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DIREITO COMERCIAL

APONTAMENTOS TEÓRICOS
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Os seguintes apontamentos teóricos foram disponibilizados pelos Estudantes


Carlota Carvalho, Inês Carvalho, Raquel Thedim, no âmbito da disciplina de Direito
Comercial e das aulas lecionadas pelo Professor Doutor Miguel Pestana de Vasconcelos.
Enquanto material auxiliar ao estudo, estes apontamentos não dispensam a consulta
da bibliografia obrigatória, indicada no SIGARRA.

Qualquer dúvida, sugestão ou correção poderá ser submetida em:


cc4fdup2122@gmail.com

Bons estudos!

HISTÓRIA DO DIREITO COMERCIAL

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

O direito comercial não tem uma unidade interna, tendo-se desenvolvido em


função de circunstâncias históricas, e desde a Idade Média; o direito das sociedades
comerciais apenas trata os sujeitos de direito comercial – mas não deixa de se integrar
nele.

O direito comercial nasceu, principalmente, em Itália e na Flandres, onde os


comerciantes se organizavam em corporações, criando um direito especial, diferente do
ius civile que na altura renascia (por mão dos Glosadores e dos Comentadores), e de
classes. Tinha por fontes os costumes mercantis, alguns deles codificados, e os estatutos
das corporações de mercadores. Daqui surgiram regras e princípios específicos que delas
se retiravam (reforço do crédito, liberdade de forma para os contratos, os sinais
distintivos, as letras de câmbio e a falência).

A zona da Flandres (muito forte em termos têxteis) tinha um movimento


comercial muito estruturado: a inovação concentrava-se lá. Surgiram as letras de câmbio,
necessárias para fazer pagamentos, conceder créditos, aos comerciantes.

PEDRO DE SANTARÉM, livro de seguros

O comércio bancário nasceu, também, nas cidades italianas, com principal


relevo para Florença (com famílias como os Baldi e os Médici). No início da insolvência,
os credores eram pagos de acordo com a percentagem de créditos que tinham, mas em pé
de igualdade, sem preferência uns sobre os outros.

No séc. XVII, surgiram as Companhias (Índias Orientais, dos holandeses; e das


Índias Ocidentais, dos ingleses): a primeira delas consistiu na criação de uma entidade
que permitia mobilizar grandes volumes de capital privado para o desenvolvimento de
uma determinada atividade que exigia capitais avultados – sem que houvesse
responsabilidade individual dos administradores da sociedade e dos próprios sócios. O
capital estava dividido em partes (ações/actios), não podendo eles exigir a restituição dos
valores.

A companhia detinha poderes que lhe eram atribuídos pelo Estado: um exército,
marinha! Tinham a possibilidade de ocupar outros territórios, mas não em nome do
Estado – mas da própria companhia privada. Isto permite arrecadar capitais avultados
numa entidade puramente privada.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Se as ações não são remíveis, levanta-se o problema de se precisar do dinheiro.


Para isto se criou a bolsa: para adquirir liquidez, associada na altura ao comércio de
tulipas.

Na sequência da revolução francesa, foi criado um sistema não assente em


sujeitos, mas no ato (objetivo) de comércio: comerciante é aquele que vai praticar atos de
comércio. Esta conceção objetiva foi importada pelos códigos mercantis oitocentistas
(espanhóis, italianos).

Os alemães também criaram um código comercial, mas mais tardiamente,


elaborando em 1857 o Código (…), que adotou uma conceção subjetiva. A partir daqui,
o núcleo do Cód. Com. Alemão são os atos de comércio, os negócios, que estão ligados
à exploração de uma empresa. Hoje em dia, há uma tendência para a uniformização do
direito comercial em termos internacionais, o que levou à aprovação da Convenção de
Genebra sobre letras, livranças e cheque.

Há matérias específicas reguladas por DUE, além da forte tentativa de unificação


do direito comercial ao nível europeu. Outros elementos são, depois, uniformizados em
termos de DI: siglas relativas ao comércio internacional (decorrem de publicações da
Câmara de Comércio Internacional) que podem ser utilizadas nos contratos, adquirindo
com isso um significado específico; um conjunto de cláusulas vai sendo adotado nos
contratos, típicas dos contratos internacionais; e as chamadas jurisdições arbitrais.

Pode, assim, definir-se o DC português como assentando num sistema jurídico-


normativo, num corpo de normas que regula, de forma particular, quer os atos comerciais
quer os comerciantes. É um ramo de Direito Privado, embora haja algumas disposições
de D Público (e de forma muito limitada). Apenas funciona como direito especial
relativamente ao direito civil.

O direito comercial não tem um caráter auto suficiente: não é um sistema


autónomo; pressupõe as regras de direito civil como direito comum. A compra e venda
mercantil, por ex., pressupõe, em grande parte, o regime de direito civil. O recurso ao
direito civil não se faz para integrar lacunas: o sistema prevê e pressupõe a aplicação do
direito civil.

Comércio em sentido económico vs Comércio em sentido jurídico

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Na atividade económica, distinguem-se três grandes setores:

● primário (agricultura, pecuária, silvicultura, pesca e caça);


● secundário (indústria);
● terciário (serviços): este setor é definido de forma residual.

Estas classificações não coincidem com as de direito comercial. O comércio em


sentido jurídico engloba quer o comércio em sentido económico quer a indústria e os
serviços – não engloba, assim, o setor primário.

O comércio em sentido jurídico não abrange um conjunto de outros setores que


fazem parte da atividade económica: a agricultura, as indústrias extrativas, o artesanato e
as profissões liberais. O direito comercial é, assim, um ramo de direito que rege os atos
comerciais.

Uma empresa é sempre uma organização de fatores produtivos com valor de


capital (OC). Há meios (capital, trabalho, saber-fazer ou know-how, meios materiais)
organizados pelo titular da empresa e com valor de capital.

Distingue-se empresa em sentido subjetivo (o dono da empresa, apenas) e


empresa em sentido objetivo, que se refere à empresa como organização de fatores
produtivos.

A empresa é absolutamente essencial para o Direito comercial, porque este se


forma à volta das empresas: desde logo, o próprio sujeito. Depois, os atos de comercio
ocasionais (praticados por um sujeito exclusivamente): ex. comprar um imóvel para
revender. Este ato é objetivamente comercial, mas, subjetivamente, não é comercial
(porque o sujeito não é comerciante).

Pode, assim, dizer-se que, se o direito comercial é um direito dos atos de


comércio e dos comerciantes, ele é principalmente um ato dos comerciantes e dos atos de
comércio ligados à exploração de empresas comerciais. Não é exclusivo, mas é um núcleo
essencial.

Muitos dos institutos típicos do direito comercial vieram a ser utilizados fora do
âmbito estrito desse ramo do direito. Assiste-se a uma “comercialização do direito
privado”: as letras de câmbio ou as livranças nasceram no direito comercial, mas são

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

atualmente utilizadas fora dele. Deixaram, assim, de ser institutos exclusivos desse ramo
de direito.

Mas o legislador permite que as figuras dos direitos comerciais sejam utilizadas
fora do direito comercial. A insolvência passou a ser a impossibilidade de cumprir as
obrigações vencidas. A noção de insolvência passou a coincidir com a antiga noção de
falência, com uma particularidade: a insolvência não se aplica só aos comerciantes, mas
a toda a gente.

Também o regime da concorrência é, atualmente, aplicado a outros sujeitos que


não empresas

● Celeridade das operações negociais


● Certeza nas transações

Uma linha de pensamento sustenta que, no respeitante à parte das obrigações, se


deveria proceder a uma uniformização do direito privado (quer civil quer comercial). Em
Itália, essa corrente encontrou expressão no CC de 1943, que unificou os dois ramos. O
CC brasileiro de 2003 acabou por adotar também essa uniformização.

Há um conjunto muito amplo de contratos comerciais que se desenvolvem na


prática comercial, mas que não se encontram previstos ou regulados.

O nosso CC regula com grande amplitude e cuidado a parte contratual, o


cumprimento e o incumprimento, muito inspirado no CC italiano (que é, relembre-se, um
código civil e comercial).

O contrato de empreitada é um contrato comercial, mas que se encontra regulado


no CC. O projeto foi encabeçado por GALVÃO TELLES, que sugeriu deixar regulado o
contrato de empreitada logo na legislação civil, não se sabendo, ainda, quando seria
revogado o Código Comercial de Veiga Simão (de 1880).

Fontes de Direito Comercial

Temos importantes regulamentos na matéria, como os avisos do BdP, da CMVM


e da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF). Temos, ainda,
normas de DC (iniciativa económica privada)

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

A doutrina tem grande relevo na explicitação dos diferentes regimes, na deteção


de princípios e na construção de modelos de decisão.

A jurisprudência tem também um importante papel, sendo constituinte do


direito. Os critérios normativos previstos têm de ser aplicados, aplicação esta que
pressupõe, necessariamente, a construção do direito (desde logo, colmatando lacunas,
determinando o sentido e alcance das normas; e na deteção dos princípios fundamentais).

Os usos do comércio internacional têm também grande relevância.

Nos termos do 3º Código Comercial, se as questões não puderem ser resolvidas


nem pelo texto do direito comercial, nem pelo seu espírito, nem por casos análogos,
aplicar-se-á o direito civil.

O direito comum aplica-se porque é pressuposto do próprio sistema de direito


comercial. Para além do direito das sociedades comerciais, temos o direito bancário.

O direito dos transportes marítimos também é muito importante, já que muito do


comércio é feito por mar. Existem, também, regimes complexos dos transportes de
mercadorias. O direito da propriedade industrial é igualmente importante. O direito da
concorrência é um ramo fundamental do direito económico e comercial. Igualmente, o
direito da insolvência e da recuperação de empresas.

“História do Direito Comercial”, GALVANO

ATOS DE COMÉRCIO

O relevo desta qualificação, hoje em dia, não é tanto como já foi. Mas esse relevo ainda
existe a 3 níveis:
● Nas obrigações comerciais (ou seja, nas obrigações resultantes de atos
comerciais), os coobrigados são solidários (art.º 100 CCom);
● As dívidas dos comerciantes casados derivadas de atos mercantis presumem-se
contraídas no exercício do respetivo comércio (art.º 15 CCom);
● O art.º 102 CCom estabelece um regime com particularidades para os juros
relacionados com atos comerciais (juros comerciais).

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

A noção de ato comercial decorre do art.º 2 do CCom. que contempla uma vertente
objetiva e uma subjetiva. Os atos de comércio são sobretudo contratos. Mas além dos
negócios jurídicos bilaterais, podem ser atos mercantis:
● Os negócios jurídicos unilaterais, como é o caso dos negócios cambiários e dos
negócios de constituição de sociedades comerciais unipessoais (art.º 483 CCom e
LULL; art.º 270-A e art.º 488 CSC);
● Simples atos jurídicos, como é o caso das interpelações e avisos efetuados por
sociedades mercantis a sócios remissos (art.º 203/3, art.º 204 e art.º 285 a art.º 286
CSC);
● Factos jurídicos ilícitos, em certos casos, desde logo, quando estejam previstos na
lei mercantil, como, por exemplo, a abalroação culposa de navios (art.º 665 e ss
CCom).

Atos de comércio
subjetivos

Atos de comércio
objetivos

Atos de comércio objetivos e atos de comércio subjetivos

1.1. Atos de comércio objetivos

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Os atos de comércio objetivos são os previstos no código, que consagra um sistema de


tipificação. Por exemplo, a fiança, o empréstimo, as operações de bem, o mandato, o
depósito. Estes regimes são, em regra, parcelares, assentando num regime geral previsto
no CC. Por exemplo, o regime da fiança do direito comercial, assenta na fiança prevista
no CC mas depois são introduzidas alterações.

Para além disso, em certos casos, temos atos comerciais para os quais a lei não estabelece
um regime jurídico, limitando-se a qualificá-los como tal. É o que acontece com as
operações de banco (art.º 362 CCom). Aquilo que o CCom faz é indicar algumas delas,
nem sequer indica todas.

Não é, contudo, razoável petrificar um catálogo de atos num código datado (1888). Há
de ser possíveis leis posteriores, acompanhando a evolução económica, preverem atos
comerciais. Daí que se deva fazer uma interpretação extensiva da expressão «neste
Código» do art.º 2 do CCom.

Então, como é que qualificamos uma lei comercial?

1ª hipótese: a lei substitui normas do CCom:

A lei substituta será em princípio comercial, os atos nela regulados serão mercantis.
Vejamos exemplos:
● Atos constituintes das sociedades comerciais previstos no CSC, que substitui os
art.º 104 e ss do CCom;
● Negócios respeitantes às letras, livranças e cheques, basicamente hoje regulados
nas LULL e LUCh e antes nos art.º 278 ss do CCom.

Falamos de ramos do direito que se desenvolveram com especial.

2ª hipótese: a lei auto qualifica-se como lei comercial ou, mais precisamente,
qualifica atos como comerciais:

Há matérias que estão previstas no CC e que são matérias materialmente comerciais. Por
exemplo, no capítulo da «locação», o CC contém «disposições especiais do arrendamento
para fins não habitacionais (art.º 1108 a art.º 1113 CC). entre esses fins conta-se o
comércio. E a locação de estabelecimento «comercial ou industrial» e o trespasse desses

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

mesmos estabelecimentos merecem aí algumas regras especiais (art.º 1109 e art.º


1112/1/a) e 4 CC).

A verdade é que o legislador acabou por regular um conjunto de figuras que não estão
previstas no CCom mas que têm importância para o comércio. Além disso, o nosso CC,
na parte do direito das obrigações, inspirou-se muito no CC italiano. Ora, o CC italiano é
um código unificado (unifica o direito das obrigações e o direito comercial). A
empreitada, por exemplo, é um contrato comercial e está no CC.

3ª hipótese: nenhuma destas hipóteses se verifica:

Nada é dito: não há substituição nem outro regime que seja norma de comercial. Na
maioria das vezes, as leis não se auto qualificam explicitamente (direta ou indiretamente)
como comerciais, civis, etc.. Como saber, então, se estamos perante uma lei mercantil,
prevendo de algum modo atos objetivos de comércio?

O art.º 230 do CCom faz uma qualificação como empresas (singulares ou coletivas) em
função do seu objeto. Temos aqui um conjunto de atos que são objetivamente comerciais,
mas que são enquadrados organizacionalmente, ou seja, no âmbito de uma empresa. Para
além destes, há outros que sejam comerciais? Vamos ver.
● Em primeiro lugar, muitos destes casos comportam interpretação extensiva. Por
exemplo, tem-se entendido que se enquadra no nº7 o fornecimentos de água, gás
ou eletricidade.
● Quando não é possível fazer uma interpretação extensiva do art.º, recorre-se a
analogia legis. Por exemplo, quando no nº6 se fala em construção de casas,
devemos incluir aqui a construção de estradas, pontes, barragens).
● Por último, caso não seja possível recorrer à analogia legis, poderemos recorrer à
analogia iuris. Esta esta prevista no art.º 10/3 CC e permite formular um
princípio.

Relativamente à analogia iuris – raciocínio importante para compreensão

Tem-se entendido – com base na analogia legis – considerar mercantis uma


multiplicidade de empresas de fornecimento de serviços: empresas hoteleiras, de
publicidade, de informações comerciais, de gestão de bens, de tratamento de beleza, de
reparação de automóveis, lavandarias, etc.. Raciocina-se assim: a consideração que

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

impressionou o legislador e o levou a qualificar como comerciais as empresas


mencionadas no nº2 «foi a de haver aqui um certo risco, originado pelo facto de interceder
um período mais ou menos longo de entre o momento da fixação do preço e o dos
múltiplos atos sucessivos de fornecimento». Por conseguinte, devem ser abrangidas por
aquela disposição todas as empresas que, apesar de não serem de fornecimento de géneros
(estes, de facto, abrangerão bens materiais, não bens imateriais ou serviços), se traduzam
no exercício de uma atividade económica desenvolvida dentro do condicionalismo
referido.

É certo que o contrato de fornecimento é em geral caracterizado por alguém se obrigar,


mediante um preço previamente estabelecido, a fornecer a outrem, em épocas
determinadas (habitualmente periódicas), coisas ou serviços. Mas também parece ser
certo que a atividade de muitas empresas atrás apontadas não se desenvolve dentro do
referido condicionalismo: os respetivos empresários não se obrigam (ou não se podem
obrigar) a sucessivas prestações mediante um preço previamente fixado. Falhará aí,
portanto, a analogia legis.

Então, como qualificar essas empresas (de prestação) de serviços (designemo-las agora
assim para as distinguir das empresas de fornecimento de serviços propriamente ditas –
implicantes de contratos de fornecimento), que têm crescido consideravelmente nos
últimos decénios, mas que não são análogas às previstas no art.º 230/2 CCom, nem às
incluíveis noutras normas do CCom, nem consideradas comerciais em diplomas
posteriores? Se aquelas empresas de serviços não podem ser qualificadas como
comerciais pelo recurso à analogia legis, já podem sê-lo pelo recurso à teologia imanente
ao sistema legal mercantil, ao seu espírito – analogia iuris (art.º 10/3 CC).

Um exemplo deste tipo de empresas de prestação de serviços são os empreendimentos


turísticos regulados pelo DL 39/2008

Nota: a maioria da doutrina vai pela analogia legis e chega lá; Abreu Coutinho vai pela
analogia iuris.

Tendo por base um pensamento indutivo, tendo em conta que há uma previsão do
trespasse e do arrendamento comercial (logo, são atos comerciais pois estão previstos no
CCom), todos os negócios sobre empresas comerciais são atos objetivamente comerciais.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Daqui decorre o seguinte: são atos comerciais os atos previstos na lei comercial e também
os atos análogos.

3 aspetos importantes relativamente ao art.º 230:

● Onde se diz fornecimento de bens, por interpretação extensiva, quer se dizer


«fornecimento de bens e serviços»
● Onde se lê casas, lê-se qualquer tipo de construção civil – analogia legis.
● No transporte, onde se lê água e terra, deve ler-se ainda “ar”.

1.2. Atos de comércio subjetivos


Os atos subjetivamente comerciais estão previstos no art.º 2, 2ª parte CCom. Esta norma
pode ser dividida em 3 partes.
Em primeiro lugar, os atos subjetivos do comércio começam por ser atos dos
comerciantes. Veremos à frente quem pode ser considerado «comerciante».

Em segundo lugar, os atos em causa não podem ter natureza exclusivamente civil.
Entendemos serem atos de natureza exclusivamente civil os que, por sua natureza, não
são conexionáveis com o exercício do comércio, não se concebendo nem dirigidos a
auxiliar, promover ou levar a cabo o exercício do comércio, nem a deste dependerem.
Alguns exemplos de atos de natureza exclusivamente civil são o casamento, a perfilhação,
a designação de tutor pelos pais.

Em terceiro lugar, o ato será comercial «se o contrário do próprio ato não resultar»,
ou seja, se do próprio ato não resultar a não ligação ou conexão com o comércio. Assim,
incluem-se aqui:
è Os atos dos quais resulta a ligação com o comércio. Por exemplo, um merceeiro
compra uma furgoneta a um agricultor, declarando destinar-se a mesma ao
transporte de mercearias de e para a sua mercearia.
è Os atos dos quais não resulta a sua não ligação com o comércio. Por exemplo, o
merceeiro compra uma furgoneta ao seu conhecido agricultor sem nada declarar
acerca do destino da viatura.

O ato já não será comercial se dele resultar uma não ligação com o comércio. Por
exemplo, o merceeiro, ao comprar a furgoneta, declara que a utilizará como caravana de
férias.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

2. Classificações dos atos comerciais


2.1. Atos de comércio autónomos vs. Atos de comércio acessórios:

São atos de comércio autónomos os qualificados de mercantis por si mesmos,


independentemente de ligação a outros atos ou atividade comerciais.

São atos de comércio acessórios os que devem a sua comercialidade ao facto de se


ligarem a atos mercantis.

Vejamos alguns exemplos: a fiança (art.º 101 CCom)[1], o mandato (art.º 231 CCom), o
empréstimo (art.º 394 CCom), o penhor (art.º 397 CCom), o depósito (art.º 403 CCom).

O ato é acessório de um ato objetivamente comercial e autónomo. Por exemplo, o


mandato destinado à compra de mercadorias para revenda. Compra para revenda (ato
comercial autónomo); mandato (ato acessório).

Os atos de comércio acessórios podem ser:


● Acessórios de atos de comércio objetivos e autónomos. Por exemplo, mandato
para a compra de uma mercadoria destinada a revenda.
● Acessórios de atos de comércio objetivos e acessórios. Por exemplo, mandatos
para o depósito de mercadorias que o mandante comprou para serem revendidas.
● Acessórios de atos subjetivamente comerciais. Por exemplo, mandato para a
compra de caixas-registadoras destinadas ao supermercado do mandante.

2.2. Atos formalmente comerciais e atos substancialmente comerciais

Os atos formalmente comerciais são os esquemas negociais que, utilizáveis para a


realização de operações mercantis e para a realização de operações económicas que não
são atos de comércio nem se inserem na atividade comercial, estão contudo especialmente
regulados na lei comercial. Os atos formalmente comerciais são aqueles que são
utilizados, em termos gerais, tanto para a realização de atividades comerciais como no
âmbito de atividades civis. Falamos essencialmente de figuras que nasceram no âmbito
do direito comercial, mas que depois passaram também a ser usadas no âmbito do direito
civil. É o que sucede, por exemplo, com as letras de câmbio.

2.3. Atos bilateralmente comerciais e atos unilateralmente comerciais

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Os atos bilateralmente comerciais são atos cuja comercialidade se verifica em relação a


ambas as partes. Por exemplo: A, produtora de automóveis, vende, através de um contrato
de concessão comercial, x automóveis ao seu concessionário B; A celebra com C,
seguradora, um contrato de seguro relativo aos seus estabelecimento mercantis; B, a fim
de financeira a compra dos automóveis, contrai um empréstimo junto do banco D.

São unilateralmente comerciais os atos cuja comercialidade se verifica só em relação a


uma das partes. Por exemplo: E, professor, compra a B um automóvel para o seu uso e da
sua família; E segura o seu automóvel junto de C; E, para pagar parte das prestações
relativas à compra de viatura, celebra um contrato de empréstimo com D.

Regime dos atos unilateralmente comerciais:

À pergunta «aos atos unilateralmente comerciais aplica-se a lei civil ou a lei comercial?»
responde-nos o art.º 99 CCom. Mesmo que o ato seja só unilateralmente comercial,
aplica-se o regime mercantil, a não ser que haja normas que apenas são aplicáveis ao
sujeito relativamente ao qual o ato é mercantil.

E quais são estas disposições de que falamos? Hoje, será especialmente o art.º 100 CCom.
A solidariedade de devedores só se verifica relativamente àqueles «por cujo respeito o
ato é mercantil». Suponhamos que dois comerciantes, num único contrato, compram
peças de artesanato a dois artesãos. O ato é unilateralmente comercial: a compra é
mercantil (art.º 463/1 CCom) e a venda é civil (art.º 464/3 CCom). O ato fica sujeito à
disciplina jurídico-comercial, mas os artesãos não são devedores solidários quanto à
entrega das peças.

Quanto o ato unilateralmente comercial seja contrato de consumo, aplicam-se a ambos


os contraentes as regras especiais das relações de consumo. Temos depois aqueles atos
que relativamente a um dos sujeitos são atos de consumo. Por exemplo, vamos a uma
loja comprar livros: o ato é comercial face ao vendedor, e civil da nossa parte. Mas temos
um regime específico que é o do direito do consumo. Quando assim seja, o regime do
direito do consumo absorve tudo (quer a posição do adquirente, quer a do alienante).
Nessas circunstâncias, toda a relação está regulada pelo diploma do direito do consumo.

REGIME DA TAXA DE JURO DE MORA

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

O regime das obrigações de juro consta do art.º 102 CCom. De acordo com o nº1, a taxa
de juro tem de ser fixada por escrito

Temos uma regras específica para os juros moratórios e para os juros estabelecidos sem
determinação da taxa, no nº3:
● Âmbito subjetivo do regime: estamos a falar de créditos pecuniários de que
sejam titulares empresas comerciais. O regime que temos neste momento decorre
da transposição da diretiva 2013 relativa ao atraso no pagamento das transações
comerciais e que foi transposta para o nosso OJ pelo DL 62/2013. Qual é este
regime desta diretiva? A taxa de juro corresponde à principal operação de
refinanciamento do BCE, antes de 1 de janeiro e antes de 1 de julho, acrescida de
7 pontos percentuais. Desta taxa é dada publicidade através de um aviso da direção
geral de tesouro e finanças. Depois temos um outro regime que decorre do DL
62/2013. Ela estabelece um regime específico com um valor adicional para estes
juros de mora. Nestes casos, há um acréscimo de 1 ponto percentual. Isso acontece
e quando estiverem preenchidos os requisitos subjetivos e objetivos deste
diploma:
● Que estejamos perante transações entre empresas, embora a lei tenha ampliado
aqui o conceito de empresa.
● O contrato tem de ter por objeto fornecimento de bens/serviços contra
remuneração.
Há um regime excecional relativamente àquelas obrigações pecuniárias para as
quais não tenha sido fixado prazo. A regra central é de que há vencimento
decorridos 30 dias, sem necessidade de interpelação. Esta regra varia em função
da emissão da fatura e da entrega dos bens.

