente a fim de excluir do exame elementos ou segmentos, designadamente os que não
têm ou têm pouca capacidade distintiva (o exame deverá recair sobre as marcas na sua totalidade).

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Não quer isto dizer, porém, que o juízo sobre a semelhança há-de ser “impressionístico”, não fundado em
análise e ponderação das semelhanças e dissemelhanças.

É claro que os elementos de caráter especifico, descritivo, genérico ou de uso comum, embora não excluíveis
da apreciação, têm peso menor do que os elementos arbitrários ou de fantasia; depois, nomeadamente as
marcas complexas (incluindo as mistas), há-de ter-se em especial conta a parte preponderante ou “vedeta”, o
“núcleo” ou “coração” dos signos em exame (a semelhança é mais significativa quando se verifica no
“coração”).

Para que a marca não seja consideradas não nova e insuscetível de registo não basta ser idêntica ou
semelhante a marca anteriormente registada por outrem para produtos afins ou idênticos.

 É ainda necessário que tal identidade ou semelhança possa induzir em confusão o consumidor.

 Não existe risco de confusão sem que exista identidade ou semelhança entre os sinais e simultânea
afinidade ou identidade entre os produtos.

 Mas estas correspondências entre marcas e produtos (identidade-afinidade, semelhança-identidade,


semelhança-afinidade) não implicam necessariamente risco de confusão.

O risco de confusão deve ser entendido em sentido lato, de modo a abarcar tanto o risco de confusão em
sentido estrito ou próprio como o risco de associação.

 Verifica-se o primeiro quando os consumidores podem ser induzidos a tomar uma marca por outra e,
consequentemente, um produto por outro – os consumidores creem erroneamente tratar-se da mesma
marca e do mesmo produto).

 Verifica-se o segundo quando os consumidores, distinguindo embora os sinais, ligam um ao outro e, em


consequência, um produto ao outro - creem erroneamente tratar-se de marcas e produtos imputáveis a
sujeitos com relações de coligação ou licença, ou tratar-se de marcas comunicando análogas qualidades
dos outros.

O risco de confusão depende de vários fatores:

1. Tipo de consumidores:

 Os consumidores a considerar são, em primeiro lugar, aqueles a quem os produtos assinalados com as
marcas em causa se destinam (p. ex., certas semelhanças entre sinais e entre produtos podem não
induzir, ou induzir dificilmente, em erro industriais ou consumidores especialistas, enquanto que as
mesmas semelhanças já podem criar facilmente confusão no espirito da generalidade dos
consumidores).

 Depois, há-de atender-se ao consumidor “médio”, nem particularmente atento nem particularmente
distraído (o consumidor de normal capacidade, informação e atenção.

Por outro lado, deve ver-se o consumidor médio a ser sensibilizado atualmente por certo sinal e, ao
mesmo tempo, a recordar (mais ou menos imprecisamente) a marca registada cuja imitação se
questiona (o confronto entre os dois sinais não é atual).

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2. Grau de semelhança entre as marcas e entre os produtos assinalados: o risco de confusão é tanto maior
quanto for a semelhança entre os sinais e entre os produtos.

E estas semelhanças hão-de ser correlacionadas: a afinidade entre os produtos pode ser tanto menor
quanto maior for a semelhança entre os sinais e vice-versa.

3. Da força e notoriedade da marca registada: o risco de confusão é maior quando a marca registada é
“forte” (não “normal” nem “fraca”), ou muito conhecida: a marca que se pretende registar tem então de
apresentar maiores dissemelhanças a fim de não induzir o público em erro.

 Marcas fracas ou débeis são marcas com pouca capacidade distintiva, por conterem elementos
específicos, genéricos, descritivos ou de uso comum (referem-se diretamente à natureza ou
qualidades do produto – são marcas “expressivas” ou “sugestivas”).

 Uma marca forte, tendo maior capacidade distintiva, desperta maior atenção no público e perdura
mais na sua memória; daí que leves semelhanças ou imitações sejam suscetíveis de provocar
trovas ou associações entre a marca de que se guarda memória e o signo que se pretende registar.

 O titular de uma marca expressiva há-de ter consciência de que a opção por tal signo o expõe
a riscos: outros sujeitos têm legitimidade para compor as suas marcas igualmente com
elementos sugestivos (art. 223º/2).

 A notoriedade da marca registada releva também. Ainda que do ponto de vista empírico seja
duvidoso que o risco de confusão em sentido estrito aumente à medida do crescimento da
notoriedade da marca no mercado, certo é que o risco de associação é tanto maior quanto for a
notoriedade da marca registada.

3.3. Conteúdo e extensão do direito sobre marca


3.3.1. Registo

Para que se constitua um direito de propriedade sobre uma marca é preciso que a mesma seja registada (no INPI) –
art. 224º CPI. O processo normal de registo é regulado pelos artigos 233º e ss.

Quem tem direito de prioridade para o registo?

a. Tem direito de prioridade para o registo quem primeiro apresentar regularmente o respetivo pedido (art.
11º).
b. No entanto, quem tiver apresentado regularmente em qualquer país da União de Paris ou da OMC, ou em
qualquer organismo intergovernamental com competência para registar marcas que produzam efeitos em
Portugal, um pedido de registo de marca gozará, para apresentar o mesmo pedido em Portugal, do direito de
prioridade durante 6 meses a partir da data do primeiro pedido (art. 12º CPI e art. 4º CUP).
c. Também “aquele que usar marca livre ou não registada por prazo não superior a seis meses tem, durante
esse prazo, direito de prioridade para efetuar o registo, podendo reclamar contra o que for requerido por
outrem” (art. 227º/1 CPI).

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Direito Comercial I

1. Os direitos conferidos pelo registo de marca no nosso país são eficazes em todo o território nacional (art.
4º/1).

 O titular da marca registada no INPI que pretenda a proteção do sinal como marca noutros países
requer o registo nesses Estados.

 Contudo, não terá de o fazer com relação aos Estados partes do Acordo de Madrid relativo ao
Regime Internacional de Marcas ou do Protocolo relativo a esse Acordo, aprovado em Conselho de
Ministros de 12/9/96 e ratificado em 27/9/96.

 Relativamente a estes países, o requerente ou o titular de um registo de marca em Portugal,


quando seja de nacionalidade portuguesa ou esteja domiciliado ou estabelecido no nosso
país, pode requerer, por intermédio do INPI, o registo dessa marca na Secretaria Internacional
da Organização Mundial da Propriedade Intelectual;

 A partir da data do registo na Secretaria, que o notificará sem demora às Administração dos
países onde se pretende a proteção da marca, a proteção dela em cada um desses países (que
a não tenham recusado justificadamente) será a mesma que a marca teria se neles tivesse
sido diretamente registada (arts. 248º e ss CPI).

2. As administrações dos países ou organizações partes dos citados Acordo e Protocolo podem recusar a
proteção nos correspondentes territórios a marcas de registo internacional.

No entanto, tal recusa só pode fundar-se nos motivos previstos no artigo 6º-quinquies, B) CUP – art. 5º/1
do Acordo e do Protocolo.

 Assim sendo, o art. 254º CPI viola (parcialmente) aquela norma de direito internacional
(hierarquicamente superior).

3. Uma menção breve agora às “Marcas da UE”: têm caráter unitário, produzem em regra os mesmos efeitos
em toda a União, sendo o seu registo (único) efetuando no Instituto da Propriedade Intelectual da União
Europeia.

3.3.2. Direitos conferidos pelo registo

1. O titular de uma (licita) marca registada, gozando da “propriedade e do exclusivo dela” (art. 224º/1 CPI),
pode naturalmente usá-la para assinalar os produtos respetivos, utilizá-la na publicidade, transmiti-la e
cedê-la em licença de exploração (arts. 31º, 32º, 262º, 264º) etc.

2. Por outro lado, pode reclamar contra pedido de registo feito por outrem de marca idêntica ou semelhante
(art. 236º, 237º) – devendo o INPI, haja ou não reclamação, recusar tal registo se existir risco de confusão
(art. 239º/1/a)) -, propor ação de anulação de registo concedido contra o disposto na norma por último
citada (art. 266º/1), requerer judicialmente medidas inibitórias (cautelares ou definitivas) contra violações
do seu direito (art. 338º-I, 338º-N), bem como indemnizações (art. 338º-LL).

3. Por outro lado ainda, o direito do titular de marca é protegido criminal e contra-ordenacionalmente (arts.
323º, 324º, 336; 319º).

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Umas palavra mais sobre o art. 258º.

Diz ele “O registo da marca confere ao seu titular o direito de impedir terceiros, sem o seu consentimento, de
usar, no exercício de atividades económicas, qualquer sinal igual, ou semelhante, em produtos ou serviços
idênticos ou afins daqueles para os quais a marca foi registada, e que, em consequência da semelhança entre
os sinais e da afinidade dos produtos ou serviços, possa causar um risco de confusão, ou associação, no espírito
do consumidor.”.

É proibido o uso de sinais confundíveis com a marca registada “no exercício de atividades económicas”.

Assim, é claro que não há ofensa do direito à marca quando numa roda de amigos falamos depreciativamente
de certa marca; ou quando um dirigente de associação de consumidores menciona determinada marca em
entrevista para referir os malefícios de alguns componentes dos produtos respetivos.

Depois, os sinais confundíveis com marca registada hão-de ser usados (em atividades económicas) como sinais
distintivos, assinalando, distinguindo produtos (idênticos ou afins aos assinalados pela marca registada) – por
exemplo, os terceiros apõem tais sinais nos produtos por si fabricados, ou utilizam-nos na publicidade a esses
produtos (art. 10º/3 Diretiva 89/104/CEE).

O direito à marca, em Portugal, não impede o uso daqueles sinais para fins diversos dos da individuação-
diferenciação dos produtos (p. ex., para fins descritivos ou informativos).

“Os direitos conferidos pelo registo” (art. 258º) sofrem os limites que expomos de seguida.

3.3.3. Limitações aos direitos conferidos pelo registo

1. O titular da marca registada não tem o direito de impedir que terceiros usem na sua atividade económica,
o seu próprio nome e endereço ou indicações relativas à espécie, qualidade, quantidade, destino, valor,
proveniência geográfica e outras características dos produtos – apesar de tais signos serem idênticos ou
semelhantes à marca e respeitarem a produtos idênticos ou afins.

 No entanto, isto só é assim quando o uso (pelos terceiros) seja feito em conformidade com normas
e usos honestos em matéria profissional (arts. 260º/a)/b) CPI e art. 14º/1/a)/b)/2 da Diretiva).

 Ou seja, os aludidos signos hão-de aparecer em função descritiva, não como marcas; o terceiro
deve utilizá-los, em regra, juntamente com uma marca própria, que apareça de modo destacado
(os consumidores não devem ser induzidos a crer que aqueles sinais são marcas).

2. O titular de marca registada não tem o direito de impedir que terceiros usem na sua atividade económica
essa mesma marca, quando tal uso não viole práticas honestas em matéria profissional e seja necessário
para indicar o destino dos produtos, nomeadamente no caso de acessórios ou peças sobressalentes (art.
14º/1/c) da Diretiva e art. 260º/c) CPI).

 Por exemplo, o produtor de peças sobressalentes para automóveis “Audi” pode utilizar esta marca
desde que revele aos consumidores não serem essas peças fabricadas pelo produtor dos
automóveis nem estar ele ligado a este – o que passa pela utilização de uma marca própria em
função distintiva.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

3. Outra importante limitação aos direitos conferidos pelo registo decorre do chamado princípio do
esgotamento.

 Imaginemos um produtor estabelecido em Portugal lança em Espanha, diretamente ou através


de um concessionário exclusivo, produtos seus com determinada marca a preços inferiores aos
praticados no nosso país.
 No país vizinho, um comerciante compra alguns desses produtos e pretende exportá-los para
Portugal com a mesma marca.
 O citado produtor opõe-se à “importação paralela”, invocando que em Portugal só ele (ou
alguém com o seu consentimento) tem direito a usar aquela marca para aqueles produtos (art.
258º e ver também o art. 36º TFUE).

A oposição destas, que, a serem admitidas, conduziriam ao fechamento dos mercados nacionais, e que
não são exigidas pela devida tutela dos direitos conferidos pela marca, cedo se opôs o TJCE: os direitos
conferidos pela marca esgotam-se relativamente aos produtos colocados no mercado pelo titular da
marca ou por terceiro com o seu consentimento.

A Diretiva sobre marcas acolheu esta jurisprudência comunitária no art. 15º, que o art. 259º CPI quase
reproduz.

No entanto, a regra do esgotamento não é aplicável sempre que existam motivos legítimos,
nomeadamente quando o estado desses produtos seja modificado ou alterado após a sua colocação no
mercado (art. 259º/2; 15º/2 Diretiva).

Nestes casos de alteração do estado das mercadorias, impedir o titular da maca de reagir significaria
postergar as funções de indicação da origem, de garantia de qualidade e publicitária que às marcas se
reconhecem.

Pode o titular da marca opor-se legitimamente à comercialização posterior dos produtos quando o
comerciante os tenha reembalado e neles tenha reaposto a marca?

 Pode, com base nos arts. 259º/2 CPI e 15º da Diretiva – mas excetuando-se os casos em que se
demonstre que a oposição contribui pata estabelecer uma compartimentação artificial dos
mercados entre Estados-membros; que a reembalagem não afeta o estado originário do produto;

 A identidade do fabricante e do reembalador é claramente visível na nova embalagem; a


apresentação do produto reembalado não prejudica a reputação da marca (mais uma vez a
função publicitária) nem a do seu titular; o titular da marca foi avisado pelo comerciante acerca
da reembalagem.

3.3.4. Proteção das marcas de facto, livres ou não registadas

As marcas de facto, além de poderem gozar do já referido direito de prioridade para o registo, nos termos do
art. 227º CPI, podem ser também protegidas por efeito do disposto no art. 239º/1/e): deve ser recusado o
registo de marca idêntica ou confundível com marca de facto quando se reconheça que o requerente
“pretende fazer concorrência desleal ou que esta é possível independentemente da sua intenção” (art. 317º/a))
– ver também o art. 266/1.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

De proteção especial gozam as marcas de facto “notoriamente conhecidas”. Diz o art. 241º/1/2:

“1 - É recusado o registo de marca que, no todo ou em parte essencial, constitua reprodução, imitação
ou tradução de outra notoriamente conhecida em Portugal, se for aplicada a produtos ou serviços
idênticos ou afins e com ela possa confundir-se ou se, dessa aplicação, for possível estabelecer uma
associação com o titular da marca notória.

2 - Os interessados na recusa dos registos das marcas a que se refere o número anterior só podem
intervir no respetivo processo depois de terem efetuado o pedido de registo da marca que dá origem e
fundamenta o seu interesse.”

Estas marcas hão-de ser notoriamente conhecidas em Portugal. Ou seja, o conhecimento deve verificar-se no nosso
país (não basta o eventual conhecimento notório noutro ou noutros país.

E deve verificar-se nos meios interessados, nos círculos dos consumidores ou utilizadores dos produtos em causa. Tal
conhecimento, que pode resultar do uso das marcas e/ou da publicidade feita às mesmas, há-de ser notório; isto é
uma clara maioria dos referidos consumidores conhece essas marcas

Além de o INPI não dever registar marca que reproduza, imite ou traduza marca notoriamente conhecida, nos termos
do art. 241º/1, tem o titular de uma marca destas o direito de reclamar contra o requerimento daquele registo depois
de ter efetuado o pedido de registo da marca notória (art. 241º/2).

 Se, indevidamente, o INPI proceder àquele registo, pode o titular da marca notoriamente conhecida pedir a
anulação do mesmo (art. 266º/1/2).

 Mesmo antes do registo da marca notoriamente conhecida (mas depois do respetivo registo), o terceiro que a
use, contrafaça ou imite está sujeito a responsabilidade criminal (art. 323º/d) e 324º).

Proteção semelhante à das marcas notoriamente conhecidas não registadas é concedida às marcas de prestígio
não registadas (arts. 242º, 266º/1/2, 323º/e), 324º).

Nota: as marcas de prestígio não carecem da mesma notoriedade das marcas notoriamente conhecidas e são
protegidas para lá do âmbito do princípio da especialidade.

3.4. Transmissão e licenças


3.4.1. Transmissões

O sistema hoje generalizado é o da transmissibilidade das marcas independentemente da transmissão das


respetivas empresas.

Tal como acontecia no CPI de 1940 e no de 1995, também na lei atual se consagra esse sistema, embora com
limitações.

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Direito Comercial I

1. A propriedade da marca registada (bem como o pedido de registo) é transmissível a título gratuito ou
oneroso independentemente do estabelecimento, “se tal não for suscetível de induzir o público em erro
quanto à proveniência do produto ou serviço ou aos carateres essenciais para a sua apreciação” (arts.
262º/1/3) – ver também: art. 263º.

 Por poder induzir o público em erro, será, pois, ilícita a transmissão autónoma de marca (sem o
estabelecimento) quando, por exemplo, a marca contenha o nome ou a firma do transmitente,
ou recompensas a ele atribuídas.

 Ilícita será também quando os produtos do transmissário a assinalar com a marca sejam –
embora da mesma “classe” classificativa – de natureza diversa ou qualidade consideravelmente
inferior às dos produtos do transmitente.

2. Trespassando-se um estabelecimento, transmite-se naturalmente a marca (ou marcas) a ele ligada(s).


Transferindo-se um estabelecimento a título temporário (p. ex., usufruto ou locação), vale também a
regra da transmissão natural das marcas.

3. A transmissão inter vivos das marcas (ou dois pedidos de registo), quando não integra em negócio sobre
estabelecimento exigindo escrito, “deve ser provada por documento escrito” – art. 31º/6.

Em qualquer caso, a transmissão só produz efeitos em relação a terceiros depois do respetivo


averbamento no INPI (art. 30º/1/a)/2).

4. As marcas de facto, por não serem objeto de direito de propriedade, não são transmissíveis
autonomamente. Mas, enquanto elementos de empresas, podem com estas ser transmitidas.

3.4.2. Licenças

Atendendo à função de indicação de origem das marcas (entendida de modo estrito), defendeu-se, entre nós,
que, na falta de norma legal especifica, eram ilícitos os contratos de licença de exploração das marcas.

Hoje, as licenças de exploração de marcas estão especialmente previstas nos artigos 32º e 264º CPI.

1. Através de contrato (oneroso ou gratuito) pode o titular de marca registada cedê-la a terceiro em licença
de uso ou exploração. A licença pode ser total ou parcial (para todos ou parte dos produtos para os quais
a marca foi registada), destinada a certa zona ou a todo o território nacional, vigente por todo o tempo do
registo ou por prazo inferior, exclusiva (obrigando-se o licenciante a não conceder outras licenças para a
zona acordada enquanto aquela vigorar) (*) ou não exclusiva (ou simples) – art. 32º/1/5/6/7.

(*) Se também o licenciante se obriga a não utilizar a marca na zona designada, poderá falar-se de licença
exclusiva reforçada.

2. O contrato de licença está sujeito a forma escrita (art. 32º/3) e só produz efeitos em relação a terceiros
depois de averbado no INPPI (art. 30º/1/b)/2).

3. “Salvo estipulação expressa em contrário, o licenciado goza, para todos os efeitos legais,d as faculdades
conferidas ao titular do direito objeto da licença (…) – art. 32º/4.

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Direito Comercial I

Todavia, Salvo estipulação expressa em contrário, o licenciado goza, para todos os efeitos legais, das
faculdades conferidas ao titular do direito objeto da licença, com ressalva do disposto nos números
seguintes (art. 32º/8/9)

4. Não prevê a lei o poder-dever de o licenciante controlar a qualidade dos produtos com a sua marca
assinalados pelo licenciado; nem prevê o dever legal de o licenciado respeitar os critérios de qualidade
respeitados pelo licenciante e/ou outros licenciados).

 Contudo, sempre se poderá recorrer ao regime da caducidade – art. 269º/2/b).

 O que a lei prevê (art. 264º; cfr. 25º/2 Diretiva) é que, prevendo o contrato de licença algo sobre a
qualidade dos produtos fabricados ou dos serviços prestados pelo licenciado (bem como outros aspetos
relativos ao uso da marca), o licenciante pode invocar contra o licenciado que infrinja essa(s) cláusula(s)
– além do regime geral do incumprimento dos contratos – “os direitos conferidos pelo registo” – arts.
258º e 323º/f).

Aparentado com o contrato de licença é o contrato de merchandising

Contrato através do qual o titular da marca (registada) de prestígio concede a outrem o direito de usar o signo
para distinguir produtos não idênticos nem afins dos produtos para que ela foi registada.

 Apesar de não tipificado legalmente, o titular de uma marca de prestígio tem o direito de impedir que
outrem a use para quaisquer espécies de produtos (cfr. art. 242º, 323º/e));
 Por conseguinte, este uso só será legitimo havendo acordo do titular da marca.

3.5. Extinção do registo das marcas ou de direitos dele derivados


3.5.1. Nulidade

Segundo o art. 265º/1 CPI, o registo de marca é nulo nos casos previstos no art. 33º/1, e quando na sua
concessão tenha sido desrespeitado o disposto no art. 238º/1/4/5/6 (proibições absolutas de registo).

Art. 33º/2 e 35º/1/2: a declaração judicial da nulidade é requerível a todo o tempo por qualquer interessado ou
pelo Ministério Público

 No entanto, a eficácia retroativa da declaração de nulidade não prejudica os efeitos produzidos em


cumprimento de obrigação (relativa ao pagamento, por exemplo, por parte do licenciado de retribuições
vencidas), de sentença transitada em julgado (que, por exemplo, tenha condenado ao pagamento de
indemnização alguém que usou sinal imitando a marca posteriormente declarada nula), de transação,
ainda que não homologada, ou em consequência de atos de natureza análoga (art. 36º).

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Direito Comercial I

3.5.2. Anulação

Art. 266º/1: é anulável o registo de marca quando na sua concessão tenha sido infringido o previsto nos artigos
239º a 242º.

Art. 35º/1/2 e 266º/4: as ações de na anulação podem ser propostas pelo Ministério Público ou por qualquer
interessado dentro do prazo de 10 anos a contar da data do despacho de concessão do registo.

 Mas não prescreve o direito de pedir a anulação de marca registada de mé fé (com conhecimento da
existência de marca, sinal, ou direito anteriores incompatíveis com a marca cujo registo se obteve, e
intenção de prejudicar e/ou beneficiar em detrimento do titular daqueles sinais ou direitos - art. 266º/4;

 Porém, “o titular de uma marca registada que, tendo conhecimento do facto, tiver tolerado, durante um
período de cinco anos consecutivos, o uso de uma marca registada posterior, deixa de ter direito, com
base na sua marca anterior, a requerer a anulação do registo da marca posterior, ou a opor-se ao seu uso,
em relação aos produtos ou serviços nos quais a marca posterior tenha sido usada, salvo se o registo da
marca posterior tiver sido efetuado de má fé “– art. 267º/1.

3.5.3. Caducidade

O registo da marca caduca independentemente da invocação de causa – art. 37º/1:

a) Quando tiver expirado o seu prazo de duração;


b) Por falta de pagamento de taxas

E caduca também no caso se as respetivas causas forem invocadas por interessado e houver a correspondente
declaração pelo INPI (art 37º/2 e art. 270º).

1. Se a marca não tiver sido objeto de uso sério durante 5 anos consecutivos sem justo motivo (art.
269º/1).
2. Se a marca se tiver transformado na designação usual no comércio do produto para que foi registada,
em consequência de atividade ou inatividade do titular (art. 269º/2/a)).

Sobre estas duas hipóteses…

O uso de marca (tal como está registada ou em forma que, de harmonia com o disposto no artigo 261º, não lhe
altere o caráter distintivo – art. 268º/1/a)) é “sério” quando ela assinala produtos colocados no mercado de
modo estável ou não esporádico e em quantidades significativas ou não irrisórias, quando a utilização não é
meramente “simbólica”.

 Mas o uso sério poderá bastar-se com a utilização da marca em campanhas publicitárias preparatórias da
introdução dos bens no mercado.

 O uso relevante da marca pode ser feito pelo titular do registo, por licenciados (art. 268º/1/a)), por
“terceiro, desde que o seja sob controlo do titular e para efeitos da manutenção do registo” (art.
268º/1/c)), ou, em geral, por quem seja autorizado pelo titular (p. ex., sociedades filiais).

Há “justo motivo” para o não uso de marca quando existam circunstâncias independentes da vontade do
titular que tal imponham – p. ex., casos de força maior (guerras, catástrofes naturais) e medidas de autoridades
públicas proibindo a produção ou a comercialização dos respetivos produtos.

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No entanto, o registo não caduca por falta de uso injustificado da marca durante 5 anos consecutivos “se, antes
de requerida a declaração de caducidade, já tiver sido iniciado ou reatado o uso sério da marca” (art. 269º/4);

Contudo, “o inicio ou o reatamento do uso sério nos três meses imediatamente anteriores à apresentação de
um pedido de declaração de caducidade, contados a partir do fim do período ininterrupto de cinco anos de não
uso, não é (…) tomada em consideração as diligencias para o inicio ou reatamento do uso só ocorrerem depois
de o titular tomar o conhecimento de que pode vir a ser efetuado esse pedido de declaração de caducidade“
(art. 269º/4, 268º/4; 19º/3 da Diretiva).

Fenómeno de “vulgarização da marca” – art. 269º/2 CPI (art. 20º/a) da Diretiva).

 O registo da marca é passível de caducidade quando ela se transforma na designação comercial usual do
produto pata que foi registada, quando se converte no nome comum ou signo “específico” do produto (a
marca deixa de aparecer como sinal distintivo de bens com certo nome, aparecendo como denominação
comum, como o próprio nome desses bens).

Esta conversão pode realizar-se por iniciativa do titular ou explorador da marca (utilizando-a como
denominação especifica), dos concorrentes (utilizando ilicitamente a marca de outrem), dos distribuidores
ou comerciantes (usando ilicitamente a marca ou designando especificamente os produtos através da
marca), dos consumidores (solicitando produtos não pelo seu nome ou pelo nome e marca mas por
determinada marca).

 Todavia, não basta o uso generalizado de uma marca como denominação específica de produto para que
o registo possa ser declarado caduco. A lei não perfilhou a tese “objetiva” da caducidade por vulgarização,
mas sim a “subjetiva”.

Isto é, a caducidade só pode ser declarada quando a vulgarização da marca seja “consequência da
atividade, ou inatividade, do titular”. Resulta da inatividade do titular quando são outros que iniciam ou
promovem essa utilização sem que ele reaja, sem se opor a tal emprego.

3.5.4. Renúncia

Por declaração unilateral recetícia (dirigida ao INPI), pode o titular de marca renunciar (total ou parcialmente)
ao direito ed propriedade sobre ela (art. 38º/1/2). Porém “a renúncia não prejudica os direitos derivados [v.g.
fundados em licença de exploração] que estejam averbados, desde que os seus titulares, devidamente
notificados, se substituam ao titular do direito principal, na medida necessária à salvaguarda desses direitos”

4. Denominações de origem e indicações geográficas

4.1. Noção

Denominação de origem é o nome de uma região, de um local determinado ou, em casos excecionais, de um
país, que serve para designar m produto originário dessa zona, cuja qualidade ou características se devem
essencial ou exclusivamente ao meio geográfico – aos seus fatores naturais (solo, clima) e/ou socioeconómicos
(técnicas de produção) – e que é produzido, transformado e elaborado na área geográfica delimitada (art.
305º/1 CPI).

São igualmente consideradas denominações de origem certas denominações tradicionais, geográficas ou não,
que designem produtos originários de uma região ou local determinado, cujas qualidades ou características se
devem essencialmente ao meio geográfico e cuja produção, transformação e elaboração ocorrem nas áreas
geográficas delimitadas (art. 305º/1, cfr. 2º/3 Regulamento 2081/92).

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Direito Comercial I

Indicação geográfica é o nome de uma região, de um local determinado ou, em casos excecionais, de um país,
que serve para designar um produto originário dessa zona, cuja reputação, determinada qualidade ou outra
característica podem ser atribuídas a essa origem geográfica e que é produzido, transformado ou elaborado na
área geográfica delimitada (art. 305º/3)

A diferença principal entre denominações de origem e indicações geográficas está no facto de as primeiras
identificarem produtos cuja qualidade global ou características se devem essencialmente ao meio geográfico,
enquanto as segundas designam produtos que, podendo ser produzidos com idêntica qualidade global noutras
zonas geográficas, devem a sua fama ou certas características à área territorial delimitada que deriva o nome-
indicação geográfica (v.g. Maçã da Cova da Beira).

Como se vê, as denominações de origem e as indicações geográficas visam distingui produtos – tal como as
marcas. Mas não se confundem com estas.

 As possibilidades de constituição das marcas (art. 222º) são muito mais vastas do que as respeitantes
àqueles sinais, sempre nominativos e consistindo quase sempre em nomes de zonas geográficas;

 As marcas pertencem a sujeitos determinados, e as denominações de origem e indicações geográficas são


propriedade comum dos residentes ou estabelecidos, de modo efetivo e sério, na localidade, região ou
território demarcados (art. 305º/4);

 Ao invés da generalidade das marcas, aqueloutros sinais distinguem sempre produtos originários de
certas áreas geográficas.

Não obstante, é muito grande a proximidade entre as denominações de origem e indicações geográficas e as
marcas coletivas constituídas por nomes indicando a proveniência geográfica dos produtos (arts. 228º/2).

Ainda aqui, porém, subsistem as diferenças relativas aos sujeitos que podem ser titulares e usuários de uns e
outros sinais; a mais disso (e afora outras diferenças de regime previstas nos respetivos capítulos do CPI), deve
notar-se que as possibilidades de controlo da produção e comercialização dos produtos assinalados por uns e
outros sinais são em geral mais vastas no respeitante às marcas coletivas – ver arts. 228º/3, art. 231º/1/b)/2,
art. 305º/5.

4.2. Proteção

A tutela das denominações de origem e das indicações exige, em regra, que elas estejam registadas.

O registo deve ser concedido às denominações e indicações respeitadoras dos requisitos previstos no art.
305º/1/2/3;

a. Não confundíveis com denominações de origem u indicações geográficas anteriormente registadas;


b. Não decetivas;
c. Não ofensivas de (anteriores) direitos de propriedade industrial ou de direitos de autor;
d. Nem de lei, da ordem pública ou dos bons costumes
e. Não suscetíveis de favorecer atos de concorrência desleal – art. 308º

O registo destes sinais confere o direito de impedir o uso da(s) palavra(s) característica(s) deles componente(s),
ou de signos confundíveis, em marcas e outros sinais distintivos, etiquetas, rótulos, mensagens publicitárias,
documentos mercantis para assinalar, apresentar ou referir produtos idênticos ou afins mas não provenientes
das regiões demarcadas a que se reportam as denominações de origem ou as indicações geográficas (cfr. o
prolixo arts. 312º/1/a)/2/3).

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Mas aquele uso é ainda proibido em relação a produtos não idênticos nem afins quando a denominação de
origem ou a indicação geográficas gozem de “prestígio” em Portugal ou na Comunidade Europeia e “sempre
que o uso das mesmas procure, sem justo motivo, tirar partido indevido do carácter distintivo ou do prestígio da
denominação de origem ou da indicação geográfica anteriormente registada, ou possa prejudicá-l[o]s” (art.
312º/4).

Também nestes casos, portanto, é ultrapassado o “princípio da especialidade”, semelhantemente ao que


ocorre a propósito das marcas de prestígio.

O art. 312º/1, permite impedir ainda “a utilização que constitua um ato de concorrência desleal, no sentido do
art. 10-bis da Convenção de Paris (…)” – alínea b) – e “o uso por quem, para tal, não esteja autorizado pelo
titular do registo” (alínea c)). Disposições desnecessárias. Quanto à primeira, a tutela decorrente das restantes
disposições do art. 312º parece não deixar qualquer espaço para uma (autónoma) tutela em termos de
concorrência desleal. A segunda encontra-se já, melhor formulada, no nº4 do art. 305º.

Além da proteção consagrada no art. 312º deve ser tida em conta a relativa à responsabilidade civil nos termos
dos arts. 483º e ss CCiv (cfr. CPI, arts. 305º/4, 310º, 316º, 338º-I) e à responsabilidade criminal (art. 325º).

As denominações de origem e indicações geográficas não registadas também gozam de alguma proteção.
Salientemos aqui o disposto na parte final do art. 310º: tais sinais são protegidos por regras “que forem
decretadas contra as falsas indicações de proveniência” [v.g. o Acordo de Madrid de 1891], independentemente
do registo (…)”

De proteção territorialmente alargada gozam as denominações de origem e as indicações de proveniência


objeto de registo internacional (na Secretaria da União de Lisboa de 1958 (cfr. art. 309º CPI). Por sua vez, são
protegidas em todos os Estados-membros da UE as denominações e indicações que, nos termos do
Regulamento 510/2006, sejam registadas pela Comissão.

4.3. Extinção

O registo é nulo, designadamente, quando na sua concessão tenha sido violado o disposto (alíneas b), d) e f)
do art. 308º (falta de requisitos essenciais para a qualificação como denominações de origem ou indicações
geográficas, deceptividade originária, contrariedade à lei, à ordem pública ou aos bons costumes) – art. 313º

É anulável quando na sua concessão tenha sido desrespeitado o disposto nas alíneas a), c), e) e g) do art. 308º
(falta de legitimidade do requerente, reprodução ou imitação de denominação de origem ou indicação
geográfica anteriormente registadas, infração de direito de propriedade industrial ou de direito de autor,
possibilitação de atos de concorrência desleal) – art. 314º

“O registo caduca, a requerimento de qualquer interessado, quando a denominação de origem, ou a indicação


geográfica, se transformar, segundo os usos leais, antigos e constantes da atividade económica, em simples
designação genérica de um sistema de fabrico ou de um tipo determinado de produtos” – art. 315º/1

Parece estar aqui consagrada uma conceção primordialmente “objetivista”

Contudo, não ficam sujeitos à caducidade por “vulgarização” “os produtos vinícolas, as águas mineromedicinais
e os demais produtos cuja denominação geográfica de origem seja objeto de legislação especial de proteção e
fiscalização no respetivo país” (art. 315º, ver também art. 13º/2 do Regulamento 510/2006)

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5. Recompensas

As recompensas são prémios e títulos de distinção oficiais ou oficialmente reconhecidos (condecorações,


medalhas, diplomas, atestados, etc) concedidos a empresários por mor da bondade dos respetivos
estabelecimentos e/ou produtos (cfr. arts. 271º, 272º, 273çº, 274º/c)/d), 276º/c) CPI)

As recompensas conferidas aos empresários “constituem propriedade sua” (art. 273º). E deve entender-se que
a propriedade lhes é reconhecida independentemente do registo das mesmas (arts. 273º, art. 276º/c)).

Aqui, o registo parece não ser constitutivo; serve antes para, a mais de publicitar a titularidade das
recompensas, garantir a veracidade e autenticidade dos títulos de concessão das mesmas (art. 4º/3) e
possibilitar que na referência ou cópia delas se indique “Recompensa registada” ou «’R.R’», «’RR’» ou «RR» -
art. 278º

 O registo de recompensa é anulável quando se prove que a mesma não foi concedida ao sujeito
mencionado no registo, ou quando o título da recompensa for anulado (art. 280º);

 Caduca quando a concessão da recompensa for revogada ou cancelada (art. 281º/1); e o titular pode a
ele renunciar nos termos do art. 38º

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

PATENTES DE INVENÇÃO
1. Introdução

É óbvio que sempre haveria invenções se não existissem patentes. Aliás, primeira lei de patentes digna desse
nome só surgiu no século XV, em Veneza, e tal não impediu o anterior progresso técnico da Humanidade.

Apesar disso, acredita-se que a existência de um sistema de patentes incrementa a atividade inventiva e,
sobretudo, torna possível, porque rentável, certo tipo de pesquisa e investigação mais dispendiosas.

As quais não seriam realizadas se não houvesse a perspetiva de realizar uma exploração económica do invento
em condições monopolísticas ao abrigo do direito exclusivo resultante da patente.

As patentes de invenção são encaradas como uma recompensa destinada a estimular a criatividade técnica do
inventor, em contrapartida do acréscimo de conhecimento partilhado com a sociedade através da divulgação
pública do invento.

Esta justificação não é isenta de críticas:

 Há quem entenda que o sistema de patentes está a “asfixiar a criatividade que deveria estimular;
 Há quem considere desnecessário o estímulo à invenção.
 Até porque é muito difícil medir avaliar os efeitos que um sistema de patentes está a produzir.

Ainda assim, esta explicação continua a ser a “verdade oficial”: as patentes são encaradas como um
instrumento de política económica; se não houvesse patentes haveria muito menos invenções, em prejuízo da
Ciência, da Economia e da Sociedade.

Mas é, também, inegável que o Direito de Patentes se está a desvirtuar: vem servindo, em larga medida, para
proteger a banalidade e conferir exclusivos sobre coisas triviais. A tal ponto que a atividade economia começa a
transformar-se num “campo de minas” em que é cada vez mais difícil não “tropeçar” em direitos exclusivos
sobre as realidades mais vulgares.

Por isso, há já quem afirme que as patentes se tornaram uma forma poluição industrial, argumentando que
tanto a poluição como as patentes constituem externalidades económicas que podem enriquecer pessoas ou
empresas à custa da sociedade. E ambas são justificadas como necessidades económicas.

2. Conceito de Patente

Uma patente de invenção é um título que confere um direito exclusivo de exploração de um invento.

Este direito é concedido pelo Estado, através de uma entidade administrativa: o INPI — Instituto Nacional da
Propriedade Industrial, a quem cabe verificar se o invento reúne as condições, positivas e negativas, de que a
lei faz depender tal concessão.

O invento pode ser um produto novo; ou pode simplesmente consistir num processo novo de obter um
produto já conhecido; ou mesmo sob certas condições, numa nova utilização desse produto.

Nem todas as invenções podem beneficiar de uma patente, são inúmeras as invenções que não estão nem
nunca estiveram protegidas por uma patente. Ou porque o inventor não a pediu ou porque não eram inventos
passíveis de proteção.

 E, se assim for, nada impede que essa invenção seja usada por qualquer outra pessoa, pois nesse caso
o invento, não patenteado, pertence ao domínio público, estando à disposição de quem o quiser
explorar.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

O inventor pode sempre optar por não patentear a criação, tentando resguardá-la através do segredo
industrial, que, entre nós, está protegido pela disciplina da Concorrência Desleal.

 Mas trata-se de uma proteção mais precária e de duração indefinida podendo cessar a qualquer
momento, caso o segredo seja divulgado publicamente mesmo contra a vontade do inventor.

Uma alternativa intermédia será proteger o invento através de um modelo de utilidade, que proporciona uma
proteção inferior à da patente, embora seja mais fácil e rápida de obter.

2.1. A invenção patenteável. O pré-requisito do carácter técnico

A patente tem por objeto uma “invenção”: uma solução técnica, para um problema técnico. Este conceito não
está cunhado na nossa lei, nem nas convenções internacionais aplicáveis em Portugal, mas pode ser definido
como a solução de um problema específico no domínio da tecnologia.

Para uma invenção ser patenteável tem que preencher, não só os requisitos de patenteabilidade enumerados
nos arts. 51º CPI e 52º CPE (novidade, atividade inventiva e aplicabilidade industrial) mas também o (pré)
requisito do carácter técnico (art. 51º/2 e 52º/1 CPE): o invento deve ter por objeto um «ensinamento
técnico», ou seja, deve indicar ao perito na especialidade como proceder para resolver um determinado
problema técnico utilizando certos meios técnicos.

Consequentemente, é recusada proteção as descobertas, às teorias científicas e aos métodos matemáticos, aos
materiais já existentes na natureza, às criações estéticas, às apresentações de informação e aos projetos,
princípios e métodos do exercício de atividades intelectuais em matéria de jogo ou no domínio das atividades
económicas, pois estas realidades, por mais importantes que sejam, revestem natureza abstrata ou intelectual,
sem carácter técnico.

Por outras palavras: conceções intelectuais só se tornam patenteáveis na medida em que tenham sido
incorporadas em aplicações técnicas.

Por outro lado, é também afastada a patenteabilidade dos programas de computadores, como tais, sem
qualquer contributo.

 Esta opção legislativa deve-se, não tanto à especial natureza do software, mas antes à ideia de que os
programas informáticos seriam melhor protegidos pela disciplina dos Direitos de Autor.

No entanto, o art. 52º/3 CPI esclarece que, nesses casos, só é excluída a patenteabilidade quando o objeto da
patente se limite aos elementos acima referidos.

 Ou seja, a descoberta de um mineral existente na natureza (até agora desconhecido) não poderia levar à
concessão de uma patente sobre esse produto; mas já poderia ser patenteada a utilização desse mineral
para o fabrico de um certo produto.

2.2. As exceções à patenteabilidade

Há certas invenções, que abstratamente seriam patenteáveis, mas que o legislador não admite patentear, por
opção política e legislativa.

Assim, os arts. 53º CPI e 53º CPE excluem a patenteabilidade de inventos cuja exploração seja contrária à lei, à
ordem pública, à saúde pública e aos bons costumes, fornecendo um elenco exemplificativo, de inventos não
patenteáveis: processos de clonagem de seres humanos ou de modificação da sua identidade genética
germinal, as utilizações de embriões humanos para fins industriais e comerciais, ou processos de engenharia
genética causando sofrimento a animais sem utilidade médica substancial.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

São igualmente excluídas — essencialmente por motivos éticos e de interesse público – patentes sobre o corpo
humano (incluindo a descoberta dos seus elementos, nomeadamente, a sequência de genes humanos), as
variedades vegetais ou raças animais (e processos essencialmente biológicos da sua obtenção) e os métodos de
tratamento cirúrgico ou terapêutico do corpo humano ou animal (ressalvando contudo os produtos,
substâncias ou composições usados nesses métodos).

A linha de fronteira resultante destas exclusões é, cada vez mais, difícil de traçar com rigor, havendo a registar
complexas ressalvas e distinções, especialmente no domínio da Biologia e das Ciências Médicas, que ditaram
diversas exceções àquela regra, no art. 54º. Nesse contexto, cumpre destacar as hipóteses da patente de novo
uso de uma substância conhecida numa utilização terapêutica, cirúrgica ou de diagnóstico (alínea a)), da
patente de segundo uso farmacêutico (alínea b)), ou das patentes sobre matéria biológica (incluindo, dentro de
certos limites, material biológico humano) e sobre processos microbiológicos.

3. Função

A patente confere ao seu titular o exercício exclusivo de uma atividade de conteúdo económico. Este
monopólio, justificado como recompensa do inventor ou como contrapartida da divulgação pública do invento,
tem o objetivo de incentivar o esforço do criador, ao viabilizar a sua remuneração, que é retirada do mercado,
na medida em que este absorva os produtos fabricados ao abrigo da patente.

Há como que uma “troca” entre a sociedade - beneficiada pela descrição e divulgação públicas do invento - e o
inventor - que recebe um monopólio temporário de exploração industrial e comercial.

 Ou seja, só na medida em que o inventor enriqueça o domínio público com novo conhecimento técnico
é que se justifica limitar a liberdade de atuação dos demais agentes económicos, proibindo-lhes
temporariamente a exploração do invento.

 Consequentemente, o art. 62º/4 CPI exige que, no pedido de patente, o objeto da invenção seja
descrito de forma clara, sem reservas nem omissões, contendo uma explicação pormenorizada de, pelo
menos, um modo de realização da invenção, de maneira a que qualquer pessoa competente na matéria
a possa executar.

Assim, a função da patente consiste em assegurar ao inventor a possibilidade de este extrair do mercado a
remuneração do seu esforço criativo, pondo-o temporariamente ao abrigo da concorrência, no exercício da sua
atividade económica de exploração do invento.