REGIME DA COMPRA E VENDA MERCANTIL

O único local em que é tratada esta matéria é no manual do Dr. Cassiano.

A própria designação de direito comercial significa troca de mercadorias. Quando


falamos de fornecimento de bens, falamos essencialmente de contactos de compra e venda
em massa. A primeira coisa a sublinhar é que o regime da venda comercial não se opõe
ao regime da venda civil.

Quando é que estamos perante uma venda comercial?

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

O regime está previsto no art.º 463 do CCom. Este artigo faz uma listagem
exemplificativa de circunstâncias que levam a que uma CV seja qualificada como
comercial.
● Sempre que se trate de uma compra de coisas móveis para revenda ou compra de
coisas móveis para as alugar;
● Venda de coisas móveis, bem como de fundos públicos ou título de crédito
negociáveis, desde que essa aquisição tenha sido feita com a finalidade de
revender;
● A compra e revenda de bens imóveis ou de direitos a eles inerentes, sempre que
as compras tiverem sido feitas para revenda;
● A compra para revenda de títulos públicos emitidos pelo estado ou de outros
títulos negociáveis;
● A compra e venda de partes da sociedade ou de ações. Aqui não é necessário
qualquer intuito de revenda[2].
O art.º 464, por sua vez, vem elencar que compras e vendas não podem ser consideradas
comerciais:
● A compra de bens para serem usados pessoalmente ou de forma familiar;
● A venda de bens que resultem da atividade agrícola de uma pessoa. Esta venda é
feita com intuito lucrativo, mas não será mercantil. Por exemplo, a compra de
madeira para ser transformada numa fábrica. O Dr. Cassiano defende aqui a
aplicação do regime comercial por analogia, mas o prof não acha isso claro;
● CV realizadas no âmbito de atividade dos profissionais liberais previstos no nº3;
● CV de animais.

Regime relativo ao preço:

Em primeiro lugar, temos o regime relativo ao preço – art.º 466 CCom. A CV, quer civil
quer comercial, exige sempre um preço. No âmbito do direito comercial trata-se
necessário que decorra do contrato um critério de determinabilidade do preço ou então a
indicação de um terceiro que o determine. Se tal não acontecer, o contrato não tem
eficácia. No regime de direito civil (art.º 883 CC) é ligeiramente diferente: a não fixação
do preço leva a que possa ser fixado o valor de mercado do bem e, em última instância,
pelo tribunal segundo juízos de equidade, mas não impede a eficácia do contrato.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Porquê esta diferença de regimes? O regime comercial foge à equidade porque o lucro
não é consentâneo com ela: à partida, não funciona de forma plena no âmbito comercial
pois aqui visa-se o lucro e as partes gostam de saber o preço que vão pagar pelos bens.

Regime relativo à venda de coisa alheia:

Relativamente à venda de coisa alheia, no direito civil esta é nula (art.º 892 CC). no
âmbito do direito comercial, a venda de bens alheios não é nula (art.º 467, 1º parágrafo),
é válida. Contudo, nasce daqui uma obrigação para o vendedor: ele tem de adquirir a coisa
para a entregar depois a outro sujeito. Se não o fizer, responde contratualmente, pois do
contrato nasce a obrigação de adquirir e entregar. Se não o fizer, tem de indemnizar pelo
interesse contratual positivo. O regime é idêntico sempre que for uma CV de bens
seguros.

Art.º 1301 CC: Este artigo, ligado à venda de bens alheios, vem-nos dizer que se
estivermos a falar de um bem que foi vendido no âmbito da atividade de um comerciante,
o terceiro que adquiriu esse bem pode ficar obrigado a entregar esse bem ao real
proprietário do mesmo, desde que este proprietário lhe pague o preço que ele pagou ao
comerciante. Temos 3 personagens para este artigo:

● A – Proprietário original
● B – Comerciante que tem como atividade a venda de um bem específico
● C – Terceiro de boa fé que adquire um determinado bem

A Bosch produz 300 micro-ondas e vende-os à Worten. E vende os bens sob reserva de
propriedade. A propriedade só se transmite à Worten quando esta pagar. Para a Worten
fazer dinheiro com estes micro-ondas tem de vendê-los primeiro. E paga à Worten e à
Bosch o dinheiro que fez com eles. O CC não permite isto; o CCom permite.

O CC diz que se alguém vai à Worten e compra um destes micro-ondas se estiver de boa
fé, pode a Bosch ir exigir-lhe o micro-ondas de volta. Mas, para poder exigir de volta o
micro-ondas, é exigido que a Bosch pague ao terceiro o preço que o terceiro pagou à
Worten.

Regime relativo à venda sobre amostra ou por designação padrão

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Sempre que estivermos face a uma venda feita sob amostra ou fazenda ou se a coisa se
determinar só por uma qualidade conhecida no comércio, essa venda é sempre feita
sob condição de a coisa depois entregue ser conforme/idêntica ou àquela da amostra ou
da qualidade que define a coisa (art.º 469 CCom).

Regime relativo às coisas que não estejam à vista nem possam designar-se por um padrão

Depois, há uma outra modalidade de venda no art.º 470. Este artigo refere-se àquelas
coisas que não tenham sido compradas à vista (com o sujeito ali a vê-las à frente) ou por
uma qualidade definida no comércio (ex.: parafuso 5 mm de aço). Estas compras são
feitas sob condição de o comprador poder fazer cessar o negócio se depois de as examinar
elas não lhe convierem.

Temos a regra fundamental do art.º 471. Suponhamos que o sujeito adquire uma coisa
definida em termos de qualidade do comércio (por exemplo um berbequim com a potência
x). Sendo-lhe a coisa entregue, no caso de ele não os examinar no prazo de 8 dias, o
contrato consolida-se. Isto acontece por ele não ter examinado as coisas na data em que
lhe foram entregues; mas pode acontecer que o vendedor exija ao comprador que as
examine imediatamente quando lhe entregar as coisas- medida de proteção da
estabilidade das transações. Mesmo que se verifique uma desconformidade
posteriormente, como houve esta exigência, depois não poderá fazer cessar o NJ.

Regime relativo à entrega da coisa

Relativamente ao prazo para entrega da coisa, nos termos do art.º 473 do CCom há
duas possibilidades:

● Se a coisa foi vendida à vista, deve ser entregue no prazo de 24 horas;


● Se a coisa não foi vendida à vista e se não tiver sido determinado o prazo, o prazo
terá de ser determinado judicialmente.

Se não for necessário prazo, aplica-se o regime geral e a obrigação é pura.

No que diz respeito ao regime civil (art.º 777), se o prazo não tiver sido determinado, o
credor pode exigir o preço a qualquer altura.

Resolução do contrato de CV:

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Também tem um regime parcialmente distinto no CC e no CCom.

No CC, o regime aplicável ao contrato de CV. Se não houver incumprimento definitivo,


pode haver resolução. O art.º 886 diz que reunidos certos pressupostos, a resolução deixa
de ser possível: entrega da coisa, transmissão da propriedade, inexistência de cláusula em
sentido contrário, a resolução fundar-se no não pagamento do preço.

Suponhamos que eu tenho um pomar e tinha combinado com a Compal que lhes ia vender
a minha fruta e que eles iam fazer uma edição especial do sumo tutti frutti dedicado ao
meu pomar. Eles compraram a fruta e eu entrego. Mas a edição especial nunca mais chega.
Eu posso resolver o contrato de compra e venda? o art.º 886 parte do pressuposto que o
incumprimento é o do preço. aqui não foi o preço que não foi pago. Só se aplica o art.º
886 quando estão reunidos os 4 requisitos. Estavam aqui todos preenchidos menos 1: o
incumprimento não era fundado no não pagamento, mas numa outra obrigação.

Vejamos o art.º 934 que prevê uma regra ainda mais especial para a resolução do contrato
quando este contrato for um contrato de compra e venda a prestações. mesmo que tenha
havido reserva de propriedade e tenha sido feita a entrega do bem, o vendedor só tem
direito a resolver o contrato por não pagamento do preço quando este não pagamento
incidir sobre duas prestações ou sobre uma prestação de valor superior à oitava parte do
preço.

O regime do CCom é bastante mais limitado, o que significa que muitas vezes este regime
do CC se vai também aplicar às CV mercantis.Neste âmbito, temos o art.º 474. Diz-nos
que, na falta de pagamento do preço e na medida em que não tenha havido ainda entrega
da coisa, pode o vendedor fazer uma de duas coisas:

● Depositar a coisa;
● Vendê-la em hasta pública, sendo que do produto da venda vai ficar com o valor
que lhe é devido pelo comprador e o restante, se existir, terá de devolver ao próprio
comprador; ou se se tratar de um bem com valor fixado em bolsa ou com valor de
mercado, fazê-lo vender ao preço corrente.

Entrega da fatura e do recibo:

Neste âmbito temos o art.º 476. O comprador tem de emitir fatura e tem de a entregar
com as coisas – a fatura discrimina as coisas e o preço. Com a fatura é liquidado o IVA.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Este regime tem uma importância acrescida por causa dos atrasos de pagamento das
transações comerciais. Em certos casos, este prazo de 30 dias decorre da entrega da fatura
e não da entrega das mercadorias. O vendedor tem que emitir fatura e tem que entregá-la
em conjunto com as coisas. Isto decorre do CCom. Este regime tem uma importância
acrescida por causa dos atrasos de pagamento nas transações comerciais. Em certos casos,
esta entrega de mercadorias decorre da entrega de fatura.

Regime específico da venda com reserva de propriedade

O caso mais relevante desta venda é precisamente no âmbito da venda comercial, uma
vez que nesta acontece frequentemente o crédito comercial (é entrega a coisa, mas dá-se
um prazo para se pagar). De acordo com o regime geral de Direito Civil, a venda comporta
a automática transferência da propriedade (art.º 879 CC). ele vendeu- transmitiu- a
propriedade (artigo 876º CC) ele não pode resolver o contrato por falta de pagamento do
preço e só lhe resta um crédito comum.

Ora, no âmbito comercial isto não é propriamente eficiente, pelo que o que ele pode fazer,
se possível, é introduzir uma reserva de propriedade que é conhecida em termos económicos
como a garantia do comerciante. Assim, ele pode vender, entregar e se o outro não pagar
ele pode resolver o contrato e exigir que a coisa lhe seja restituída, uma vez que a coisa ainda
é do vendedor. Pode, inclusive, permitir o pagamento de prestações.

Esta venda é importante não só em Portugal, mas em todo lado (Exemplo: um sujeito
vendia máquinas para exportação, mas com reserva de propriedade).

Acontece, no entanto, que aquilo que o legislador deu com uma mão acabou, em parte, a
tirar com a outra porque foi criar um regime no âmbito dos direitos reais- artigo 1301º
CC- que visa proteger o comprador.

Suponhamos que compramos uma máquina de lavar e pagamos. Ora, nunca nos passa
pela cabeça se o sujeito a quem compramos a comprou com reserva de propriedade. Ora,
se a coisa ainda não era do nosso vendedor, este vendeu uma coisa alheia e nós não
compramos nada. Ora, daí que no âmbito daquele artigo, aquele que adquirir a
comerciante e se estiver de boa fé (desconhecer que o comerciante não é dono e não se
tratar de um bem sujeito a registo, caso em que se tem de registar a reserva), o comprador

19
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

pode recusar-se face ao titular do bem- vendedor inicial- a entregar-lhe o bem, enquanto
esse vendedor não lhe pagar aquilo que ele próprio pagou por ele.

O vendedor inicial pode recusar-se a entregar o bem enquanto o vendedor não lhe pagar
aquilo que ele próprio pagou por ele. Por outras palavras, temos um sujeito- imaginemos
um revendedor- que vende uma bike por 500 euros. Enquanto ele não pagar, ele pode
exigir-lhes que lhe entregue a bike porque há reserva de propriedade.

[1] Por exemplo, para explicitar, a fiança será um ato acessóriamente comercial quando
seja comercial a obrigação que se pretende garantir.

[2] Onde se lê «partes ou ações de sociedades comerciais» no parágrafo 5, deve ler-se «participações sociais». Estas
incluem as quotas das sociedades por quotas. Porque é que estas compras são na mesma mercantis? Primeiro pelo seu
objeto: são partes da sociedade comercial. Mas, para além disso, à partida, uma participação numa sociedade comercial
tem como objetivo o lucro que se vai receber da própria sociedade comercial.

COMERCIANTES

Os atos de comércio podem não ser praticados por comerciantes. A CV de um


carro para revender é um ato objetivamente comercial, mas que pode perfeitamente ser
praticado por um não comerciante. Comerciante será todo o sujeito (singular ou coletivo)
com capacidade para praticar atos de comércio (art. 7º CCom).

Se ele for comerciante, tem um estatuto próprio: tem de adotar uma firma, tem
de ter escrituração mercantil, tem de estar inscrito no registo comercial; tem de dar
balanço e prestar contas (art. 18º CCom).

Os comerciantes são as pessoas singulares que, tendo capacidade para praticar


atos de comércio, fazem deles profissão. A profissionalidade consiste no exercício
habitual de uma atividade económica como meio de vida.

As sociedades comerciais têm por objeto a prática de atos comerciais e adotam


um dos tipos previstos no CSC (em nome coletivo, em comandita, por quotas ou
anónima). As SC só adquirem personalidade jurídica através do registo (5º CSC

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

O direito comercial não tem uma unidade interna, sendo um conjunto de temas
que se desenvolveram histórica e culturalmente.

Em princípio, não podem ser consideradas comerciantes o Estado, administração


central, administração autárquica e RA. Podem, até, praticar atos de comércio, mas não
são comerciantes. O mesmo sucede com as pessoas coletivas que tenham por objeto a
prática de atos não comerciais (atividade agrícola); os artesãos e os profissionais liberais
(pessoas singulares que exercem, de forma habitual e autónoma, atividades
essencialmente intelectuais, suscetíveis de regulamentação e controlo próprio – por via
das ordens profissionais ou de câmaras); as pessoas coletivas cujo objeto consiste no
desenvolvimento de atividades profissionais liberais; os comerciantes autónomos como
escultores, pintores, artistas, músicos.

As pessoas coletivas institucionais (IP, serviços personalizados ou as fundações)


também não são comerciantes – sem prejuízo de terem empresas comerciais. Ex. a UP
pode ter uma livraria (o facto de explorar a livraria reflete-se na prática de atos comerciais,
sem a UP ser, por esse facto, comerciante).

As EPE têm um regime definido, essencialmente, pelo direito privado, podendo


ser titulares de empresas comerciais. Mas podem ser classificadas como comerciantes?
Nos termos do 13º Cód. Comercial, isso implica fazer do comércio profissão (desenvolver
autonomamente uma atividade de forma habitual, em princípio para obter lucro). Estas
entidades não visam a obtenção de lucro e, por isso, não são comerciantes. Estas figuras
são formas de intervenção do Estado na economia, mas existem outras: sociedades de
capitais públicos e até anónimas.

As cooperativas, por sua vez, não visam o lucro (podendo, todavia, ter excedentes) –
podem ser titulares de empresas comerciais, mas não são comerciantes por não visarem
o lucro

Visam o lucro as sociedades constituídas mas que ainda não tenham sido
registadas – têm já uma capacidade de gozo e de exercício para a prática de atos de
comércio, mas não sendo os sócios que os praticam.

V. COUTINHO DE ABREU nesta matéria

DIREITO BANCÁRIO

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

É uma disciplina do direito comercial. É um ramo que inicialmente estava limitado a


algumas normas, mas desenvolveu-se bastante, uma vez que bancos passaram a fazer
parte da sociedade económica. O conjunto de operações praticado pelos Bancos alargou-
se atingindo grandes graus de complexidade.

Elementos caracterizadores do Direito Bancário

Num primeiro momento, há que detetar quais os elementos caracterizadores do Direito


Bancário.

Em primeiro lugar, a doutrina tradicional sustenta unanimemente a autonomia do direito


bancário. Este esforço de precisão analítica é do maior relevo também para separar o
direito bancário daquele ramos do direito que lhe está mais próximo, o dos valores
mobiliários, porque a atuação dos bancos pode, e quase sempre assim sucede,
compreender também o exercício de atividades de intermediação financeira, estando
regulada pelo CVM e os bancos sujeitos à supervisão da CMVM.

Atendendo somente ao elemento subjetivo, são atividades bancárias aquelas que podem
ser praticadas pela banca, embora não sejam direito bancário. Focando-nos apenas no
conjunto de atividades que os bancos podem desempenhar, rapidamente vemos que
algumas delas nada têm a ver, nem com especialidades do comércio bancário, nem com
a atividade financeira em geral. É o que sucede com a simples locação de bens móveis.

Podemos desde já afirmar que o cerne do direito bancário consiste na atividade que só
é e só pode ser desenvolvida pelos bancos: a intermediação financeira. Mais
recentemente, junta-se aqui também a função de intermediário no seio do sistema de
pagamentos.

Relativamente à função de intermediário financeiro: os bancos são as únicas


entidades que podem receber depósitos e ao mesmo tempo conceder crédito. Assim, o
banco recolhe de poupanças, ou se se preferir de recursos financeiros, através de
depósitos, de que fica devedor, e concede crédito, por via de diversos contratos, dos quais
resulta sempre um crédito pecuniário sobre o creditado. O banco recorre assim em termos
técnicos a duas grandes modalidades contratuais: os depósitos, em sentido amplo, e os
diversos contratos de crédito (principalmente o mútuo, mas também aberturas de crédito,

22
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

locação financeira, desconto, etc.). A concessão dos créditos por parte dos Bancos é feita
a entidades coletivas, a particulares e ao próprio Estado.

É ainda importante referir que os bancos criam moeda. Não se trata de moeda legal com
efeito liberatório legal, composta, como se sabe, em notas e moedas que consiste num
monopólio estatal. Os bancos, entes privados, criam moeda escritural, que consiste em
saldos de contas bancárias. Essa criação tem limites, dos quais são especialmente
relevantes os que decorrem da política monetária. Assim, por exemplo, a concessão de
um crédito decorrente de um empréstimo concedido ao banco cira moeda, porque vai
levar à constituição de um crédito a favor do mutuário e do correspondente depósito.
Nessa medida, é a concessão de crédito que cria a moeda e que, portanto, gera os
depósitos, ou seja, os novos créditos a eles correspondentes. A concessão de crédito é que
gera o depósito e conduz à criação de moeda escritural.

Relativamente à função de intermediário no seio do sistema de pagamentos: o


desenvolvimento tecnológico, em especial da informática, ao permitir o pagamento de
volumes enormes de dados em massa, conduziu à criação de sistemas de pagamento que
passam pelo sistema bancário sem que se manuseie moeda legal. Na verdade, os
pagamentos de bens/serviços fazem-se hoje de conta a conta, através de transferências,
de débitos diretos, da utilização de cartões de débito e cartões de crédito, etc..

Vimos, portanto, que o ponto central da atividade bancária é a recolha de depósitos do


público e a concessão profissional de crédito e que, hoje em dia, o desenvolvimento dos
sistemas de pagamentos é também um ponto característico das suas atividades. Porém,
estas atividades não esgotam a atividade bancária, tal como demonstra o art.º 4 RGICSF.
Há um outro motivo que torna os Bancos centrais na economia moderna: os Bancos não
estão limitados às suas funções tradicionais, podendo desempenhar um conjunto de
funções muito mais alargado (intervenção no mercado de capitais, intervenção no
mercado de valores imobiliários)

Temos de mencionar que há um conjunto de sistemas interligados entre si: o sistema


bancário, sistema financeiro e mercado de capitais em que os principais atores são sempre
as instituições de crédito; depois temos o mercado de valores imobiliários que culmina
no facto de existirem grandes conglomerados financeiros.

Relação Bancária

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Um sujeito, pessoa coletiva ou singular (o cliente), celebra um conjunto amplo de


contratos bancários. Eles são do maior relevo tanto na vida das empresas como dos
consumidores em geral. Esta relação é uma relação a longo prazo.

A relação de um sujeito com o banco não se esgota num único contrato de abertura de
conta. Ela passa pela celebração de múltiplos contratos, de conta corrente, de cheque, de
cartões, de transferências, de crédito, etc..

A questão que se coloca consiste em determinar se, para além destes contratos singulares,
as partes não estariam ligadas por um contrato, o contrato bancário geral, que fundaria
a relação de negócios entre eles.

É do contrato de abertura de conta nasce a relação bancária, uma relação complexa,


duradoura, integrada por múltiplos direitos e deveres e, depois, pela celebração com
maior ou menor intensidade de posteriores contratos entre o banco e os outros clientes. É
através deste contrato que o cliente tem acesso à moeda escritural. A relação bancária
assenta neste contrato que deve ser qualificado como um contrato-quadro já que ele
baliza a relação entre o cliente e o banco e é no seu seio que se desenvolvem depois outros
contratos. Uma parte muito relevante deste contrato-quadro e com efeito imediato são os
serviços de pagamento (transferências, cartão de débito, débito direto). Neste contrato-
quadro, é essencial tratarem-se os deveres das partes, com especialmente enfoque para os
deveres de aconselhamento e informação do banco.

O contrato bancário é um contrato-quadro. Esta figura do contrato-quadro nasceu em


França no âmbito dos contratos de substituição. Essa figura foi criada para explicar uma
relação duradoura em que as partes iam ao longo do tempo celebrando vários contratos.
Aqui a figura é usada para explicar o contrato bancário. No âmbito desta relação, vão
sendo celebrados distintos contratos entre o cliente e o banco.

Um dos aspetos mais relevantes deste contrato quadro são os serviços de pagamento, uma
vez que é neste âmbito que eles vão sendo celebrados.

Conteúdo do contrato de abertura de conta

No contrato de abertura de conta:


● Insere-se a conta corrente;

24
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

● Alguns elementos de mobilização a crédito e a débito da conta: depósitos num


sentido amplo, débito direto, cartão de débito e transferências bancárias;
● Por vezes, daí decorre a conta de valores mobiliários (caso o sujeito queira
negociar mais tarde determinados valores mobiliários).

Alguns destes contratos podem, e muitas vezes são, de imediato concluídos entre o cliente
e o banco. O que significa que se alarga ab initio a amplitude do relacionamento entre as
partes.

Temos também um conjunto de negócios que potencialmente podem ser realizados pelas
partes:
● Contratos de hipoteca;
● Contratos de abertura de crédito;
● Mútuo;
● Contrato de cheque.

Nota: O regime do contrato, em parte, está previsto em diversos diplomas. Se estivermos,


por exemplo, face ao crédito ao consumo, nessa parte, e sempre que no âmbito da relação
bancário seja concedido crédito ao consumo, ele está regulado na lei específica (lei do
crédito ao consumo). Sempre que estejamos face a operações que se incluam no âmbito
dos valores mobiliários, nesse caso o banco atua como intermediário financeiro e está
sujeito ao código dos valores mobiliários (CVM).

Os deveres de informação e aconselhamento

Atendendo à relação de confiança que se cria entre as partes, ou melhor do cliente no


banqueiro, a quem aquele comete a gestão de grande parte da sua vida patrimonial,
decorrem deveres de informação, proteção do património e de aconselhamento.

Alguns deles decorrem da lei em termos gerais, como o dever de informação (art.º 77
RGICSF), ou em âmbitos mais restritos, como no crédito ao consumo (art.º 6 e 7 do DL
133/2009). O art.º 77 RGICSF que impõe deveres de informação, sendo que este dever é
sempre intensificado quando estivermos perante crédito ao consumo; e também o art.º 74.
Por outro lado, o art.º 74 RGICSF impõe ao banco o «respeito consciencioso dos
interesses que lhe estão confiados».

25
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Nota: O STJ tem já jurisprudência recente quanto aos deveres dos intermediários
financeiros.

Se estivermos perante uma relação bancária ou perante uma relação em que estejam em
jogo apenas produtos bancários e não produtos financeiros, o regime é um. Se estivermos
já no âmbito de aplicação do CVM temos regras específicas, e aí há um dever de avaliação
do caráter adequado da operação. Nesse dever de adequação há mesmo um dever de
informar a outra parte quando haja desadequação ao art.º 314/1 e 2 do CVM.

A existência e extensão de eventualmente deveres de aconselhamento, decorre de vários


aspetos que nos permite concretizar um modelo.

Em primeiro lugar, é de salientar o caráter duradouro da relação bancária que tem


uma estrutura fiduciária muito intensa. Falamos de uma relação de confiança que existe
entre o cliente e o banco que se solidifica numa relação que se desenvolve ao longo do
tempo. Temos de ter em conta que o sujeito não pode participar na vida económica sem
ter uma vida bancária.

Em segundo lugar, será de referir que os deveres de informação, proteção e


aconselhamento que acima vimos, ainda que não estejam diretamente previstos na lei,
podem resultar de exigências da boa fé.

Temos de ter em conta também o chamado eventual desnível de informação. Ou seja,


de acordo com aquele cliente específico, em função das suas próprias características, a
intensidade daqueles deveres pode variar. É que o nascimento e conformação destes
deveres depende das circunstâncias concretas, nomeadamente da duração da relação
contratual, dos negócios em si e, em particular, da qualidade da contraparte do banco. É
diverso um consumidor, um pequeno comerciante ou uma sociedade anónima. Neste
último caso, os referidos deveres são mais limitados, pois esta tem mais conhecimentos
para se tutelar. Em Portugal, a iliteracia financeira é muito grande.