 Como é óbvio, a patente não lhe garante qualquer espécie de remuneração, servindo apenas para
criar condições especialmente propícias (monopolísticas) para que essa remuneração seja obtida.

Esta função deve ter-se em especial atenção ao interpretar e aplicar a disciplina das patentes, na medida em
que o exclusivo conferido pela lei só merece tutela nos casos em que tal função possa ser afetada ou prejudica.

É com essa preocupação que o legislador limita expressamente o exclusivo do titular da patente, em casos
como os referidos no art. 102º (por exemplo, atos realizados por terceiros num âmbito privado e sem fins
comerciais) ou no art. 103º (atos posteriores à introdução no mercado, sujeitos ao esgotamento do direito),
dado que, nessas situações, a função da patente não é posta em causa – não se justificando, pois, proibir atos
que não impedem a exploração económica da patente, nem afetam o direito do inventor em ver remunerado o
seu esforço.

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Direito Comercial I

4. Requisitos de Proteção

Os requisitos de patenteabilidade são enunciados nos arts. 55º a 57º CPI e 54º CPE: (1) a novidade, (2) a
atividade inventiva e (3) a aplicabilidade industrial.

A estes três requisitos, alguns autores acrescentam, pelo menos, mais um: a descrição do invento de modo
suficientemente claro e completo para permitir a sua execução por qualquer pessoa competente na matéria –
art. 62º/4, 73º/1/d), e 113º/1/d) CPI.

 Contudo, esta exigência não constitui propriamente um requisito substancial do objeto da invenção,
mas antes um requisito formal (ainda que não menos importante) de concessão da patente.

4.1. Novidade

Uma invenção é considerada nova quando não estiver compreendida no estado da técnica, o qual abrange
tudo o que, dentro ou fora do país, foi tornado acessível ao público (por descrição, utilização ou qualquer outro
meio) ou foi descrito em pedidos de outras patentes ou modelos de utilidade destinados a produzir efeitos em
Portugal.

 A novidade afere-se pois à escala mundial, bastando que uma descrição do invento tenha ocorrido
anteriormente na Nova Zelândia, para destruir a novidade de uma invenção em Portugal.

Note-se que pode haver invenções que não sejam novas, o que sucederá quando alguém invente algo que, sem
o seu conhecimento, já antes tenha sido inventado por outrem: não deixará de se tratar de uma invenção (ou
seja, de um produto da criatividade humana), mas não será patenteável, por carecer de novidade.

A nossa lei consagra, pois, um princípio de novidade absoluta: a novidade do invento é medida à luz de toda a
informação disponível na data do pedido (ou da prioridade) da patente, independentemente do modo ou do
local em que a sua divulgação ocorreu.

Em rigor, a novidade é algo que não pode ser provado. O que pode provar-se é apenas a falta de novidade de
um invento, quando se demonstre que este foi antecedido por outro invento semelhante que faça parte do
estado da técnica na data do pedido (ou de prioridade) da patente.

Mas, para que o invento anterior prive de novidade sobre o invento posterior, é necessário que ambos se
destinem a resolver, substancialmente, o mesmo problema técnico: isto é, que constituam meios equivalentes
para a resolução do mesmo problema.

Se assim não suceder, a novidade do segundo invento não foi destruída pela divulgação do primeiro, já que o
contributo que este deu para o estado da técnica foi a solução para um problema técnico diferente daquele
que a segunda invenção veio resolver.

Além disso, lembre-se que é legalmente possível patentear um novo uso de um produto ou substância
conhecida, incluindo um novo uso farmacêutico, na medida em que se esteja a resolver um problema técnico
nunca antes resolvido dessa forma.

 Nestes casos, a novidade existe, dado que esta solução técnica não era anteriormente conhecida.

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Direito Comercial I

O momento relevante para se aferir da novidade da invenção a patentear não é necessariamente a data do
respetivo pedido, mas sim o da sua prioridade.

Normalmente, as duas datas coincidem; mas pode suceder que, antes de pedir a patente em Portugal, o titular
a tenha pedido noutro país membro da CUP, dentro do prazo de prioridade (de 12 meses) que o art. 4º dessa
convenção reconhece aos requerentes de patentes.

Quando assim aconteça, basta que a novidade do invento existisse aquando da apresentação do primeiro
pedido, no estrangeiro, isto é, na data da prioridade.

Por outras palavras: o facto de o titular já ter divulgado no estrangeiro o seu invento, ao pedir uma patente,
não destrói a novidade para efeitos do (posterior) pedido nacional, desde que este ocorra no prazo de 12
meses a contar do primeiro pedido.

4.1. O estado da técnica

O conceito de estado da técnica é fundamental, servindo de padrão não só para aferir da novidade, mas
também para avaliar o requisito da atividade inventiva.

A determinação do estado da técnica é feita através de pesquisas realizadas pelos examinadores do INPl e do
IEP, consoante os casos, mediante consulta de bases de dados internacionais e de publicações da especialidade
em que se insere a invenção. Por vezes, tais instituições recorrem mesmo a pareceres de especialistas
externos, atenta a elevada especificidade ou complexidade das matérias.

O estado da técnica compreende todo o conhecimento que, em qualquer parte do mundo, foi tornado
acessível ao público em momento anterior à data do pedido, ou da prioridade.

 Por “acessível” entenda-se disponível, isto é, basta que o público tenha podido aceder à informação,
ainda que não se demonstre que alguém, em concreto, acedeu efetivamente a esse conhecimento.

 O modo de divulgação é indiferente: sejam descrições escritas (em pedidos de patente ou artigos de
jornais ou revistas), utilização anterior, exposição, venda ou mesmo comunicação verbal (desde que
comprovada).

 Irrelevante ainda é a antiguidade dessa divulgação, o idioma ou o local onde ocorreu.

Em contrapartida, já será relevante o grau de clareza ou completude da divulgação.

 Uma simples alusão ou referência vaga a uma invenção não devem bastar para destruir a sua
novidade.
 Exige-se uma “divulgação habilitante”, isto é, uma revelação que preste informação suficiente para
habilitar uma pessoa competente na matéria a pôr em prática o invento.

Além disso, faz também parte do estado da técnica o conteúdo dos pedidos de patentes e de modelos de
utilidade que tenham sido requeridos em data anterior à do pedido da patente para produzir efeitos em
Portugal e ainda não publicados.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Há, porém, certas divulgações que não fazem entrar o conhecimento divulgado no estado da técnica. Assim, o
art. 57º CPI dispõe que não prejudicam a novidade da invenção:

a) As divulgações em exposições oficiais ou oficialmente reconhecidas nos termos da Convenção Relativa


às Exposições Internacionais, se o requerimento a pedir a respetiva patente for apresentada em
Portugal dentro do prazo de seis meses;

Esta regra só se aplica se, no mês seguinte ao pedido de patente, o requerente apresentar no INPI um
certificado emitido pela entidade responsável pela exposição, nos termos do art. 57º/2/3.

b) As divulgações resultantes de abuso evidente em relação ao inventor ou seu sucessor a qualquer título,
ou de publicações feitas indevidamente pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial.

Note-se que, em Portugal, não está consagrado o denominado período de graça, ou seja, um lapso de tempo
anterior ao pedido de patente, dentro do qual o requerente pode explorar ou divulgar o invento sem o fazer
cair no domínio público. Por isso, a divulgação pelo titular – em momento anterior à data do pedido ou da
prioridade - implica a destruição da novidade da invenção.

E, mesmo que venha a obter uma patente (aproveitando-se do desconhecimento dessa divulgação, por parte
do INPI), ela poderá vir ser declarada nula mais tarde, com esse fundamento, por aplicação do disposto no art.
113º/a) CPI.

4.2. Atividade inventiva

O requisito da atividade inventiva estabelece um patamar qualitativo respeitante ao mérito do invento. Uma
invenção goza de “inventividade” quando, para um perito na especialidade, não resultar de maneira evidente
do estado da técnica (art. 55º/2).

O CPI não distingue entre o “estado da técnica” relevante para aferir da atividade inventiva daquele que é
atendido para efeitos de novidade. O que parece lógico.

 Contudo, a CPE determina que a análise da atividade inventiva desconsidere o conteúdo dos pedidos de
patente europeia ainda não publicados à data do pedido da patente, dado que os mesmos (ainda que
relevantes para efeitos de novidade) não podem influir sobre a atividade criativa do segundo inventor.

Trata-se de um requisito eivado de grande dose de subjetividade.

 LEARNED HAND: a atividade inventiva é um dos fantasmas mais fugidios, impalpáveis, caprichosos e vagos
que existem em toda a parafernália dos conceitos jurídicos.

 Até porque os peritos não são todos iguais… pelo que aquilo que é evidente para um perito inteligente, já
não o será para outro menos sagaz.

 Note-se que, quando a lei refere um “perito na especialidade”, pressupõe naturalmente um especialista
no ramo, ou seja, alguém devidamente qualificado na área de conhecimento a que respeita o invento.
Mas não se exige alguém excecionalmente dotado ou acima da média, bastando um técnico competente,
adequadamente experiente e atualizado.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Embora não faltem tentativas de definição deste conceito etéreo de “atividade inventiva”, não é fácil
determinar aquilo que é, ou não, “evidente”, à luz do acervo de conhecimentos anterior.

Exige-se ao inventor uma certa dose de criatividade ou imaginação, pois a invenção é algo mais do que mera
dedução.

É necessário que a ideia inventiva, além de nova, não pudesse ter sido logicamente deduzida por um perito
mediano que tivesse tentado resolver o problema em apreço.

 Essa ideia deve ter algo de inesperado.


 Se a solução encontrada for algo a que um técnico normal - confrontado com o problema a resolver —
tivesse previsivelmente chegado usando os conhecimentos disponíveis, não há atividade inventiva.
 Ao inventor não chega a “transpiração”: exige-se alguma dose de “inspiração”.

Perante as óbvias dificuldades de medição deste requisito, a Doutrina e a Jurisprudência desenvolveram


métodos ou técnicas de avaliação da atividade inventiva, sendo especialmente conhecida a abordagem
problema-solução, adotado pelo IEP e por este descrita nos termos seguintes:

a) Identificar o “estado da técnica mais próximo”;


b) Avaliar os resultados (ou efeitos) técnicos obtidos pela invenção reivindicada em comparação com o
“estado da técnica mais próximo” estabelecido,
c) Definir o problema técnico que a invenção se propõe resolver, sendo o objeto da invenção obter
esses resultados técnicos, e
d) Examinar se, tendo em conta o “estado da técnica mais próximo”, o perito na especialidade teria ou
não sugerido as características técnicas reivindicadas para chegar aos resultados obtidos pela
invenção reivindicada.

Este exercício de análise visa determinar se esse perito teria, em condições normais, chegado à solução
encontrada pelo inventor (ou seja, se essa solução era previsível). E não se poderia ter chegado a ela (o que é
sempre óbvio, quando já se sabe que o inventor lá chegou…).

A dificuldade desta avaliação tem levado os tribunais, com grande frequência, a recorrer à prova pericial,
apoiando a sua decisão no parecer de especialistas na matéria a que respeita a patente.

Ainda assim, a forma benevolente como este requisito tem vindo a ser aplicado na prática do INPI e do IEP
implica que um invento que goze novidade só excecionalmente deixará de ser qualificado como inventivo. O
que pode levar a que, na prática das repartições de patentes, “novidade” e “atividade inventiva” se tornem
quase sinónimos…

4.3. Aplicabilidade industrial

De acordo com o art. 55º/3 CPI (e art. 57º CPE), o invento é suscetível de aplicação industrial se o seu objeto
puder ser fabricado ou utilizado em qualquer tipo de indústria ou na agricultura.

Este requisito exprime a ideia de que o invento não pode situar-se apenas no plano abstrato das criações
intelectuais, devendo antes ter uma concretização tangível e concreta.

 Numa sugestiva expressão de BENTLY e SHERMAN: a patente transporta as invenções do domínio da


ciência e tecnologia para o mundo do comércio.

É, pois, necessário que a solução técnica a patentear tenha um grau de homogeneidade e repetibilidade
suficientes para tornarem a invenção suscetível de produção em série.

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Direito Comercial I

Mas a verdade é que esta exigência, que em boa parte se confunde com a exigência do carácter técnico,
reveste uma importância cada vez menor havendo mesmo legislações estrangeiras que nem sequer a
formulam. Ainda assim, reveste cerca utilidade.

5. Titularidade

O direito à patente, isto é, o direito a requerer e obter uma patente sobre determinada invenção, pertence ao
respetivo inventor ou aos seus sucessores por qualquer título.

No entanto, na maioria dos casos a invenção não é feita por um inventor isolado, que chegou à invenção com
os seus próprios meios. A maior parte das patentes é requerida por grandes empresas, farmacêuticas e
eletrónicas, que têm ao seu serviço vastas equipas de investigadores, que são “pagos para inventar”.

 Por esse motivo, existem normas especificas regulando os casos de invenções realizadas em execução de
contratos de trabalho, em que a invenção pertence à entidade patronal, quando a atividade inventiva
esteja contratualmente prevista (art. 59º CPI).

Regra geral: quando a invenção do trabalhador foi realizada abrigo de contrato de trabalho em que a atividade
inventiva esteja prevista e seja especialmente remunerada, o direito à patente pertence à empresa, sem que
esta tenha de pagar outra contrapartida para além da estipulada no contrato.

 Faltando alguma destas duas condições, o trabalhador terá direito a uma remuneração equitativa,
calculada nos termos do art. 59º/2/3/4/5/6, que preveem, no limite, o recurso à arbitragem.

 Este regime aplica-se, também, às invenções feitas por encomenda e às relações entre o Estado e seus
funcionários e servidores a qualquer título.

Ao inventor assiste sempre o direito “moral” a ser reconhecido como tal, mesmo que a patente não seja
requerida em seu nome, devendo, neste último caso, ser mencionado como inventor, quer no requerimento
quer no título da patente.

A obtenção indevida de uma patente sobre uma invenção pertencente a outrem constitui crime, previsto e
punido pelo art. 326º, com pena de prisão até 1 ano, sem prejuízo da transmissão da patente a favor do
inventor.

[VER IMAGEM]

6. Âmbito de Proteção

6.1. Duração

O direito exclusivo resultante da patente vigora durante um máximo de 20 anos, a contar da data do pedido, na
condição de que vão sendo pagas taxas anuais, cobradas pelo INPI a partir da 5ª anuidade, de valor crescente
até à 20ª anuidade.

 Decorrido este prazo, a patente extingue-se por caducidade, cessando automaticamente o direito
exclusivo do seu titular.

Contudo, embora este prazo de 20 anos comece a correr na data do pedido, a proteção decorrente da
patente não nasce logo nesse momento: entre o pedido e a concessão da patente desenrola-se um
procedimento administrativo para averiguar do preenchimento dos requisitos de patenteabilidade, que
envolve nomeadamente o exame formal do pedido, a pesquisa do estado da técnica, a publicação do pedido,
com vista à apresentação de eventuais oposições e sua apreciação, o exame de fundo da invenção e a
publicação da decisão final - o que implica uma demora considerável na concessão definitiva da patente.

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Ora, sendo o despacho de concessão o ato constitutivo do direito de patente, até à decisão definitiva daquele
procedimento não existe ainda um verdadeiro exclusivo que o titular possa fazer valer contra terceiros, que
porventura decidam explorar o mesmo invento.

 O que suscita diversas questões, relacionadas com a relativa desproteção resultante dessa demora.

Além disso, a produção e comercialização de alguns produtos (como os medicamentos) estão sujeitas a
autorizações ou homologações prévias das autoridades públicas, o que contribui para retardar a sua exploração
económica.

Estas circunstâncias levaram à instituição de dois tipos de mecanismos compensatórios:

1. Por um lado, como já vimos, o art. 5º CPI consagra um regime de proteção provisória dos direitos de
propriedade industrial, que confere ao requerente da patente um direito precário e condicional, que lhe
permite demandar judicialmente os usurpadores do seu direito em formação, pedindo uma
indemnização, dependente da concessão definitiva da patente.

2. Existe um mecanismo de prorrogação do prazo de duração da patente, denominado certificado


complementar de proteção, regulado nos arts. 115º a 116º CPI e no Regulamento (CEE) nº 1786/92.

 Esta possibilidade apenas é admitida para medicamentos e para os produtos fitofarmacêuticos,


tendo em conta que estes produtos carecem de uma autorização de introdução no mercado
(“AIM”), que reduz (ainda mais) o tempo disponível para o titular da patente explorar
economicamente o seu monopólio.

 A prorrogação tem uma duração correspondente ao tempo que mediou entre a data do pedido
de patente e a data concessão da AIM, reduzido de um período de cinco anos.

 O período de validade do certificado não pode exceder 5 anos a contar da data em que produzir
efeitos (i.e., o termo legal da validade da patente de base), podendo beneficiar de uma
prorrogação adicional de seis meses, quando respeite a medicamentos para uso pediátrico.

 Os certificados devem ser pedidos no INPI, no prazo de 6 meses a contar da data em que o
produto obteve a AIM (ou da data da concessão da patente, se posterior).

6.2. Âmbito substancial de proteção

Uma vez concedida definitivamente a patente, o seu titular poderá gozar plenamente o monopólio de
exploração que a lei lhe confere, fazendo valer os seus direitos exclusivos.

A patente permite-lhe impedir terceiros de explorar a invenção em qualquer parte do território nacional,
opondo-se a todos os atos que constituam violação do seu direito.

 Pode impedir a terceiros, sem o seu consentimento, o fabrico, a oferta, a armazenagem, a introdução no
comércio ou a utilização de um produto objeto de patente, ou a importação ou posse do mesmo, para
alguns dos fins mencionados (art. 101º CPI).

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Direito Comercial I

 Em caso de violação do seu exclusivo, poderá lançar mão dos meios repressivos previstos nos arts. 338º-
A a 338º-O CPI, recentemente aditados por transposição da Diretiva nº 2004/48/CE, nomeadamente
instaurando ações de condenação, acompanhadas ou não de procedimentos cautelares
(nomeadamente providências inibitórias e arrestos) ou apresentando denúncias com vista à instauração
de procedimentos criminais ou contraordenacionais, pela prática das infrações tipificadas nos arts.
321º, 326º e 335º CPI.

Mas quais são os limites objetivos deste “direito de proibir”?

 O âmbito do exclusivo é determinado pelo conteúdo das reivindicações, servindo a descrição e os


desenhos para as interpretar, como dispõem os arts. 97º/1 CPI e 69º/1 CPE.

 As reivindicações, que são o enunciado daquilo que é considerado novo e característico da invenção, são
redigidas pelo titular da patente, ao apresentar o seu pedido, sendo posteriormente objeto de análise
pelos examinadores do INPI (ou do IEP), que têm a faculdade de reconhecer apenas parte dessas
reivindicações, rejeitando as demais.

 O texto das reivindicações aceites pelos examinadores constitui assim o “núcleo duro” da patente já que,
como refere o art. 101º/4 CPI, os direitos conferidos pela patente não podem exceder o âmbito das
reivindicações. Por outras palavras, as reivindicações são a medida da inovação e consequentemente, a
medida da proteção.

Sendo assim, em caso de suspeita de infração ao direito de patente, é à luz das reivindicações que se avalia a
conduta do potencial infrator, só haverá infração se um terceiro utilizar um produto ou um processo que esteja
abrangido por uma ou mais das reivindicações reconhecidas aquando da concessão da patente.

Dito de outra forma, quando se comparem dois produtos ou processos, para saber se um deles constitui
violação do exclusivo da patente que recai sobre o outro, apenas há que atender à parte inovadora do produto
patenteado (indicada nas reivindicações), pois é essa, e só essa, que beneficia de proteção.

As restantes qualidades ou características do produto que incorpora o invento, pertencendo ao domínio


público, podem ser livremente reproduzidas ou utilizadas. Se alguém patentear, por exemplo, uma torradeira
utilizando um dispositivo de micro-ondas, não ficam os seus concorrentes privados de fabricar torradeiras com
outros dispositivos, usando tecnologias diferente.

6.3. Limites de proteção

Para além dos limites objetivos que resultam do âmbito das reivindicações, a exclusividade de que goza o
titular de uma patente tem ainda outros limites, que resultam quer de imperativos de interesse público, quer
da própria natureza e função destes direitos privativos.

Exceções enunciadas – art. 102º CPI - que dispõe que os direitos conferidos pela patente não abrangem:

a) Os atos realizados num âmbito privado e sem fins comerciais.

Note-se que esta exceção exige a verificação cumulativa destes dois requisitos. Pelo que um ato sem
finalidade comercial que extravase o âmbito privado pode ofender os direitos do titular. Imagine-se que
alguém, tendo produzido uma grande quantidade de exemplares de um produto patenteado por
outrem, os distribui gratuitamente pelo público. Apesar de não existir aí, necessariamente, uma
finalidade comercial, tais atos poderiam ser impedidos pelo titular da patente, que seria
manifestamente lesado com isso.

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Direito Comercial I

b) A preparação de medicamentos feita no momento e para casos individuais, mediante receita médica nos
laboratórios de farmácia, nem os atos relativos aos medicamentos assim preparados.

Esta exceção, que outrora revestiu grande relevo, tem hoje em dia menor importância, tendo em conta
que é cada vez mais rara a preparação de medicamentos em farmácia.

c) Os atos realizados exclusivamente para fins de ensaio ou experimentais, incluindo experiências para
preparação dos processos administrativos necessários à aprovação dos produtos pelos organismos
oficiais competentes.

Esta ressalva assume enorme importância estratégica, pois permite realizar livremente investigação a
partir de conhecimento técnico abrangido pela patente, que pode inclusivamente gerar novas patentes
(cuja exploração ficará, naturalmente, dependente da caducidade da patente anterior ou de acordo com
o respetivo titular)

d) Atos relacionados com a utilização a bordo de navios de outros países membros da União ou da OMC, ou
de veículos de locomoção terrestre ou aérea desses países, quando estes meios de transporte entrarem
temporária ou acidentalmente em território nacional, nos termos do art. 102º/d)/e).

A justificação desta ressalva é evidente, visando permitir a livre circulação internacional dos meios de
transporte, que também explica a exceção da alínea f) do mesmo preceito, relativa a aeronaves
abrangidas pelo art. 27º Convenção de 7/12/1944 relativa à aviação civil internacional.

Uma segunda exceção a assinalar prende-se com a inoponibilidade da patente em relação às invenções
independentes anteriores à data do pedido ou da prioridade, prevista no art. 104º CPI.

 Esta norma permite que um terceiro que, de boa-fé, tenha chegado pelos seus próprios meios ao
conhecimento da invenção e a utilizava ou fazia preparativos efetivos e sérios com vista a tal utilização,
possa prosseguir, ou iniciar, a utilização da invenção, na medida do seu conhecimento anterior.

No entanto, esta possibilidade excecional, e dependente de prova cujo ónus recai sobre o terceiro, apenas
permite uma utilização para os fins da própria empresa.

Por fim, o exclusivo do titular está sujeito à regra do esgotamento dos direitos, que opera em relação aos
produtos abrangidos pela patente, após a sua comercialização no território do Espaço Económico Europeu,
feita pelo titular da patente ou com o seu consentimento, como dispõe o art. 103º. Esta norma, introduzida no
CPI por imperativos decorrentes do Direito da União Europeia consagrado aos reflexos do Direito da União
sobre a Propriedade Industrial.

7. A exploração da patente

O titular da patente pode explorá-la diretamente - fabricando e comercializando os produtos patenteados ou


utilizando o processo protegido –, ou fazer uma exploração indireta, celebrando contratos de licença com
terceiros, que ficam desse modo autorizados a praticar os atos de exploração que a lei reserva de modo
exclusivo ao titular.

Pode, em alternativa, alienar o seu direito de patente, através de um contrato de transmissão. Estes contratos
constituem o suporte jurídico habitual para a transferência de tecnologia, estando regulados nos arts. 31º e
32º CPI.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

O art. 106º impõe ao titular da patente uma obrigatoriedade de exploração do invento, que pode ser feita
diretamente ou por intermédio de licenciados, devendo comercializar os resultados obtidos por forma a
satisfazer as necessidades do mercado nacional.

No entanto, isso não equivale a uma obrigação de produção no território nacional que, além do mais, seria
contrária ao direito da UE, por constituir uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à
importação, proibida pelo art. 34º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia.

Por isso, à luz do art. 106º/3 CPI, considera-se que existe exploração do invento mesmo que os produtos
patenteados não sejam produzidos localmente, mas sim importados de qualquer outro país membro da UE ou
da OMC.

Na falta ou insuficiência de exploração da invenção patenteada, por parte do titular, qualquer interessado
poderá requerer ao INPI que o autorize a explorar esse invento, independentemente da vontade do titular,
mediante o pagamento de uma remuneração adequada.

 Essas autorizações, denominadas licenças obrigatórias – art. 107º a 112º CPI -, que as admitem também
em caso de dependência entre patentes ou por motivos de interesse público.

 Trata-se de uma autorização administrativa de exploração da invenção, concedida pelo INPI com carácter
não exclusivo, conservando o titular o direito sobre a patente e o de explorar o seu invento.

 Diga-se, de passagem, que este mecanismo reveste muito pouco interesse prático no nosso país, tendo até à data
sido concedida apenas 1 licença deste tipo, apesar de estas licenças estarem previstas na lei portuguesa desde 1940.

Art. 105º: o titular pode ser privado da patente mediante expropriação por utilidade pública, se a necessidade
de vulgarização da invenção, ou da sua utilização pelas entidades públicas, o exigir.

 Neste caso, haverá lugar ao pagamento de justa indemnização, a fixar nos termos do Código das
Expropriações.

À semelhança do que sucede com os demais direitos de propriedade intelectual, a patente pode ser objeto de
penhora e posterior venda em processo executivo, podendo ser dada em garantia de obrigações, ao abrigo no
art. 6º CPI.

8. Extinção

O direito de patente pode extinguir-se de diversas maneiras:

(1) Caducidade: o direito de patente pode extinguir-se pelo decurso do prazo de duração de 20 anos.

A caducidade opera automaticamente, sem necessidade de qualquer declaração nesse sentido, podendo
ocorrer antes do termo daquele prazo, caso deixem de ser pagas as taxas anuais, devidas a partir do 5º ano
inclusive, como determina o art. 37º CPI.

(2) Além disso, a patente pode vir a ser declarada inválida, quando ocorra algum dos motivos de nulidade ou de
anulabilidade, previstos nos arts. 33º e 34º CPI, para os direitos de propriedade industrial em geral.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

(3) Existem também fundamentos específicos de nulidade das patentes enunciados no art. 113º, que se
prendem essencialmente com a falta de requisitos de patenteabilidade (novidade, atividade inventiva e
aplicação industrial) ou com a insusceptibilidade de proteção do seu objeto (tendo havido violação dos arts.
51º, 52º ou 53º CPI) ou, ainda, quando a invenção não tenha sido descrita de forma a permitir a sua execução
por qualquer pessoa competente na matéria.

 Estatui-se, igualmente, a nulidade da patente nas situações (raras ou mesmo inexistentes…) em que o
título ou epígrafe dado à invenção abrange objeto diferente.

 A nulidade não está dependente de prazo de arguição, podendo ser invocada a todo o tempo durante a
vigência patente.

(4) Declaração de invalidade parcial da patente, art. 114º CPI: quando ocorra invalidade de parte das
reivindicações, permanecendo a mesma em vigor relativamente às restantes sempre que subsistir matéria para
uma patente independente.

MODELOS DE UTILIDADE

1. Introdução

A figura do modelo de utilidade é comparável à figura daqueles arbustos que nascem à sombra de árvores
maiores. E que, por falta de espaço vital, nunca chegam a atingir uma dimensão comparável à da árvore
vizinha, que as priva da luz do sol e da atenção de quem passa.

Nascido à sombra das patentes, o modelo de utilidade nunca se afirmou seriamente no nosso país. Basta
pensar que, no ano de 2009, foram pedidos em Portugal 123 modelos de utilidade, enquanto os pedidos de
patente (considerando as 3 vias de proteção) acederam os 140.000. De resto, nem todos os países atribuem
este tipo de direito privativo. O Reino Unido e os Estados Unidos bastam-se com as patentes e isso não tem
privado os inventores de proteção: os EUA ocupam o primeiro lugar mundial quanto a patentes em vigor
(1.872.872).

Este lugar secundário é facilmente explicável: os modelos de utilidade não se distinguem das patentes, nem
pela sua natureza, nem pela sua função.

O CPI de 2003 veio estabelecer, para os modelos de utilidade, uma proteção mais ténue e mais precária,
embora mais fácil e rápida de obter. O figurino atual é, em larga medida, de inspiração comunitária.

Esta “transposição virtual” deu origem a uma alteração profunda do regime jurídico dos modelos de utilidade
portugueses, que se estende atualmente por 36 artigos do novo CPI, embora 19 dos quais se limitem a remeter
para o regime das patentes, dizendo repetitivamente que “é aplicável aos modelos de utilidade o disposto no
artigo (…)”.

2. Conceito e função dos Modelos de Utilidade

Os modelos de utilidade desenvolveram-se especialmente na Alemanha, onde foram criados para


contrabalançar o excessivo rigor com que era aplicada a lei de patentes, que deixava sem proteção alguns
inventos, ditos “menores”, dotados de um grau inferior de atividade inventiva.

Aos modelos de utilidade está subjacente a intenção de proporcionar à indústria um mecanismo de proteção
menos ambicioso, que sirva para proteger produtos que - sem representarem uma genuína invenção - revistam
um carácter inovador, tendo características mais aperfeiçoadas, que lhes aumentem a utilidade ou melhorem o
desempenho.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

É o campo de eleição das utilidades domésticas, ferramentas e outros dispositivos aperfeiçoados, utensílios de
cozinha, vasilhas e embalagens. Normalmente, são produtos já conhecidos, mas que, fruto de uma modificação
ou inovação de forma se tornam mais eficientes mais fáceis de usar ou de algum modo mais úteis.

Contudo, não têm os modelos de utilidade natureza diversa das patentes. Qualquer um destes direitos
exclusivos constitui um monopólio concedido pelo Estado ao inventor, destinado a garantir ao seu titular o
exercício de uma certa atividade económica em condições monopolísticas. Trata-se igualmente de um direito
de carácter patrimonial que permite ao seu titular proibir que todas as demais pessoas exerçam uma atividade
que doutra forma seria livre.

Tão-pouco têm uma função jurídica diferente: o monopólio sobre a invenção - quer resulte de uma patente,
quer do registo de um modelo de utilidade - tem por objetivo incentivar o esforço criador, ao assegurar ao
inventor/criador a possibilidade de retirar do mercado a remuneração do seu esforço, proporcionando-lhe os
meios necessários para evitar a turbação, por terceiros, da sua atividade económica de exploração do invento
ou criação.

São essencialmente idênticos os requisitos de proteção destes dois direitos exclusivos: só através de elementos
externos, ou acidentais, é que poderemos diferenciar as duas figuras. Ou seja, só na medida em que o
legislador lhes fixe regimes, duração ou processos de registo diversos é que poderemos considerá-los institutos
autónomos.

Não era esse o aso no nosso país até 2003, pois o exame relativo aos modelos de utilidade obedecia
sensivelmente às mesmas regras do exame das patentes (por remissão do art. 127º/1 CPI de 1995).

OEHEN MENDES: os modelos de utilidade consistiam na solução de problemas técnicos que se resolvem pela
forma.

OLIVEIRA ASCENSÃO: falava em modelos tridimensionais, em que se protege o carácter funcional da forma,
esclarecendo: interessa a forma funcional, podendo dizer-se que está mais em causa a “forma” que a “forma”.

Passagem do Parecer da Câmara Corporativa que precedeu a aprovação do CPI de 1940: os modelos de
utilidade são criações engenhosas que tornam os objetos corpóreos mais úteis ou aproveitáveis por uma
simples modificação na forma ou disposição, sendo este o seu elemento específico.

A esta luz, não é difícil distinguir os modelos de utilidade de uma outra figura da Propriedade Industrial, os
desenhos e modelos: nos primeiros interessa a forma funcional, enquanto nos segundos se protege a forma
(melhor, a aparência), do ponto de vista geométrico ou ornamental.

DESENHOS OU MODELOS

1. Introdução

A aparência dos produtos é cada vez mais decisiva para o seu êxito comercial. Um design atraente, apelativo, é
um fator determinante nas escolhas dos consumidores, por vezes mais importante que a qualidade ou o preço.

Por isso, as empresas investem fortemente na criação de novos modelos de produtos conhecidos e na
conceção de novos padrões decorativos, nos mais diversos ramos de atividade, como a moda, o mobiliário, a
cerâmica ou a eletrónica de consumo.

Mas todo esse esforço criativo, e os investimentos que o suportam, necessitam de proteção contra as
imitações, que vêm colher, já maduros, os frutos melhor sucedidos do esforço alheio.

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Direito Comercial I

Estes direitos privativos, previstos no CPI e no Regulamento (CE) nº 6/2002, conferem ao seu titular um
exclusivo de exploração sobre criações no domínio da estética industrial. Pretende-se com isso estimular a
inovação, em troca da concessão de um monopólio temporário de exploração económica de um novo modelo
ou desenho.

Além desta proteção, os DM registados passaram a beneficiar também da proteção conferida pelo direito
de autor, como determina hoje o art. 200º CPI, em transposição do art. 17º da Diretiva nº 89/71/CE.

2. Conceito de Desenho ou Modelo

Desenho ou modelo: aspeto estético de um objeto utilitário, destinado a reprodução industrial.

Pode tratar-se de objetos a três dimensões (uma cadeira, um candeeiro, um frasco de perfume ou uma jante
de automóvel) ou a duas dimensões (padrões de tecidos, desenhos cerâmicos ou quaisquer pinturas,
fotografias, gravuras ou relevos, que sirvam para decorar um produto destinado a comercialização).

A tutela legal dos DM incide sobre a aparência dos produtos, resultante das suas características visíveis,
nomeadamente das linhas, contornos, cores, forma, textura ou materiais do próprio produto ou da sua
ornamentação.

 O exclusivo não tem por objeto o produto, em si mesmo considerado, mas antes o seu aspeto exterior,
revelável à vista.

Não são aqui abrangidas as puras obras de arte: estas são protegidas exclusivamente pelos direitos de autor.

Já serão protegíveis as reproduções feitas com fim industrial para fácil multiplicação, de modo a perderem a
individualidade característica das obras de arte.

É portanto essencial que DM se incorpore num produto industrial; se assim não for, a criação só pode
beneficiar da tutela dos direitos de autor. No domínio dos DM, a criação artística, quando presente, não é um
fim em si mesmo, sendo instrumental das finalidades técnicas e decorativas de valorização do produto em que
essa criação necessariamente se incorpora.

Deste regime cumpre distinguir, igualmente, o registo das chamadas marcas tridimensionais, que respeitam à
forma dos produtos ou da respetiva embalagem.

 O registo dessas marcas confere um direito exclusivo ao uso dessa forma para referenciar os produtos
ou serviços a que respeita, tendo assim uma função identificadora ou de indicação da proveniência
empresarial dos mesmos.
Ou seja, protege a forma enquanto sinal distintivo, identificador de produtos ou serviços.

 O registo dos DM visa atribuir um monopólio sobre a aparência dos produtos, em si mesma, não tendo
qualquer função identificativa dos mesmos ou da sua proveniência.

Além disso, o exclusivo da marca abrange apenas o âmbito dos produtos ou serviços que esta visa assinalar (e
produtos e serviços afins), por aplicação do princípio da especialidade, enquanto o exclusivo resultante do
registo dos DM abrange todos os produtos que tenham a aparência protegida, seja qual for o ramo de
atividade a que se destinem.

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Direito Comercial I

Madrinha
TÍTULOS DE CRÉDITO
PARTE I: OS TÍTULOS DE CRÉDITO EM GERAL

1. Noção de título de crédito

A tarefa de elaborar uma noção de título de crédito torna-se difícil pela grande variedade de documentos
aceites como títulos de crédito – letras, livranças, cheques, conhecimentos de carga e de depósito, guias de
transporte, cautelas de penhor, extratos de fatura e ainda outros documentos que levantam algumas dúvidas.

A lei portuguesa não dá uma noção de títulos de crédito, nem sequer um regime geral.

a) VIVANTE: título de crédito será o “documento necessário para exercitar o direito literal e autónomo nele
mencionado”.

Esta noção assenta na tentativa de identificar um conjunto de normas comuns aos vários documentos dos
títulos de crédito, ou seja, procura identificar os mínimos comuns dos vários regimes jurídicos.

b) ASCARELLI: título de crédito será o “documento socialmente considerado como destinado à circulação que
ateste a qualidade de sócio de uma sociedade por ações”.

Este autor criticava a noção de VIVANTE por considerar que a mesma partia exclusivamente dos regimes
jurídicos de cada documento em causa e não da realidade para que esses regimes tinham sido pensados.

c) FERRI: aceitava, como ASCARELLI, que acima de tudo dera importante verificar se o documento se
destinada à circulação. No entanto, partia da vontade do criador do documento e não da leitura social.

d) BRUNNER: Wertpapier é o “documento que incorpora o direito de caráter privado de tal forma que para o
exercício do mesmo é necessária a posse do documento”. Dá especial atenção ao momento do exercício do
direito, relacionando-o com a incorporação do documento (a posse seria, assim, fundamental).

e) ULMER: Wertpapiere são os “documentos relativos a direitos patrimoniais que permitem a disposição do
direito incorporado através da disposição do documento”. Tem em conta a disposição e circulação do
documento.

Entre nós, entendemos ser mais adequada a noção de VIVANTE, ainda que com aperfeiçoamentos.

Soveral Martins: a essa noção de Vivante devemos acrescentar a aptidão para circular, de acordo com regras
próprias, que vão realmente favorecer essa aptidão. O regime jurídico dos títulos de crédito está pensado para
proteger a aptidão para circular.

A ideia é que os títulos de crédito permitam uma transmissão com mais segurança. Torna-se mais fácil a
circulação porque se aumenta a confiança do lado de quem recebe o título. Ao saber que o regime jurídico o
protege mais, sente mais confiança.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

2. Documento necessário para o exercício do direito nele mencionado

O título de crédito é um documento, que surge como necessário para o exercício no direito nele mencionado
 Desempenha uma função de legitimação, uma vez que enquanto o título existe, o exercício do direito
está subordinado à detenção e exibição do próprio título.

Em Portugal é um documento em papel: cheque, livrança…


 Não está afastado que amanha o legislador crie um outro suporte. Hoje, admitem-se documentos eletrónicos. Nada
impede que amanhã se crie um regime jurídico que preveja isso. Há países em que isso existe. Na frança há
possibilidade de criar letras magnéticas.

Discute-se se basta o documento necessário e suficiente ou se é preciso algo mais – para títulos denominativos,
por exemplo, não basta o documento, é ainda necessário o registo do título.

Por causa da relação especial entre direito e documento, falamos numa incorporação do direito no título.

Mas a função do documento, hoje, não se limita a um meio para atingir o exercício do direito, incluindo antes
também a particular tutela da posição daquele que está legitimado para esse exercício, tutela essa que facilita
a circulação dos créditos – o adquirente não se preocupará tanto em verificar como é que o título foi para às
mãos do transmitente e, por outro lado, sabe que como portador do título, é a seu favor que a prestação
deverá ser realizada; também para o devedor se torna mais fácil saber a quem deve pagar (a quem tem a posse
do documento).

Para Vivante o documento seria também constitutivo da literalidade e autonomia do direito representado.
 Mas esse caráter constitutivo do documento já não se verifica se os títulos permanecerem nas
relações imediatas do primeiro portador.

3. Notas comuns dos títulos de crédito

As notas que apresentamos não surgem a propósito de todos os títulos de créditos sempre com a mesma
intensidade – tem de estar presente sim, “alguma” literalidade ou “alguma autonomia”, ou seja, desde que
possamos dizer que têm os mínimos denominadores comuns, estas notas podem surgir reveladas de forma
diferente.

Ou seja:
 É sempre uma certa literalidade e uma certa autonomia
 Nuns casos garante maior literalidade, menor autonomia; nuns casos menor literalidade e maior autonomia…

Esta literalidade e autonomia resultam de um trabalho de condensação dos dados do direito positivo.

1) Literalidade

A literalidade remete-nos para o teor do documento.

A letra do título é decisiva para a determinação do conteúdo, limites e modalidades do direito. Trata-se de
permitir que o terceiro possa depositar confiança naquilo que o título diz.

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Direito Comercial I

Se sabemos que o que conta para o exercício do direito para portador é o que está no documento, isto
aumenta a certeza e a segurança. Quando falamos em literalidade significa que temos de olhar para o que está
escrito no documento.

Exemplo: no saque, quando estão em causa relações imediatas, pode haver literalidade fora da letra.
Quando a letra entra em circulação (se o sacador sacou a letra à sua própria ordem, ele é sacador e tomador da
letra), o sacador endossa a letra a 3º que passa a ser portador mediato de boa fé – aqui, o que aqueles dois
(sacador e sacado) combinaram e que não esteja na letra não vale para aquele 3º.

É por isso que o título de crédito facilita a circulação, porque aquele que recebe a seguir sabe que apenas se
tem de preocupar com o que está no título e não com o que o comprador e o vendedor da mercadoria
combinaram entre eles.

 Ainda que a letra seja decisiva, ela não significa que a letra do título tenha que dizer tudo.

Há quem entenda que não faz sentido falar numa literalidade a propósito do título de ação – a socialidade
representada no título de ação é conformada, não só pela lei, mas também pelo contrato de sociedade.

Assim, na generalidade dos casos, não seria possível reproduzir o teoria do contrato de sociedade no título de
ação.

Por isso, será mais correto aceitar ainda uma literalidade “imperfeita ou incompleta”.

2) Autonomia

A autonomia do direito a que se referia VIVANTE consistia no facto de se dever considerar que o direito surgia
como que novo na esfera do possuidor de boa fé: o direito era autónomo porque o possuidor de boa fé
exercitava um direito próprio, que não pode ser restringido ou destruído em virtude das relações existentes
entre os anteriores possuidores e devedor.

 De outra forma, autonomia significa isto: que se o título de crédito está a ser transmitido, o portador sabe
que a sua posição jurídica vai merecer uma certa proteção em relação a posições dos anteriores
portadores daquele título. É sempre uma certa proteção que não é absoluta (há certos requisitos quanto a
letras e livranças) mas há uma certa proteção que vai tornar relativamente imune o direito em relação a
posições de anteriores portadores.

Ou seja, o direito é autónomo porque é adquirido de um modo originário, i.e., independentemente da


titularidade do seu antecessor e dos possíveis vícios da mesma.

Mas note-se que podemos encontrar títulos de crédito em relação aos quais essa autonomia será mais
marcada do que noutros – mas terá sempre que ser apresentada como “mínimo comum” em todos.

Exemplo: temos um sacador e um sacado; esse sacador, entretanto, endossou a letra a outro sacador – este
último não será afetado por vícios daquela outra relação.

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Direito Comercial I

3) Circulabilidade

A noção e VIVANTE acentua o momento do exercício do direito representado no título e não menciona
expressamente como nota caracterizadora a da circulabilidade: é a aptidão para circular de acordo com regras
próprias que a favorecem.

 Entendemos, porém, que esta nota está pressuposta e que valerá nas relações mediatas (já não nas
relações imediatas).

Esta é uma circulabilidade do direito com regras próprias, que dependem do regime aplicado (p.e. Lei Uniforme
de Letras e Livranças; Lei Uniforme sobre os Cheques; etc.).

Hoje, porém, estamos a assistir a um processo de tendencial imobilização dos títulos de crédito: são criados
normalmente, mas, em determinado momento, acabam imobilizados.