Ora, o cliente espera que o banco o auxilie a defender os seus interesses patrimoniais e
espera também algum aconselhamento. E o banco sabe que é isto que o cliente espera. É
assim que surgem estes deveres de informação, proteção do património e
aconselhamento.

26
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

É de notar que estes deveres não exigem para a sua constituição em concreto uma ação
do cliente, mas, muitas vezes, uma iniciativa da instituição de crédito. Em particular
quando esta saiba que o cliente não tem capacidade para tomar as iniciativas necessárias.
Este aspeto tem de ser precisado: é que não basta um défice de informação por parte do
cliente. Sabendo da sua existência, das suas insuficiências, é ele que deverá procurar as
informações e aconselhamento, adequado a formular o seu juízo. Se a pessoa não tem
capacidade para superar o défice de informação através da colocação de perguntas
adequadas, aí sim há um dever de iniciativa de esclarecimento por parte do banco. Isto
decorre do art.º 77 que há pouco vimos, mas também no art.º 762/2 porque temos um caso
de boa fé intensificada pela relação de confiança.

Por exemplo, um sujeito tinha duas contas num banco: uma conta corrente e uma conta
caucionada relativamente à qual estava a prestar juros. O banco não o informa que existe
valor positivo numa conta e que pode fazer transferências de uma para a outra, o que
diminui os juros. Aqui há claramente uma falta de informação por falta do banco.

No regime de serviços de pagamento, o banco responde perante um certo valor. Mas o


banco não responde se o cliente tiver atuado com negligência grosseira. Um caso claro é
um sujeito pagar um cartão multibanco e ter consigo um papel com o código do cartão. É
preciso ver o caso concreto, obviamente. Se falarmos de uma pessoa com escassos
conhecimentos tecnológicos e que usou sempre dinheiro (por exemplo, uma pessoa
idosa), aqui não podemos considerar estar perante um caso de negligência grosseira,
atendendo ao caso concreto. Portanto, em muitos destes casos, também há um dever de
informação face ao cliente.

Importa, por último, advertir que uma coisa é a existência destes deveres e outra coisa são
as decisões que cada um, cumpridos os deveres do banco (na medida e com a extensão
que existam), têm que tomar. Essas só são da sua inteira responsabilidade, assim como
são seus os riscos que corre. Ou seja, um sujeito informado toma uma decisão, é ele que
comporta os riscos que dela advêm, não podendo tentar transferir esse risco para um dever
de informação.

Vamos agora analisar os vários contratos de crédito.

CONTRATOS DE CRÉDITO

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Em termos jurídicos, é difícil a construção da figura do contrato de crédito. Mas


encontramos algumas noções decorrentes da lei. Por exemplo, existe uma noção de
crédito para efeitos de crédito ao consumo; no âmbito de um conjunto de contratos onde
se disponibiliza fundos, ou há uma promessa de fazê-lo, ou há uma eventual obrigação de
o fazer.

A construção desta categoria, em termos genéricos, na lei é desnecessária e indesejável,


uma vez que a figura dos contratos de crédito é muito ampla, englobando figuras bastante
diversas, sendo que é difícil retirar daqui elementos comuns. A extensão máxima desta
conceção de crédito está prevista no art.º 559-A do CC.

É de destacar o papel central do mútuo pecuniário oneroso no seio dos contratos de


crédito. De forma significativa, e com enorme relevância prática, a lei estende o regime
dos juros usurários previsto no mútuo a toda a concessão de crédito previsto de forma
amplíssima no art.º 559-A CC.

A generalidade dos contratos de crédito assenta ou em elementos do mútuo ou são


autênticos mútuos. Vejamos alguns exemplos:
● Antecipação bancária: contrato misto, com elementos de mútuo;
● Na abertura de crédito, as mobilizações de capital podem fazer-se por meio de
mútuos, ou contratos próximos deste;
● O desconto é um contrato misto onde se articulam elementos de mútuo com um
mandato para cobrança;
● O factoring, em que os contratos de segundo grau pelos quais seja concedido
crédito à contraparte do factor são negócios mistos com elementos de mútuo;
● Os depósitos a prazo constituem um dos elementos centrais na concessão de
crédito à banca, ou são mútuos, ou são contratos de crédito próximos deste.

Vamos, então, começar a ver o regime do contrato de mútuo.

MÚTUO

A modalidade de mútuo que interessa para o nosso estudo é o mútuo pecuniário oneroso.
O mútuo é o modelo básico dos contratos de crédito. Isto não significa que não haja
contratos de crédito que não sejam mútuos (como é o caso da locação financeira, que não
tem elementos deste contrato).

28
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

O regime do mútuo comercial assenta no regime de mútuo civil. O mesmo sucede com o
mútuo bancário.

a) Mútuo civil (art.º 1142 e ss do CC)

O mútuo é o modelo básico dos contratos de crédito. O mútuo é um contrato unilateral,


real quanto à sua constituição, «pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou
outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outra tanto do mesmo género
e qualidade» - art.º 1142 CC. Esta retribuição consistirá, na maior parte das vezes, em
juros.

O seu objeto são coisas fungíveis, das quais se dá especialmente relevância ao dinheiro.

O mútuo pode ser:


● Gratuito: tem uma importância prática relevante, gozando de grande difusão nas
relações de solidariedade entre pessoas próximas (relações familiares, de
amizade).
● Oneroso: nestes casos, o mútuo é retribuído. Esta retribuição será feita sob a
forma de juros – art.º 1145/1 CC.

Contudo, estão ainda dentro dos limites do mútuo aqueles casos em que as retribuições
não constituem juros. A retribuição do mutuante pode consistir em parte dos lucros
decorrentes da utilização da quantia pelo mutuário (por exemplo, nas operações de project
finance quanto aos lucros da sociedade veículo ou da sociedade cuja recuperação se
financia). Trata-se de uma prestação retributória atípica. Estamos face a uma
modalidade de negócio parciário.

O contrato de mútuo presume-se oneroso – art.º 1145/2, 2ª parte CC. O Dr. Pestana
Vasconcelos não percebe o porquê desta presunção: na realidade deparamo-nos muitas
vezes com mútuos gratuitos.

O mútuo pode ou não ser garantido. Ou seja, o crédito à restituição do capital e,


eventualmente, ao pagamento de juros, pode estar tutelado por uma garantia. Essa pode
ser pessoal (por exemplo, uma fiança), real (por exemplo, um penhor ou uma hipoteca)
ou assente na titularidade de um direito (por exemplo, a cessão de créditos em garantia).
Em regra, sendo um contrato bancário, essa restituição deve estar garantida, como forma
de tutelar a posição do banco. No âmbito das sociedades comerciais, é comum os

29
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

empréstimos da sociedade estarem garantidos por garantias pessoais dos sócios, muitas
vezes por via de letras/livranças em branco avalizadas. Se a sociedade restituir o crédito,
há uma abertura de crédito e pode o banco demandar e atingir o património pessoal dos
sócios e, eventualmente, o património dos cônjuges destes.

O mútuo pode ser simples ou de escopo. Será simples quando o mutuário não assume
qualquer dever quanto ao destino da quantia emprestada; será de escopo quando a
contraparte do mutuante se obriga a emprestar essa quantia para um determinado fim. A
empresta a B 1000 euros para ele fazer o que ele quiser; A empresta a B 1000 euros para
ele comprar uma casa.

O mútuo, tal como a nossa lei o prevê, é um contrato real quanto à sua constituição.
Isto significa que o contrato não está concluído enquanto, para além das declarações de
vontade, não for também feita a entrega da coisa, do dinheiro, ao mutuário.

Concluído o contrato, mesmo que se tenham acordado juros, as obrigações daí


decorrentes estão unicamente a cargo do mutuário: pagar os juros e restituir o capital. Daí
que o mútuo seja uma contrato unilateral.

Nada obsta, porém, a que se celebre um contrato de mútuo consensual atípico, ao abrigo
da liberdade contratual. Este será um mútuo atípico. Nesse caso, já será um contrato
bilateral, sinalagmático. Este é um mútuo atípico. Neste caso, o mútuo não será real
quanto à sua constituição. Obtido o acordo, o contrato conclui-se, daí decorrendo a
obrigação para o mutuante de entregar o capital. Caso não o faça, a outra parte pode
recorrer à ação de cumprimento (o que fortalece a sua posição face ao mútuo real, em que
a defesa dos interesses do mutuário antes da entrega é bastante mais ténue).

Notamos que, se estivermos perante um mútuo bancário, o crédito em conta realizado


pelo banco na conta do mutuário, constitui entrega. O que está em jogo nesses casos é só
moeda escritural, sendo ela o objeto do contrato.

Contrato promessa de mútuo

No contrato-promessa de mútuo, as partes vinculam-se a só no futuro celebrar um


contrato de mútuo (típico ou atípico). Notamos, contudo, que não é admissível o recurso
à execução específica no caso de incumprimento por parte do mutuário. É que a lei

30
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

configura o mútuo como um contrato real, exigindo para a celebração do contrato a


entrega pelo mutuante da coisa, sendo por isso um ato livre.

Contudo, não se pode dizer que a recusa da entrega seja despida de consequências. Na
verdade, se ela não se realizar ou não for aceite, haverá lugar à responsabilidade pré-
contratual, mas, ainda assim, não pode haver substituição do tribunal ao mutuante.
Acresce que a execução específica, tal como prevista no art.º 830, não permite obter esse
resultado. Os meios de reação do promitente-mutuário estão limitados à indemnização.

Quando se trate de um contrato de mútuo atípico, nada obstará à execução específica.

No que diz respeito à forma:


● Mútuo civil de valor superior a 25.000 €: escritura pública ou documento
particular autenticado (art.º 1143 CC);
● Mútuo civil de valor superior a 2 500 € e inferior a 25.000 €: documento assinado
pelo mutuário (art.º 1143 CC);
● Mútuo civil de valor inferior a 2 500 €: não há qualquer exigência de forma;
● Mútuo oneroso em que se acordam juros superiores à taxa legal: essa convenção
tem de ser reduzida a escrito sob pena de só serem devidos os juros legais (art.º
559/2 CC).

Elemento essencial do contrato de mútuo é a transferência da propriedade das coisas


mutuadas do património do mutuante para o património do mutuário – art.º 1144 CC. O
credor deixa de ser titular das quantias e passa a ser simplesmente titular de um crédito à
restituição das quantias. É esse elemento, o crédito, que substitui as coisas, o dinheiro, no
seu património. Daqui resulta uma maior vulnerabilidade do credor. Em caso de
incumprimento, se não houver garantias pessoais, não há nenhuma forma específica de
tutela deste crédito. Em última instância, é através da execução do património do mutuário
concorrente com os outros credores.

O mútuo é, por natureza, um contrato que exige um período mínimo de tempo de gozo
do bem por parte do mutuário. Esse prazo, na interpretação que o Dr. Pestana
Vasconcelos faz do art.º 1148/2, terá de ser de pelo menos 30 dias.

Há contratos que são os de «crédito à vista»: significa que o mutuante pode, a qualquer
momento, exigir a restituição da quantia. Esses contratos são admissíveis ao abrigo da

31
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

liberdade contratual, mas não são contratos de mútuo: são contratos de crédito atípicos.
O mútuo exige sempre um determinado período de tempo para ser usada a quantia. Temos
um prazo estipulado para ser cumprida a obrigação de reembolso.

Suprimentos – figura próxima do mútuo

Falamos de uma figura muito importante no âmbito das sociedades comerciais. Este
regime é típico de financiamento das sociedades comerciais e está previsto e regulado no
art.º 243 do CSC.

Os suprimentos podem consistir em:


● Empréstimos feitos pelos sócios à sociedade, obrigando-se depois a sociedade à
restituição.
● Deferimento de créditos. Por exemplo, há um sócio que vende uma certa
mercadoria à sociedade. Com isto, esse sócio passará a ter um crédito sobre a
sociedade: o direito ao pagamento do preço. Suponhamos que esse preço se vence
no dia 1 de março de 2019. Ora, o sócio pode acordar com a sociedade o
deferimento, ou seja, o alargamento do prazo para 1 de março de 2020.

Para que estejamos perante um contrato de suprimento, a lei exige um caráter de


permanência – art.º 243/1 CSC). Há algumas presunções ilidíveis de permanência. Uma
das presunções é o período de tempo: 1 ano.

Este contrato de suprimento é um contrato de empréstimo especial porque o legislador


pretende proteger os credores da sociedade. Os sócios conseguiam, através de
empréstimos, muitas vezes, alterar, prejudicando os credores, aquilo que era o capital
próprio da sociedade. Por exemplo, se quisessem esvaziar uma sociedade, emprestavam
dinheiro à mesma e cobravam juros altíssimos. Assim, quando os demais credores dessa
sociedade viessem cobrar os seus créditos, esta já não tinha tanta liquidez.

A restituição dos suprimentos pode ser realizada a qualquer altura. Porém, o seu regime
é extremamente desfavorável:
● Os credores dos suprimentos, ou seja, os sócios, não podem requerer a insolvência
da sociedade;
● Perante a declaração de insolvência da sociedade, os créditos de suprimentos são
os últimos a ser pagos;

32
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

● Uma vez declarada a insolvência da sociedade, os sócios não podem operar


compensação com créditos que obtenham dos suprimentos.

Os sócios podem querer proceder ao pagamento dos suprimentos antes da declaração de


insolvência. Para não permitir isto, o legislador criou o art.º 245/5 CSC.

Os sócios podiam ainda, perante os seus créditos, pedir garantias reais à sociedade e dizer
«eu só te empresto 10000 € se ficar com uma hipoteca sobre o imóvel da sociedade». Isto
faria com que, perante a declaração de insolvência, enquanto credores com uma garantia
real, os sócios passassem à frente dos restantes credores ordinários, prejudicando-os a
todos. Para evitar isto, temos o art.º 245/6 CSC.

Natureza das obrigações do mutuário no mútuo oneroso

O mutuário é obrigado à restituição do capital e ao pagamento de juros. Acontece, no


entanto, que estas obrigações têm naturezas distintas:
● O pagamento dos juros tem por objeto prestações duradouras reiteradas
periódicas. Elas vão-se constituindo com o decurso do tempo. Visam remunerar a
cedência de um certo montante de capital por um determinado período de tempo.
● A restituição do capital constitui uma obrigação com prestação instantânea.
Muitas vezes, fraciona-se esta prestação, amortizando-se o capital ao longo do
tempo.

Se o devedor incumprir e o contrato for resolvido, não há lugar a qualquer restituição dos
juros já recebidos – art.º 434/3. Igualmente, não há perda do benefício do prazo
relativamente aos restantes juros que ainda não se constituíram, tal como decorre do AUJ
25/3/2009 (Cardoso de Albuquerque). Segundo este acórdão, o vencimento da obrigação
de restituição, por implicação do art.º 871, não implica o vencimento dos juros futuros
que não se constituíram ainda. Por exemplo, A celebra com B um contrato de mútuo por
3 anos a uma taxa de juro anual de 3%. Suponhamos que, decorrido 1 ano, cesse o
contrato. A obrigação de restituir a quantia emprestada vence-se imediatamente.
Relativamente aos juros, só são devidos os juros que correspondam ao ano durante o qual
o contrato esteve em vigor. Os juros relativos ao 2º e 3º ano não podem ser exigidos
porque eles não se venceram; o que é há é uma mera expectativa da sua aquisição.

Prazo

33
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

As partes podem ter acordado num prazo ou ter concluído o contrato sem prazo (caso não
se tenha fixado prazo, vigora a regra do art.º 1148 CC).

Caso tenha havido fixação de prazo, este presume-se estipulado a benefício de ambas as
partes. Permite-se, porém, que o mutuário antecipe o pagamento, desde que satisfaça os
juros por inteiro (art.º 1147 CC), o que tutela o interesse do credor à sua perceção. Ou
seja, o mutuário, caso queira pagar antecipadamente, terá de pagar os juros já constituídos
e também os que se iriam constituir no futuro.

A presunção prevista no art.º 1147 é ilidível, pelo que nada obsta a que se convencione o
pagamento antecipado do capital e, somente, dos juros corridos até esse momento. Pelo
contrário, também se poderá acordar que nem com o pagamento antecipado de juros o
devedor pode cumprir antes de decorrido o prazo. Uma outra hipótese, também
admissível. Consiste na imposição de um prazo mínimo de duração do contrato, dentro
do qual o mutuário não poderá pagar o capital em dívida. Por último, também nos parece
admissível a fixação, dentro do prazo do contrato, de um período mínimo dentro do qual
o credor não pode exigir a restituição do capital, embora o possa vir a fazer decorrido esse
espaço temporal.

Coloca-se a questão de saber se o art.º 1147 CC pode ser interpretado restritivamente, no


sentido de os juros só serem devidos se o mutuário não tiver aplicação alternativa desse
capital. Por exemplo, A empresta a B 100 000 € a uma taxa de juro de 3% durante 2 anos.
Vamos supor que o mutuário pretende pagar toda a quantia decorrido 1 ano. A lei exige
que ele, para o efeito, pague também os juros a 3% correspondentes ao ano seguinte. Se
se demonstrar que o mutuante tem uma aplicação alternativa desse capital (por exemplo,
emprestar essa quantia a 1% ao ano), então o valor a ser pago pelo mutuário são os juros
correspondentes a esta diferença (2%), sob pena de se gerar um enriquecimento
injustificado do mutuante.

b) Mútuo comercial

O mútuo comercial denomina-se empréstimo mercantil e está previsto nos art.º 394 a
396 CCom. As diferenças de regime do empréstimo mercantil face ao mútuo civil são
muito reduzidas. O mútuo é mercantil, nos termos do art.º 394 CCom, quando a coisa
cedida, aqui o dinheiro, for destinada a um ato mercantil. Por exemplo, um empréstimo à

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

sociedade comercial será sempre mercantil. Não é necessário que o mutuante seja
comerciante. Em rigor, o mutuário também não.

O mútuo comercial é sempre retribuído e, na falta de previsão de uma taxa, aplica-se a


taxa legal. Tudo isto decorre do art.º 395 CCom. O empréstimo mercantil, se for entre
comerciantes, admite, seja qual for o seu valor, todo o género de prova – art.º 396 CCom.

c) Mútuo bancário

O mútuo é um dos negócios centrais da atividade bancária, constituindo um ato comercial


autónomo – art.º 362 CCom. Ele é o modelo da concessão de crédito, sendo celebrado em
massa, de forma profissional, pelos bancos.

O mútuo bancário é uma modalidade do mútuo; não é uma modalidade especificamente


de empréstimo mercantil. Pensemos num empréstimo a um consumidor: não visa a prática
de um ato comercial. Portanto, temos aqui uma modelação do contrato de mútuo, mas que
não assenta no regime de empréstimo mercantil.

O mútuo bancário é composto pelas disposições do regime geral do mútuo civil oneroso
que tenha por objeto dinheiro, que são «atraídas» para o direito bancário. Integram-se
também nesta disciplina, se aplicáveis, as regras do empréstimo mercantil. Temos
também regras quanto ao regime do empréstimo bancário em si.

Sendo o mutuante o banco (ou outra instituição de crédito), aplica-se o artigo único do
DL 32 765 de 29/04/1943, que aligeira os requisitos de forma, bastando o escrito
particular, mesmo quando a outra parte não seja comerciante, independentemente do seu
valor.

Como se disse, o empréstimo comercial não carece de forma, mas para tal é necessário
que seja celebrado entre comerciantes – art.º 396 CCom. Esta norma continua a ser
aplicável, sempre que o contrato de empréstimo mercantil tenha sido celebrado pelo
banco com um comerciante.

Não se trata, ao contrário do que sucede com o mútuo civil, de um contrato real quanto à
sua constituição, mas sim de um mútuo consensual socialmente típico no comércio
bancário. O que as partes pretendem é que, tendo sido alcançado o acordo, o banco fique
desde logo vinculado à entrega da quantia, obrigação que ele cumpre por crédito em

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

conta. Os interesses aqui, em que o mutuante é um banco (um mutuante profissional), são
diferentes daqueles do mútuo civil).

Classificações dos empréstimos bancários

Neste âmbito, é importante o DL 58/2013 de 8/05. Este diploma regula, em certos


aspetos, os mútuos bancários, particularmente no que diz respeito aos juros. Quanto ao
prazo (art.º 4 DL), o mútuo bancário pode ser:
● De curto prazo, quando o prazo de vencimento seja até 1 ano;
● De médio prazo, quando o prazo de vencimento seja superior a 1 ano e até 5 anos;
● De longo prazo, quando o prazo de vencimento seja superior a 5 anos.

Quanto às garantias, o mútuo bancário pode ser:


● Garantido: o mutuante beneficia de garantias dos seus créditos, sejam elas de
natureza real, pessoal ou assentes na titularidade de um direito, ou de outra
natureza;
● A descoberto: o mutuante não beneficia de qualquer garantia dos seus créditos.

Quanto ao mutuário, o mútuo bancário pode ser:


● De crédito ao consumo;
● De crédito empresarial.

Quanto ao número de mutuantes, o mútuo bancário pode ser:


● Simples;
● Sindicado.

Quanto à vinculação do mutuário em utilizar o capital emprestado para um fim


convencionalmente determinado, o mútuo bancário pode ser:

● Simples;
● De escopo.

Modalidades de prestações de restituição do capital e dos juros

A restituição do capital pode:


● Ser realizada numa só prestação, decorrido o prazo do empréstimo – bullet
repayment;

36
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

● A quantia ser amortizada ao longo do tempo, podendo as prestações ser:


○ Constantes – amortized repayment
○ Crescentes – ballon repayment
○ Decrescentes

Os juros serão pagos decorrido um determinado período de tempo que as partes tenham
acordado. É ainda comum, em particular em alguns empréstimos, com enfase nos
empréstimos para habitação, que as prestações de capital sejam repartidas e que se fixe
um valor a ser pago mensalmente, que é composto em proporções diversas à medida que
elas vão sendo satisfeitas, por capital e juros. São prestações compósitas (aspeto que
trataremos mais adiante).

Vamos ver agora alguns contratos de crédito específicos.

1. ABERTURA DE CRÉDITO

A abertura de crédito é um dos contratos mais celebrados no comércio bancário. Trata-se


de um contrato nominado, integrado nas operações de banco (art.º 362 CCom), em regra
legalmente atípico, mas socialmente típico.

Em termos de qualificação, trata-se de um contrato bilateral, sinalagmático, consensual,


duradouro, em regra oneroso.

A abertura de crédito é o contrato pelo qual o banco (o creditante) coloca à disposição da


outra parte, o beneficiário (ou creditado), uma quantia pecuniária que este tem o direito,
nos termos aí definidos, de utilizar pelo período de tempo acordado ou por tempo
indeterminado. Ou seja, consiste basicamente na disponibilização de uma determinada
quantia durante um determinado período de tempo a um beneficiário. Por exemplo, o
banco X disponibiliza 50 000 € a A durante o período de 6 meses.

Ao contrário do mútuo, em que há logo efetivamente a transferência da quantia, na


abertura de crédito isso não sucede. Na abertura de crédito, o beneficiário pode usar a
quantia, pode mobilizar a quantia no todo ou em parte, mas não tem de o fazer. O banco
é que tem a obrigação de, quando o cliente pretender utilizar a quantia, a disponibilizar.
Portanto, este negócio funciona para o beneficiário como um negócio de segurança. Ele
sabe que, se precisar de usar aquela quantia durante aquele período de tempo naquelas
condições, pode fazê-lo.

37
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

A abertura de crédito pode ser onerosa ou gratuita, consoante o beneficiário pague ou


não uma contrapartida pela disponibilidade da quantia. Esta denomina-se comissão de
abertura de crédito. Esta comissão é geralmente calculada de forma percentual sobre o
valor do crédito aberto, podendo, no entanto, as partes acordar uma outra fórmula de
cálculo.

Quando a abertura de crédito for onerosa, a remuneração do creditante é dupla: a


comissão de abertura e os juros (calculados sobre o montante e o período de utilização
efetiva do crédito, à taxa fixada).

Tornam-se assim claras as duas funções deste contrato:


● Função de segurança: traduz-se no facto de o banco se obrigar perante o creditado
a conceder-lhe crédito, até ao montante previsto, mobilizável na forma acordada
durante um certo período de tempo. A contrapartida dessa disponibilidade é o
pagamento de uma comissão.
● Função de crédito: é o que sucede sempre que o creditado utilize no todo ou em
parte a quantia disponibilizada. A sua contrapartida são os juros. Esta é uma
função meramente eventual.

Atendendo ao critério da reposição da disponibilidade do crédito, a abertura de crédito


pode ser:
● Simples: o beneficiário poderá utilizar o crédito, uma vez na sua totalidade ou
recorrer a utilizações parciais, até se atingir o limite fixado no contrato. Contudo,
as restituições no todo ou em parte das quantias movimentadas não permitem
repor o valor inicial.
○ Exemplo: o Banco A celebra um contrato de abertura de crédito simples
com a sociedade comercial X no valor de 4 000 € à taxa de juro de 2%.
Imaginemos que a sociedade comercial X utiliza 3.000 € dessa quantia;
apenas terá disponíveis mais 1 000 €. Uma vez utilizada essa quantia, não
haverá mais € a que a sociedade possa recorrer.
● Em conta corrente: as restituições que o beneficiário faça da quantias utilizadas
(e também dos juros a ela correspondentes) permite repor – no todo ou em parte,
de acordo com o valor restituído – a disponibilidade (abertura de crédito
revolving).