Por exemplo, os bancos de hoje utilizam cheques de compensação para que não tenham de andar constantemente a
deslocar cheques.

Outra situação surge quando as ações de sociedades anónimas estão admitidas à negociação no mercado;
estas têm que estar num depósito centralizado desses títulos de crédito (por razoes de segurança) e, a partir do
momento em que são depositados, os direitos deixam de circular com as regras próprias do direito em papel
(documento) e passam a circular pelas regras de circulação dos valores mobiliários circulares (por registo em
conta – tal obriga-nos a fazer as chamadas “partilhas dobradas” previstas no Código dos Valores Mobiliários.

4) Especiais funções

Os títulos de crédito surgem devido à necessidade de tornar mais fácil e segura a circulação dos créditos por
comparação ao regime da respetiva cessão.

O regime da cessão de créditos, ainda hoje permite que o devedor oponha ao concessionário todos os meios
de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com exceção dos que provenham do facto posterior ao
conhecimento da cessão (art. 585º CC) – pretende-se que o devedor não fique em pior situação do que estava
perante o cedente do crédito. Mas quanto aos direitos, há dificuldades em determinar a sua existência,
características, limites, conteúdo,..

Assim, a tutela que se confere à aparência resultante da posse do título beneficia o próprio devedor (têm de
realizar a prestação a quem tem posse do título) e os terceiros adquirentes (sabem que o devedor não irá
realizar a prestação eficazmente a um anterior possuidor).

 Resulta daqui uma função de transmissão do direito mencionado nos títulos de crédito, que será feita de
acordo com as respetivas regras de circulação.

 Resulta uma função de legitimação. Legitimação ativa: o portador do título, que o tenha recebido de
acordo com as regras de circulação do mesmo, pode exercer o direito mencionado no documento – a esta
legitimação está subjacente a presunção de que o portador é titular do documento.

Legitimação passiva: o sujeito obrigado a realização a prestação mencionada no título cumpre bem, em
princípio, se a realizar a favor do portador.

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4. Classificações dos títulos de crédito

1) Classificação dos títulos de crédito fundada no direito incorporado

a. Títulos que conferem ao seu portador o direito a uma prestação em dinheiro – letras, livranças e
cheques.

b. Títulos que conferem ao seu titular um direito de natureza real sobre coisas – guias de transporte, os
conhecimentos de carga ou de depósito e as cautelas de penhor.

c. Títulos de participação: títulos que representam uma participação numa determinada pessoa coletiva,
que em regra é uma sociedade – títulos que representam uma participação social numa sociedade
anónima ou, quanto aos sócios comanditários, em comandita por ações (entre nós aceitamos que os
títulos de ação são também títulos de crédito e não meros títulos de legitimação).

2) Classificação dos títulos de crédito fundada no modo normal de transmissão (!)

a. Títulos ao portador: transmitem-se pela simples entrega do título, como tal, estes não revelam no seu
texto quem é o respeito titular – títulos de ação ao portador [anteriormente previstos no art. 101º,
em 2017, foram proibidas as ações (valores mobiliários) ao portador].

b. Títulos à ordem:
 Transmitem-se por endosso, ficando assim a constar do título um comprovativo de transmissão;
 O regime jurídico daquele título de crédito está lá plasmado;
 Para além disso, os títulos à ordem identificam o seu primeiro titular, o que torna normalmente
possível estabelecer uma cadeia de endossos a partir daquele – letra e livrança.
c. Títulos nominativos: exigem, para a sua transmissão, a intervenção do eminente, que pode ter lugar,
por exemplo, realizando um registo a favor do aquirente – ações tituladas nominativas.

Estas transmitem-se, em regra, por declaração de transmissão, escrita no título, a favor do


transmissário, seguida de registo junto do eminente ou junto de intermediário financeiro que o
represente (art. 102º/1 CVM).

Nos termos do art. 97º/1/c) CVM, os títulos nominativos de ações devem conter a identificação do
titular.

3) Classificações dos títulos de crédito fundada nas consequências da emissão do título no direito incorporado

a. Títulos constitutivos: o direito incorporado é distinto do direito resultante da relação jurídica


subjacente. Os títulos de crédito são geralmente apresentados como documentos constitutivos –
letra.

Exemplo: uma compra e venda com preço em dívida – o vendedor tem o direito de crédito relativo ao
preço origem da venda; se combinam que o vendedor vai sacar uma letra ao comprador com o valor
da dívida, a partir do momento em que o valor é colocado na letra, o crédito será sempre diferente
daquele plasmado para a compra e venda.

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Direito Comercial I

b. Títulos declarativos – caso do título de ação.

A socialidade surge antes do título e subsiste mesmo sem a sua incorporação no título, ou seja, a
participação social que está representada no documento é a mesma que existia na particularidade
daquele sócio (antes desse título ser emitido).

O título de ação vem, no entanto, tornar aplicável um conjunto de regras quanto à legitimação para o
exercício de direitos, quanto à transmissão da participação representada e quanto à tutela dos
adquirentes – com esse sentido, poderá falar-se numa função constitutiva.

É ainda constitutivo na medida em que, sem uma forma de representação (através de um título de
ação), não há ainda valor mobiliário.

4) Classificação fundada no relevo da relação fundamental

a. Títulos abstratos: são aqueles que, em maior ou menor medida, não tenham nenhuma causa que lhe
esteja necessariamente ligada, e/ou que não seja afetado por vícios que eventualmente possam afetar
a relação jurídica fundamental ou subjacente – letra.

Exemplo: compra e venda de um automóvel. A vende a B um automóvel e este não paga o preço, ficando em
dívida perante A. A, vendedor, saca uma letra sobre B que aceita essa letra. A saca a letra à sua própria ordem e
endossa a C – a letra entrou nas relações mediatas, assim, C passa a ser portador mediato de boa fé.

Aquando do vencimento da letra, esta é paga num dia fixo e, nesse dia, C dirige-se a B para que este lhe pague a
letra endossada por A e B diz que não a paga porque o carro não estava em condições – o negócio sofre de um
vício (é uma compra e venda de coisa defeituosa), logo é anulável.
C estará, porém, protegido em relação a este tipo de exceções (substancial, no caso). Estas exceções nada têm a
ver com o título de crédito, mas sim com a relação jurídica fundamental ou subjacente. Daí dizer-se que existe
uma certa dose de abstração, que não é absoluta, porque a proteção não se aplica a qualquer situação, mas
apenas em relação ao portador mediato de boa fé.

b. Títulos causais: títulos de crédito cujos vícios podem ser invocados pelo primeiro portador ou por
sucessivos portadores do título – título de ação.

Estes títulos estão ligados à causa da sua emissão no que diz respeito ao conteúdo da relação entre
sociedade e o acionista e, por isso, o seu conteúdo e exceções oponíveis pela sociedade ao sócio são
determinados pelo contrato de sociedade e pelas deliberações sociais relevantes.

Exemplo: há um vício num aumento de capital de uma sociedade anónima. Suponhamos que este aumento foi
deliberado pelos sócios, foram emitidos títulos de crédito e, entretanto, foi intentada uma ação de declaração de
nulidade da deliberação – se a ação proceder, a deliberação é nula e é como se nunca tivesse produzido
quaisquer efeitos (deixa de existir o tal aumento do capital). Isto terá consequências jurídicas na RJ fundamental e
há um regime de proteção, extinguindo-se a participação social.

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Direito Comercial I

5. Desmaterialização dos títulos de crédito

Os títulos de ação têm sido encarados por grande parte da doutrina como títulos de crédito.

Contudo, o CVM torna possível a representação de ações através de registos em conta, que serão ações
escriturais (art. 46º/1).
 Estes registos carecem de um suporte – mas uma coisa é o suporte, outra é o registo.

Com a evolução informática, o armazenamento da informação faz-se em grande medida por suportes
eletrónicos e esta desmaterialização está também prevista no CVM para os valores mobiliários escriturais
(aqueles representados pelo registo em conta) – estabelece, assim, em alternativa (na maioria dos casos) e
obrigatoriamente (em alguns casos) a utilização de suporte eletrónico para os registos.

A questão prende-se em saber se poderão tais ações escriturais, registos ou suportes desse registo serem
títulos de crédito. SOVERAL MARTINS entende que não:

 As ações representadas na serão os títulos de crédito, mas o próprio valor representado.


 Depois, porque o título de crédito terá sempre que ser o mesmo documento necessário para o
exercício do direito. No caso dos registos em conta dos valores mobiliários informáticos o que se faz é,
de cada vez que há um novo titular, cancela-se o registo anterior e faz-se um novo registo através de
um novo documento. Ao não ser sempre o mesmo documento, tal descaracterizaria a figura do título
de crédito.

NOTA AULA TEÓRICA:

Em relação aos títulos de crédito em geral podemos perguntar se é livre a criação de títulos de crédito.

Isto é discutido. S OVERAL entende que não é possível, pelo menos há fundamentação legal para o afirmar
quando estamos perante títulos de crédito de negócios unilaterais. Não podemos criar títulos de crédito
atípicos.

Vale a tipicidade pelas consequências gravosas associadas à criação de títulos de crédito pela pessoa que se
obriga. Quem cria, sabe que fica sujeito a um regime gravoso.

De qualquer forma, como é um regime que envolve grandes riscos para obrigado, SOVERAL entende que tem de
valer regime de tipicidade para criação de títulos de crédito.

Nota para chamar a atenção para convenção das nações unidas de 1988 que é pouco referida.

 Há uma convenção das Nações Unidas de 1988 sobre esta matéria.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

PARTE II: A LETRA

1. Evolução histórica

1) O desenvolvimento económico que se deu na Europa na Idade média levou a um crescimento das trocas
comerciais. Para a realização dessas trocas, a circulação de valores assumia particular relevo.

Porém, as comunicações nem sempre eram fáceis e seguras e foi, em parte, para superar este obstáculo que
surgiu o cambium per litteras. Inicialmente, o documento que estará na origem da letra tinha como função a
troca de moedas de diferentes praças e não circulava à ordem.

Também por influência da religião cristã, aquela função permitia tornear a proibição da usura (que se ganhasse
dinheiro com dinheiro, emprestando-o), que afetava os contratos de mútuo.

Assim, o tomador da letra entregava uma certa quantia numa determinada moeda ao sacador, que por sua vez
dava ordem de pagamento a um terceiro, numa outra praça, em moeda diferente. Como existia essa troca de
moedas, podia ser cobrada uma quantia para pagamento do serviço prestado.

Este foi um primeiro momento da letra designado pelo período italiano – aqui, a letra não se destinava à
circulação.

2) Numa segunda fase, num período francês, começou-se a circular à ordem, e deixou de se limitar ao saque
sobre um banco, não se exigindo a troca de moeda ou o pagamento em praça diferente.

3) Num terceiro período germânico, introduziu-se a literalidade, a abstração e a autonomia

4) A partir do século XX, num período “genebrino” surgiram as convenções que aprovaram a Lei Uniforme
sobre Letras e Livranças e o Regime de Conflitos de Lei sobre Letras e Livranças – as denominadas Convenções
de Genebra.

5) Na Modernidade, fala-se me dois tipos de utilização das letras, no quadro atlântico das compra e vendas
internacionais de mercadorias:

 Documents against acceptance (D/A): documentos representativos do embarque que são entregues
contra a aceitação de uma letra.
 D/A plus aval by: acresce que a letra deve conter, para além do aceite, o aval de outrem.
 Contratos de forfaiting: combina uma taxa de desconto com aquele que o vai receber.

O exportador carrega as mercadorias para o importador e a letra é enviada pelo banco e endossada ao
banco sem juros – tem que haver uma grande confiança entre as partes porque, em caso de não
pagamento, o banco não pode exigir o montante ao endossante. Não tem um regime jurídico definido.

 Hoje, reconhece-se que a letra se transmite por endosso e é, por isso, um título à ordem (inicialmente não era
assim, uma vez que a quantia devia ser paga ao tomador).
 Por outro lado, a letra não tem agora a função de troca de moedas de praças diferentes.
 Para além disso, o portador mediato do título, se legitimado por uma cadeia ininterrupta de endossos,
encontra-se particularmente protegido.
 Está especialmente regulada na Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças (LULL).

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

2. Noção

A letra é o documento em papel que contém uma ordem de pagamento de uma quantia determinada dada
pelo sacador ao sacado e à ordem do tomador.

A ordem de pagamento é que cria a letra. Sem ordem de pagamento não temos letra. Podemos ter outros
negócios cambiários no documento (aval, endosso, aceite) mas se não temos saque, não temos letra criada.
Saque é essa ordem de pagamento.

 Letra ≠ Livrança: a letra contém uma ordem de pagamento, enquanto a livrança contém uma
promessa de pagamento. Porém, a distinção fica menos clara se pensarmos que a letra pode ser
sacada sobre o próprio sacador.

 Letra ≠ Cheque: o cheque contém também uma ordem de pagamento dada pelo sacador sobre um
banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador e em harmonia com uma convenção expressa ou
tácita, segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque.

É importante que tais fundos estejam à disposição do sacador, tenham ou não sido depositados
previamente por este. Já a letra não tem de ser sacada sobre um banqueiro e, para além disso, o
sacado não terá fundos à disposição do sacador da letra de câmbio.

 Em regra, a emissão de uma letra ocorre porque existe uma relação entre o sacador e o sacado e uma
relação entre o sacador e o tomador, que justificaram aquela emissão.

 A letra de câmbio permite, desde logo, diferir no tempo a realização de um pagamento: em vez de pagar
agora, o aceitante pagará uma quantia na data do vencimento da letra. Por isto a letra funciona como
instrumento de crédito.

 Como pode circular através do endosso, a letra permite também a circulação do crédito.

 Por outro lado, o tomador pode obter imediatamente o pagamento através do desconto.

 A letra, constituindo título executivo (preenchidos os requisitos do art. 703º/1/c)), permite o recurso ao
processo executivo para obter pagamento.

 Discute-se se o direito que vai ficar incorporado na letra é um direito diferente daquele que resulta da
relação jurídica fundamental e que deu origem ao negócio cambiário – S.MARTINS entende que sim.

 O saque é o negócio cambiário que dá origem à letra. Mas pode haver outros negócios jurídicos
cambiários, tais como o aceite, o endosso e o aval – estes são negócios unilaterais e atos objetivamente
mercantis – por constarem em lei que sei substituir nomas do CCom.

215
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

A LU tem regime mais flexível quanto as próprias modalidades do saque – art. 3º

 “À ordem do sacador”. O que significa que a letra pode ser sacada para que o pagamento seja feita
ao próprio sacador. O A pode dar ao B uma ordem de pagamento a dizer “Pague não ao C mas ao
A”.
 Pode ser sacada sobre o próprio sacador, pode sacar sobre si próprio. Por exemplo, quando bancos
querem fazer movimentação entre estabelecimentos diferentes.
 Pode ser sacada por ordem e conta de terceiro. Neste caso, a relação com o terceiro é extra-
triangular.

Parece que pode ser simultaneamente sacada à ordem do sacador a sobre o próprio sacador. Não está
expresso, mas Soveral diria que esta possibilidade existe.

3. Requisitos externos da letra

Os requisitos formais da letra estão previstos no art. 1º LULL:

1) Obrigatoriedade da inserção da palavra “letra”.

Resulta da necessidade de alertar qualquer subscritor para a importância do ato que está a realizar, tendo
em conta o regime jurídico próprio da letra que pode implicar consequências particularmente gravosas
para o subscritor.

A palavra “letra” tem que surgir inserida no próprio texto do título e na língua empregada para a redação
desse titulo.

2) O mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada – isto configura a ordem de pagamento
que o sacador dá ao sacado.

Aquele “mandato” é a declaração do sacador que constitui o saque. Tal ordem deve ser pura e simples e
dizer respeito a uma quantia determinada.

Mesmo a cláusula de juros apenas será legal se for estipulada pelo sacador e a letra for pagável à vista ou
com certo termo de vista (art. 5º); além disso, a taxa de juro deve ser indicada na letra.

3) Indicação do nome do sacado, ou seja, o nome do sujeito a quem é dirigida a ordem de pagamento e que,
pelo aceite, se torna obrigado cambiário.

4) Indicação da época do pagamento.

A lei determina expressamente como ela pode ser feita: a letra pode ser sacada à vista, e um certo termo
de vista, a um certo termo de data ou ser pagável em dia fixado (não são admissíveis indicações de épocas
de pagamento não previstas).

O relevo da indicação da época do pagamento alcança-se se se tiver presente o que a lei dispor quanto ao
prazo para a apresentação da letra ao aceite (art. 21º) e a pagamento (art. 38º).

216
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

5) Indicação do lugar de pagamento.

Não pode ser tão-só uma localidade, mas um concreto endereço, sendo que a letra poderá até ser
pagável no domicílio de terceiro.

6) Identificação da pessoa a quem ou à ordem de quem a letra deve ser paga (tomador).

O sacador, ao dar ordem de pagamento, indicará a quem esse pagamento deve ser efetuado (não são
admitidas letras ao portador).

O próprio sacador pode ser indicado como pessoa a quem o pagamento deve ser efetuado. Mas como a
letra pode ser transmitida por endosso, pode ser dada uma nova ordem de pagamento ao sacado: e é por
isto que a letra contém a indicação da pessoa a quem ou à ordem de quem deva ser paga.
7) Indicação da data em que a letra é passada.

Tal ajudará a determinar se o sacador tinha ou não capacidade no momento em que efetuou o saque;
permitirá calcular os prazos da apresentação a pagamento das letras à vista e a certo termo de vista;
permite saber se o sacador era capaz ou se tinha poderes de representação.

8) Indicação do lugar onde a letra é passada.

É essencial para encontrarmos o direito nacional que deva ser aplicado.

9) Assinatura do sacador.

Permite afirmar que foi emitida a declaração cambiária que deu origem à letra e obriga desde logo o
sacador, nos termos do art. 9º.

4. Falta dos requisitos externos

Em princípio, a falta de requisitos externos referidos no art. 1º tem como consequência que o documento não
produzirá efeitos como letra.

Não é necessariamente o resultado da:

 Falta de indicação da época de pagamento. Nestes casos, a letra é considerada como pagável à vista, i.e.,
é pagável à apresentação ao sacado (será uma letra perigosa que o sacado aceitou).

 Falta de indicação do lugar do pagamento. Nestes casos, vale como tal o lugar que tenha sido designado
ao lado do nome do sacado. Se tal não consta, ela considera-se passada no lugar designado ao lado do
nome do sacador. Mas se faltar também esse locar, o documento não produzirá efeitos como letra.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

5. A letra em branco e letra incompleta. Acordos de preenchimento. Preenchimento abusivo.

Como vimos, embora a lei enumere uma série de requisitos externos da letra, alguns desses requisitos não têm
necessariamente de constar no título.

Podemos, assim, falar de:


 Requisitos não essenciais: aqueles que, embora estando enumerados no art. 1º, podem ter a sua falta
suprida nos termos definidos no art. 2º.
 Requisitos essenciais: serão os restantes a que alude o art. 1º.

Todavia, pode dar-se o caso de faltarem requisitos essenciais da letra.

Mesmo aí, importa verificar se foi ou não celebrado um acordo de preenchimento da letra. Faltando esse
acordo, o documento não poderá valer como letra  estaremos perante uma simples letra incompleta.

Porém, a lei admite a existência de acordos de preenchimento entre o sacador e o tomador, nos termos do art.
10º. Se existir acordo de preenchimento  estamos perante uma letra em branco, em que a imperfeição é
querida como passageira.

Ainda assim, há que indagar se há ou não requisitos que não possam ser deixados para preenchimento
posterior, mesmo que nos termos de um acordo de preenchimento – ou seja, requisitos que desde o início
devem ser cumpridos pelo documento para podermos afirmar estarmos perante uma letra em branco e não
perante um simples pedaço de papel.

Para SOVERAL MARTINS, a letra em branco terá de conter, necessariamente:

1) A palavra “letra”;
2) A assinatura do sacador.

A doutrina discute se é necessário que conste da letra em branco a assinatura do sacador ou se basta a
assinatura de qualquer obrigado cambiário (avalista, aceitante, endossante) – para o Professor, terá
que constar a assinatura do sacador pois é esta que cria a letra de câmbio. Ferrer Correia entendia
diferentemente.

Esta letra em branco é muito utilizada nas relações com bancos, quando estes concedem crédito. O banco
não sabe se e quando o devedor deixará de cumprir e, por isso, não saberá qual o valor em dívida do
incumprimento. Assim, a data de emissão e quantia adquirida são câmbios que ficam em branco e que
depois poderão ser preenchidos de acordo com o que resulta da relação jurídica.

Mesmo que exista acordo de preenchimento, a letra em branco não produzirá efeitos como letra enquanto for
letra em branco, i.e., antes do preenchimento com os requisitos essenciais em falta.

Se for celebrado um pacto de preenchimento de uma letra em branco, esse pacto é oponível nas relações
imediatas.

A violação do pacto de preenchimento não pode ser oposta ao portador mediato, salvo se este tiver adquirido
a letra de má fé ou, adquirindo-a, tenha cometido falta grave.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Será que o portador mediato de boa fé a quem o preenchimento abusivo não pode ser oposto é só aquele que
adquiriu a letra quando esta estava completa ou a tutela conferida pelo art. 10º vale ainda para aquele
portador mediato que adquiriu a letra antes de ela estar completa?

A lei não distingue as situações em causa, mas SOVERAL MARTINS faz uma interpretação que restringe o
âmbito de aplicação do art. 10º, no sentido de não conferir proteção aos sujeitos que adquiriram a letra por
preencher:

i. Desde logo, porque quando a letra em branco lhe chega à posse, ainda não é verdadeiramente uma letra,
nem produz efeitos como tal – para valer como tal, vimos já que tem de constar no documento a palavra
“letra” e a assinatura do sacador.

ii. Depois, quando o portador percebe que a letra ainda não está completa, ele deverá averiguar quais os
exatos termos do acordo de preenchimento; se não teve esse cuidado, então não deverá merecer a
proteção do art. 10º.

iii. Por fim, uma vez que quando o portador recebe a “letra”, esta ainda não é uma verdadeira letra, vê-se no
endossado um mero representante do endossante quanto ao contrato de preenchimento.