38
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

○ Exemplo: o banco A celebra um contrato de abertura de crédito em conta


corrente com a sociedade comercial X no valor de 50.000 €, durante o
período de um ano, a uma taxa de juro a 3%. Isto significa que a sociedade
comercial X pode ir utilizando a quantia disponibilizada. Imaginemos que,
logo aquando da celebração do contrato, a sociedade comercial X decide
logo utilizar 10.000 €. Na sua conta corrente ficaram, portanto, 40 000 €.
Enquanto estiver a utilizar aqueles 10 000 €, a sociedade terá de pagar os
juros correspondentes a esse tempo (por exemplo, se usar essa quantia
durante 3 meses, terá de pagar em juros equivalentes a 3 meses à taxa de
3% que foi fixada). Ao repor os 10 000 €, a sua conta corrente voltará a
ficar com 50.000 €, tal como inicialmente. E ele poderá voltar a utilizar
todo esse capital. Por exemplo, se dessa quantia a sociedade utilizar 20
000 € e depois repuser apenas 10 000 €, ela ainda terá disponíveis 40 000
€. Isto é diferente do mútuo, uma vez que no contrato de mútuo a quantia
seria imediatamente entregue e os juros começariam logo a contar. Aqui
apenas há juros aquando da utilização da quantia.

No que toca à sua finalidade, a abertura de crédito pode ser simples ou de escopo.

Quanto à forma, a abertura de crédito em si, sendo um contrato atípico legalmente, não
está sujeita a forma, a não ser que a lei o imponha. Estamos perante uma figura
socialmente típica e que, portanto, dentro de certas balizas, é livremente conformada pelas
partes. Isso significa que ela pode ter uma estrutura jurídica diferente, no que diz respeito
à forma de utilização do capital. Assim, um dos aspetos mais debatidos nesta figura
consiste precisamente na sua estrutura. Há duas estruturas que o contrato de abertura de
crédito pode assumir:
● Estrutura unitária: recorre-se a um único contrato do qual decorre um direito
potestativo de utilização do crédito nos termos aí definidos;
● Estrutura plural: celebra-se um contrato inicial seguido de posteriores contratos,
que podem ter natureza diversa entre si, e pelos quais se faria a mobilização do
crédito. Por exemplo, a abertura de crédito pode vir a fazer-se mediante sucessivos
contratos de mútuo.

Pode usar-se a abertura de crédito simplesmente por ser a possibilidade que o banco tem
de conceder ao cliente a possibilidade de decidir por ato unilateral usar essa quantia.

39
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Suponhamos que a abertura de crédito é objeto de uma conta própria e que o beneficiário
pode determinar por ato próprio a transferência desses valores para outra conta. Aqui a
forma de execução da abertura de crédito é através dessas ordens de transferência que o
beneficiário vai dando ao banco.

É ainda possível que o banco permita a mobilização da conta para valores negativos. Ou
seja, não tendo a conta saldo, o banco não paga. Mas o banco pode permitir mobilizar a
conta ainda que com saldo negativo até determinados valores.

É também possível mobilizar-se o crédito através do desconto de letras ou livranças até


um determinado valor. Relativamente ao pagamento de juros, devemos ter em conta o
art.º 6 do DL 58/2013. Este diploma regula aspetos do mútuo bancário e principalmente
o regime de juros.

Quanto ao tempo, abertura de crédito pode ser realizada a prazo/termo certo, geralmente
curto, automaticamente renovável por igual período de tempo. É também possível que a
abertura de crédito seja celebrada por tempo indeterminado, mas será menos comum.
Neste caso, qualquer das partes pode fazer cessar o contrato por denúncia sem ter de o
justificar; porém, tem de haver sempre lugar a um pré-aviso. O banco não tem obrigação
de renovar a abertura de crédito. Pode ter, no entanto, o dever decorrente da boa fé de,
caso o contrato já se tenha vindo a renovar sucessivamente por um largo período de tempo
e se banco quiser deixar de o renovar no futuro, avisar previamente o cliente (num prazo
adequado) que irá deixar de renovar o contrato no futuro.

Utilização da quantia

A abertura de crédito, sendo um negócio atípico, permite que haja uma configuração
diversa para a utilização da quantia.

a) Em estrutura plural

O Banco celebrou com o beneficiário um contrato inicial, que consiste no contrato de


abertura de crédito em si, disponibilizando-lhe uma dada soma por um determinado
período de tempo ou por tempo indeterminado. Teremos aqui um contrato inicial de onde
decorrerão as obrigações do banco de disponibilizar a soma convencionada pelo prazo
acordado, contrato do pagamento da comissão de abertura de crédito. Decorre igualmente

40
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

deste contrato o dever de o banco celebrar os contratos de mobilização do crédito, os


contratos de crédito em si.

A correta qualificação deste negócio é de contrato-quadro. Na verdade, do seu conteúdo


decorre o dever de o creditante disponibilizar à outra parte a quantia pecuniária acordada
e, como contrapartida, a contraparte terá de pagar uma comissão. Daí resulta, ainda, a
obrigação do creditante celebrar contratos de 2º grau que permitam a mobilização do
crédito e o conteúdo dos mesmos. Estes podem ter uma natureza diversa: mútuo,
desconto, contratos de factoring de 2º grau, etc.

A abertura de crédito está, nesta medida, genética e funcionalmente coligada (jurídica e


economicamente) a esse conjunto de negócios jurídicos de 2º grau, uma vez que são estes
que lhe dão execução e o projetam funcionalmente.

b) Em estrutura unitária

Sempre que for adotada esta estrutura, não são concluídos contratos subsequentes de
mobilização do crédito. A contraparte do banco é titular de um direito potestativo cujo
exercício gera a obrigação de entrega da quantia por parte do banco, sendo possível, na
eventualidade de o banco não cumprir, o recurso a uma ação de cumprimento.

Noutros casos, o exercício do direito permite o imediato acesso à quantia. Assim, o


beneficiário utilizará a quantia por ato unilateral. Essa quantia estará inscrita numa conta
que o cliente pode mobilizar, e ir repondo as quantias usadas.

É de referir que a abertura de crédito pode assumir a forma de descoberto. Nestes casos,
o banco permite a mobilização da conta a saldos negativos até um determinado montante.
Esta possibilidade pode estar logo prevista no contrato de abertura de crédito e nessa
medida é um contrato de abertura de crédito. Coisa diferente é o que sucede muitas vezes
na prática bancária: o chamado descoberto tolerado. Ou seja, o banco permite que um
seu cliente vá mobilizando a conta mesmo quando ela não tenha saldo positivo. Isso não
será uma abertura de crédito, mas antes uma tolerância por parte do banco. Portanto, o
cliente não tem direito a exigir que isso seja feito no futuro. Porém, se este comportamento
for permitido pelo banco ao longo do tempo, há um dever de boa fé por parte deste de
avisar o cliente de que deixará de lhe conceder essa facilidade, sob pena de o banco
incorrer na violação do princípio da boa fé (art.º 762/2). Notamos que, embora não haja

41
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

um contrato de abertura de crédito, as partes não deixam de estar ligadas pelo contrato-
quadro de abertura de conta, da qual emerge a relação bancária que as une. Neste seio,
como foi observado, pontificam, com especial intensidade, os deveres de boa fé.

2. CONTRATO DE DESCONTO

O contrato de desconto é um contrato nominado, fazendo parte do elenco das operações


de banco (art.º 362 CCom), legalmente atípico, socialmente típico, tendo por objeto
título de crédito ou créditos ordinários (embora estes últimos sejam pouco comuns entre
nós). Ele caracteriza-se pela transmissão do título de crédito (em regra, letras ou livranças,
portanto, pelo seu endosso) e a sua entrega a um banco que, por sua vez, entrega ao
transmitente o valor nominal do crédito, deduzido do juros e das restantes comissões[1].
O primeiro (o banco) é o descontador; o segundo (o cliente) é o descontário.

O montante do desconto (a diferença entre o montante nominal e o montante entregue)


consiste na soma dos juros com as comissões.

O desconto é um contrato de liquidez que opera através da monetarização de um crédito


(em regra, de curto prazo) do descontário. Ele é tipicamente realizado pelo comerciante
que vende com espera de preço, ou seja, com entrega imediata da mercadoria e pagamento
do preço a prazo, que necessita de um financiamento (intermédio) neste período de tempo.
Neste período de tempo, o vendedor (o beneficiário da letra ou da livrança) pode carecer
de liquidez (precisar de dinheiro). Nesse caso, ele vai procurar obter um financiamento
junto do banco, celebrando aquilo que se denomina um contrato de desconto desse título
de crédito (letra ou livrança). Embora possa recorrer a outras figuras (como o factoring),
é prática comum o comprador subscrever uma livrança ou o vendedor sacar uma letra que
aquele aceita. É esse título que é endossado, transformando-se em liquidez.

Após a celebração do contrato de desconto, é o banco que irá cobrar junto do comprador
essa quantia. E das duas umas:

● Ou o sujeito paga e, nesse caso, o banco embolsa a quantia.


● Ou o sujeito não paga, caso em que o banco vai reendossar o título ao comerciante
e exigir-lhe o valor cedido de volta. Atenção que o banco não vai pedir ao
descontário o valor que lhe entregou, pois o valor que ele entregou era o valor
nominal menos os juros e as taxas. Suponhamos que o banco celebrou um contrato

42
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

de desconto no valor de 10 000 €. O valor dos juros são 200 € e o valor das taxas
são 300 €. O valor que o banco vai entregar ao cliente será 10 000 – (200+300) =
9 500 €. Ora, no caso de o devedor depois não cumprir, o banco vai reendossar o
título ao comerciante e exigir-lhe 10 000 € de volta (e não apenas 9.500 €).
Portanto, o risco de incumprimento corre sempre por conta do comerciante,
e não por conta do banco.

O desconto pode consistir num negócio isolado ou integrar-se num contrato-quadro de


abertura de crédito em conta corrente. Neste último caso, cada desconto consiste num
negócio de segundo grau de mobilização dessa quantia.

2.1. O desconto de títulos de crédito (letras e livranças) e de créditos ordinários

O direito transmitido ao banco pode:

● Consistir num crédito ordinário

Neste caso, a transferência de créditos rege-se pelo regime geral da cessão de


créditos (art.º 577 e ss CC). Daí que, para que o terceiro pague ao cessionário, ele
terá que ser notificado da transferência do direito. Não cumprindo, terá que se
operar uma retransmissão do crédito, no seio do negócio base da cessão. Nos
termos do contrato de desconto, o banco poderá exigir o pagamento (da quantia
emprestada) ao mutuário/descontário.

● Estar incorporado numa letra ou numa livrança

Neste caso, aplica-se o regime da LULL. Temos, neste caso, não só a relação base,
mas também o negócio cambiário, o endosso. Se, depois de o banco ter
apresentado a letra a pagamento na data do seu vencimento, o devedor (aceitante
– letra –, ou subscritor – livrança) não cumprir, a instituição de crédito exigirá o
pagamento ao descontário (endossante).

2.2. Distinção entre factoring e contrato de desconto

Ambos os contratos têm por função o financiamento de curto prazo e operam com
transmissão de um crédito para que o creditante cobre a um terceiro e se satisfaça pelo
valor obtido, o que extingue a obrigação de restituição e o dever de pagar juros (e outras
despesas). Todavia, o título social do desconto opera com título de crédito, sujeito a um

43
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

regime específico, mas o factoring tem por objeto créditos ordinários. Apesar disso, a
verdade é que, ainda assim, embora de forma pouco frequente, o desconto pode operar
com créditos ordinários e, nesse ponto, há uma maior aproximação deste contrato ao
factoring.

Vejamos, então, os pontos de distinção:


● O factoring insere-se numa relação global com o factor, assente no contrato de
factoring em si, que sendo um contrato quadro, disciplina diversos contratos
subsequentes com naturezas distintas.
● Ao contrário do desconto, que pode ser uma operação isolada – embora não
necessariamente – o factoring tem sempre por objeto uma cessão de créditos em
massa, que exige uma celebração sucessiva de contrato de 2º grau.
● No desconto, os juros são calculados inicialmente e cobrados nesse momento «à
cabeça», ou seja, o seu valor deduzido ao montante entregue. No contrato de
factoring nem sempre tal acontece, até porque, muitas vezes, em virtude do prazo
adicional («período de graça») que os factores concedem ao factorizado e ao
devedor cedido após o incumprimento deste último, os juros não podem ser
calculados a priori.

2.3. Qualificação do contrato de desconto

A generalidade da doutrina considera que estamos perante um mútuo acompanhado de


uma dação em função do cumprimento. Como a dação em função do pagamento é um
mandato sem representação, temos aqui um negócio misto de mútuo com mandato sem
representação. Aqui vemos que o mútuo é um elemento essencial em quase todos os
contratos de crédito. O desconto é, pois, um contrato misto onde se articulam elementos
de mútuo com um mandato para cobrança. Assim, o banco empresta o valor nominal do
título, mas retira «à cabeça» a sua remuneração.

O adquirente deverá exigir o pagamento ao devedor. Caso este pague, restitui-se dessa
forma a quantia emprestada e os juros, através do pagamento do terceiro. Se ele não pagar,
terá de ser o descontário a satisfazer a obrigação de restituição do capital e dos juros ao
banco. Daí a exigência do valor nominal do crédito, porque essa foi a quantia emprestada.

[1] De acordo com Fernando Olavo, são duas as comissões em causa: a comissão de desconto (considerada, por uns,
como remuneração pelos serviços prestados e, por outros, como compensação dos riscos corridos) e a comissão de
cobrança.

3. CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA

44
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Este contrato é típico (desde 1978), tendo nascido nos EUA em inícios do séc.
XX (leasing). Neste caso específico, o que temos é financial leasing (distinguindo-se do
mero leasing, de “arrendar”). O legislador quis consagrar um regime jurídico que
conferisse segurança aos operadores económicos para celebrarem este contrato.

Na vida empresarial, uma empresa celebra um contrato destes, p ex., se precisa


de uma escavadora, de um carro, ou de aviões, mas não tem dinheiro para os comprar. As
companhias aéreas têm poucos ativos: a maior parte dos aviões não são delas, são dos
bancos – são contratos de locação financeira, pelo que não podem ser penhorados (em
caso de insolvência, não integram a massa insolvente). Também submarinos podem ser
adquiridos por esta via.

Na locação financeira, vão-se pagando rendas mensalmente até se adquirir


totalmente o bem, tendo vantagens do ponto de vista fiscal também. Cruzar regimes é um
aspeto importante (PESTANA, 2021).

DL 149/95, de 24-06: Legalmente, locação financeira é o contrato por via do


qual uma das partes (locador financeiro) se obriga, mediante retribuição (rendas) a ceder
à outra o gozo temporário de coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por
indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período de tempo
acordado, por um preço determinado/determinável previsto no contrato.

Estruturalmente, temos o contrato de locação financeira em si; na sua execução,


exige-se que o locador financeiro compre a um terceiro, indicado pelo locatário, um bem
escolhido por este, que lhe será depois entregue em locação financeira (pode ser um
contrato de empreitada, p ex., e não só de CV).

Decorrido o prazo contratual, se o locatário exercer o seu direito, o banco


(locador financeiro) vai ter de lhe vender o bem por esse valor (valor residual), pelo que
há um novo contrato de CV.

A locação financeira dá origem a um contrato de CV; o locatário pode exercer o


seu direito, mas não tem de o fazer. Esta estrutura contratual é caracterizada pelos dois
contratos (locação financeira e compra e venda).

45
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Embora o contrato de CV/empreitada seja celebrado entre locador financeiro e


terceiro (o fornecedor), em princípio, só o banco (locatário financeiro) poderia exigir ao
fornecedor o cumprimento deste contrato

O DL 149/95 atribui ao locatário o poder de exercer todos os direitos face ao


fornecedor – havendo defeito, o locatário pode pedir a reparação da coisa, a sua
substituição ou a sua devolução; mas ele pode, também, exercer direitos emergentes do
outro contrato.

Há garantias pessoais (fiança, aval), reais (hipoteca, penhor), mas também


assentes na titularidade de um direito: em regra, na propriedade. Mantém-se a propriedade
na sua esfera ou transfere-se (ex. A transmite a B ações para garantir uma obrigação).

Quem são as partes do contrato de locação financeira?

Temos o locador financeiro (sujeito que pode exercer a título profissional: art.
8º nº2 RGIC), só podendo exercer estes direitos as instituições financeiras de crédito e as
sociedades de locação (em certos casos, também, as sociedades de crédito agrícolas): art.
4º RGIC.

Aplica-se à locação financeira, também, o regime do crédito ao consumo (de


proteção do crédito do consumidor). Quanto ao objeto, a locação financeira pode ter por
objeto quaisquer bens suscetíveis de serem dados em locação (art. 2º).

Assim se pode distinguir a locação financeira imobiliária e mobiliária, dentro


desta última relevam em especial os automóveis e os aviões.

Como o Estabelecimento Comercial é uma coisa, também pode ser objeto de


locação (e de locação financeira): as próprias ações e obrigações podem ser dadas em
locação financeira; direitos de propriedade industrial (nomeadamente, patentes e
marketing). Sale and lease back é o nome dado à locação financeira restitutiva

Prazos

Há uma grande flexibilidade relativamente aos prazos de locação financeira: o


prazo não pode ultrapassar o período da vida económica expectável do bem (art. 6º); o

46
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

negócio não pode ter uma duração superior a 30 anos. Não tendo sido fixado prazo (o que
é raro), os prazos supletivos são de 18 meses (móveis) e de 7 anos (imóveis).

As rendas de locação financeira são rendas financeiras, decorrendo o prazo


prescricional, atendendo ao seu caráter compósito (juros e capital), das als d) e e) do 310º
CC. Em caso de incumprimento, o vencimento antecipado só pode dizer respeito à parte
relativa à amortização – mas não relativamente à parte dos juros.

Modalidades

● Locação financeira trilateral: Estabelece-se uma relação entre os 3 sujeitos


(locatário financeiro, locador e fornecedor) assente em 2 contratos.
● Locação financeira restitutiva (sale and lease back): Relação assente em 2
contratos celebrados ao mesmo tempo entre o locatário financeiro e o locador
financeiro. O primeiro vende ao segundo (frequentemente, um banco) bens seus
(imóveis) e, ao mesmo tempo, celebra-se entre o banco e o vendedor um contrato
de locação financeira que tenha por esse objeto esses mesmos bens imóveis, que
o locatário financeiro poderá adquirir pelo valor residual decorrido o prazo
contratual.

Trata-se de um negócio de financiamento e garantia: O banco vai avaliar o bem em termos


económicos, mantendo uma margem de segurança entre o valor do bem e o preço pelo
qual o compra (ex. compra por 900 mil euros). Ainda assim, neste regime a lei prevê a
estrutura mais complexa

Do ponto de vista da aplicação do regime:

Não há transferência do bem ao vendedor para esse efeito; na locação financeira, ele tanto
pode adquirir como não. Por fim, a venda a prestações pode ser aplicada pelo comerciante.
Este negócio é diferente do que sucede no ALD: contrato misto composto por elementos
de locação, mais uma promessa de CV.

FACTORING

A estrutura contratual vai procurar conferir efeitos jurídicos a uma determinada


realidade económica. As empresas concedem, quase sempre, um período de tempo para

47
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

o pagamento do preço (um crédito comercial); o valor não é exigido a pronto, exigindo-
se nos 30, 60 ou 90 dias seguintes.

Há aqui uma carência de liquidez por parte da empresa (“tensão de tesouraria”,


como lhe chamam os economistas), recorrendo as empresas ao crédito bancário. Um risco
é o incumprimento ou insolvência do devedor. P.e. A vende a B uma mercadoria, com o
pagamento a efetuar em 60 dias; B é considerado insolvente – quid iuris? Uma das formas
de evitar estas situações é celebrar contratos de garantia, que transfiram esse risco para
outra entidade (através de um seguro de crédito ou de outro contrato – o de factoring).

Muitas vezes, o que fazem é transferir essa cobrança de créditos para outra
entidade. O factoring visa, de forma distinta e controlada, satisfazer essas funções, em
termos financeiros e de garantias, de que as empresas carecem por causa do crédito
comercial. Ora, o que uma tem quando vende é um crédito pecuniário: o núcleo do
factoring é a cessão desse crédito de curto prazo a um ente financeiro (uma instituição de
crédito ou uma sociedade de factoring).

Com a transferência do crédito, será o factor (adquirente do crédito) a cobrar o


crédito, podendo conceder um adiantamento calculado sobre o valor nominal do crédito;
e poderá assegurar o cumprimento por parte do devedor, que, transmitindo-se o crédito,
é o devedor cedido.

O factoring pode, assim, definir-se como um contrato pelo qual uma entidade
(em regra, um comerciante, vendedor ou prestador de serviços) cede ou se obriga a ceder
a uma outra entidade (o factor) os créditos de que venha a ser titular sobre um conjunto
de devedores definidos no contrato por um determinado período de tempo, obrigando-se
a cobrar esses créditos e podendo conceder um adiantamento sobre o valor nominal do
crédito; e podendo, também, eventualmente, garantir o cumprimento de um ou mais dos
devedores cedidos. Pela cobrança, o factor tem direito a uma comissão, tem direito a
financiamento a juros; e, pela prestação da garantia, a uma comissão de garantia
também.[1]

Ex. A vende a B mercadoria por mil euros, com prazo de pagamento de 60 dias.
A cederá esse crédito ao factor, C, que o irá cobrar ao devedor decorridos esses 60 dias.
O factor poderá antecipar parte do valor desse crédito (em regra, 80%); e poderá ou não

48
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

(dependendo do acordado) assegurar o cumprimento por parte de B. É o factor quem


passa a ser titular do crédito. Este é o modelo mais simples

Pode haver cobrança de crédito, apenas; pode haver cobrança de crédito e


garantia; pode haver cobrança de crédito e financiamento; pode haver cobrança de crédito,
garantia e financiamento (este contrato tem “geometria variável”).

O factoring tem bastante relevo na vida empresarial portuguesa, sobretudo pela


função de financiamento.

Esta figura denominou-se “cessão financeira”, tendo sido desenvolvida nos


EUA (como o leasing), e depois adaptada nos ordenamentos jurídicos europeus a partir
dos anos 60. Em Portugal, desenvolveu-se nos anos 80 e, em especial, nos anos 90 do
século XX.

Este contrato é nominado, mas tem um regime muito limitado em termos de


previsão legal, sendo por isso socialmente típico, mas legalmente atípico (sem regime
legal): cf. DL 171/95, de 18-07 (a tese de mestrado do PROF é nesta matéria). Em rigor,
a única coisa que a lei exige é que o contrato seja celebrado por escrito, e que haja uma
efetiva cessão do crédito.

Os factors normalmente recorrem a uma das seguintes estruturas:

● Estrutura bifásica: Assenta na celebração do contrato de factoring em si, num


contrato-quadro, do qual decorrem as obrigações das partes (do factorizado, de
transmitir o crédito mal ele se constitui; e de o factor aceitar essa cessão). Esse
contrato-quadro assenta numa sucessão de contratos que vão sendo celebrados
entre as partes e cujo principal efeito é transmissão do crédito
● Estrutura monofásica: Assenta num único contrato; no contrato de factoring, em
si, do qual decorre a transmissão dos créditos futuros. Aqui, não há uma obrigação
de as partes celebrarem negócios subsequentes de cessão dos créditos, mas o
próprio contrato inicial gera a transmissão dos créditos futuros (ex. no prazo de 2
anos). Logo que se constituam, eles transmitem-se automaticamente ao factor. Ex.
se o factorizado vende a um cliente uma máquina por mil euros, mal é feita a
venda, o crédito transfere-se de imediato ao factor.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

No primeiro modelo, teria de haver um segundo negócio de cessão de créditos


(um contrato de segundo grau)

O núcleo do primeiro modelo é o contrato de factoring em si, um contrato-


quadro (i.e., visa regular toda uma relação complexa que se estabelece entre as partes;
visa regular, também, os contratos de segundo grau que vão sendo celebrados entre as
partes), sendo certo que o conteúdo desses contratos já está previsto no contrato inicial
(no contrato de factoring)

É ainda neste contrato-quadro que se prevê a função de financiamento, ou seja,


se o factor se obriga e até que montante (“teto”) a conceder crédito à outra parte, sendo
aí que se define, também, se o factor irá ou não garantir o cumprimento de um ou mais
devedores cedidos e até que montante.

Estando definido um contrato de plafon no valor de 50 mil euros, p ex, o


factorizado sabe que pode pedir adiantamentos calculados sobre o valor nominal do
crédito até este valor.

Os contratos de segundo grau são aqueles pelos quais se transmite o crédito.


Quanto à cessão global de créditos futuros, o contrato de factoring define os plafons quer
de crédito quer de garantia e de onde decorrem, também, os efeitos transmissivos do
crédito, quando ele se constitui.

O núcleo do factoring é a cessão do crédito, cujo regime decorre do art. 577º e


ss. CC. Na CV comercial, o vendedor tem de emitir uma fatura; o factorizado obriga-se
a colocar na fatura que emite uma nota dizendo que o crédito foi cedido ao factor e que o
pagamento só será liberatório se for realizado face ao factor (isto tem de estar nas faturas).