Assim, o sacado poderá opor os mesmos meios de defesa e exceções relativamente ao endossado, que
podia opor ao endossante que era contraparte do acordo de preenchimento.

6. O saque

O saque é a ordem de pagamento que o sacador dá ao sacado – pelo saque o sacador cria a letra de câmbio.

 Aquela ordem de pagamento há de ser pura e simples (daí que a ordem não possa surgir subordinada
a condições).

Razão: a obrigação cambiária tem a característica da literalidade, que não se compatibiliza com a
necessidade de o portador mediato ter de investigar se as condições se verificaram ou não.

 Aquela ordem de pagamento tem de ser uma quantia determinada. A quantia não pode ser apenas
determinável.

Razão: há que evitar que o portador mediato seja obrigado a realização indagações fora do título para
saber qual a quantia devida.

Normalmente, a letra é sacada pelo sacador sobre o sacado, a favor do tomador ou à sua ordem.

Mas, não tem que ser assim:


 O saque pode ser feito sobre o próprio sacador (art. 3º);
 O saque pode ser feito a favor do sacador (art. 3º, I);
 Nada parece proibir, ainda, que o saque seja feito sobre o sacador a favor do sacador;

Com o saque, o sacador garante também a aceitação e o pagamento da letra. A sua responsabilidade é, aliás,
solidária com a do aceitante, endossante ou avalista (art. 47º).

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Direito Comercial I

Porém, nos termos do art. 9º, II, o sacador, ainda que possa exonerar-se da garantia de aceitação, não se
exonera da garantia do pagamento, nem pode fazê-lo.

7. O aceite

O aceite é a declaração do sacado pela qual este se obriga “a pagar a letra à data do vencimento” da mesma –
art. 28º.

Se não aceitar a letra, o sujeito indicado como sacado não fica obrigado pela letra. Pode é dar-se o caso de se
ter comprometido antes a aceitar a letra – a posterior recusa pode gerar obrigação de indemnizar.

1) Como é o aceitante que se obriga a pagar a letra na data do seu vencimento, é considerado o obrigado
principal.

2) A apresentação do aceite deve ter lugar até à data do vencimento da letra (art. 21º). Após o
vencimento, aquela apresentação para aceito já não pode ter lugar: a apresentação que então se faça
ao sacado deverá ser para pagamento.

3) A apresentação ao aceite pode ser efetuada pelo portador da letra ou por um simples detentor.

4) Quando o sacado pretenda realizar alguma averiguação, pode exigir segunda apresentação ao aceito
para o dia seguinte (art. 24º, I).

5) É no domicílio do sacado que a letra deve ser apresentada ao aceite; se na letra o domicílio não está
expressamente indicado, considera-se o lugar indicado ao lado do nome do sacado (art. 21º).

6) O aceite deverá ser escrito na própria letra, com a palavra aceite ou outra equivalente e deve ser
assinado pelo sacado (art. 25º, I)

No entanto, o sacado deve ter particular cuidado, pois valerá como aceite a simples aposição da
assinatura daquele na parte anterior da letra (será um aceite “em branco”).

7) O aceite deve ser puro e simples. Porém, o sacado pode fazer um aceito parcial, que será limitado a uma
parte da importância sacada (art. 26º).

8) Em regra, o aceite não tem de ser datado, mas deve sê-lo se a letra é pagável a certo termo de vista ou
se deve ser apresentada ao aceite em prazo fixado por estipulação especial (art. 25º, II).

Nestes casos de aceite datado, a data deve ser o dia em que ao aceite é dado, a menos que o portador
exija a data da apresentação ao aceite.

Se o aceite não tiver data (tratando-se de letra pagável a certo termo de vista ou que deva ser
apresentável ao aceite em prazo estipulado), o portando que quiser conservar os seus direitos contra
endossantes e sacador deve fazer constatar essa omissão por um protesto (art. 25º, II).

Para a letra a termo certo de vista dispõe o art. 35º, II.

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Direito Comercial I

9) Em regra, a apresentação ao aceite não é obrigatória. Contido, o sacador pode estipular o dever de
apresentação ao aceite – art. 22º, I.

Além disso, na letra sacada a certo termo de vista, o vencimento determina-se quer pela data do aceite,
quer pela do protesto. A letra a certo termo de vista deve, em princípio, ser apresentada ao aceite no
prazo de um ano a contar da sua data.

Por outro lado, o sacador também pode proibir na letra que esta seja apresentada ao aceite (letra “não
aceitável).

Essa possibilidade já não existe nos casos previstos no art. 22º, II:

 Quando a letra seja pagável em domicílio de terceiro ou em localidade diferente da do domicilio


do sacado (o sacado tem que estar em condições de poder tomar as diligências necessárias para
que tal pagamento se realize);

 Quando a letra seja sacada a certo termo de vista, tendo em conta a importância do aceite para se
determinar o vencimento da letra;

A utilidade da letra “não aceitável” revela-se nos casos em que o sacado não quer aceitar a letra (por razoes de
imagem no mercado, p.e), mas não se importa de a pagar na data do vencimento (e o sacador sabe-o e confia).

10) A recusa do aceite deve ser comprovada por um protesto para daí retirar as inerentes vantagens.

8. O endosso

A letra de câmbio é um documento à ordem: o endosso é o seu modo normal de transmissão.

 São transmitidos todos os direitos emergentes da letra (função de transmissão), com as consequências
resultantes do regime cambiário. Essa transmissão não necessita de ser notificada ao aceitante (≠cessão
de créditos).

 Deverá constar da letra ou de folha ligada à letra ou anexo e deverá ser assinado pelo endossante (art.
13º, I).

 Deverá ser puro e simples, afastando a lei a possibilidade de o subordinar a quaisquer condições ou de o
realizar apenas parcialmente (art. 12º, I e II).

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Direito Comercial I

Com o endosso, é dada ao sacado uma nova ordem de pagamento: é-lhe dada a ordem para pagar ao
endossado. Por isso se diz que o endosso é um novo saque.

 O 1º endosso deve ser realizado pelo tomador e os seguintes pelo sucessivos endossados. Desta forma se
garante uma série ininterrupta de endossos.

 O endosso pode ser feito a favor do próprio sacado, seja ou não aceitante, ou a favor do sacado ou outro
obrigado cambiário – qualquer dessas pessoas poderá de novo endossar a letra (reendosso) – art. 11º, III.

O endossante garante a aceitação e o pagamento da letra perante os posteriores portadores da letra, caso não
haja clausula em contrário (função de garantia). Nessa medida, o endossante será obrigado cambiário – nos
termos do art. 47º, existe responsabilidade cambiária conjuntamente com os restantes obrigados cambiários.

O detentor de uma letra é considerado portador legitimo, se justifica o seu direito por uma série ininterrupta
de endossos, nos termos do art. 16º, I (função de legitimação).

Por outro lado, o devedor que paga ao portador legítimo paga bem, nos termos do art. 40º, III.

8.1. O endosso em branco

Endosso em branco é aquele que tem lugar com a declaração de endosso assinada, mas sem indicação de
quem é o endossado; e aquele que é realizado apenas com a assinatura do endossante escrita no verso da letra
ou na folha anexa, nos termos do art. 13º, II.

Também o endosso ao portado, nos termos do art. 12º, III, vale como endosso em branco.

 Aquele que recebe a letra através de endosso em branco é considerado portador legítimo da letra. Isto
pode tornar-se perigoso, precisamente porque qualquer pessoa que tenha posse do título pode invocar
ser portador legítimo da letra.

Nos termos do art. 22º do DL 133/2009, relativo ao regime de crédito ao consumo, nos contratos de
crédito ao consumo, deve colocar-se a expressão “não à ordem” de modo a afastar a transmissão do
título por endosso.

 Por outro lado, se o endosso em branco é seguido por um outro endosso, presume-se que o signatário
deste adquiriu a letra pelo endosso em branco – este não afeta a regularidade da cadeia de endossos (art.
16º, I).

O portador de uma letra, que a recebeu através de um endosso em branco, pode:

i) Manter consigo a letra, acrescentando o seu nome (art. 14º, II, 1º).
ii) Preencher o espaço em branco com o nome de outra pessoa (art. 14º, II, 1º).
iii) Endossar em branco mais uma vez (art. 14º, II, 1º).
iv) Endossar a letra com identificação do endossado (art. 14º, II, 2º).
v) Entregar a letra a outrem, sem necessidade de preencher o espaço em branco e sem necessidade de
endossar a letra (art. 14º, II, 3º).

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

9. O aval

O aval é um negócio cambiário pelo qual o sujeito que emite a declaração garante o pagamento da letra, no
todo ou em parte (art. 30º, I).

 O avalista pode ser um sujeito que não teve até aí qualquer intervenção no título de crédito, ou pode ser
alguém que é já signatário da letra (art. 30º, II) – nesta última hipótese o aval só terá razão de ser se
agravar a responsabilidade do signatário.

 Os negócios cambiários têm, normalmente, várias funções. Discute-se se o aval é um negócio cambiário
com função única. Há quem entenda que a única função do aval é prestar garantir e, por isso, não é um
negócio mercenário como os restantes.

SOVERAL MARTINS não concorda, entendendo que o aval pode estar ao serviço de muitas funções.

Por exemplo, o senhorio diz ao arrendatário que, para garantia do pagamento da renda, terá que intervir no título de
crédito um avalista (p.e. o pai do arrendatário); esse título de crédito pode permitir o pagamento da renda.

O aval deverá indicar a pessoa por quem o avalista dá (parece-nos que o aval pode ser dado por outro avalista).

 A indicação da pessoa por quem o avalista dá o aval deve ser expressa. Se tal indicação não é dada, deve
entender-se que o aval e dado pelo sacador, nos termos do art. 31º, II.

 Porém, quando a letra não saiu das relações imediatas, é de grande importância saber se é possível alegar
e provar que o aval sem a indicação referida foi dada por pessoa diferente do sacador.

Exemplo: A deu o seu aval sem identificar por quem dava. Contudo, foi alegado e provado que A deu o aval por B,
aceitante, que devia dinheiro a C, sacador, e com quem foi combinada a aposição do aval. Poderá a defender-se
invocando que o aval deve ser considerado como dado pelo sacador, quando é esse o portador que exige o
pagamento?

Exemplo 2: A avalista, que não indicou o avalizado, paga a letra ao portador. Ao abrigo do disposto no art. 32º, III,
demanda B, sacador, que se defende invocando o facto de ter combinado com A e com o aceitante C que o aval teria
como avalizado este último.

 No Assento do STJ de 1/2/96, entendeu-se que, mesmo no domínio das relações imediatas, o aval que
não identifique o avalizado é sempre prestado a favor do sacado.

 Gonçalves Dias, Oliveira Ascensão, Paulo Sendin e Pinto Coelho vão no sentido de tal presunção ser
absoluta e invencível, que nas relações mediatas, quer nas relações imediatas.

 Vaz Serra e Ferrer Correia admitem que a presunção seja ilidível nas relações imediatas, ou seja, vem
sendo aceite que, nessas relações, se prove que o aval sem indicação do avalizado foi prestado a favor
de pessoa que não o sacador.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

 De facto, nas relações mediatas, compreende-se que, para tutela dos interesses relacionados com a
circulação da letra, a presunção não possa ser ilidida. Até porque a prova do contrário resultaria de
factos estranhos ao teor do título.

 Mas, nas relações imediatas, mais do que falar numa presunção legal ilidível, parece ser de defender
que se trata aqui da oponibilidade de uma exceção fundada nas relações causais ou extracartulares.

O aval pode ser escrito, que na letra, quer na folha anexa à letra.

 Porém, se o aval é dado através de simples assinatura – aval “em branco” – tal assinatura só vale
como aval se consta da face anterior da letra (art. 31º, III) – e mesmo isto só é assim se a assinatura
não é a do sacado ou a do sacador (art. 31º. I e II).

Mas se o aval é dado com a utilização das palavras “bom para aval”, “dou o meu aval por”, ou expressão
equivalente, já não tem de constar da face anterior da letra, podendo ser colocado na face posterior da letra
ou em folha anexa.

9.1. Responsabilidade do avalista

O avalista responde nos mesmos termos em que responde aquele por quem é dado o aval (sacador,
endossante, aceitante), nos termos do art. 32º, I.

 O avalista do aceitante continua a responder nos mesmos termos que este último ainda quando o
portador, por aplicação do disposto no art. 53º, I, perdeu os direitos de ação contra endossantes,
sacadores e outros coobrigados.

Ou seja, chegada a data do pagamento, se a letra não é paga, deve ser feito o protesto por falta de
pagamento junto do notário dentro dos prazos previstos, caso contrário, a responsabilidade solidária
garante dos restantes coobrigados termina.

Sendo o avalista do aceitante outro obrigado, de acordo com o art. 53º, esta obrigação também se
extinguiria.

Porém, a responsabilidade do avalista é idêntica à da pessoa por ele avençada, logo, o avalista do
aceitante deverá continuar responsável [note-se que esta é uma posição doutrinal].

Contudo, o avalista não é um fiador, apesar do que dispõe o art. 32º, I. Desde logo, o avalista não assume uma
obrigação cambiária.

 Supondo que o avalista do endossante paga a letra. Nesse caso, o avalista fica sub-rogado nos direitos
emergentes da letra contra a pessoa por quem deu o aval, no caso, o endossante.

 Mas, o avalista fica também sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra os que sejam obrigados
cambiários para com a pessoa por quem deu o aval, no caso, ficará sub-rogado nos direitos emergentes
da letra contra, por exemplo, o que tivesse antes endossado a letra ao sujeito por quem foi dado o aval.

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Direito Comercial I

 Porém, se é nula a obrigação daquele por quem é dado o aval, há que distinguir:
a) Se a nulidade referida decorre de um vício de forma, não há responsabilidade do avalista.
b) Se a nulidade da obrigação do avalizado resulta de um outro vício que não de forma, mantém-se a
obrigação do avalista (art. 32º, II).

10. Obrigações cambiárias

10.1. Independência

A letra pode conter várias declarações cambiárias de que resultam obrigações para os respetivos subscritores.

As declarações cambiárias apostas nas letras são, de certo modo, independentes entre si, como dita o art. 7º.
 Isto não vale para a assinatura do sacador, pois é esta que cria a letra – se a assinatura é de pessoa
fictício, não se pode considerar a letra criada.

Isto significa que os vícios que afetem uma das obrigações cambiárias não se transmitem, na medida do
exposto às obrigações de outros subscritores.
 Porém, esta independência não vale sempre, é o caso da nulidade por vício de forma da obrigação
daquele por quem é dado aval – neste caso, o avalista não responde, ou seja, aquela nulidade repercute-
se na obrigação do avalista.

Com este regime, pretende-se garantir a circulabilidade da letra de câmbio, tornando desnecessárias
verificações que prejudicariam aquela.

Por outro lado, aquele que endossa uma letra deve contar com a possibilidade de, antes de si se encontrarem
obrigados cambiários que, afinal, não respondem. E, contudo, aquele endossante ficará obrigado perante o
endossado e posteriores portadores legítimos a menos que proíba um novo endosso, com os efeitos previstos
no art. 15º, II.

10.2. Abstração

A obrigação cambiária é abstrata por ser independente de uma causa: esta é-lhe indiferente e por isso a
obrigação cambiária pode servir qualquer causa.

Assim, perante o portador mediato do título, o devedor cambiário não pode invocar, em regra, exceções
fundadas nas relações causais estabelecidas com anteriores portadores ou com o sacador (art. 17º).
 A causa aqui é a relação fundamental (compra e venda, mútuo, etc.) ou causa remota.
 Também pode ser a chamada “convenção executiva”: pacto que se destina a regular ou a reforçar, através
da letra, uma obrigação já constituída (relação fundamental).

Tanto uma causa como outra estão presentes não apenas quando têm lugar o saque e o aceite, mas também
quando a letra é endossada ou dado o aval.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Exemplo: A compra a B um automóvel. Como A não tem todo o dinheiro necessário para pagar a B, combinam
que A ficará a dever parte do preço. Porém, acordam que B sacará uma letra à sua própria ordem, que A
aceitará, da qual consta o montante em dívida. Realizados ambos os negócios cambiários referidos, B acaba
por endossar a letra a C, que por sua vez faz o mesmo a D. Este último vai ter com A na data do vencimento da
letra e exige-lhe o pagamento. Contudo, A recusa efetuar o pagamento alegando que o automóvel que
comprou a B sofre de vários defeitos e não cale o preço cobrado tudo isto era desconhecido de D.

D é portador de má fé e A recusa o pagamento invocando uma exceção fundada nas relações pessoais com o
sacador (B).

Ora, como decorre do art. 17º, essa invocação não pode ter lugar. Ou seja, A não se libera da obrigação de
pagar só por alegar factos que decorrem da relação pessoal subjacente com B.

Na verdade, essa relação subjacente é exterior ao negócio cambiário de que resultou a obrigação cambiária.

A obrigação cambiária é independente dessa relação e os vícios que afetam essa relação não afetam a
obrigação cambiária. Por isso se diz que a obrigação cambiária é abstrata: porque em relação a ela se abstrai,
designadamente, dos eventuais vícios da relação fundamental.

Mas não só: também se abstrai dos vícios daquela convenção de que resultou o negócio cambiário, ou seja, a
convenção pela qual se combinou que tal negócio teria lugar, nos termos do mesmo e a sua ligação com a
relação fundamental.

Isto não será assim quando não se está perante o portador imediato.

Imaginemos que D era portador mediato de boa fé. D não era parte da relação subjacente invocada por A. Se B
não tivesse endossado a letra – se B tivesse permanecido portador da mesma – e se tivesse sido B a apresentar
a letra para pagamento a A, este já poderia invocar perante B as exceções causais resultantes da relação
pessoal entre eles estabelecida e que estava subjacente ao surgimento da obrigação cambiária.

Por outro lado, o portador mediato só pode invocar o disposto no art. 17º se estiver de boa fé, ou seja, se ao
adquirir a letra, “não procedeu conscientemente em detrimento do devedor”. Mas como interpretar esta parte
do preceito?

a) Atua conscientemente em detrimento do devedor aquele portador mediato da letra que conhece um vício
anterior à sua aquisição, mesmo não sabendo que esse vício podia ser invocado perante o seu endossante.

b) Atua conscientemente em detrimento do devedor aquele portador mediato da letra que sabe que podiam
ser opostas exceções pelo devedor ao seu endossante.

c) Atua conscientemente em detrimento do devedor aquele portador mediato da letra que adquiriu a letra
com intenção de prejudicar o devedor.

A alternativa b) poderá ter fortes argumentos a seu favor: o art. 17º não protege o portador mediato que
atuou conscientemente em detrimento do devedor e poderá entender-se que isto não significa,
necessariamente, que exista também a intenção de prejudicar.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Contudo, não é esse o melhor entendimento, pois se o fosse, bastaria a consciência de causar prejuízo ao
devedor, prejuízo esse que decorreria do facto de o devedor não poder opor ao adquirente as exceções
oponíveis a anteriores devedores.

 É que esse prejuízo é um efeito normal da transmissão da letra (o direito do aquirente está imune das
exceções que poderiam ser opostas aso anteriores titulares do direito cambiário).

Não basta, assim, que o adquirente, ao adquirir, tenha tido conhecimento de que o devedor será prejudicado
mediante a perda das suas exceções: é ainda necessário que a aquisição tenha sido feita com a intenção de
causar prejuízo injusto ao devedor ou, ao menos, com representação e aprovação esse prejuízo.

Note-se ainda que, caso um portador intermédio se encontre de boa fé, tal facto torna irrelevante a má fé de
um posterior portador da letra, isto é, a boa fé do portador intermédio sana a má fé do portador atual.

Se A, portador mediato da letra e que está de boa fé, endossa o título a B, que por sua vez está de má fé, a boa
fé de A torna inoponíveis a B as exceções pessoais que, de outra forma, poderiam ser invocadas perante B.
Neste tipo de casos pode dizer-se que a aquisição da letra por B não causa qualquer prejuízo ao obrigado
cambiário: este já teria de pagar a S que, não o esqueçamos, era portador mediato de boa fé.

 É pela proteção que o art. 17º confere ao portador atual que dizemos que a letra é abstrata.

Mas note-se que encontramos aqui apenas uma certa dose de abstração (e não uma abstração absoluta),
precisamente por ser tão-só uma abstração relativa ao portador mediato de boa fé.

10.3. Literalidade

O obrigado cambiário tem de respeitar o direito do portador nos termos em que tal direito é definido pelo
texto da letra de câmbio.

Ao portador mediato de boa fé não podem também ser opostas as exceções que se baseiam em acordos,
celebrados entre anteriores sujeitos cambiários, que não tenham manifestação no texto da lei – isto resulta
ainda do art. 17º.

Assim, a literalidade anda a par do formalismo que rodeia os negócios cambiários (a letra tem que contem a
palavra “letra”; o saque um “mandato puro e simples”; o aceite o “aceite”).

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

10.4. Autonomia do direito sobre o título

O legítimo possuidor da letra tem um direito sobre o título que é autónomo relativamente aos direitos dos
anteriores possuidores.

Nesse sentido, o direito do legítimo possuidor da letra não é afetado por vícios dos direitos sobre a letra de
anteriores possuidores, salvo se a adquiriu de má fé ou se, adquirindo-a, cometeu falta grave – art. 16º.

Exemplo: A compra a B uma mobília de escritório e fica a dever parte do preço. A aceita uma letra que B saca à
sua própria ordem. B coloca na letra um endosso em branco, pois pensava ir entregar a letra a C, seu
fornecedor, a quem devia dinheiro. Contudo, B foi jantar primeiro e deixou a letra em cima da mesa de
cabeceira. D, amigo, entrou pela janela do quarto de B e furtou a letra (que, lembre-se, continha o endosso em
branco). Posteriormente, D endossa a letra a E, pois queria pagar-lhe a crédito um capacete de moto. E estava
de boa fé e não agiu cometendo falta grave.