Depois, o factorizado pega na cópia da fatura e envia ao factor, que vai aceitá-
la, procedendo-se deste modo à transmissão do crédito (no primeiro modelo, já que no
segundo não é necessário este contrato, dado que há transmissão automática). Aquando
do envio da cópia da fatura, o factorizado solicitará ao factor a concessão de um
adiantamento (em regra, sobre 80% do valor nominal do crédito) e/ou a prestação da
garantia do cumprimento do devedor cedido. O factor poderá estar, ou não, obrigado a
conceder o adiantamento e/ou a conceder a garantia, de acordo com o que estiver previsto
no contrato de factoring em si.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

O regime da transmissão de créditos decorre do art. 577º CC. O devedor não tem
de consentir na cessão, sendo esta livre (ao contrário do que sucede, p ex., da cessão da
posição contratual, em que é necessário o consentimento do outro contraente (art. 424º).

Mas é possível as partes, por contrato, impedirem a transmissão do crédito: ex.


A vende a B uma mercadoria, contrato no qual inserem uma cláusula nos termos da qual
o crédito não pode ser cedido (pacto de non cedendo); se, não obstante a proibição, o
credor ceder o crédito, esta cláusula, em princípio, não é oponível ao cessionário – a não
ser que o cessionário a conhecesse aquando da cessão. É necessário que o adquirente do
crédito (cessionário) tivesse conhecimento de que, no contrato entre o cedente e o devedor
cedido (neste contrato de CV, portanto), existia essa cláusula.

O regime português facilita, assim, bastante a cessão de créditos.

Para quadro se transmitir é sempre necessário um negócio, artigo 578º que tenha
por efeito a transmissão desse crédito, que é um bem na esfera do credor.

O negócio de transmissão de crédito é um negócio em si, ou seja, só tem este efeito ou é


um negócio mais amplo que tem também este efeito? No nosso sistema , a segunda
posição é a correta. Um crédito cede-se porque é vendido, doado, transmitido em garantia,
dação em cumprimento.

Temos de articular o regime de 2 negócios. O banco vende um crédito, aplica-se o regime


da compra e venda com regime da cessão de crédito que rege uma parte do negócio, mas
o negócio é único. É a esse negócio que se refere o art. 578º.

O que é que se transmite com o crédito ?

Transmitem-se, nos termos do art. 582º, o crédito não se transmite isoladamente,


mas transmitem-se automaticamente as garantias. Se o crédito estiver garantido por um
penhor ou hipoteca, a fiança transmite-se os acessórios do crédito , nomeadamente os
juros também se transmitem.

Por acordo das partes pode ser feita a separação, mas supletivamente
transmitem.se , só não se transmite os acessórios inseparáveis da pessoa do credor.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

O crédito em si tem um valor económico superior a um crédito não garantido,


ao estabelecer-se essa transmissão pretende-se valorizar o crédito.

A cessão é livre, mas o devedor tem de ter conhecimento da cessão e por isso a
cessão não produz efeitos face ao devedor (583º/1) antes de ele ter sido notificado ou
antes que ele aceite a cessão. A notificação pode ser extrajudicial, mera comunicação.

No factoring, essa notificação faz-se pela identificação, na fatura, da pessoa a


quem deve ser feito o pagamento.

Por razões de segurança do factor, ele vai, posteriormente, comunicar ao devedor

A cessão também produz efeitos se o devedor aceitar a cessão

Se antes da notificação ou aceitação o devedor paga ao cedente ou se este


celebrar com o devedor um negócio relativo ao crédito(Aceita uma redução do crédito,
p.e ou dação em cumprimento.).Enquanto o devedor não for notificado o negócio é eficaz
face a ele.

Se o devedor cedido pagar, pode pagar liberatoriamente, ele extingue o crédito,


quer dizer que o cessionário fica sem o crédito, o que significa que ao ser celebrado esse
negócio ou o cedente aceitar o pagamento , ele está a incumprir o negócio de cessão.

Se o crédito for cedido mais do que uma vez, for duplamente cedido(há uma
dupla cessão) há uma cessão que tem de prevalecer , não sendo a primeira realizada, mas
a que foi em primeiro lugar notificada ou aquela que em primeiro lugar tiver sido aceite
(584º)

Ex. A cede o crédito a B; e, depois, a C. se este for o primeiro a notificar, é ele


que adquire o crédito. Se for B o primeiro a notificar, consolida-se nele a cessão. C
adquire o crédito a non domino, através da notificação, porque o crédito tinha sido
transmitido a B. Por esta razão o factor se preocupa tanto em notificar.

Se este crédito é cedido ao factor, que adquire o direito, passa ele a ter outro
credor. Mas a posição contratual mantém-se entre cedente e devedor cedido. Há um

52
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

elemento da posição contratual que passa ao terceiro, sim (o crédito). Mas a posição
contratual, essa mantém-se entre o cedente e o devedor cedido.

Ele pode opor ao cessionário todos os meios de defesa que provenham de um


facto posterior ao conhecimento da cessão (art. 585º CC). Em regra, isto dá-se através da
notificação. Se se constituírem posteriormente a essa altura, ele já não pode recorrer a
eles. Isto é importante no que diz respeito à compensação, por ex.; tendo as partes uma
relação comercial, têm, em regra, créditos e contra-créditos.

Até quando pode ele recorrer à compensação se se verificarem os seus


requisitos gerais (art. 847º CC)? Para isso, é necessário que o contra crédito se tenha
constituído antes da data em que ele tenha conhecimento da cessão.

O que conta é a data de constituição do contra-crédito, não a data do seu


vencimento. O vencimento do contra crédito pode dar-se já depois do conhecimento da
cessão e, ainda assim, é-lhe possível compensar. Ex. A cede a B um crédito sobre C no
dia 1 de junho; no dia 15 de junho, é notificado C.

Se este contra crédito (adquirido dia 10 de junho) tem vencimento apenas no dia
30 do mesmo mês, ele pode compensar! (O relevante não é a data de vencimento do
contra-crédito, mas da sua constituição.)

Meios de defesa

A quem cabem os meios de defesa decorrentes da relação contratual (ex. do


direito de resolução do contrato)? Cabem ao cedente, porque fazem parte da relação
contratual, e não houve transmissão do contrato – mas apenas de um seu elemento (ainda
que o mais importante). O cessionário não pode, então, resolver o contrato. O direito de
resolução é um direito potestativo ligado à posição contratual, não se transmitindo com o
crédito. Apenas se transmitem os direitos potestativos ligados ao próprio crédito: um dos
mais relevantes, o direito de interpelar (no âmbito de uma interpelação cominatória: art.
808º CC) o devedor para transformar a mora em incumprimento definitivo.

Em caso de mora, tem de haver uma articulação entre os dois sujeitos: o


cessionário transforma a mora em incumprimento definitivo, e o cessante resolve o
contrato, de forma sucessiva. Mas a resolução não pode ser feita sem o consentimento do

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

cessionário: operando-se a resolução, em princípio extingue-se o crédito, e o cessionário


perde-o.

Esta é a posição dominante na doutrina, de que o professor discorda.

Também a exceção de não cumprimento do contrato (art. 428º CC). Ex. A vende
a B uma mercadoria, transmitindo o crédito. A notificação é feita de imediato ao devedor
cedido; a mercadoria não é entregue (ou é entregue com defeito) – o devedor cedido, nos
termos gerais, poderia recorrer à exceção de não cumprimento. Mas ele foi notificado
imediatamente com a cessão, numa altura em que ele não podia ainda recorrer à exceção
de não cumprimento do contrato (não tinha fundamento).

Ele pode, mais tarde, vir a recorrer a ela? Aparentemente, por força do art. 585º
CC, não poderia. O professor defende (numa posição acolhida pelo STJ) que este meio
de defesa radica no sinalagma; se assim é, o devedor cedido não pode ficar privado dele,
qualquer que seja a data em que tenha conhecimento do contrato. Este é um mecanismo
fulcral do caráter sinalagmático do contrato.

Vamos analisar agora o disposto no art. 577º nº1 CC e no art. 587º CC. O
primeiro é a garantia da existência e da exigibilidade do crédito; a segunda é a garantia
da solvência do devedor cedido. As duas primeiras são automáticas; a segunda (garantia
da solvência do devedor cedido) exige que tenha sido expressamente prestada.

As garantias de existência do crédito significam que o sujeito não pode transmitir


de um crédito inexistente; que não pode transmitir um crédito que já se extinguiu.
Cedendo um crédito nestas condições, viola a garantia da existência do crédito, e
responde. A garantia da exigibilidade prende-se com o facto de, vencido o crédito, ele ser
cobrado pelo cessionário; significa, então, esta garantia que, nessa data, o devedor cedido
tem mesmo de cumprir, não podendo opor com sucesso, ao cessionário, alguma exceção.

Ex. se o devedor cedido puder recorrer à ENC, o cedente violou a garantia da


exigibilidade do crédito; se o devedor cedido puder recorrer à compensação, extinguindo
o crédito.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Diferente é a questão de o devedor cedido não estar solvente, não tendo meios
pecuniários para cumprir. Isso, o cedente não garante, a não ser que se tenha obrigado a
isso. Se o devedor cedido se tornar insolvente, ele tem de entregar o valor do crédito ao
cessionário – porque garantiu a solvência.

No factoring, há uma particularidade: se o factor prestar a sua garantia, surge uma figura
atípica, porque é o cessionário que vai garantir ao cedente que o devedor cedido vai pagar.
No art. 587º/2, é o cedente que garante ao cessionário que o devedor é solvente; no
factoring, é o cessionário que garante ao cedente (factorizado) que o devedor cedido vai
pagar.

Cessão de créditos futuros

A cessão de créditos futuros é admissível no nosso direito, desde que sejam


determináveis (art. 399º e 280º CC). Tem de haver critérios, no próprio negócio, que
permitam saber quais são os créditos abrangidos pela cessão. Esses critérios podem ser
relativos ao devedor cedido? Sim; mas, não existindo esses critérios, o contrato é nulo
(280º CC).

Negócios de segundo grau

Uma parte do efeito do negócio é a transmissão do crédito (art. 577º e ss.). Mas
há mais conteúdo, a que se aplica articuladamente o regime do negócio respetivo (numa
CV, os art. 874º e ss.).

O crédito cedido pode sê-lo com recurso a __. Quando assim é, esse negócio de
segundo grau é um contrato misto, com elementos de mútuo (no que diz respeito ao
adiantamento) mas também de mandato para cobrança (é o factor que vai cobrar o crédito,
praticando um ato jurídico por conta de outro sujeito). Mas é um mandato sem
representação que consubstancia uma dação em função do pagamento.

O factor vai fazer a cobrança do crédito. Se o devedor cedido pagar isso vai levar
à extinção do crédito à restituição do adiantamento que o factor tem face ao cedente. O
factor vai obter satisfação do crédito cobrando ao devedor cedido: se o devedor cedido
lhe pagar, ele recebe essa quantia, e satisfaz-se. Ex. A celebra um contrato de CV com B,
adquirindo um crédito no valor de mil euros, pagos com vencimento equivalente a 3

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

meses. Tinha celebrado um contrato de factoring, obrigando-se a transferir esse crédito


ao factoring:

● Não há prestação de adiantamento e não há garantia: o factor cobra o crédito; se


o devedor cedido pagar os mil euros, ele vai entregá-los ao factorizado, retirando
daqui a comissão de cobrança – o crédito é cedido para que o factor o vá cobrar,
por conta de A (temos aqui um mandato sem representação para cobrança).
● O factorizado pede um adiantamento: esse valor tem de ser entregue ao factor,
bem como os juros (de 3 meses) pelo período que vale o adiantamento.
● O devedor cedido paga: aqui, o factor deveria entregar a quantia ao factorizado;
no entanto, ele vai utilizar essa quantia para satisfazer o crédito que ele tem face
ao factorizado, decorrente do acordo celebrado (800 euros + juros).

Se o facto garantir o pagamento do devedor, ele está a prestar uma garantia ao factorizado,
especialmente importante no âmbito do comércio internacional. Ele cede o crédito ao
factor sem recurso, pelo que este presta uma garantia – uma fiança atípica, na medida em
que o factor vai afiançar ao factorizado a dívida.

Se o crédito for transmitido com adiantamento, e sem recurso, e ele presta o


serviço de cobrança, ele vai cobrar o crédito, os adiantamentos e a garantia. Isto é um
contrato misto especialmente complexo, porque funde elementos do mandato (sem
representação), do mútuo e da fiança.

É um contrato de segundo grau, de execução do contrato de factoring, mas que


funde elementos de 3 contratos típicos. Se o contrato visar apenas a cobrança, há
elementos de mútuo e de mandato (para cobrança), que funciona como uma dação em
função do pagamento (só extingue a obrigação se o devedor pagar: art. 840º CC).

INSOLVÊNCIA

56
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

O nosso regime da insolvência decorre hoje do CIRE. Este CIRE é recente (2005) e
introduziu um conjunto de alterações muito relevantes no direito insolvencial português.

Falência vs Insolvência

Antes, a falência valia apenas para os comerciantes e a insolvência valia apenas para os
não comerciantes.

Qual era a diferença?


→ Na falência, o devedor estava impossibilitado de cumprir pontualmente as obrigações
vencidas, ou seja, não tinha meios líquidos para pagar as obrigações à medida que as
obrigações se iam vencendo. Isto é importante para os comerciantes porque o comércio
funciona por cadeia. É essencial que os sujeitos comerciantes tenham liquidez. Não
interessa se o passivo é superior ao ativo. O que interessa é que ele tenha meios líquidos
em dinheiro.
→ A insolvência aplicava-se aos não comerciantes. Aí, o relevante era terem um

passivo superior ao ativo. Era este desequilíbrio patrimonial que gerava uma situação

de insolvência.

Esta distinção veio a ser eliminada no CIRE, sendo que já tinha sido eliminada no
CPEREF (1995).

A falência foi substituída pela insolvência que deixou de se aplicar só aos comerciantes,
passando a ter uma aplicação universal (tanto a comerciantes como a não comerciantes).

Noção de Insolvência

Agora, a atual noção de insolvência coincide com a anterior noção de falência. De facto,
nos termos do art.º 3/1 CIRE, o devedor está insolvente quando esteja impossibilitado de
cumprir as obrigações vencidas. No fundo, o que o CIRE fez foi aplicar a falência também
aos não comerciantes, mas deu-lhe o nome de insolvência.

Em termos de DUE a noção de falência está a ser substituída pela noção de insolvência.

O atual CIRE é fortemente influenciado pelo código alemão de insolvência de 1992. Há


mesmo partes que são traduções do código alemão.

57
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

O importante aqui não é o património do sujeito, mas sim que ele tenha liquidez para
pagar. Assim: Existem dois critérios para a declaração da insolvência de pessoas coletivas
e singulares:

a) Critério do fluxo de caixa

Segundo este critério, considerar-se-á insolvente uma entidade na medida em que esta
seja incapaz de, a cada momento, cumprir com as obrigações que se vão vencendo. Este
é o critério que vem previsto no art.º 3/1 CIRE.

De acordo com este artigo, consideram-se insolventes os devedores que se encontrem


impossibilitados de cumprir com as suas obrigações vencidas. Este é um critério simples.
No entanto, não é um critério perfeito.

O grande problema da insolvência das empresas prende-se com o facto de elas deixarem
dívidas superiores ao seu ativo. Se uma empresa tem um crédito de 1 milhão € e uma
dívida de 500 €, segundo este critério, a empresa estará insolvente. Ora, esta diferença de
ativo e passivo não tem grande impacto no mercado (são apenas 500 €). Como tal, foi
sendo proposto outro critério: o critério do balanço.

b) Critério do balanço

De acordo com este critério, uma certa entidade estará insolvente quando o seu passivo
for superior ao seu ativo.

Também este critério está sujeito a algumas críticas. É que o que interessa não é o
património do sujeito em si, mas sim a sua liquidez. Deste modo:
→ O sujeito pode ter um ativo superior ao passivo e, ainda assim, não conseguir
cumprir as suas obrigações. Para isso acontecer, basta que os bens do ativo sejam
ilíquidos e, portanto, difíceis de colocar rapidamente no mercado. Pensemos, por
exemplo, numa quinta.
→ O sujeito pode ter um passivo superior ao ativo e, ainda assim, conseguir cumprir
as suas obrigações, ou seja, ter liquidez. O sujeito pode, por exemplo, conseguir crédito
bancário ou financiamento dos sócios.

Para além disso, este critério pode ser relativamente instável. É que é muito possível que
uma empresa, num certo momento, esteja solvente e se, por exemplo, o seu ativo for em

58
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

ações, uma pequena desvalorização das mesmas faça com que de repente esteja insolvente
(e vice-versa).

O legislador, então, no art.º 3/1 CIRE previu o critério do fluxo de caixa (critério geral)
e no art.º 3/2 CIRE veio prever o critério do balanço para as pessoas coletivas e para
alguns patrimónios autónomos.

Para evitar algumas das críticas que se fazem a estes critérios, o legislador criou algumas
regras para o seu aperfeiçoamento.
→ Já não se exige que o ativo seja inferior ao passivo, mas sim que o ativo seja
manifestamente inferior ao passivo – art.º 3/2 CIRE. Porém, este critério não é muito
seguro: o que é que se entende por manifestamente inferior? 10%? 20%?

→ O art.º 3/3 CIRE tem um conjunto de outras correções que foram sendo feitas:
a): os valores previstos na contabilidade da empresa que levavam à
determinação do ativo e do passivo devem ser corrigidos de acordo com o
seu justo valor. Isto porque os valores ativos e passivos de uma empresa
podem estar previstos na sua contabilidade, por exemplo, através de
valores históricos (valores de aquisição do bem que pode já não ser o valor
atual do bem). Por outro lado, há elementos ativos que não constam do
balanço e que devem, ainda assim, ser contabilizados.
b): a consideração dos ativos e dos passivos de uma empresa é normalmente
cega à consideração de um conjunto de valores que não são
contabilisticamente mesuráveis. Por exemplo, o valor de uma marca, o
valor da relação da empresa com os seus clientes.
c): há dívidas no passivo que não devem ser tidas em conta para efeitos da
insolvência de uma empresa. Falamos, sobretudo, dos créditos por
suprimentos.

Âmbito Subjetivo da Insolvência

Quem é que pode ser declarado insolvente? Qualquer entidade prevista no art.º 2/1
CIRE.15/12/2021

Estão excluídas, porém, deste âmbito, as entidades elencadas no art.º 2/2 CIRE:

59
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

→ As pessoas coletivas públicas e as entidades públicas empresariais.

→ O que é que está excluído, mas só parcialmente? Essencialmente o setor financeiro:

as empresas de seguros, as instituições de crédito (onde se englobam os bancos) e as

sociedades financeiras. São excluídas porque têm regimes próprios. Portanto, na parte

em que estes regimes afastem o regime geral da insolvência, este não se aplica.

A declaração de insolvência pode decorrer da apresentação do devedor à insolvência.


Tal pode verificar-se, nos termos do art.º 3/4 CIRE, quando o devedor esteja numa
situação de insolvência iminente. Ele não está ainda em insolvência, mas apresenta-se à
insolvência. Neste caso, a insolvência será declarada.

Mas está o devedor potencialmente insolvente obrigado a solicitar a sua declaração de


insolvência? Está este devedor obrigado a apresentar-se à insolvência? A não
apresentação pode ser considerada um crime – art.º 18 CIRE. O devedor terá 30 dias após
o conhecimento da situação para se apresentar à insolvência.

Podemos colocar a seguinte questão: como é que sabemos em que dia é que o devedor
tomou conhecimento da insolvência? O art.º 18 CIRE vem prever uma série de
presunções, um conjunto de factos que, quando verificados, são suficientes para presumir
que o devedor tinha conhecimento da insolvência.

Perante esta obrigação, o devedor pode, porém, não se apresentar à insolvência. Quid
iuris? Esta não apresentação à insolvência terá uma série de consequências:
→ Nos termos do art.º 186, a não apresentação à insolvência faz com que a insolvência
se considere culposa. Nos termos do art.º 189, caso uma insolvência se considere
culposa, o tribunal poderá, por exemplo, decretar que as pessoas responsáveis pela
insolvência deixem de poder administrar patrimónios ou pertencer a órgãos sociais por
um período de 2 a 10 anos. Mais: os responsáveis pela insolvência podem perder os
créditos a que teriam direito sobre a entidade insolvente. Para além disso, podem ainda
ficar responsáveis pelo pagamento das dívidas da sociedade relativamente a terceiros.
→ Nos termos do art.º 227 CP, estaremos perante um crime.

A insolvência pode ser requerida por um credor, pelo MP em representação das


entidades cujos interesses lhe são confiados e qualquer responsável pelas dívidas do
devedor – art.º 20/1 CIRE.
60
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Para haver lugar a tal requerimento, a lei estabelece algumas limitações. Um credor só
poderá requerer a insolvência se se verificarem um conjunto de factos índice previstos no
art.º 20 CIRE. Ou seja, o credor não vai ter de demonstrar que o devedor está insolvente:
ele tem de demonstrar pelo pelos um dos factos previstos na norma.

Se o credor requerer a insolvência, a lei necessariamente estabelece limitações. Um credor


só pode requerer à insolvência se se verificarem um conjunto de factos índices previstos
no art.º 20 do CIRE. Ou seja, ele não tem de demonstrar que o devedor está insolvente:
ele tem de demonstrar um dos factos índices previstos nesta norma. Vejamos alguns
exemplos:
→ Alíneas a) e b). A suspensão generalizada de cumprimento das obrigações e a falta de
cumprimento de uma ou mais obrigações que pelo seu montante ou pela circunstâncias
em que foi incumprida, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a
generalidade das suas obrigações. Por exemplo, um sujeito deixa de pagar uma máquina
de valor muito elevado e ele precisa dessa máquina para desenvolver a sua atividade.
→ Alínea e). A insuficiência de bens penhoráveis para satisfazer o crédito do exequente
em ação executiva interposta contra ele.
→ Alínea g). Incumprimento generalizado (6 meses) de um conjunto de categorias de
dívidas que a lei considera particularmente importantes. Por exemplo, as dívidas
tributárias, as dívidas laborais, as dívidas à segurança social, as dívidas de arrendamento.
Qualquer categoria destas dívidas, se for incumprida durante 6 meses, é considerada um
facto índice.

A insolvência, em si, é decretada pelo tribunal em sentença - art.º 36 CIRE.

O devedor poderá opor-se à declaração de insolvência, mas terá o ónus de provar a sua
solvência ou a inexistência do fator-índice – art.º 30/3 CIRE.

Nos termos do art.º 22 CIRE, o pedido infundado de declaração de insolvência poderá dar
lugar à responsabilidade civil.

No art.º 98 CIRE temos a concessão de um privilégio mobiliário ao credor que requeira


a declaração de insolvência. Temos aqui o exemplo de uma sanção positivo: privilégio
atribuído pelo cumprimento da lei

Efeitos da declaração de insolvência

61
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Em primeiro lugar, nos termos do art.º 81 CIRE, o devedor perde os poderes de


administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente. Ou seja, o
devedor não pode ceder rendimentos ou alienar bens futuros.

O que é que acontece se o devedor praticar atos relativos a bens integrantes da massa? Os
negócios são válidos e eficazes; todavia, há uma restrição a esta eficácia. Esses atos não
produzem efeitos relativamente à massa insolvencial – ineficácia relativa. Não há
qualquer efeito transmissivo do bem integrado na massa. Se o devedor, por exemplo,
vender um bem integrado na massa, esse contrato produz efeitos, constituindo-se, por
exemplo, o crédito ao preço. O que sucede é que o bem, porque está integrado na massa,
não é transmitido para o comprador.

Em segundo lugar, nos termos do art.º 36 CIRE, haverá lugar à apreensão dos bens do
devedor para que estes sejam controlados pelo administrador de insolvência.

Caso haja indícios da prática de um crime, pode haver lugar à remissão para o MP dos
factos que se consideram como preenchendo o tipo legal de crime.

Na sentença de declaração de insolvência vai ser dado um prazo de 30 dias para a


reclamação de créditos – art.º 36/1/j) CIRE. A reclamação dos créditos será o ato em
que os credores da entidade insolvente vêm ao processo de insolvência dizer ao
administrador da insolvência que créditos é que têm sobre a sociedade e qual a sua posição
face a esses créditos. No final destes 30 dias, o administrador da insolvência vai olhar
para todos estes créditos e organizá-los em categorias (que analisaremos à frente). Os
credores têm de reclamar os seus créditos no processo nos termos do art.º 128. O
administrador pode ele próprio reconhecer certos créditos mesmo não reclamados se esse
elemento resultar imediatamente da contabilidade do devedor. Nestes casos, não é
absolutamente necessário reclamar.

Depois, há uma segunda sentença integrada no processo de insolvência que é a sentença


de verificação e graduação de créditos. O tribunal determina quais são os créditos que
ele reconhece e qual a sua graduação.

Bens que integram a massa

A massa insolvente é composta pelos bens penhoráveis do devedor e outros que ele venha
a adquirir no decurso do processo. Estes bens formam um património autónomo – a

62
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

massa é um património autónomo. Este património autónomo visa a satisfação, nos


termos da lei insolvencial, dos credores.

Quem passa a administrar os bens da massa, nos termos do art.º 84 CIRE, é o


administrador de insolvência. Este é nomeado pelo tribunal com a sentença de
declaração à insolvência, nos termos art.º 36/1/d) CIRE. Em certos casos, a administração
de uma empresa integrada na massa pode ser assegurada pelo devedor (mas isto é só em
casos muito específicos) – art.º 36/1e) CIRE.

A sentença de declaração de insolvência decreta a apreensão imediata para entrega ao


administrador dos elementos da contabilidade do devedor e de todos os seus outros bens,
ainda que estejam arrestados, penhorados ou de qualquer outra forma apreendidos. A
ideia é juntar todos esses bens na massa.

Dois efeitos especialmente relevantes desta declaração são os seguintes:


→ Nesta sentença, o juiz designa prazo para a reclamação dos devedores

→ Designa também o dia e a hora da assembleia de credores de apreciação do


relatório.

Esta assembleia é especialmente importante no âmbito do processo insolvencial. Isto


porque da declaração de insolvência não resulta necessariamente a execução universal
dos bens do devedor (antiga consequência da insolvência). Da declaração de insolvência
pode decorrer ainda a recuperação do devedor através de um plano de insolvência. Temos
basicamente duas opções: liquidação do devedor ou recuperação do devedor.

Quando é que se decide o recurso a uma ou outra das vias? É, na prática, quase sempre
aquando da realização dessa assembleia. Isto porque o administrador da insolvência tem
de fazer um relatório que apresenta nessa assembleia relativo à perspetiva de recuperação
do devedor ou da empresa integrada na massa. Com base neste relatório, esta assembleia
de credores pode determinar que o administrador faça essa proposta de recuperação ou
então podem outros credores fazê-lo ou o próprio devedor. Depois haverá, no fim da linha,
uma assembleia de credores com vista à aprovação do plano.

A lei estabelece, como critério preferencial, no art.º 1 CIRE, a recuperação do devedor ou


da empresa. Porém, analisando os regimes, decorre que esta escolha é simplesmente dos
credores. Por isso é que esta assembleia de apreciação do relatório é tão relevante. Se

63
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

nesta assembleia for decidido não elaborar um plano de recuperação, o administrador terá
de proceder com prontidão à alienação dos bens incorporados na massa. Nesta fase, já é
quase impossível a recuperação da empresa porque os bens começam a ser alienados.

Por fim, todos os créditos e todas as dívidas da sociedade insolvente vencem-se com a
declaração da insolvência.

Classificação dos créditos no âmbito da insolvência

São os seguintes créditos os que devemos ter em conta:


● Créditos sobre a massa insolvente
● Créditos sobre a insolvência
o Créditos garantidos
o Créditos privilegiados
o Créditos comuns
o Créditos subordinados
Créditos sobre a massa insolvente/dívidas da massa

As dívidas da massa vêm previstas no art.º 51 CIRE. São as dívidas que resultam do
próprio decurso do processo de insolvência.

São consideradas dívidas da massa, por exemplo, as custas processuais, os honorários do


administrador da insolvência ou os créditos emergentes de atos de administrador
assumidos pelo administrador da insolvência. Quanto a este último, a propósito da
locação financeira, falamos disto. Pode o administrador da insolvência decidir cumprir
ou não o contrato. Se o administrador decidir incumprir um contrato que estava em curso,
então os créditos resultantes desse incumprimento serão dívidas da massa.

As dívidas da massa são, à partida, satisfeitas à frente de todos os outros créditos.

As dívidas da massa não estão sujeitas a reclamação dos credores, porque elas decorrem
do próprio processo de insolvência, o que significa que o administrador da insolvência já
tem conhecimento delas.

Para além disso, é ainda possível em algumas situações, caso estas dívidas não sejam
pagas, responsabilizar o próprio administrador da insolvência. Quando ele, por exemplo,

64
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

determina que um certo contrato vai continuar a ser executado, sabe que se no final não
tiver dinheiro para pagar esses créditos, ele próprio poderá ser responsabilizado por eles.

Créditos garantidos – art.º 47/4/a) CIRE

Os créditos são garantidos quando o seu cumprimento está garantido por uma garantia
real ou por um privilégio especial.

Estes créditos são compostos tanto pelo capital em si como pelos juros decorrentes do
não cumprimento desses créditos.

Não são créditos garantidos aqueles que possuam uma garantia pessoal.

Os créditos garantidos são os segundos a serem pagos, logo depois das dívidas da massa.

Se a garantia real não for bastante para cumprir a totalidade do crédito, o que restar deste
crédito será considerado como crédito comum. Por exemplo, se há um crédito no valor
de 100 e a garantia real for 80, há 20 que não estão cobertos pela garantia. Estes 20 irão
passar para os créditos comuns.

Créditos privilegiados – art.º 47/4/a) CIRE

São créditos privilegiados os créditos que possuem um privilégio geral no seu


cumprimento.

O exemplo mais importante destes créditos é o dos créditos resultantes do não pagamento
dos honorários aos trabalhadores – art.º 333 CT.

Créditos comuns

Os créditos comuns não tem nenhuma garantia nem nenhum privilégio associado, mas
também não existe nenhum facto que permita classificá-los como créditos subordinados.

Estes créditos podem incluir, por exemplo, garantias pessoais.

O pagamento destes créditos é feito depois de terem sido pagos os créditos sobre a massa
insolvente, os créditos garantidos e os créditos privilegiados. Suponhamos que há 2
créditos sobre a insolvência: um no valor de 700 e outro no valor de 300. Suponhamos

65
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

que os bens integrados na massa valem 100. Significa que 1 será satisfeito em 70 e outro
em 30.

Créditos subordinados – art.º 48 CIRE

São créditos subordinados os créditos mencionados no art.º 48 CIRE e que, pelas


circunstâncias em que apareceram na sociedade se considera de alguma forma
merecedores de um regime mais prejudicial.

Esses créditos têm uma situação de desprivilegio face aos demais créditos. Os créditos
subordinados não atribuem a possibilidade de os seus credores votarem na assembleia de
credores. Para além disso, os credores subordinados não podem compensar os créditos
através de dívidas que tenham.

Dentro dos credores subordinados, eles não são todos tratados igualmente. Antes, são
pagos pela ordem prevista no art.º 48 CIRE. Notemos que no fim desta hierarquia estão
os créditos por suprimento.

Vejamos alguns exemplos de créditos subordinados:


→ Créditos de que sejam titulares pessoais especialmente relacionadas com o

insolvente, desde que essa declaração existisse à data da aquisição do crédito. Neste

âmbito, temos de atender ao art.º 49 CIRE.

→ Créditos que as partes tenham convencionado como subordinados

→ Créditos que resultem a título gratuito, ou seja, créditos que não tenham

correspondido, no património da empresa, a qualquer ativo (por exemplo, doações).

→ Créditos por suprimento.

Como há esta hierarquia muito extensa de credores, a graduação dos créditos é muito
importante. A situação do credor aqui é substancialmente diferente consoante a
qualificação do seu crédito.

Regime dos negócios em curso

A lei contempla ainda um regime para os chamados negócios em curso. Regulam-se aqui
os efeitos que a insolvência terá sobre os negócios que estão a ser executados ainda no
momento da declaração.

66
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

A ideia geral prevista no art.º 102 CIRE é a de que, à partida, com a declaração de
insolvência, caberá ao administrador da insolvência decidir quais dos negócios em curso
vão ser executados e quais não vão ser mais executados. O objetivo desta norma é permitir
que o administrador da insolvência determine quais os contratos essenciais à obtenção do
máximo de crédito possível para distribuir pelos credores.

Quanto a estes contratos, o administrador da insolvência tem 2 possibilidades:

a) Executar o contrato

O administrador pode executar o contrato. se o fizer, os créditos resultantes dessa


execução vão-se considerar dívidas da massa insolvente – art.º 51/f) CIRE.

b) Resolver o contrato

O administrador da insolvência pode resolver o contrato. Esta possibilidade terá os efeitos


previstos no art.º 102/3 CIRE.

Nos artigos seguintes, a lei prevê um regime específico para determinados contratos
(elenco bastante amplo). Por exemplo, a compra e venda, a locação financeira, a revenda
com reserva de propriedade, a locação, o mandato.

ESTATUTO DOS COMERCIANTES

Em que é que se manifesta o estatuto específico dos comerciantes?

Os atos dos comerciantes são considerados subjetivamente comerciais, nos termos


do art.º 2, 2ª parte do CCom. Isto significa que, apesar de tudo, o nosso direito comercial
ainda é muito um direito de sujeitos.

A prova de alguns factos em que participam comerciantes é facilitada. Por


exemplo, o art.º 369 CCom.

Os créditos dos comerciantes obedecem ao regime da prescrição presuntiva do


art.º 317/b) CC (2 anos).

As dívidas comerciais dos comerciantes casados presumem-se contraídas no


exercício dos respetivos comércios. Isto significa que, em princípio, são da

67
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

responsabilidade dos comerciantes e dos seus cônjuges. Isto resulta do art.º 15 CCom
conjugado com o art.º 1691/1/b) CC (fazer a remissão).

Nos termos do art.º 18 do CCom, os comerciantes estão obrigados a:

● Adotar uma firma


● Ter escrituração mercantil
● Fazer inscrever no registo comercial os atos a ele sujeitos
● Dar balanço e prestar contas.

OBRIGAÇÃO DE ADOTAR UMA FIRMA

A firma é o nome comercial do comerciante. Firmar é sinónimo de assinar. O


objetivo do CCom é garantir que o comerciante tivesse uma assinatura própria para o
exercício do comércio. A grande vantagem da firma é que ela torna mais fácil distinguir
quando o comerciante atua como comerciante ou fora dessa categoria.

As coisas foram evoluindo e não foram evoluindo no sentido do rigor jurídico.


Há, neste momento, várias entidades não comerciantes que também são identificadas
como «firma». Por exemplo, as sociedades civis sob forma comercial, agrupamentos
complementares de empresas com objeto civil (ACEs com objeto civil), empresários
individuais não comerciantes (por exemplo, um advogado).

O regime da firma vem no regime do registo nacional de pessoas coletiva (RRNPC) que
foi aprovado pelo DL 199/98, essencialmente nos art.º 32 e ss.

Firma vs. Denominação

Qual a diferença entre firma e denominação? Neste momento ninguém sabe bem.
Tradicionalmente, falava-se em firma quando ela era constituída pelo nome das pessoas;
e em denominação quando estavam em causa expressões que indicavam essencialmente
o objeto social da atividade do comerciante. A verdade é que, atualmente, essa distinção
perdeu clarividência na medida em que o RRNPC utiliza normalmente o termo «firma»
para se referir a todos os nomes comerciais dos comerciantes, contenham ou não estes
expressões que não o nome. Ou seja, usa-se «firma» quer para as firmas quer para as
denominações dos comerciantes; e usa-se a expressão «denominação» para os não

68
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

comerciantes. Mas a verdade é que isto não é rigoroso, pois às vezes o legislador usa os
dois termos indefinidamente. Normalmente, a lei refere-se mais a «firma».

Composição de uma firma

Firmas dos comerciantes individuais

Nos termos do art.º 38 RRNPC, a firma de um comerciante em nome individual tem de


ser composta pelo nome do comerciante (completo ou abreviado). Em regra, a abreviação
não pode conduzir-se a um só vocábulo. Ou seja, ninguém pode ter por firma «José» ou
«Almeida».

Os comerciantes em nome individual estão a voltar em força por razões fiscais. Isto
acontece muito ao nível das start-ups. Outra coisa que voltou em força foram as
cooperativas, também ao nível das start-ups.

Os nomes dos comerciantes em nome individual podem ser antecedidos de expressões ou


siglas que correspondam a título académicos, profissionais ou nobiliárquicos. Pode ser
aditada alcunha ou expressão alusiva à atividade exercida pelo comerciante. Se estiver
em causa um EIRL, a parte final da firma tem de ter esta abreviatura ou então
«estabelecimento comercial de responsabilidade limitada» - art.º 40 RRNPC.

Firmas das sociedades comerciais

A matéria das firmas das sociedades em nome coletivo vem no art.º 177/1 CSC. A firma
deve ser composta:

● Ou pelo nome completo ou abreviado ou firma de todos os sócios


● Ou pelo nome completo ou nome abreviado ou firma de um dos sócios. Neste
caso, terá de conter o aditamento abreviado ou por extenso «e Companhia» ou
qualquer outro que indique a existência de outros sócios (por exemplo, «e
Irmãos», «e Filho»).

Apesar de o art.º 177 CSC não o dizer, nada impede a firma das sociedades em nome
coletivo de ter uma expressão alusiva ao objeto comercial por analogia com o art.º 38 do
RRNPC; assim como siglas, iniciais, expressões de fantasia ou composições por analogia
com o art.º 42 do RRNPC.

69
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Quanto às sociedades por quotas temos o art.º 200/1 CCom. A firma deve ser formada
com ou sem sigla:

● Ou pelo nome completo ou abreviado ou firma de todos, alguns ou algum dos


sócios (firma-nome)
● Ou por uma denominação particular (firma-denominação)
● Ou pela reunião de ambos os elementos (firma-mista).

Em qualquer dos casos, tem de estar presente o aditamento «Limitada» ou «Lda».

Quanto às sociedades anónimas, temos o art.º 275/1 CSC. A firma é igual à das
sociedades por quotas, ou seja, deve ser formada com ou sem sigla:

● Ou pelo nome completo ou abreviado ou firma de todos, alguns ou algum dos


sócios (firma-nome)
● Ou por uma denominação particular (firma-denominação)
● Ou pela reunião de ambos os elementos (firma-mista).

Neste caso, o aditamento será «sociedade anónima» ou «SA».

Quanto às sociedades em comandita temos o art.º 467 CSC. Deve ser composta pelo nome
completo ou abreviado ou firma de algum, alguns ou de todos os sócios comanditados e:

● O aditamento «em Comandita» ou «& Comandita» nas sociedades em comandita


simples
● O aditamento «em Comandita por Ações» ou «& Comandita por Ações nas
sociedade em comandita por ações.

Nestas firmas é possível que constem o nome ou firma de sócios comanditários e de não
sócios se consentirem expressamente, mas ficam sujeitos às consequências do art.º 467/3
e 4 do CSC. Quanto aos nomes de fantasia, aplicamos o art.º 42 RRNPC por analogia
também.

Princípios informadores das firmas

Quais são os princípios a que tem de obedecer a composição das firmas?

70
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Art.º 32/1 RRNPC – Princípio da verdade: Os elementos que compõem as firmas ou


denominações devem ser verdadeiros e não induzir em erro sobre a identificação, natureza
ou atividade do seu titular. Se a pessoa deixa de ser sócia, a firma deve ser alterada no
prazo de um ano, salvo se o sócio que saiu ou os herdeiros consentirem por escrito na
continuação da firma. Isto é uma restrição ao princípio da verdade – art.º 32/5 RRNPC.

Art.º 33 e art.º 35 RRNPC – Princípios da novidade e da exclusividade: As firmas e


denominações devem ser distintas e não suscetíveis de confusão ou erro com as firmas
previamente registas ou licenciadas no mesmo âmbito de exclusividade ou com
designações de instituições notoriamente conhecidas – art.º 33 RRNPC.

Qual é o âmbito de exclusividade?

No caso das sociedades comerciais – todo o território nacional – art.º 37/2 RRNPC.

No caso dos agrupamentos complementares de empresas (ACE), EPEs, cooperativas e


agrupamentos europeus de interesse económico (AEIE) – todo o território nacional,
exceto quando o sue objeto estatutário incida sobre a prática de atividades essencialmente
locais ou regionais, caso em que a exclusividade se restringe a esse âmbito – art.º 36/3 e
art.º 43/3 RRNPC.

Quanto aos comerciantes individuais:

● se estes tiverem uma firma-nome não gozam de direito de exclusividade sobre a


firma, apenas podendo protegê-la com recurso ao direito ao nome do CC (art.º
72/2 CC) ou eventualmente à concorrência desleal (se os requisitos estiverem
preenchidos) prevista no art.º 311 CPI.
● Se tiverem uma firma mista, a exclusividade restringe-se ao concelho onde se
encontra o estabelecimento principal (art.º 38/4 e art.º 40/3).

Qual o critério de inconfundibilidade das firmas? O critério do bom pai de família.


Atende-se à grafia das palavras, ao efeito fonético das expressões, ao núcleo
caracterizante, às siglas. E atenção que não só é proibido haver confundibilidade entre 2
comerciantes como é proibido também que da parecença das firmas pareça resultar uma
relação especial entre comerciantes distintos.

71
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

O Dr. Coutinho de Abreu dá muitos exemplos de firmas consideradas confundíveis em


sede de processos.

Têm alguns autores defendido não valer este princípio em relação a comerciantes não
concorrentes. Na verdade, dizem, o risco de confusão entre firmas/denominações em
casos tais é inexistente ou quase. Confortando este entendimento estaria também o art.º
33/2 RRNPC ao referir expressamente a «afinidade ou proximidade das suas atividades».
Para outros autores, como Coutinho de Abreu, porém, tal princípio vale também para
comerciantes não concorrentes. Entendem que a lei não faz essa distinção, e, portanto,
não cabe ao intérprete fazê-lo. Não obstante, o critério da concorrência é um critério que
deve ser ponderado na confundibilidade. Ou seja, não é um critério de exclusão da
inconfundibilidade, mas sim um critério de ponderação dessa inconfundibilidade.

Art.º 33/3 RRNPC e art.º 10/4 CSC – Princípio da capacidade distintiva: O problema
da capacidade distintiva não se coloca nas firmas de nome, mas sim nas firmas de
denominação ou firmas-mistas, sobretudo que tenham elementos de fantasia. Por
exemplo, uma firma que contenha apenas referência à atividade do comerciante não tem
capacidade distintiva (por exemplo, «sociedade de seguros SA»). O que temos de fazer
para contornar essa violação é acrescentar elementos de nome ou de fantasia para conferir
essa indistintibilidade. Isto resulta do art.º 33/3 RRNPC e art.º 10/4 CSC.

Art.º 38/1 RRNPC e art.º 9/1/c) CSC – Princípio da unidade: Este é o princípio que mais
divide a doutrina. Ele não existe, por exemplo, no direito alemão. Entre nós, Ferrer
Correia defendia que os comerciantes podiam ter tantas firmas quantas as empresas que
tivesse.

À luz do direito português, o comerciante apenas pode adotar uma firma – art.º 38/1
RRNPC e art.º 9/1/c) CSC. Isto com uma exceção: o comerciante em nome individual
que tenha uma atividade dentro de um EIRL e uma atividade fora de um EIRL, pode ter
duas firmas – art.º 40/1 RRNPC.

Nos termos do art.º 44/1 e 3 RRNPC, o comerciante que adquirir a firma de outro, poderá
adquirir as firmas associadas à empresa que adquiriu. Isto significa, portanto, que as
firmas são transmissíveis. O comerciante que compra essa empresa com outra firma terá
de lhe aditar a sua firma.

72
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Princípio da licitude: As firmas não podem conter certas expressões – art.º 32/4 RRNPC.

Transmissibilidade das firmas

Diz o Dr. Coutinho de Abreu que as firmas são coisas incorpóreas, sendo que são
transmissíveis em certos contextos, nomeadamente aquando da transmissão do
estabelecimento comercial em que se inserem. A ligação da firma à empresa é inevitável.

OBRIGAÇÃO DE TER ESCRITURAÇÃO MERCANTIL

A escrituração mercantil é o registo ordenado e sistemático em livros e documentos de


factos relativos à atividade mercantil dos comerciantes, tendo em vista a informação deles
e de outros sujeitos.

Sendo embora muito importante, a contabilidade (o regime em unidades monetárias de


factos, operações e situações patrimoniais contabilizáveis) não esgota a escrituração. Esta
compreende ainda, designadamente, a documentação de correspondência expedida pelo
comerciante e as atas de reuniões de órgãos (plurais, em regra) de sociedades e outras
entidades coletivas.

O modo como a escrituração mercantil está organizada sofreu uma alteração muito grande
com o DL 76-A/2006. Atualmente, o comerciante pode escolher o modo de organização
da sua escrituração mercantil, bem como o suporte físico – art.º 30 CCom. No entanto, as
sociedades comerciais continuam obrigadas a ter livros de atas – art.º 31 CCom. É preciso
ter em atenção que esta obrigação de ter livro de atas não é só das sociedades comerciais:
tende a alargar-se a todas as entendidas coletivas.

Esta matéria tem relevância fiscal e está também regulada na lei fiscal.

OBRIGAÇÃO DE PRESTAR CONTAS

Vem prevista no art.º 62 CCom. Os comerciantes são obrigados a dar balanço anual ao
seu ativo e passivo, nos primeiros três meses do ano relativamente ao ano anterior. Ou
seja, em entre janeiro e março de 2022 eu terei de dar o balanço das contas de 2021.

O balanço é o documento onde se compara o ativo com o passivo de modo a revelar o


valor do capital próprio ou de situação líquida. É um dos principais documentos de
prestação de contas, mas não é o único. Os outros são: demonstração dos resultados por

73
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

naturezas, demonstração das alterações do capital próprio, demonstração dos fluxos de


caixa por método direto e o anexo. Isto está no art.º 11 do DL 158/2009. Isto é o sistema
de normalização contabilística. Há comerciantes mais pequenos que estão dispensados
deste sistema.

A escrituração mercantil deve ser guardada durante o prazo de 10 anos, bem como a
correspondência emitida e recebida – art.º 40 CCom. Quanto aos livros de escrituração, o
prazo conta-se a partir da data do último assento ou do último lançamento. No entanto,
sendo uma sociedade comercial e havendo liquidação da sociedade comercial, o prazo
passa a ser de 5 anos que se contam da data da deliberação que aprova o relatório e contas
finais dos liquidatários e designa o depositário dos livros e demais documentos de
escrituração. Isto decorre do art.º 157/4 CSC.

Tratando-se de um comerciante em nome individual, se ele falecer, a pergunta é se esta


obrigação de escrituração passa para os herdeiros. A doutrina divide-se. Embora não haja
unanimidade na doutrina, parece de defender que sim.

OBRIGAÇÃO DE INSCRIÇÕES NO REGISTO COMERCIAL

O registo tem a função de publicitar – art.º 1 CRCom.

Quanto ao registo comercial, vigora um princípio de tipicidade, quanto aos factos e


entidades sujeitas a registo – art.º 1 e art.º 10/f) CRCom.

Os factos sujeitos a registo obrigatório estão no art.º 15 CRCom assim como noutros
diplomas legais.

A promoção do registo pode ser consultada online – www.empresaonline.pt.

O registo tem caráter público, pelo que qualquer pessoa pode pedir certidões dos atos de
registo e dos documentos arquivados, assim como obter declarações verbais ou escritas
sobre o conteúdo dos atos registados – art.º 73/1 CRCom.

Quando se fala de certidão permanente, estamos a falar da disponibilização em suporte


eletrónico permanentemente atualizado da reprodução dos registos em vigor, respeitantes
a entidade sediada em conservatória informatizada.

74
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Há atos de registo que são obrigatoriamente publicados. Nos termos do art.º 70/2 CRCom,
essas publicações devem ser feitas num site de acesso público.

Efeitos do registo e das publicações

Em regra, em Portugal, o efeito do registo e das publicações é um efeito de eficácia


perante terceiros. Aqui é igual. Nos casos de registo obrigatório, este registo é uma
condição de oponibilidade dos factos contra terceiros, ou seja, em princípio, os factos
sujeitos a registo que não estejam registados são eficazes entre as partes e os seus
herdeiros mas não em relação a terceiros – art.º 13/1 CRCom.

A oponibilidade é contra terceiros e não em favor de terceiros, o que significa que o


terceiro, em princípio, pode prevalecer-se de factos não registados. O que não pode
acontecer é esses factos serem invocados contra si.

Há casos excecionais em que o registo é constitutivo. Neste caso, eles são inoponíveis a
qualquer pessoa enquanto não forem registados.

PROBLEMA DA RESPONSABILIDADE POR DÍVIDAS COMERCIAIS


CONTRAÍDAS POR CÔNJUGE COMERCIANTE

Este regime é diferente do regime das dívidas comuns dos cônjuges porque aqui há duas
presunções:

● art.º 1691/1/d) CC
● art.º 15 CCom

São da responsabilidade de ambos os cônjuges – quando casados em regime de comunhão


de adquiridos ou de comunhão geral de bens – as dívidas contraídas por qualquer um dos
cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em
proveito comum do casal – art.º 1691/1/d) CC. Isto significa que, por estas dívidas,
responde primeiro o património comum dos cônjuges e, na falta ou insuficiência deste,
solidariamente os bens próprios de qualquer dos cônjuges – art.º 1695/1 CC.

Ora, decorre do art.º 1691/1/d) CC e do art.º 342/1 CC que os credores que pretendam
valer-se do regime nela previsto têm de provar terem as dívidas sido contraídas «no

75
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

exercício do comércio». Mas não tem de ser assim quando um comerciante a contraí-las.
Reforçando a tutela dos credores dos comerciantes, o art.º 15 CCom presume que as
dívidas do cônjuge comerciante são contraídas no exercício do seu comércio. Ou seja,
para beneficiarem desta presunção, credores têm apenas de provar que o sujeito
contraente das dívidas é comerciante e que as dívidas são comerciais – resultantes de atos
de comércio, objetivos ou subjetivos, ou de obrigação comerciais não derivadas de atos
mercantis. Ora, em geral, é mais fácil provar que um ato é comercial do que provar que
esse ato foi praticado no exercício do comércio do seu autor.