O E é portador da letra e justifica o seu direito por uma série ininterrupta de endossos. Por isso, E não é
obrigado a restituir a letra a B (desapossado da letra) em na data do vencimento, o E pode exigir o pagamento
a A. O direito de E sobre o título é autónomo: é autónomo relativamente aos vícios do direito de C sobre o título
que, em rigor, não tinha qualquer direito sobre a letra porque a furtara.

Contudo, o E já teria de restituir a letra se, no momento da aquisição da mesma, estava de má fé ou se,
adquirindo-a, cometeu falta grave.

Mas o que se deve entender por má fé?


 Entendemos que a má fé existe quando o portador sabe que o endossante não tem uma posse
regular, mesmo ignorando que essa irregularidade é consequência do anterior desapossamento.

O portador terá ainda de restituir a letra se cometeu falta grave.


 Isto é, se ao adquirir a letra ignorava a posse irregular do endossante, mas, atendendo às
circunstâncias, atua com falta grave, não merece a proteção conferida pelo art. 16º.
 Existe falta grave quando aquele não se rodeou do mínimo de diligência exigível, atendendo ao caso
concreto.

Nos casos em que o portador este de má fé ou comete falta grave, mas se prova que um portador intermédio
está de boa fé, entendemos que essa boa fé do portador intermédio irá afastar a obrigação de restituir a letra
que, de outra forma, recaía sobre o portador atual de má fé ou que cometeu falta grave.

Esta é a solução mais razoável e que encontra apoio nos trabalhos preparatórios da Convenção: de facto, se
assim não fosse, o portador intermédio, apesar de estar de boa fé, sairia prejudicado, uma vez que teria
dificuldades em encontrar a quem endossar a letra se disso necessitasse.

 Em suma, teremos que ter sempre em conta que é necessário verificar-se uma “certa” independência,
abstração, literalidade e autonomia, sempre com limites base.

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Direito Comercial I

11. O vencimento

As modalidades do vencimento das letras de câmbio veem identificados no art. 33º. A letra pode ser sacada:

a) À vista: aquela que é pagável à apresentação, i.e., a letra deve ser paga quando é apresenta para tal. E
deve ser apresentada a pagamento no prazo de um ano a contar da sua dará, se o sacador não estipular
prazo diferente ou os endossantes não o encurtarem.

Note-se que a letra que não contém a indicação da época de pagamento se considera pagável à vista.

b) A um termo certo de vista: aquela que se vence decorrido um certo prazo a contar da data do aceite ou,
se não foi aceite, da data do protesto por falta de aceite.

c) A um certo termo de data: aquela que se vence decorrido um certo prazo a contar da data em que a letra
foi passada (data de emissão).

d) Pagável no dia fixado: aquela que indica o dia preciso em que a letra é pagável.

São estas as modalidades possíveis de vencimento, assim, não poderá ser estipulado que uma letra seja
pagável, por exemplo, quando o aceitante acabar a licenciatura.

12. O pagamento – não lecionado

O pagamento pode ser exigido pelo portador legítimo da letra  esse portador pode ser a pessoa que o
sacador indicou como sendo aquela a quem ou à ordem de quem a letra deve ser paga  mas essa pessoa
pode ter endossado entretanto a letra e o sujeito a quem ela foi endossada pode, em princípio, fazer a mesma
coisa.

O portador será então legítimo se justifica o seu direito por uma série ininterrupta de endossos (art. 16º, I).

E isso deve ser verificado por aquele que paga a letra, que também deve verificar a identidade do portador da
letra (art. 40º, III).

O pagamento da letra no vencimento libera das suas obrigações aquele que paga, salvo se houver da sua parte
fraude ou falta grave (art. 40º, III).

 Se a letra pagável em dia fixo ou a certo termo de data ou de vista não é apresentada a pagamento no
dia em que ela é pagável ou num dos dois dias úteis seguintes, qualquer devedor pode depositar a
importância “junto da autoridade competente, à custa do portador e sob a responsabilidade deste”.

 Por sua vez, as letras pagáveis à vista devem ser apresentadas a pagamento, dentro o prazo de um ano,
a contar da sua data, nos termos do art. 34º, II.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

 Apresentação ao pagamento

A apresentação ao pagamento é, em regra, feita ao sacado, pois é a este que o sacador dá a ordem de
pagamento contida na letra.

 O sacado que paga pode exigir a entrega da letra e a quitação correspondente (art. 39º, I);
 e pode inclusivamente realizar um pagamento parcial, que o portador não pode recusar (art. 39º, II).

Contudo, nesse caso, não pode o sacado exigir a entrega da letra (até porque o portador necessita da letra para
realizar o protesto da quantia em falta); pode, isso sim, exigir que se faça menção do pagamento parcial na
letra e a entrega d equitação (art. 39º, III).

Também qualquer um dos coobrigados que foi o pode ser demandado e que pagou pode exigir a entrega da
letra com o respetivo protesto e um recibo (art. 50º, I).

 Lugar do pagamento

A letra deve conter a indicação do lugar do pagamento  quando tal não aconteça, o lugar será o que vier
designado ao lado do nome do sacado (art. 2º, III)  se tal também faltar, o escrito não produzirá efeitos
como letra.

É no lugar do pagamento que o portador da letra deve apresenta-la a pagamento. A letra até pode ser pagável
no domicílio de terceiro.

Pode dar-se o caso de o sacador indicar na letra um lugar de pagamento diferente do domicilio do sacado, mas
sem identificar um terceiro para pagar a letra no respetivo domicílio.

Quando isso aconteça, o sacado, ao aceitar, pode indicar a pessoa que deve pagar (no lugar do pagamento) –
mas se não fizer essa indicação, o sacado (agora aceitante), terá de pagar a eltra no lugar indicado na letra para
o efeito, art. 27º, I.

No caso de a letra ser pagável no domicílio do sacado, este tem ainda a possibilidade de , no ato do aceite,
indicar um outro domicílio para efetuar o pagamento (que deve, porém, situar-se no mesmo lugar indicado
inicialmente como o domicílio do sacado), art. 27º, II.

 Juros

De acordo com o art. 48º, o portador da letra pode exigir ao demandado não apenas o pagamento da quantia
constante da letra e dos juros estipulados, mas ainda dos juros à taxa de 6% desde a data do vencimento e as
despesas mencionadas no nº3 daquele preceito.

Contudo, o art. 4º do DL nº 262/83, de 16 de junho estabeleceu que o portador de letra, quando o respetivo
pagamento estiver em mora, pode exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros de
mora.

230
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Terá a taxa estipulada no art. 48º sido substituída pela taxa legal de juros?

Perante estas duas soluções em confronto, no Assento nº4/92, de 13 de julho de 1992, o STJ decidiu que nas
letras e livranças emitidas e pagáveis em Portugal, é aplicável, em cada momento, aos juros moratórios a taxa
que decorre do disposto no art. 4º do DL nº262/83, de 16 de junho e não a prevista nos arts. 48º e 49º da
LULL.

Considerou o Tribunal que a fixação de uma taxa de 6%, mesmo resultando de uma Convenção Internacional,
sempre se deveria considerar extinta por caducidade atendendo à regra rebus sic stantibus.

Ainda assim, SOVERAL MARTINS segue a posição de OLIVEIRA ASCENSÃO, de acordo com a qual a legalidade e
constitucionalidade do art.4º do DL é clara à luz do art. 13º do Anexo II à LULL, desde que se entenda aquele
como dizendo respeito apenas a letras, livranças e cheques passados em Portugal, que nos indica que Portugal
poderia substituir a taxa legal em vigor referida nos arts. 48º e 49º.

Se assim é, então poderia Portugal adotar a solução consagrada no art. 4º do referido DL: este preceito veio
permitir que o portador exija uma indemnização relativa à mora correspondente aos juros legais, sendo
duvidoso que realmente substituísse a taxa de juro fixada no art. 48º. A taxa de juro legal é aquela que resulta
do art. 559º C, conjugada com as Portarias entretendo publicadas.

Perante o exposto, poderá ainda perguntar-se se o portador da letra ainda pode optar por exigir juros à taxa
prevista no art. 48º e não “juros legais” que foi fixada em 4% pela Portaria nº291/2013: inferior, portanto, aos
estabelecidos pela LULL.

Caso se entenda que os preceitos em causa da LULL já cessaram a sua vigência relativamente a letras emitidas
e pagáveis em território português, o portador de tais letras não pode optar pela taxa de juro fixada na LULL –
mas essa solução deve ser repensada.

13. Protesto por falta de aceite ou por falta de pagamento

O protesto por falta de aceite ou por falta de pagamento consiste num ato formal de comprovação da recusa
de aceito ou de pagamento. A sua importância torna-se evidente tendo em conta o art. 53º, que prevê várias
hipóteses que conduzem à perda do direito de ação contra endossantes, sacador e outros coobrigados, à
exceção do aceitante (e seu avalista).

Uma delas verifica-se quando portador não realizou, nos prazos fixados, o protesto por falta de aceite ou por
falta de pagamento – os prazos estão fixados no art. 44º, II e II e nos arts, 121º e 122º C.Not.

Prazo para o protesto por falta de aceite: corresponde ao prazo da apresentação do aceite.
a) Letras a certo termo de vista  apresentadas ao aceite dentro do prazo de um ano das suas datas
(art. 23º, I).
b) Letras a certo termo de data e com data certa  apresentadas ao aceite até ao vencimento.

O art. 44º, II, 2ª parte diz-nos ainda que se a primeira apresentação da letra tiver sido feita no último dia do
prazo, pode fazer-se ainda o protesto no dia seguinte.

231
Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Prazo do protesto por falta de pagamento: corresponde ao prazo fixado na LULL para o mesmo se realizar.

a) Letras pagáveis em dia fixo, a certo termo de data ou a certo termo de vista  prazo de dois dias úteis
seguintes àquele em que a letra é pagável (art. 44º, III).

Ou seja, durante esses dias em que é apresentável ao pagamento, a letra é pagável; só depois parece
começar a correr o prazo de dois dias úteis para a realização do protesto.

b) Letras pagáveis à vista  o prazo é o da apresentação a pagamento, ou seja, o prazo de um ano a


contar da sua data (art. 44º, III que remete para o art. 44º, II).

Mas se a letra for apresentada no último dia do prazo, parece que é possível fazer o protesto ainda no
dia seguinte, nos termos do art. 44º, II e III e art. 24º, I.

Ainda que não sejam respeitados os prazos para a apresentação a protesto, tal não é fundamento de recusa do
mesmo. O apresentante pode ter interesse em obter meio de prova da falta de aceite ou de pagamento. Por
outro lado, pode ainda obter vantagens decorrentes das notificações que sejam realizadas.

14. Desconto bancário da letra de câmbio – não lecionado

O tomador da letra (o posterior portador) que não pretende mantê-la consigo à data do vencimento, pode
procurar obter o desconto da letra junto de uma instituição bancária.

Nesse caso, poderá endossar a letra à referida instituição, que pagará ao endossante o montante da letra, a
que retirará (descontará), porém, um valor pelo período que falta decorrer entre a data em que tem lugar o
pagamento pela instituição de crédito ao endossante e a data do vencimento, bem como as comissões devidas.

O desconto é, assim, a quantia que no referido caso a instituição bancária deduz por antecipar o pagamento.

Dessa forma, o endossante recebe mais cedo o dinheiro a que tem direito e recebe-o porque não tem que
esperar pelo vencimento da letra. Trata-se de um contrato de operação de banco (art. 362º CCom).

15. Ação cambiária e extracambiária

A emissão ou transmissão da letra não extinguem, só por si, o débito proveniente da relação fundamental ou
subjacente.

Distinguimos:
 Relação fundamental ou subjacente  causa remota dos negócios cambiários.
 Convenção executiva, nos termos da qual se estabelece a obrigação cambiária  causa próxima dos
negócios cambiários.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

Assim, a relação fundamental subsiste, com os seus prazos de prescrição, assim como subsistem também as
suas garantias.

Em regra, só após ser verificada a falta de aceite e de pagamento é que o credor pode optar entre a ação
causal (aquela que se funda na RJ fundamental) e a ação cambiária (ação para o exercício dos direitos
emergentes da letra, que será, normalmente, uma ação executiva).

Contudo, tal opção só existe quanto à relação fundamental em que intervém o portador da letra.

Exemplo: se A vende um carro a B e A saca à sua ordem uma letra que B aceita, e se depois A endossa a letra a C, que por
sua vez endossa a D, este último não é parte na relação fundamental entre A e B. E, por isso, se D deixa prescrever o crédito
cambiário contra B, não pode invocar a relação fundamental entre A e B para exigir deste último o pagamento do crédito
que daquela resultasse.

16. Ação direta e ação de regresso

Se o aceitante, obrigado principal, não paga quando devia, o portador da letra tem contra ele uma ação
cambiária, que é conhecida como ação direta.

Esse direito de ação subsiste ainda quando se verifica uma daquelas situações previstas no art. 53º, I (que
levam à extinção do direito de ação contra os obrigados ali identificados).

Por sua vez, a ação que o portador da letra tem contra os endossantes, sacador e outros coobrigados, é
designada ação de regresso e todos aqueles são obrigados de regresso – mas para que o portador os possa
demandar em caso de falta de aceite ou de falta de pagamento, tem de fazer o correspondente protesto
dentro dos prazos legais.

 Os aceitantes, endossantes, sacador ou avalistas são solidariamente responsáveis para com o portador. Este
pode acioná-los a todos, um a um, ou coletivamente (art. 47º, I e II).

 Contudo, essa responsabilidade solidária coincide exatamente com o art. 512º CC. Desde logo, porque se
um dos signatários da letra que não seja o aceitante paga a letra, tem o direito de acionar o aceitante, o
sacador, os anteriores endossantes e os avalistas de todos eles para exigir a soma integral que pagou (art.
49º, I).

Exemplo: A aceita uma letra sacada a certo termo de data por B à sua própria ordem. B endossa a letra a C, que endossa
a D. D, na data do vencimento, exige a A o pagamento, que A não efetua. Depois de efetuado o protesto, C paga a D. C,
obrigado de regresso (porque era endossante), pode demandar A (aceitante e obrigado principal) e B (sacador e
obrigado de garantia), para lhes reclamar a soma integral do que pagou.

Para além do exposto, também parece forçado dizer que todos os obrigados cambiários respondem
solidariamente pela mesma quantia, uma vez que consideramos a obrigação de cada um deles autónoma
relativamente à dos restantes.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

17. Prescrição da ação cambiária

Vimos que o aceitante de uma letra é o obrigado principal. O portador da letra não perde os seus direitos de
ação contra o aceitante (e seu avalista) quando ultrapassados os prazos do art. 53º. Contudo, mesmo as ações
contra o aceitante (relativas à letra) prescrevem em três anos a contar do seu vencimento, nos termos do art.
70º, I.

Já as ações do portador contra endossante e sacador (obrigados de garantia) prescrevem no prazo de um ano,
a contar do protesto feito em tempo útil ou à data do vencimento, se se trata de letra contendo cláusula “sem
despesas” (art. 70º, II)

Se algum dos obrigados de garantia paga a letra, pode também exigir o pagamento dos seus garantes (art.
49º). Um endossante que paga pode exigir o pagamento dos anteriores endossantes e sacador. Mas também
essa ação está sujeita a um prazo de prescrição de seis meses a contar do dia em que o endossante pagou a
letra ou em que ele próprio foi acionado.

No que diz respeito à interrupção da prescrição, o CC determina em que casos aquela tem lugar.
 Mas dispõe o art. 71º LULL que a interrupção da prescrição só produz efeitos em relação à pessoa
para quem a interrupção foi feita

[aqui, a posição do avalista é discutida quando há interrupção que corria a favor do avalizado 
SOVERAL MARTINS entende que a interrupção da prescrição também se estende ao avalista, porque
aquele responde nos termos do avalizado e o art 71º surge no seguimento de outro preceito que não
contém menção ao prazo de prescrição relativamente à obrigação do avalista].

Extinto o direito de ação cambiária por prescrição, tal não significa que se extinga pela mesma razão o crédito
decorrente da relação subjacente. Esse crédito pode ainda subsistir, pois o prazo de prescrição pode ser mais
longo – será então possível ao credor exigir o respetivo pagamento.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

PARTE III – Valores mobiliários – não sai em caso prático

1. Introdução

2. Os valores mobiliários previstos no Código dos Valores Mobiliários (CVM). A não tipicidade do elenco.

Art. 1º CVM: são de valores mobiliários, além de outros que a lei como tal identifique:

 Ações
 Obrigações
 Títulos de participação
 Unidades de participação em instituições de investimento coletivo
 Warrants autónomos
 Direitos destacados de certos valores mobiliários, desde que o destaque abranja toda a emissão ou série
ou aquele destaque esteja previsto no ato de emissão
 Outros documentos representativos de situações jurídicas homogéneas, desde que sejam suscetíveis de
transmissão em mercado

Art. 2º/2 CVM: os valores mobiliários são instrumentos financeiros, sendo esta a terminologia que vem
ganhando terreno.

O artigo 1º CVM identifica os valores mobiliários e, por sua vez, o artigo 2º/2 estabelece que as referências
feitas naquele Código a instrumentos financeiros abrangem os instrumentos mencionados nas alíneas a) a g)
do nº 1.

Hoje não pode falar-se em taxatividade dos valores mobiliários. Se podem ser valores mobiliários “outros
documentos representativos de situações jurídicas homogéneas, desde que sejam suscetíveis de transmissão
em mercado”, a liberdade criativa dos empreendedores conhece poucas restrições. A possibilidade de fazer
surgir figuras extremamente complexas e dificilmente compreensíveis pelos investidores envolve riscos.

O CVM regula não apenas os valores mobiliários, mas também os restantes instrumentos financeiros
identificados no artigo 2º/1, nos termos do artigo 2º/2.

Para além disso, vamos encontrar no CVM uma parte considerável do regime relativo às formas organizadas de
negociação de instrumentos financeiros, à liquidação e compensação das operações que lhes dizem respeito,
às atividades de intermediação financeira e à supervisão e sancionamento.

3. Definição de Valor Mobiliário

Uma vez que o CVM não consagra uma noção de valor mobiliário, e o direito da UE também não nos confere
grande ajuda, encontramos a nossa solução, para esta questão, na resposta de SOVERAL MARTINS.

A definição de valor mobiliário não pode ser apresentada ou lida sem as devidas cautelas. É que o artigo 1º
CVM começa precisamente por dizer que são valores mobiliários os que ali surgem referidos e, além deles, os
que como tal a lei qualifique. E, por isso, qualquer definição estará dependente do que a lei qualificar como
valor mobiliário.

No que diz respeito aos valores mobiliários mencionados no artigo 1º CVM, sugere a seguinte definição:
instrumentos financeiros que consistem em direitos ou posições jurídicas, representados por documentos em
papel ou por registos em conta, integrados em conjuntos homogéneos e obedecendo a regras próprias de
transmissão.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

O valor mobiliário não é apenas a representação: não é o papel, no caso dos valores mobiliários titulados, nem
é o registo em conta relativamente aos valores mobiliários escriturais. O valor mobiliário é o direito ou posição
jurídica representados, quando e enquanto estiverem representados.

O valor mobiliário não é um direito ou posição porque existem valores mobiliários em que não estão apenas
representados direitos: é o que se passa com as ações, uma vez que a participação social do sócio não é
composta apenas por direitos.

Na definição apresentada é dito que os valores mobiliários são direitos ou posições jurídicas integradas em
conjuntos homogéneos porque o artigo 1º/g) mostra que essa exigência valerá para todos os valores
mobiliários previstos nas alíneas anteriores. Com efeito, a palavra “outros” embora usada a propósito dos
documentos, parece estabelecer essa ligação ; outros, para além dos anteriores.

Notas:

1. A integração em conjuntos homogéneos mostra que os valores mobiliários não se confundem com os
títulos de crédito na medida em que há títulos que não preenchem este requisito.

2. A representação do valor mobiliário pode ser realizada através de documento em papel (o título) onde
regista. E na nossa opinião um registo em conta não é um título de crédito.

3. Também, o valor mobiliário é o direito ou posição jurídica representados: não a representação. Mas o
título de crédito é o documento.

4. Os valores mobiliários abrangidos no artigo 1º CVM obedecem a regras próprias de transmissão:


especialmente, as que resultam dos artigos 80º/1, 102º e 105º CVM. Para se falar de valor mobiliário à
luz do CVM não nos parece de exigir que as regras de transmissão aplicáveis devam tornar possível, em
abstrato, a sai negociação em massa.

5. Art. 204º/1 CVM: nem todos os valores mobiliários podem ser objeto de negociação organizada. E se
apenas os valores mobiliários fungíveis podem ser objeto de negociação organizada, é porque também
podem existir valores mobiliários não fungíveis.

Não incluímos na definição, a exigência de que os valores mobiliários sejam suscetíveis de negociação em
mercado ou em mercado organizado.

 Com efeito, é no artigo 1º/g) que se torna necessário o cumprimento dessa exigência quanto aos outros
documentos representativos de situações jurídicas homogéneas, o que bem se compreende para limitar a
possibilidade de criação de valores mobiliários atípicos.

Além disso, se lermos com atenção o artigo 204º CVM verificamos que está ali subjacente a distinção entre
valores mobiliários suscetíveis de negociação organizada de instrumentos financeiros e os restantes valores
mobiliários.

E a negociação organizada de instrumentos financeiros admitida pelo artigo 198º/1, é a que tem lugar através
das seguintes formas: mercados regulamentados; sistemas de negociação multilateral, sistemas de negociação
organizados e internalização sistemática.

Mesmo a inclusão de uma referência à negociabilidade, em abstrato, em mercado conduziria a dúvidas


atendendo ao disposto no artigo 1º/g). A exigência de negociabilidade no mercado de capitais resulta do DMIF
I e DMIF II.

De qualquer modo, teria sido melhor que o artigo 1º esclarecesse ao menos este concreto ponto.