O que é que não tem de provar? Não tem de provar que esse ato de comércio é um ato
comercial do comerciante porque isso resulta da presunção do art.º 15 CCom.

Ora, tanto a presunção do art.º 1691/1/d) CC como a presunção do art.º 15 CCom são
ilidíveis, sendo que essa ilação cabe aos cônjuges. Porém, não podemos deixar de referir
que a presunção de proveito comum do casal é de muito difícil afastamento, uma vez que
não se exige a prova do resultado efetivo. O que está em causa nem proveito comum é o
fim a que a dívida presidiu. A grande questão é que este proveito comum não tem de ser
necessariamente económico: pode ser moral, intelectual (por exemplo, a escola do filho,
uma viagem de férias, obras na casa de família, uma festa – tudo isto é considerado
proveito comum do casal).

Há um caso na jurisprudência em que foi provado o afastamento do proveito comum do


art.º 1691/1/d). Os cônjuges estavam separados de facto e o cônjuge comerciante não só
não tinha nenhuma obrigação de assistência do outro cônjuge como não contribuía de
facto para a sustentação deste. Afastaram-se todos as interligações.

EMPRESAS

A empresa tem vindo a assumir crescentemente um lugar de destaque na identificação da


comercialidade. Assiste-se a um movimento lento de superação do critério objetivo e
subjetivo de comércio para um critério organizacional da empresa. Ainda não chegamos
aí por duas realidades que são relativamente de fronteira, mas que existem:

1. há comerciantes que não são empresários


2. e mais importante, é que há empresas que não são comerciais

76
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Portanto, a sobreposição entre os dois fenómenos não é total. Quando falamos em direito
comercial e nas suas especificidades, o que a realidade económica retrata é a exigência
da atividade empresarial. O que está subjacente em termos de realidade económica e de
realidade social é esta especificidade da atividade empresarial.

O QUE SÃO AS EMPRESAS?

Questão da pessoalidade das empresas: há ramos de direito para os quais a empresa é


sujeito. O exemplo máximo é o direito da concorrência. Não há uma noção unívoca de
empresa. O CCom não tem nenhuma noção de empresa. Mas há outros instrumentos
legislativos onde essa noção existe. Vamos ver 2 que têm perspetivas diferentes:

Art.º 3 da Lei de Defesa da Concorrência – para este artigo a empresa é «qualquer entidade
que exerça uma atividade económica que consista na oferta de bens ou serviços num
determinado mercado, independentemente do seu estatuto jurídico e do modo de
funcionamento» - exemplo da aceção subjetiva da empresa.

Art.º 5 do CIRE – este artigo determina que «para efeitos deste código, considera-se
empresa toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer
atividade económica» - exemplo da aceção objetiva da empresa.

Empresa vs. Estabelecimento Comercial

Em termos de nomenclatura, uma das principais questões que se coloca é saber se empresa
e estabelecimento comercial são sinónimos. Durante muito tempo a resposta foi
afirmativa. No entanto, crescentemente a doutrina, sobretudo a Escola de Lisboa, tem
defendido a distinção entre a empresa e o estabelecimento comercial. Como?

● Estabelecimento comercial = empresa em sentido objetivo = instrumento ou


estrutura produtiva de um sujeito.
● Empresa = empresa em sentido subjetivo e funcional = sujeito empresário
(subjetivo) ou atividade produtiva do empresário (funcional).

Uma coisa é certa: não se usa o termo «estabelecimento comercial» para identificar a
empresa em sentido subjetivo. Mas o contrário acontece muito: usar o termo empresa
quer para a empresa em sentido objetivo quer para o sentido subjetivo. Isto acontece muito
na legislação. Portanto, isto significa que podemos fazer esta distinção tendencial, mas

77
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

não podemos fazer esta distinção em termos normativos. Neste momento, deveremos
acautelar a possibilidade de, perante uma certa norma, os termos serem usados como
sinónimos e, portanto, ter de se tirar do contexto o seu significado.

Empresa em sentido subjetivo

Numa aceção subjetiva, olhamos as empresas como sujeitos jurídicos que exercem uma
atividade económica. As empresas em sentido subjetivo evidenciam-se principalmente no
direito (de defesa) da concorrência.

Aqui, as empresas aparecem-nos como sujeitos de direitos e deveres: só os sujeitos


jurídicos se comprometem a «práticas concertadas», celebram «acordos», «contratos»,
são passíveis de sanções, etc.. Podem ser pessoas singulares ou coletivas, bem como
sociedades, associações ou outras entidades sem personalidade jurídica.

Estes sujeitos jurídicos, para serem considerados empresas, têm de exercer uma atividade
económica – implicante de troca de bens e/ou serviços. Todavia, tal atividade não tem
necessariamente de ser dirigida à obtenção de lucros. Por outro lado, tal atividade também
não tem de ser suportada por uma organização de trabalho dependente de outros fatores
produtivos (não se exige uma organização de meios autonomizável face ao sujeito): a
atividade pode depender tão-só da pessoa do sujeito. Nessa medida, é possível serem
considerados empresas inventores que comercializem as respetivas invenções, artistas
que explorem comercialmente as suas prestações artísticas, profissionais liberais.

Seguindo o Dr. Coutinho de Abreu, não exercem uma atividade económica


caracterizadora de empresa para efeitos do direito da concorrência as seguintes entidades:

a) Consumidores privados
b) Estado e outros entes públicos que adquirem bens para satisfação de necessidades
próprias sem intenção de os reintroduzir no mercado
c) Estado e outros entes públicos que atuem somente no exercício de prerrogativas
de autoridade de poder público
d) Trabalhadores dependentes
e) Entidades que exercem atividades exclusivamente sociais baseadas no princípio
da solidariedade sem fins lucrativos recebendo os beneficiários prestações
gratuitas ou mediante contraprestações não proporcionais aos custos daquela

78
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Tendo em mente a alínea e), as universidades públicas não são empresas para efeitos de
direito da concorrência. Isto porque há uma total desproporção entre aquilo que os
estudantes implicam a nível de custos para o estado e aquilo que os estudantes pagam
para poder frequentar a universidade (a propina). O mesmo sucede com os hospitais
públicos. Se estas entidades fossem consideradas empresas no âmbito do direito da
concorrência, provocariam distorções inaceitáveis no mercado.

As empresas em sentido subjetivo podem situar-se no setor privado, público ou


cooperativo.

As empresas do setor privado podem ser entidades coletivas com ou sem personalidade
jurídica. As mais comuns serão sociedades comerciais, mas poderão ser ACEs, AEIE, e
podem também ser associações e fundações. Podem também ser pessoas singulares:
comerciantes, artesãos, cientistas, agricultores, profissionais liberais. Daqui resulta logo
que existem empresas em sentido subjetivo que não são empresas em sentido objetivo.

No setor público temos sobretudo as empresas públicas. Porém, temos de ter em atenção
que algumas destas empresas podem não respeitar o requisito do exercício da atividade
económica que acima vimos. Um exemplo disso são os hospitais EPE.

No setor cooperativo temos as cooperativas de 1º grau e algumas uniões de cooperativas.

Nos termos do art.º 3/2 da Lei da Defesa da Concorrência, considera-se como uma única
empresa o conjunto de empresas juridicamente distintas que constituam uma unidade
económica ou mantenham laços de interdependência. Isto permite-nos perceber que o que
revela mais no direito da concorrência é a substância económica.

Artigo 5º do CISolvência à “ para efeitos deste código, considera-se empresa toda a


organização de capital e trabalho destinado ao exercício de qualquer atividade
económica”

O artigo 3º apresenta-nos um exemplo da aceção jurídica em sentido subjetivo e o


artigo 5º em sentido objetivo. Em termos de nomenclatura, uma das principais questões é
saber se empresa e estabelecimento comercial são sinónimos? Durante muito tempo a
resposta foi afirmativa, era a mesma coisa.

79
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

No entanto, crescentemente a doutrina, sobretudo na escola de Lisboa tem defendido


a diferença entre estes , identificando o estabelecimento comercial como empresa em
sentido objetivo, enquanto instrumento ou estrutura produtiva de um sujeito e empresa
como um sentido subjetivo e funcional, ou seja , sinónimo de sujeito empresário ou
identificar a atividade produtiva do empresário. Neste momento, devemos acautelar a
possibilidade do termo empresa e estabelecimento comercial serem usados como
sinónimos, dependendo do contexto em que o conceito aparece.

2 principais aceções jurídicas de empresa :

● em sentido subjetivo: Estamos a falar como sinónimo de sujeito jurídico que


exercem uma atividade económica. Termo usado no direito da concorrência.
Aparecem como sujeitos de direitos e deveres e podem ser pessoas singulares ou
coletivas; entidades sem personalidade jurídica. É necessário para que a empresa
seja qualificada como tal que esta exerça uma atividade económica, ou seja, troca
de bens e/ou serviços.

Não é necessário que atividade se dirija à obtenção de lucros, nem que seja
suportada por uma organização de meios autonomizável face ao sujeito, daí que
ao contrário da empresa em sentido objetivo caibam nesta noção em sentido
inventores que comercializam as suas próprias invenções; artistas que explorem
comercialmente as sua prestações artísticas; comerciais liberais, etc.

Segundo o Dr. Coutinho de Abreu: Não exercem uma atividade económica


caracterizadora de empresa para efeitos de direito da concorrência:

● consumidores privados;
● O estado e outros entes públicos que adquirem bens para satisfação de
necessidades própria sem intenção de os reintroduzir no mercado;
● O estado e outros entes públicos que têm somente no exercício de prerrogativas
de autoridade ou poder público;
● Trabalhadores dependentes;
● Entidades que exercem atividades exclusivamente sociais, baseadas no princípio
da solidariedade , sem fins lucrativos, recebendo beneficiais prestações gratuitas
ou mediante contraprestações não proporcionais ao custos daquelas;

80
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

● As faculdades com exceção da UP são empresas para efeitos de direito de


concorrência, porque no nosso caso há uma total desproporção entre o custo e o
que custam em termos de serviço. Estas não podiam ser consideradas empresas
porque isso poderia levar a que fossem condenadas por concorrência desleal.

As empresas em sentido subjetivo podem situar-se nos setores privado, público ou


cooperativo. As do setor privado podem ser entidades coletivas com ou sem personalidade
jurídica , ACE,AEIE e associações e fundações ou pessoas singulares, comerciantes;
artesãos; cientistas; agricultores; profissionais liberais .

Existem empresas em sentido subjetivo que não são empresas em sentido objetivo. No
setor público temos sobretudo as empresas públicas, mas algumas destas empresas podem
não respeitar o requisito do exercício da atividade económica que vimos à pouco. No setor
cooperativo temos cooperativas de 1º grau e algumas uniões de cooperativas. Nos termos
do artigo 3º /2 da lei de defesa da concorrência considera-se como uma única empresa o
conjunto de empresas juridicamente distintas que constituam um unidade económica ou
mantenham laços de interdependência,

● Empresa em sentido objetivo: A empresa é o principal instrumento para o


exercício da atividade comercial. Recorrendo à noção da professora Mariana
Fontes da Costa, baseada em opiniões de diversos autores: “A empresa em sentido
objetivo corresponde a uma organização intencional de meios (pessoas e bens)
apta à promoção do exercício relativamente estável e autónomo de uma atividade
de produção de um resultado consubstanciador de valor económico próprio
suscetível de troca no mercado predominante com finalidade lucrativa”

O Dr. Coutinho de Abreu rejeita a referência ao mercado, porque defende que o


mercado é o encontro entre oferentes e demandantes de bens e acha que não deixam de
ser empresas aquelas organizações que apenas produzem para o Estado ou outra empresa.

A professora Mariana resolveu esta questão com a palavra “suscetibilidade” , há


um valor económico suscetível de ser trocado nos mercados, podendo não ser. A
compreensão do direito comercial não se faz fora do mercado, mas numa empresa pode
não haver .

81
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

O professor Filipe Cassiano dos Santos identifica os seguintes centrais do conceito


de empresa em sentido objetivo :

1. Estrutura organizativa complexa acompanhada de uma estratégia de intervenção


no mercado;
2. Natureza produtiva da atividade prosseguida com vista de produção de valor
económico novo;
3. Particular relevância do capital de entre os meios colocados ao serviço da
atividade empresarial;
4. Autonomia funcional do processo produtivo, não dependente exclusivo de
qualquer dos seus elementos ou fatores extrínsecos;
5. Objetivo de autonomia financeira com predominância da finalidade lucrativa;
6. Identidade própria da empresa como sujeito económico e verdadeiro ator do
mercado.

A finalidade lucrativa gera discussões na doutrina, e por isso se procura, cada vez
mais, autonomizar o direito comercial na sua qualidade de direito das empresas (isto
sucede, já, no Brasil, no tratamento dado ao ramo de Direito em si, nos manuais e na
legislação). Em Portugal, a especialização começa a ser em jurídico-empresariais. No
entanto, há dificuldades de fronteira: Não existe uma coincidência total entre direito
comercial e empresarial.

Há atos que a lei qualifica como objetivamente comerciais ,mas não lhe pode ser
identificada uma estrutura empresarial subjacente, p.e, um trabalhador subordinado numa
fábrica que compra um automóvel antigo para restaurar e revender. É um ato
objetivamente comercial ,não havendo no entanto uma estrutura empresarial subjacente
Pestana de Vasconcelos dá o ex. do vendedor ambulante, que é um comerciante, mas não
ser empresário, porque pode exercer a sua atividade comercial sem a estrutura
organizacional complexa que justifique autonomia e, assim, uma empresa. Estes casos
são cada vez mais esporádicos, de facto (Coutinho de Abreu) e mesmo os vendedores-
ambulantes têm vindo a adotar modelos de organização mais complexos (ex. das bolas de
Berlim no Algarve).

Pais de Vasconcelos defende que não há comércio sem empresa, por mais simples
que seja , o exercício de comércio implica sempre uma. Se há comércio sem ser

82
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

empresarial a grande limitação é o facto de haver empresas que não são comerciais, o
problema está nas empresas fora do comércio. Há inúmeras empresas que não exercem
atividade comercial.

As empresas comerciais são, segundo Coutinho de Abreu, aquelas cujo objeto se


traduz na realização de atos ou atividades objetivamente mercantis. Tem relevância neste
âmbito o artigo 230 º do CCom. A grande dúvida é para transformarmos o direito
comercial e empresarial, vamos ou não abdicar da comercialidade.

Os profissionais liberais, que não são comerciantes (sociedades de advogados,


nomeadamente), constituem situações de fronteira na utilização deste critério.

Empresa como sinónimo de estabelecimento comercial: O estabelecimento comercial


constitui um bem objetivo (não é um ente); A empresa não é um ente, em sentido objetivo
é um bem económico transpessoal, ou seja, é cindível que a pessoa que a criou ou a quem
pertence num determinado momento ; duradouro, tem de haver alguma estabilidade ;
reconhecível e irredutível, sendo totalmente distintos os negócios sobre a empresa dos
negócios sob algum ou alguns dos seus elementos. Estamos perante um bem complexo
composto por vários bens ou elementos. Isto leva-nos a um problema central que é o
trespasse. O trespasse é contrato pelo qual se aliena, se transmite a propriedade sobre o
estabelecimento comercial A principal pergunta associada ao trespasse é: O que é o
estabelecimento comercial ? No trespasse, o que se aliena com o estabelecimento
comercial?

Ex. A trespassa a B um café, mas leva as cadeiras, porque pertenciam a C, seu pai,
que apenas emprestou ao primeiro as cadeiras. Se deixa o frigorífico, mas leva a carne do
seu interior, está em incumprimento contratual? E um quadro valioso pendurado na
parede do EC? Uma guitarra autografada por um músico famoso, pode tirar a guitarra da
parede e levá-la para casa? E as dívidas associadas ao estabelecimento comercial? Ou
créditos? Há um comprador que deve, na exploração do EC, 150 mil euros, que ainda não
pagou, e A trespassa o estabelecimento comercial com todos os bens – B tem direito a
cobrar os 150 mil? São de B ou de A? E os contratos de trabalho? Os trabalhadores
continuam vinculados ao alienante, ou passam a estar vinculados ao adquirente? E se o
estabelecimento funciona num prédio numa fração autónoma que pertence ao alienante?

83
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Quais são as fronteiras, os elementos que compõem o estabelecimento comercial. Se ele


é transpessoal, transmissível, o que vai com ele?

Ao abrigo da liberdade contratual podemos definir o que transmitimos com o


estabelecimento, mas se retirarmos bens essenciais já não teremos um trespasse. Porquê
alguém teria interesse em simular um trespasse?

Tem a ver com o regime do arrendamento, trespassa-se muitas vezes para aproveitar as
fendas baixas em determinadas áreas da cidade

Quais são os elementos que compõem o estabelecimento comercial?

Conceção restrita (Dr. Coutinho de Abreu): O estabelecimento comercial abrange


apenas os fatores produtivos , os objetos e instrumentos de trabalho designados por capital
e o trabalho e outros bens que primordialmente individualizam e identificam as empresas
.Abrange coisas corpóreas como prédios, máquinas, ferramentas, mobiliário, matérias
primas, mercadorias. Coisa incorpóreas, como invenções patenteadas; modelos de
utilidade; desenhos ou modelos; marcas ; logótipos e bens jurídicos não coisificáveis:
prestações de trabalho e serviços, bem com certas situações de facto com valor económico
como p.e saber fazer não patenteado ou não patenteável que está associado ao exercício
da atividade (313º do CPI)

Conceção ampla (Ferrer Correia + Orlando de Carvalho): São elementos todos estes que
acabamos de ver e mais situações e relações de facto com valor económico detidas pela
empresa(relações de facto com cliente, fornecedores e financiadores) e própria
organização interna da empresa, denominado por aviamento. Estamos a falar da imagem
da empresa com os seus stakeholders; direitos de crédito; direitos reais e outros direitos
de caráter absoluto ligados À empresa e obrigações ligadas à exploração da empresa

Para Coutinho de Abreu, em termos de situações e relações de facto com valor


económico, ele apenas abrange o saber-fazer, sendo os restantes elementos dispensáveis.
O autor afasta estes três elementos da conceção ampla, dizendo que:

● O aviamento não é um elemento da empresa, mas circunstancial ou exterior

A organização da empresa é um modo de ser ou de estar dos elementos da empresa, é um


modo como os elementos da empresa se relacionam. As relações com fornecedores ,

84
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

clientes e financiados, estes estão ligados externamente à empresa e por isso não são
componentes. O problema principal surge a propósito da clientela que segundo Coutinho
de Abreu “ é o círculo ou quota de pessoas (consumidores em sentido amplo) que com
essa empresa contactam, quer em França , quer na Alemanha a clientela é considerada
um elemento da empresa. Em Portugal a doutrina divide-se :

Do lado afirmativo Barbosa Magalhães; Ferrer Correia; Menezes Cordeiro; Orlando


de Carvalho e Pupo Correia

Do lado de rejeição Coutinho de Abreu; Fernando Olavo; Nuno Aureliano e Pedro


Pais de Vasconcelos. Para estes autores a clientela não é um elemento da empresa, porque
não está funcionalmente nem estruturalmente inserida na organização, mas é consequente
ao funcionamento da empresa. Mas a empresa também não é uma mera qualidade: a
empresa, enquanto instrumento produtor de bens/serviços para a troca, depende da
conquista e manutenção de clientes– embora possa subsistir duradouramente sem eles.

● Outra questão que suscita dificuldade são os créditos e débitos ligados à


exploração comercial. Nos créditos ligados à exploração empresarial, se o seu
objeto for o meio do estabelecimento, o objeto é que constitui elemento; se não
for (p ex. um crédito sobre um cliente com a venda de mercadoria que saiu da
empresa), defende Coutinho de Abreu (ao contrário da posição ampla) que ele não
é um elemento empresarial, porque não corresponde a um fator produtivo nem a
um meio primordialmente identificador da empresa.

O mesmo se diga quanto a contratos conexionados com a exploração do


estabelecimento: se o objeto imediato deste contrato não for um elemento empresarial
(ex. num contrato de fornecimento de matérias-primas, estas ainda não foram entregues),
o próprio contrato será um elemento do EC? O objeto deste contrato pode ser, mas o
contrato em si não é. Quando o objeto imediato não é um elemento empresarial, o contrato
não é um elemento do EC.

Quanto aos débitos, não podem ser considerados elementos empresariais, segundo
Coutinho de Abreu, os débitos resultantes da exploração do EC. Ex. uma dívida que
resulta da compra de uma máquina para a empresas – o elemento é a máquina, o débito
que resultou dessa compra é que não é.

85
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Esta posição não é partilhada pelos defensores da posição ampla, que incluem nos
elementos da empresa os créditos e os débitos (Barbosa de Magalhães, Ferrer Correia,
Oliveira ascensão, Menezes Cordeiro, Pupo Correia). Mas qual a relevância disto? Ex.
na Alemanha, a posição maioritária é a de incluir os créditos e os débitos. Já em França e
na Bélgica, predomina a conceção restrita. Em Itália, a doutrina divide-se.

A maior dificuldade é quanto, no trespasse, se estabelece a inclusão de todo o ativo


e passivo do EC. E o dinheiro? Coutinho de Abreu diz que não, porque é um bem exterior
ao processo produtivo e à respetiva estrutura empresarial sustentadora. Ele está antes e
depois da estrutura empresarial: antes, na aquisição dos bens da empresa; depois, no
resultado da realização ou comercialização dos produtos.

Esta questão dos elementos da empresa relaciona-se com o facto de ela ser uma
organização intencional de meios apta à promoção do exercício relativamente estável e
autónomo de uma atividade de produção. A empresa não tem de visar o lucro, mas deve
ter capacidade de sobreviver. Os fatores produtivos de uma empresa não se organizam de
uma forma neutra, sendo articulados e interrelacionados estavelmente com vista à
prossecução de um determinado fim económico. A empresa é, por isso, um sistema ou
uma unidade complexa, global e original – não um mero somatório dos seus elementos.
O modo como os elementos estão interrelacionados identifica a empresa, mas, ao mesmo
tempo, ela é uma organização aberta ao mercado – entram objetos e instrumentos de
trabalho e saem produtos. Trata-se de um sistema tendencialmente autossuficiente, e tem
uma identidade própria, global, diferente da soma das partes – sendo, como tal,
reconhecida no mercado pela sua identidade própria.

● “Incumprimento eficiente”: se a outra parte fica igual, e o inadimplente fica


melhor, vale mais celebrar novo contrato, e em termos mais favoráveis.

Ao falar-se em “estabelecimentos”, importa falar, também, de situações de


fronteira onde se questiona se existe ou não EC. Quando se tem uma organização
produtiva apta a funcionar, mas que ainda não entrou em funcionamento, há ou não EC?
Para quem entenda que a clientela é um elemento essencial do EC, a resposta será,
necessariamente, negativa. O mesmo para quem defenda, em sentido mais amplo, que o
aviamento é a razão de proteção jurídica do EC. Este entendimento predomina na
experiência francesa e na experiência italiana.

86
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Em Portugal, a posição maioritária vai no sentido contrário: a maioria da


doutrina entende que, se o EC já se revelar minimamente apto para realizar o tal fim
económico-produtivo, e esse fim económico-produtivo não resultar afastado, da natureza
do sujeito ou por outras circunstâncias objetivamente reconhecíveis, que aquele objeto
não se dedicará a atividades comerciais, deve admitir-se que já há estabelecimento. Em
sentido contrário, a professora Mariana Costa.

Ex. num determinado local, há mesas, cadeiras, balcão, banca, máquinas de lavar
louça, fornos, bancadas para exposição de comida, bancadas com exposição de bebidas,
frigoríficos, etc. Tudo indica que ali funcionará um EC ligado à restauração (um café, p
ex.). Não é por não estar aberto que não há ali EC. Se o espaço for explorado por uma
associação ou uma fundação (sujeito que, pelas suas caraterísticas, suscite dúvidas quanto
à natureza empresarial) – mas podem explorar empresas, se não tiverem finalidade
lucrativa. Quando a estes sujeitos estiverem associadas outras circunstâncias que
permitam concluir que aquela não é uma atividade produtiva geradora de valor
económico, apesar de estarem reunidos todos os elementos para o tal fim económico-
produtivo, não há EC.

Que elementos indicam que a organização produtiva não é ligada? O sujeito


que a explora e o tipo de atividades que ela conduz. Coutinho de Abreu diz que, havendo
estabelecimento comercial, já há aviamento no sentido em que o EC já está pronto a
produzir, apto a realizar o fim a que se destina. Em sentido distinto, Antunes Varela,
Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro. Segunda situação dúbia: uma organização
produtiva, para entrar em funcionamento, carece ainda de um ou mais elementos. Para
quem entende que a situação anterior não consubstanciará um EC, esta também não
consubstanciará, por maioria de razão. Para os outros autores, releva aferir quais são os
elementos em falta. Nos casos em que já exista um conjunto de bens devidamente
organizados, conseguindo projetar no público a imagem de um determinado bem novo,
parece não haver razão para negar que existe já EC.

Aqui, deve atender-se a uma análise se, da avaliação do conjunto de bens


existentes, já resulta para o público a imagem de uma nova organização, de uma nova
unidade capaz de atuar autonomamente e de produzir valor económico.