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Direito Comercial I

Também não foi incluída na definição, a exigência de fungibilidade. Isto porque, se o artigo 204º/1/a), mostra
que só os valores mobiliários fungíveis podem ser objeto de negociação organizada, também revela que não
está afastada a existência de valores mobiliários não fungíveis.

4. AS AÇÕES (breve referência)


5. AS OBRIGAÇÕES
5.1. Noção

Obrigações: são valores mobiliários representativos de direitos e crédito.

Notas:

a. Art. 1º/b) CVM: as obrigações aqui previstas constituem um valor mobiliário regulado fundamentalmente
no CSC (art. 348º e ss.), para além de outros diplomas legais especiais (DL nº 280/98, DL nº 453/99, DL nº
59/2006) e do próprio CVM (art. 40º, 230º, etc.).

b. Sublinhe-se a existência de um regime fiscal próprio aplicável aos rendimentos de obrigações obtidos em
território português, a par de outros títulos representativos de dívida privada e pública – DL nº 193/2005.

5.2. Obrigações versus ações

As obrigações, tal como as ações, constituem um mecanismo tradicional de financiamento empresarial, que
apresenta várias vantagens:

a. Para os emitentes: desde logo, para quem representam, em regra, um mecanismo de obtenção de
recursos financeiros mais barato, seguro e flexível, quer relativamente a outras formas concorrentes de
financiamento através de capitais alheios (maxime, financiamento bancário), quer comparativamente ao
financiamento através de capitais próprios (maxime, ações).

b. Para os investidores: a quem oferecem, também em regra, retornos mais rentáveis do que as aplicações
de mercado bancário (p. ex., juros de depósito a prazo) e mais seguros do que outras aplicações do
mercado de capitais (p. ex., ações).

As obrigações constituem um mecanismo de financiamento empresarial alternativo às ações, destas se


distinguindo em numerosos aspetos.

Desde logo, no plano subjetivo:

 Ao passo que as ações são valores tipicamente societários (sociedades anónimas e em comandita por
ações);

 As obrigações constituem uma figura juscomercial geral, correspondendo a valores que podem ser
emitidos por um leque muito variado de entidades privadas (p. ex., sociedades por quotas, cooperativas,
ACE, etc.) e até públicas (maxime, Estado). Protótipo

No plano funcional:

 Ao passo que as ações são a fonte modelo da obtenção de capitais próprios para as empresas
emitentes;

 As obrigações são um dos mecanismos de financiamento por recurso a capitais alheios, fornecidos por
terceiros, geralmente por tempo predeterminado, e mediante uma remuneração certa.

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Maria Madalena Cavaleiro
Direito Comercial I

No plano do seu conteúdo:

 Ao passo que as ações são valores mobiliários que consubstanciam o “status socii” e representam uma
posição jurídica unitária complexa em face da entidade emitente;

 As obrigações são valores mobiliários que investem o seu titular na qualidade de mero credor daquela,
representando nuclearmente direitos de crédito ao reembolso da quantia emprestada (valor nominal da
obrigação) e ao pagamento de eventuais juros ou prémios (fixos ou variáveis).

Esta distinção pode esbater-se em certas modalidades especiais previstas na lei, quer das obrigações – p. ex., as
obrigações convertíveis em ações ou com “warrant” (art. 365º e 372º-A CSC), as obrigações com juro ou
reembolso indexados aos lucros sociais (art. 360º/b) CSC) -, quer das ações – p. ex., as ações preferenciais sem
voto (art. 341º CSC).

5.3. Conteúdo

As obrigações são valores mobiliários que representam nuclearmente um ou vários direitos de crédito tendo
por objeto uma ou mais prestações em dinheiro e/ou espécie.

Por via de regra, as obrigações conferem aos seus titulares dois tipos fundamentais de direitos creditícios:

 Direito ao reembolso: o direito à restituição da importância pecuniária correspondente ao valor nominal


das obrigações subscritas.

 Direitos aos juros: o direito ao pagamento da remuneração do capital colocado à disposição da entidade
emitente.

No entanto, tudo isto pode sofrer derrogações mais ou menos significativos, atento ao princípio geral de
liberdade de conformação do conteúdo obrigacionais consagrado no artigo 360º CSC.

 Os direitos ao reembolso e ao juro, constituindo elementos nucleares e habituais das obrigações, não são
elementos essenciais, de verificação obrigatória em qualquer caso. Assim poderão existir obrigações que
não conferem ao titular um direito ao reembolso: p. ex., as obrigações perpétuas, que atribuem
exclusivamente ao obrigacionista o direito a um juro majorado ao mesmo tempo que o provam do direito
à restituição do capital, que assim se pode consolidar definitivamente no património do emitente.

 Também poderá haver obrigações que não conferem ao titular um direito ao juro: p. ex., as “obrigações
de cupão zero”, que não preveem o pagamento de quaisquer juros periódicos, recebendo o
obrigacionista, como única remuneração do capital fornecido, um prémio de emissão e/ou reembolso.

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Direito Comercial I

5.4. Modalidades

 Obrigações ordinárias
 Obrigações especiais

O artigo 360º, a par com a previsão de um elenco de modalidades especiais de obrigações, veio configurar este
valor mobiliário como um tipo aberto ao qualificar expressamente aquele elenco como meramente
exemplificativo.

(1) Obrigações convertíveis em ações e obrigações com direito de subscrição de ações (ou obrigações com
“warrant”) – art. 360º/c) e 365º a 372º-B

Conferem aos respetivos titulares, para além dos direitos creditícios habituais (reembolso de capital e
pagamento de juro), um direito potestativo especial a uma futura participação no capital social da
emitente, consistente, respetivamente, no direito de converter as suas obrigações em ações ou de
adquirir uma dada quantidade destas ações.

(2) Obrigações participantes – art. 360º/a)/b), 361º a 364º

Apresentam planos de reembolso e taxas de juro indexados a indicadores de “performance”


empresarial, tais como os lucros anuais, o volume de negócios do emitente ou outros.

(3) Obrigações subordinadas:

Os seus titulares apenas poderem exercer os respetivos direitos de crédito após prévia satisfação
integral dos demais credores do emitente (art. 360º/1/e)).

 Em caso de insolvência do emitente, estes credores obrigacionistas apenas serão reembolsados do


capital e juros depois de terem sido integralmente satisfeitos todos os demais credores comuns ou
especiais.
 Consoante o grau de subordinação, estas obrigações podem subdividir-se em:
 Simples
 Extremamente subordinadas: os seus titulares ocupam os “últimos lugares da fila”, sendo
reembolsados apenas após o reembolso dos demais credores subordinados.

(4) Obrigações privilegiadas

Espécie de negativo fotográfico das obrigações subordinadas: os seus titulares gozam de uma posição
privilegiada em caso de insolvência do emitente.

P. ex., as obrigações hipotecárias e as obrigações titularizadas.

(5) Obrigações hipotecárias

Emitidas por instituições de crédito que têm por ativo subjacente empréstimos garantidos por hipoteca:
conferem aos seus titulares o privilégio creditório especial sobre os créditos hipotecários afetos à sua
emissão relativamente ao reembolso de capital e pagamento de juros, distinguindo-se ainda por
estarem assistidas por um tipo especifico de instituição creditícia dotadas desse objeto especial.

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Direito Comercial I

(6) Obrigações titularizadas

Emitidas por sociedades de titularização de crédito que têm por ativo subjacente créditos cedidos em
massa: conferem aos seus titulares um privilégio creditório especial sobre um lote ou carteira dos
créditos cedidos afetos à sua emissão.

(7) Obrigação de alto risco

Combinam para os seus titulares um elevado rendimento, consistente usualmente no pagamento de


juros elevados, e um elevado risco, associada a especiais condições do emitente ou da própria emissão.

Trata-se de obrigações altamente especulativas que implicam para os titulares um risco intermédio
entre o financiamento por capitais alheios (obrigações ordinárias) e por capitais próprios (ações).

(8) Obrigações estruturadas

A sua estrutura ou regime recorrem a técnicas de derivação, designadamente ficando o respetivo


rendimento indexado ou dependente da evolução de um determinado ativo subjacente, o qual pode ser
inclusive outro instrumento financeiro. Estas obrigações estão sujeitas ao respetivo regime – art.
2º/1/b) Regulamento CMVM.

(9) Obrigações perpétuas

Odireito ao reembolso do capital não tem prazo de vencimento, por contrapartida de um direito a um
juro majorado. Esta oferece aos investidores uma fonte estável, rentável e continua de rendimento
periódico.

Apesar de alguns questionarem a sua admissibilidade e a sua natureza obrigacionista, julgamos que ela
seja licita e que se trata de uma modalidade cuja particularidade reside na circunstância de o direito ao
reembolso do titular não ter prazo determinado, ficando dependente da vontade do próprio emitente
ou da respetiva insolvência (art. 117º CIRE).

(10) Obrigações do Tesouro

Obrigações escriturais representativas de empréstimos de prazo entre 1 e 50 anos, vencendo juros de


taxa fixa, emitidas pelo Estado através de operações sindicadas, leiloes ou por operações de subscrição
limitada e amortizáveis no vencimento pelo seu valor nominal. Estas obrigações constituem o principal
instrumento utilizado pelo Estado português para satisfazer as suas necessidades de financiamento.

(11) Obrigações do setor público – art. 1º/2 e 32º DL nº 59/2006

São obrigações emitidas por entidades do setor privado que beneficiam de um privilegio creditório
especial sobre créditos que o emitente tem sobre as referidas entidades do setor público, sendo
subsidiariamente regidas pelo regime das obrigações hipotecárias.

(12) Obrigações internacionais:

Obrigações com emissão plurilocalizada, geralmente garantidas por um consórcio bancário internacional
e transacionadas em centros financeiros internacionais. P. ex., “euro-bonds” (obrigações emitidas numa
moeda diferente da do país do emitente ou da emissão).

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Direito Comercial I

(13) Obrigações de cupão zero

Não preveem o pagamento de quaisquer juros periódicos, recebendo o obrigacionista, como única
remuneração do capital fornecido, um prémio de emissão e/ou de reembolso.

5.5. Titularidade

Aspeto distintivo da titularidade deste valor mobiliário é a organização dos obrigacionistas, a qual se explica em
virtude, quer do papel fundamental por estes desempenhado na vida dos emitentes, quer das necessidades de
tutela dos próprios titulares.

A homogeneidade das posições jurídicas dos obrigacionistas (art. 348º/1 CSC), bem como a concomitante
necessidade de assegurara proteção dos sues interesses comuns e uma eficaz relação do emitente com
aqueles, conduziu à previsão legal de duas figuras fundamentais:

 Assembleia dos obrigacionistas: constitui o órgão composto pelos obrigacionistas de uma mesma
emissão e responsável pela formação da vontade coletiva destes (art. 355º e 356º CSC)

 Representante comum dos obrigacionistas: a quem compete essencialmente representar estes nas suas
relações externas com a sociedade e terceiros e organizar as suas próprias relações internas (art. 357º a
359º CSC).

Tutela dos obrigacionistas: fusão e cisão (art. 101º-C e 120º CSC), a transformação (art. 131º/1/d) e 138º CSC)
ou da redução do capital (art. 349º/4/5 CSC).

1. UNIDADES DE PARTICIPAÇÃO

Unidades de participação: valores mobiliários representativos da posição jurídica do participante em fundos de


investimento – art. 1º/d) CVM (estas unidades de participação encontram-se previstas e reguladas no RJOIC e
noutros diplomas legais).

1.1. Os organismos de investimento coletivo

Estes são instituições que têm como finalidade o investimento coletivo de capitais obtidos junto do público
investidor (art. 2º/1/aa) RJOIC).

Tais organismos, quando revistam a forma de fundos de investimento, constituem patrimónios autónomos
destituídos de personalidade jurídica e pertencentes, em regime de comunhão, a uma pluralidade de pessoas
singulares ou coletivas (participantes) que neles são titulares de uma quota ideal (art. 5º/2 RJOIC) –
justamente, a unidade de participação (art. 7º/1 RJOIC).

1.2. Conteúdo

As unidades de participação são valores mobiliários que representam o estatuto jurídico do participante nos
fundos de investimento, ou seja, uma posição jurídica unitária e global, constituída por um feixe de direitos e
deveres, de natureza real, creditícia e outra.

Os participantes, que podem ser pessoas singulares ou coletivas, são titulares de uma quota-parte ideal ou
contitulares de um património comum.

Desta (con)titularidade decorrem direitos – designadamente, o direito ao resgate ou reembolso das unidades
de participação ou ao produto de liquidação das mesmas em caso de dissolução (art. 10º/2/3, 14º/2/c), 18º e
43º RJOIC) -, mas também deveres – mormente, a obrigação de pagamento das unidades de participação
subscritas (art. 8º/3 e 9º/2/3 RJOIC).

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Direito Comercial I

Mais: o participante encontra-se investido em diversas outras posições jurídicas acessórias: p. ex., o direito de
exigir a emissão ou inscrição registal das unidades de participação pagas (art. 14º/2/a)), de exigir e receber
informação (art. 14º/2/b) e 26º), de exigir o cumprimento dos deveres funcionais das entidades gestoras e
depositárias (art. 14º e 65º e ss.), de preferir na subscrição de novas unidades (art. 9º/5 RJOIC) – e até
posições jurídicas especiais – direitos particulares consagrados no regulamento de gestão (art. 8º/4/6,
159º/1/o)).

1.3. Regime jurídico

Características básicas: as unidades de participação são valores mobiliários sem valor nominal – possuindo
valor real idêntico entre si, variável em função da evolução do valor líquido global do fundo patrimonial e
aferível diariamente (art. 7º/1, 8º/1 e 143º/2) – e representados em forma documental (“certificados”) ou
escritural – sendo fracionáveis para efeitos da respetiva subscrição e resgate (art. 8º/2 RJOIC).

Emissão: afastando-se do regime do CVM, envolve autorizações administrativas especiais (art. 19º e ss e 68º e
ss), colocação e comercialização próprias (art. 2º/1/c), 15º, 129º e ss), documentos informativos, prospetos e
regulamento de gestão adrede elaborados (art. 2º/1/f), 153º e ss), e subscrição propriamente dita.

Transmissão: como os demais valores mobiliários, tais unidades são suscetíveis de transmissão; exceto o caso
especial dos fundos abertos, em que a sua negociabilidade em mercado é fundamentalmente abstrata e
residual, dado que, efetuando-se a transmissão pro via de continuas subscrições e resgates, perde sentido
económico a sua negociação em mercado organizado.

Extinção: ao passo que nos fundos abertos a extinção opera através do “resgate”, nos fundos fechados ela só
pode ocorrer, em regra, mediante reembolso ou no evento de liquidação do próprio fundo (art. 10º/3 e 60º e
ss).

2. “WARRANTS”

“Warrants” autónomos: valores mobiliários representativos de direitos potestativos de subscrição, aquisição


ou alienação de um determinado ativo subjacente, exercitáveis mediante liquidação física e/ou financeira – art.
1º/e) CVM ↔ DL nº 172/99 e Regulamento CMVM nº 5/2004.

Por outro lado, o “warrant” representa uma espécie de valor mobiliário geneticamente autónomo.

Ao contrário de outros “warrants” financeiros, aquele caracteriza-se por ser objeto de uma emissão isolada e
independente de quaisquer outros valores mobiliários. Ao invés dos demais valores imobiliários, o “warrant” é
um valor mobiliário incindível, cujo conteúdo é insuscetível de destaque para dar origem a novos valores
mobiliários (art. 1º/f) CVM).

2.1. Modalidades

De acordo com o conteúdo do direito potestativo: “warrant” de compra e “warrant” de venda.

De acordo com o momento do seu exercício: “warrant” europeu (apenas aplicável ma data de vencimento) e
“warrant” americano (livremente exercitáveis em qualquer momento até essa data.

De acordo com a relação entre o preço de exercício e o valor do ativo subjacente: “warrant” abaixo do par (em
que aquele preço é inferior a este valor), “warrant” acima do par (em que aquele preço é superior a tal valor) e
“warrant” ao par (quando são idênticos).

De acordo com a natureza dos ativos: “warrant” sobre valores imobiliários e “warrant” sobre outros
instrumentos financeiros.

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Direito Comercial I

De acordo com a pré-existência de ativos: “warrant” simples (sobre valores ou ativos a emitir futuramente em
mercado primário) e “warrant” coberto (sobre valores ou ativos já emitidos e transacionáveis em mercado
secundário).

De acordo com a titularidade dos ativos: “warrant” próprio (sobre ativos ou valores do emitente) e “warrant”
alheio (sobre ativos ou valores de terceiros).

De acordo com a natureza da emissão: “warrant” puro ou ligado (emitidos em conexão com outros valores).

De acordo com a possibilidade de perda do investimento realizado: “warrant” convencionais e “turbo


warrant”.

2.2. Regime jurídico

No tocante aos requisitos subjetivos, a sua emissão não é livre:

 Em via geral, apenas podem ser entidades emitentes o Estado (art. 14º), os bancos, as sociedades de
investimento, a Caixa Económica Montepio Geral e a Caixa Central de Crédito Agrícola (emissão livre: art.
4º/1/a) a d)/f)), as demais instituições de crédito e as sociedades financeiras de corretagem (emissão
condicionada por autorização administrativa: art. 4º/1/e)/2), e as sociedades anónimas (emissão limitada
a “warrants” próprios: art. 4º/1/g)), ficando a emissão por outras entidades sempre sujeita à prestação de
garantia idónea (art. 4º/3 e 2º Regulamento CMVM nº 5/2004).

Quanto aso requisitos objetivos, os ativos subjacentes elegíveis encontram-se taxativamente previstos na lei
(art. 3º):

 Apenas são admitidos valores mobiliários cotados ou negociados em mercado organizado (incluindo
unidades de participação dotados de um mercado líquido), taxas de juro, dividas, índices (de valores
mobiliários e de índices), futuros sobre mercadorias negociadas em mercado organizado, mercadorias
homogéneas negociadas regularmente em mercado, e índices de mercadorias (art. 3º Regulamento
CMVM º 5/2004).

Outros aspetos relativos:

 À sua emissão: envolve regras próprias em sede de deliberação de emissão (art. 5º) e dos limites à
emissão no caso particular dos “warrants” próprios de sociedades anónimas (art. 6º).

 À sua negociação: a admissão à negociação em mercado regulamentado (art. 10º e 11º Regulamento
CMVM).

 À sua liquidação: no que concerne às modalidades de liquidação (art. 13º/2) e ao valor do ativo e preço
de exercício (art. 4º, 6º e 8º Regulamento CMVM).

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Direito Comercial I

3. DIREITOS DESTACÁVEIS

Direitos destacáveis: valores mobiliários representativos de posições jurídicas inerentes a outros valores,
suscetíveis de destaque e dotados de homogeneidade e negociabilidade.

Art. 1º/f) CVM: estamos perante uma espécie de valor mobiliário que, ilustrando sugestivamente a dinâmica
de diversificação que é própria do mercado de capitas, visa maximizar as potencialidades financeiras ínsitas aos
valores mobiliários mediante a fragmentação ou desmembramento do seu conteúdo próprio.

Assim, p. ex., se, por ocasião de um aumento de capital por novas entradas de uma sociedade anónima, os
pequenos acionistas não quiserem ou puderem concorrer, nem por isso as suas ações se tornam
irremediavelmente valores “mortos” para o mercado de capitais, já que, mediante a cisão e a negociação do
sue direito preferente na subscrição das novas ações, os acionistas asseguram o encaixe de um valor, os
terceiros adquirentes uma posição no capital social, e a sociedade o seu próprio financiamento.

3.1. Características

(1) “Primus”: os direitos destacáveis são posições jurídicas inerentes a determinados valores imobiliários.

 Dizer que são “posições jurídicas” significa salientar que se pode tratar de posições ativas ou passivas: ao
contrário do que a formulação legal inculca, ao falar apenas de “direitos”, não se veem razoes para excluir
do perímetro normativo as obrigações tais como, p. ex., o dever de reconstituição do capital social (art.
35º/3/c) CSC), de realização de prestações acessórias (art. 287º CSC).

 Dizer que tais posições jurídicas são “inerentes” a valores mobiliários significa dizer que são necessária e
exclusivamente posições jusmobiliárias: dada a diversidade substancial das várias espécies de valores
mobiliários, tudo o que poderá ser afirmado, em geral e abstrato, é que aqui se abrangem posições de
natureza económica (os chamados direitos patrimoniais: p. ex., direito de dividendo nas ações, direito ao
juro nas obrigações, direito a remunerações periódicas nos títulos de participação) e organizativa (os
chamados direitos políticos, p. ex., direito de voto, de informação, etc.).

 Para os presentes efeitos, apenas relavam as posições inerentes a “determinados” valores mobiliários, a
saber, ações, obrigações, títulos de participação (art. 1º/f) CVM): assim sendo, e sem prejuízo da
existência de instrumentos financeiros atípicos funcionalmente equivalentes (art. 1º/e) e 2º/1/f) CVM),
excluem-se do perímetro legal da figura as posições relativas aos demais valores mobiliários típicos (p. ex.,
“warrants” autónomos, certificados, valores convertíveis, etc), bem como aos instrumentos mobiliários
atípicos, instrumentos monetários e instrumentos derivados.

(2) “Secundus”, exige-se que as posições jusmobiliárias sejam destacáveis: ou seja, que, de entre as posições
jusmobiliárias, apenas são relevantes as que sejam suscetíveis de destaque do valor mobiliário matricial.

(3) “Tertius”, as posições jusmobiliárias inerentes e destacáveis devem ainda ser dotadas de homogeneidade
e negociabilidade. Ou seja, no essencial, tais posições se devem consubstanciar em direitos ou deveres
idênticos e fungíveis, cujo destaque ou cisão se encontra previsto de modo igual para todos eles – por
força da lei (art. 458º/2 CVM) -, tornando-os suscetíveis de serem transacionados num ou em vários
sistemas legais de negociação organizada.

4. Formas organizadas de negociação de valores mobiliários (breve referência)

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