87
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Terceira situação duvidosa é a transmissão de bens que as partes identificam


como EC, mas com exclusão de alguns dos seus elementos. Ex. trespasse de um café sem
mesas nem cadeiras. Neste caso, é preciso aferir se, apesar da não transmissão destes
elementos, o conjunto de bens transmitidos é suficiente para inculcar no público a
convicção de se continuar em presença daquela organização produtiva associada à
empresa transmitida. Para haver transmissão do EC, não podem ser excluídos elementos
essenciais à identificação daquele estabelecimento, com aquela individualidade. A este
propósito, alguns autores (PINTO FURTADO, p ex.) têm defendido a aplicação de um
critério económico – comparar os valores dos elementos transmitidos com o valor dos
elementos transmitidos. Este critério pode ser útil, mas não é determinante. O
determinante aqui é a manutenção da identidade da empresa -aos olhos do público, aquela
empresa continua a mesma ou não?

Ex. o elemento mais importante do EC é o armazém, que não é transmitido. Bem,


a empresa não perde identidade perante o público, pelo que não pode ser determinante.

A quarta situação duvidosa é a destruição dos elementos materiais do EC (ex.


um incêndio destruiu tudo). Coutinho de Abreu diz que, mesmo tendo havido destruição
total dos elementos materiais do EC, e que a atividade tenha de ficar temporariamente
suspensa por causa disso, os bens que restam servirão sempre para manter a identidade
da organização da EC. Ficam os contratos de trabalho, o logótipo/marca – logo, são
suficientes.

Por último, as secções e sucursais da empresa. O EC pode ser composto por


secções individualizadas (ex. um armazém num sítio, uma loja de venda ao público
noutro). Estas secções são essenciais ao funcionamento do EC, mas não têm autonomia
entre elas: em regra, estas secções não são estabelecimentos autónomos. Entre o EC e a
secção temos a sucursal (agência ou delegação), caraterizada pelo facto de elas terem uma
ligação de dependência face à empresa, mas uma certa autonomia de funcionamento –
nomeadamente, a localização geográfica, personalidade judiciária, pessoa coletiva
diferente (por vezes). É possível que, em determinadas circunstâncias, esta autonomia
seja de tal ordem que justifique a identificação da sucursal como um novo
estabelecimento próprio (gozando de identidade empresarial própria.)

Natureza jurídica do estabelecimento comercial

88
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Não há dúvida de que o EC é um objeto unitário. O EC não é a soma dos seus


componentes: é uma entidade única. Ele pode ser objeto de reivindicação, o que significa
que se lhe reconhece um direito de propriedade associados; pode ser objeto de trespasse,
de locação, de penhora, de penhor, de leasing.

Parece que o EC se aproxima da noção de universalidade.

Há autores que defendem que o EC é uma universalidade de facto, como Antunes Varela.
Qual é a dificuldade desta definição e porque é que o Dr. CA a rejeita? É que a
universalidade de facto pressupõe um conjunto de coisas homogéneas e o EC não respeita
este pressuposto.

Também não é uma universalidade de direito porque a universalidade de direito é o


conjunto de bens que não desempenham qualquer função económica própria, mas que a
lei unifica para certos efeitos jurídicos.

Uma segunda questão é saber se o EC é uma coisa e, sendo, que coisa é.

Quem entende que o EC é uma universalidade de facto, então tem de classificá-lo como
coisa móvel porque a universalidade de facto pressupõe que é uma coisa móvel.

O Dr. AC entende que o EC é uma coisa imaterial. Não só porque contém coisas móveis
e imóveis, mas a verdade é que a própria organização e o sistema é que dão
individualidade ao EC. Esta é a posição maioritária.

EIRL

O EIRL foi um dos grandes fracassos do legislador português (estabelecimento comercial


de responsabilidade limitada).

Em geral, pelas dívidas de um EC explorado por um comerciante em nome


individual, que património responde? O património do comerciante porque o EC não tem
património autónomo. Mais do que isso: o património do comerciante e também o
património do cônjuge. Por isso é que é tão arriscada a exploração de um EC a título
individual. Mas os créditos que derivam da exploração do EC respondem pelas dívidas
do comerciante. Isto gera problemas.

89
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

A atividade comercial é uma atividade de risco. Ora, isto é um enorme desincentivo


à atividade comercial. Ora, o legislador tentou resolver isto através da figura do EIRL
(DL 248/86). O EIRL pretendia criar um património autónomo associado ao EC, nos
termos do qual os bens afetos ao EIRL respondiam apenas pelas dívidas emergentes da
atividade desenvolvida no EIRL e, mais importante, por essas dívidas apenas respondiam
esses bens (não respondia o restante património do comerciante).

A ideia é boa; a execução foi má. Por dois motivos:

a) A lei apenas permite um EIRL por comerciante e, portanto, quem tiver mais do
que um EC não tem resposta.

b) Se lermos os art.º 10, 11 e 22 do DL 248/86 vamos ver que o legislador considerou


inúmeras limitações à autonomia patrimonial do EIRL, permitindo, em muitos casos,
mistura de patrimónios.

Portanto, os comerciantes não aderiram a esta figura.

Qual a alternativa para o comerciante em nome individual que queira separar um


património autónomo? O sucesso veio através das sociedades unipessoais por quotas.
Estas ocuparam o espaço que o legislador pretendia atribuir ao EIRL. Notemos que não
é a mesma coisa. Isto tem impactos fiscais. Mas, mesmo assim, a opção foi claramente
pela sociedade unipessoal por quotas.

Quando é que uma empresa é comercial ou não (e é civil)?

As divisões doutrinais são muitas.

A posição maioritária atual é de que nem todas as empresas são comerciais, portanto,
há empresas que desenvolvem atividades civis. Quando é que as empresas são
comerciais? Quando o seu objeto se traduz na realização de atos/atividades objetivamente
mercantis com caráter de estabilidade. Ou seja, há aqui um paralelo entre as sociedades
comerciais e as sociedades civis sob forma comercial. Isto remete-nos novamente para o
problema do art.º 230 CCom e a sua conjugação com o art.º 434. Empresas que exerçam
atividades consagradas no art.º 230 são empresas comerciais. Dito de outra forma: serão
comerciais as empresas que exercem atividades que a própria lei qualifica como
comerciais.

90
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

A propósito do art.º 230 surgem algumas divisões doutrinais quanto à amplitude das
empresas comerciais.

O Dr. Coutinho de Abreu tem a posição mais restritiva (com a qual a Prof. Mariana não
concorda). Diz Coutinho de Abreu que uma empresa de indústria extrativa (por exemplo,
uma empresa de recursos geológicos) não é comercial, mas sim civil porque não há
qualquer menção a esta atividade no art.º 230 e o autor entende que não há razões
analógicas que justifiquem essa integração. Não estando prevista expressamente no art.º
230 e não havendo fundamento para a aplicação analógica do art.º 230, conclui Coutinho
de Abreu que estas empresas são civis.

Ora, qual a razão de ser da qualificação de uma determinada atividade ou de um


determinado sujeito como comerciante? Pensemos nas empresas privadas que estão a
construir e criar mecanismos para extrair minério no espaço e na Lua. Parece que estão
preenchidos os pressupostos da comercialidade ou não? A razão de ser da
comercialidade não justifica o afastamento destas empresas com dimensão do regime
comercial.

Pensemos nas empresas agrícolas. Vejamos o art.º 230/1. Aqui cabem não só as empresas
em sentido estrito mas também silvícolas e pecuárias. Daí que o Dr AC entenda que estas
empresas não são comerciais. O Dr. Pais de Vasconcelos e Cassiano dos Santos entendem
que o que o art.º 230/1 pretende é excluir atividades que, pela sua essenciais, não
constituem sequer um exercício em contexto empresarial. Portanto, dizem estes autores
que, se essa atividade for exercida num contexto que pela sua complexidade organizativa
deve ser encarado comercial, então estamos perante empresas comerciais- o exemplo
paradigmático é o exemplo da Agros. Alguém acredita que a Agros não é uma empresa
comercial?

Raciocínio paralelo deve ser aplicado para as empresas de transformação exploradas por
artesãos que exercem diretamente a atividade, ainda que cumulando outros operários e
operários e máquinas. Quando falamos em artesão falamos de produtores qualificados
que utilizam prevalentemente o seu trabalho manual. Aqui é a lógica exatamente igual à
de Coutinho de Abreu. Quando estas atividades são exercidas em contexto empresarial,
estas atividades são civis desde que o artesão exerça diretamente a sua atividade, mesmo
que seja só dirigindo tecnicamente o processo. O Dr. Coutinho de Abreu defende que este

91
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

raciocínio se aplica também às empresas artesanais de serviços como cabeleireiros,


mecânicos, etc.

Por fim, temos o caso dos profissionais liberais. Falamos de profissões liberais que se
traduzem no exercício habitual e autónomo (=juridicamente não subordinado) de
atividades primordialmente intelectuais, suscetíveis de regulamentação e controlo
próprios. Falamos dos advogados, de engenheiros, de arquitetos e de economistas. E,
aqui, a doutrina volta a não ser unânime. Parece à prof. que o critério deve ser este: quando
o que avulta é a pessoa que exerce a atividade em termos tais que a sua ausência retira
identidade e valor aos restantes meios produtivos utilizados, então não estaremos perante
uma empresa. Nos casos em que a pessoa que exerça a atividade intelectual se dilui na
estrutura produtiva em que se insere em termos que propiciam o anonimato e a
substituibilidade sem prejuízo para o valor global da empresa, então estaremos, não
perante o exercício de atividade profissional liberal, mas perante uma verdadeira empresa.
Estes são os casos das megas sociedades de advogados. São sociedades onde a entrada e
saída de pessoas é relativamente irrelevante para o valor económico da sociedade.

Não obstante estas franjas de dissonância entre a empresa comercial e a empresa


civil, crescentemente tem-se afirmado a sobreposição entre os fenómenos empresarial e
comercial. Ou seja, crescentemente há uma associação entre empresa e comércio. Isto
manifesta-se nomeadamente ao nível internacional, por exemplo, os dois maiores autores
alemães de direito comercial (K. Schmidt e P. Raisch) defendem que, ao nível da
comercialidade, o comerciante deve ser substituído pelo empresário. Em Itália, esta
posição goza de uma aceitação imensa sobretudo com a unificação do CC e com a
designação «Direito das Empresas». Nas recentes reformas comerciais do código
comercial alemão e austríaco, o comerciante passou a ser identificado como o empresário
ou como aquele que desenvolve na sua empresa uma atividade comercial. não se diz que
todas as empresas são comerciais, mas diz-se que todos os comerciantes são empresários.
O CC brasileiro de 2003 voltou a unificar o direito comercial e o direito civil num livro
designado «Do Direito da Empresa». A reforma mais ambiciosa de todas foi a de 2005
no OJ austríaco: substituiu-se o Código Comercial pelo Código das Empresas.

Parece à professora que, em termos de futuro, a empresa comercial deveria ser


delimitada negativamente, ao contrário do que faz o art.º 230, cabendo ao legislador
afastar a qualificação nos casos em que assim o entendesse. A posição mais próxima desta

92
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

é a do Dr. Cassiano dos Santos, que defende a eliminação da distinção entre empresas
comerciais e não comerciais, defendendo que, fora do Direito Comercial, deveriam ficar
apenas as chamadas atividades económicas não capitalistas que são exercidas não
empresarialmente e as que, por opção do legislador, são excluídas da empresarialidade.

Suscita-se agora uma questão que tem dividido muito a doutrina: a questão da intenção
lucrativa. A pergunta é simples: uma empresa, para o ser, tem de ter uma intenção
lucrativa? A intenção lucrativa tem de ser um elemento essencial da atividade empresarial
ou não? Parece que é um elemento tendencial, mas um elemento não essencial. O Prof.
Paulo Tarso não concorda: defende que são tão poucas as situações em que as empresas
não têm finalidade lucrativa que esse deve ser um elemento essencial.

Na maioria dos casos, as empresas comerciais têm finalidade lucrativa: isso é


inquestionável. Agora, parece não ser descabido admitir a aplicação das regras do direito
comercial a empresas que carecem de finalidades lucrativas (porque, por exemplo, são
exploradas por associações, fundações ou cooperativas). CA tem esta posição também à
dá o exemplo das cooperativas, os agrupamentos complementares de empresas (as
empresas públicas).

Portanto, a grande questão aqui é esta: parece ser de admitir que a tónica deve ser
colocada na atividade produtiva no mercado e não na intenção do empresário. Ou seja, o
que releva deve ser a natureza económica da atividade, rejeitando-se a qualificação
empresarial sempre que a atividade assenta numa pura lógica de liberalidade, mas
bastando-se o preenchimento deste requisito com uma lógica remunerativa que cubra
custos e permita, em abstrato, a autossuficiência económica da empresa. esta questão da
autossuficiência prende-se com o requisito da estabilidade do exercício da atividade. A
isto escapam as empresas públicas: nas empresas públicas é permitido a autossuficiência
económica deficitária. As empresas públicas são uma exceção em que esta
autossuficiência é afastada. Mas, nas restantes empresas, é necessária essa
autossuficiência.

TIPOS DE EMPRESAS

Há, essencialmente, 4 setores empresariais.

1. Empresas do setor privado

93
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

As empresas do setor privado podem pertencer a pessoas singulares ou coletivas a título


individual ou a mais do que uma pessoa. Um exemplo de empresas que pertencem a mais
do que uma pessoa singular são os EC que são bem comum do casal. Outro exemplo são
empresas incluídas em heranças indivisas. Outro exemplo é a empresa que pertence a uma
associação sem personalidade jurídica, que pertence a todos os associados.

Que pessoas coletivas podem ser titulares de empresas? As sociedades comerciais, as


cooperativas, os agrupamentos complementares de empresas e também as associações e
fundações. Quanto às associações e fundações, este exercício pode ser direto ou acessório
das suas finalidades. A título principal ou de exercício direto, o exemplo é o da associação
cultural que gere um teatro sem fins lucrativos. O exemplo acessório é o exemplo da
associação desportiva que explora o café.

2. Setor cooperativo e social

O que são cooperativas? Vamos ao art.º 2 do Código cooperativo: pessoas coletivas


autónomas de livre constituição, de capital e composição variáveis que, através da
cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios lucrativos
visam, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas sociais
ou culturais daqueles. Uma parte muito significativa de cooperativas explora empresas.
As cooperativas não têm e não podem ter escopo lucrativo.

3. Empresas públicas estaduais

Nos termos do art.º 5/1 do regime do setor público empresarial, são empresas públicas as
organizações empresariais constituídas sob a forma de sociedade de responsabilidade
limitada nos termos da lei comercial nas quais o Estado ou outras entidades públicas
possam exercer isolada ou conjuntamente, de forma direta ou indireta, influência
dominante.

A noção de influência dominante vem no art.º 9 do RSPE. O Dr. CA desenvolve isto até
à exaustão – nós não vamos fazê-lo (ler porque é importante, mas não sai em exame).

Há dois tipos de empresas públicas:

c) Empresas públicas societárias que podem adotar a forma de sociedade por quotas
ou de sociedade anónima

94
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

d) EPEs (Entidades Públicas Empresariais). Por exemplo, o Hospital de São João. São
pessoas coletivas de Direito Público criadas pelo Estado que formam e/ou exploram
organizações de meios produtivos de bens para troca de modo a satisfazerem
interesses público-estaduais. A criação das EPEs é feita por decreto-lei.

Se a questão do escopo lucrativo se coloca a propósito de todas as empresas, com maior


premência se coloca no âmbito das empresas públicas. Defende Coutinho de Abreu que
temos de distinguir duas situações:

e) Empresas públicas constituídas por capital não integralmente público:

f) Empresas públicas constituídas por capital integralmente público:

Quanto às empresas públicas constituídas sob a forma de sociedade comercial com


capital não integralmente público, elas têm necessariamente de ter finalidade lucrativa.
Portanto, se elas exercerem atividades financeiramente deficitárias, este déficit tem de ser
compensado através das indemnizações compensatórias para cobrir a remuneração do
capital privado investido.

No caso das empresas públicas societárias com capital inteiramente público e no caso
das EPEs, o escopo lucrativo não faz parte da essência destas figuras.

4. Empresas públicas locais

A atividade empresarial local pode ser desenvolvida por municípios, associações de


municípios e áreas metropolitanas através dos serviços municipalizados ou
intermunicipalizados e das empresas locais.

As empresas municipais são identificadas pela sigla «EM». As empresas intermunicipais


têm a sigla «EIE». As empresas metropolitanas têm a sigla «EMT».

O escopo lucrativo não é um elemento essencial.

Não podemos confundir empresas locais com serviços municipalizados. Os últimos são
criados pela assembleia municipal sob proposta da câmara municipal e não gozam de
personalidade jurídica, ou seja, integram a estrutura organizacional do município. Não
significa, porém, que não sejam empresas em sentido objetivo.

95
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

TRESPASSE DO ESTABELECIMENTO COMERCIAL

O trespasse constitui uma transmissão inter vivos com caráter definitivo de um


estabelecimento que pode ser comercial ou não. Ou seja, é a transmissão da propriedade
do estabelecimento.

Uma característica do trespasse é que ele se identifica pelo objeto que se trespassa e não
pelo contrato que lhe subjaz. Essa transmissão pode resultar de uma compra e venda, de
uma troca, de uma dação em cumprimento, de uma venda judicial, da realização de uma
entrada social. Ou seja, a fonte da transmissão é irrelevante para a caracterização do
objeto.

Para a maior parte das regras que regulam o trespasse, é irrelevante se o trespasse é
gratuito ou oneroso. Mas há uma situação em que não é: nos casos do art.º 1112/4 CC.
Este artigo prevê o direito de preferência do senhorio em caso de venda ou dação em
cumprimento. Outra situação em que não é irrelevante é nos casos de liquidação da
sociedade (art.º 152/2 CSC) porque aí estão salvaguardados interesses patrimoniais dos
envolvidos.

Forma do trespasse

Qual a forma a que deve obedecer o trespasse? A única norma que aborda a forma do
trespasse é o art.º 1112/3 CC. Este artigo refere-se expressamente à transmissão da
posição de arrendatário. Ou seja, vale para situações em que o estabelecimento funciona
em imóveis arrendados.

Mas há autores que entendem que a forma consagrada no art.º 1112/3 deve ser aplicada
a todos os trespasses com recurso a uma interpretação extensiva. A forma consagrada
no art.º 1112/3 é o simples escrito particular.

O Dr. Cassiano dos Santos entende que o trespasse não está sujeito a nenhuma forma,
fora os casos do art.º 1112/3. Para os demais casos, vigora a liberdade de forma.

Há, no entanto, uma questão particularmente sensível neste caso, e se incluído no


trespasse, estiver a transferência da propriedade de um imóvel? Imaginemos que um dos
elementos do estabelecimento comercial é o próprio bem imóvel que é propriedade do
empresário e que esse imóvel é transmitido como elemento do estabelecimento comercial.

96
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

quando um dos elementos do EC é um imóvel está o trespasse sujeito à forma prevista no


art.º 875 CC (escritura pública ou documento particular autenticado)? O Dr. CA entende
que, mesmo quando há transferência de um bem imóvel associado ao EC, basta a
exigência do documento particular. O argumento dele é um argumento de paridade de
razão. Diz ele: na constituição de uma sociedade comercial, se houver um bem imóvel
como entrada em espécie, basta documento particular. Neste sentido, vão os Drs. Ricardo
Costa e Carolina Cunha. Em sentido contrário vai o Dr. Cassiano dos Santos.

Quando há um trespasse, o que é que é transmitido e em que termos?

Vamos seguir a divisão proposta pelo Dr. Coutinho de Abreu, este distingue entre 3
âmbitos de entrega:

a) Âmbito mínimo
b) Âmbito natural
c) Âmbito convencional

1. Âmbito mínimo

Abrange aqueles elementos que são necessários ou essenciais para identificar ou exprimir
a empresa objeto do negócio. A não transmissão destes elementos afasta a qualificação
do negócio como trespasse. Todos os elementos do âmbito mínimo têm de ser
transmitidos sob pena de não haver trespasse. Sendo todos estes elementos transmitidos,
temos trespasse.

Sem a transmissão dos elementos do âmbito mínimo não temos trespasse, mas sim a
transmissão individualizada do conjunto de bens em causa.

Obviamente não é possível identificar antecipadamente quais são os elementos do âmbito


mínimo. Apenas no caso concreto se pode identificar quais os elementos que dão
identidade à empresa – isto tem de ser analisado caso a caso.

2. Âmbito natural

Abrange aqueles elementos que se transmitem na ausência de acordo das partes em


sentido contrário. Ou seja, é quase como um âmbito supletivo. Nada sendo dito, esses
elementos são transmitidos. Vamos distinguir aqui duas realidades:

97
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

● Meios empresariais cuja propriedade pertença ao trespassante: Por


força da lei, pertencem ao âmbito natural do trespasse os logótipos e as
máquinas, exceto se nestes figurar o nome, firma ou denominação do
titular (caso em que passam a pertencer ao âmbito convencional). Isto
decorre dos art.º 295, 256/2 e 30/3 do CPI.

Quanto aos bens materiais que compõem o estabelecimento, em regra,


entende-se que pertencem ao âmbito natural. Falamos de máquinas,
utensílios, mobiliário, matérias-primas, mercadorias.

A questão que tem suscitado maiores dúvidas são os prédios. Falamos


de imóveis cuja propriedade é do empresário que trespassa e que estão
associados ao estabelecimento. Quando o prédio é propriedade do
trespassante, a doutrina divide-se. No silêncio do trespasse, o prédio é
ou não abrangido? Coutinho de Abreu defende que sim. Defende que
deve considerar-se que o prédio pertence ao âmbito natural, mas não
condição de o contrário não resultar da interpretação do negócio. Um
dos principais elementos a ter em conta é o preço. Outro indício
relevante é a forma do negócio (indício relevante).

● Meios empresariais na disponibilidade do trespassante ao abrigo de um


direito de crédito: Aqui temos algumas questões legais. Por exemplo, por
força da lei, as prestações laborais transmitem-se para o adquirente do
estabelecimento – art.º 285/1 CT – exceto se o trabalhador a tal se opuser,
nos termos do art.º 286-A CT.

Quanto ao direito ao arrendamento do prédio onde funciona o


estabelecimento, nos casos em que o mesmo funcione em prédio
arrendado, se o mesmo não pertencer ao âmbito mínimo, parece dever
admitir-se que pertence ao âmbito natural, transmitindo-se a posição de
arrendatário para o trespassário no silêncio das partes – art.º 1012 CC.

Quanto à posição do locatário financeiro (leasing), devemos aplicar as


regras do arrendamento, quando estejam em causa bens explorados no
estabelecimento – art.º 11/1 DL 149/95. Nos termos do nº3 deste art.º 11,

98
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

o locador pode opor-se à transmissão se o cessionário não oferecer


garantias bastantes à execução da locação financeira.

Estando em causa direitos derivados de licenças de exploração


(nomeadamente patentes, modelos de utilidade ou marcas) resulta do
art.º 31/1 e art.º 31/8 do CPI que estes direitos não podem sere alienados
sem consentimento escrito do titular do direito protegido, salvo
estipulação em contrário na licença de exploração. O mesmo quanto a
bens emprestados ou alugados ao trespassante – art.º 1059/2 CC, que
remete para os art.º 424 e ss CC.

Entende o Dr. Coutinho de Abreu (e é doutrina pacífica) que, quando o


saber-fazer não cabe no âmbito mínimo, caberá no âmbito natural.

3. Âmbito convencional

Abrange aqueles elementos que apenas se transmitem se as partes assim o determinarem


no contrato.

Cabem no âmbito convencional firma, logótipo e marca quando neles figura o nome
individual, a firma ou denominação do titular do estabelecimento – art.º 3 CPI. É a
contrario do que vimos para o âmbito mínimo. Também neste âmbito se inserem os
créditos do trespassante ligados à exploração da empresa, mas cujos objetos não sejam
meios do estabelecimento. Aplicam-se a estes créditos os art.º 577 e ss CC.

Estando em causa a cessão da posição contratual, nos termos dos art.º 424 e ss CC,
exige-se a autorização da contraparte (que é terceira face ao trespasse). Há, no entanto,
casos em que a lei consagra esta transmissão no âmbito natural. O exemplo é o dos
seguros associados ao estabelecimento – integram-se no âmbito natural do trespasse.

O problema que suscita maiores dúvidas é a transmissão de dívidas. Se, por um lado,
temos os credores com interesse de que a dívida acompanhe o estabelecimento, por outro
lado, temos o trespassário que tem de ser protegido de dívidas que não conhece e não
aceitou. Temos aqui um jogo que temos de fazer entre, por um lado, os interesses dos
credores em não haver uma diminuição da garantia associada ao pagamento da dívida
com a transmissão do estabelecimento; mas, por outro lado, temos a necessidade de
proteger o trespassário de dívidas que ele não aceitou e não conhece.

99
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Seguindo aqui a posição do Dr. Coutinho de Abreu, à transmissão de dívidas tem de se


aplicar o regime do CC. Ou seja, rejeita a teoria de Orlando de Carvalho que associa a
transmissibilidade da dívida ao facto de ela ser um débito puro ou impuro, ou seja, à sua
ligação ao estabelecimento e ao retorno a ela associado e defende que há de se aplicar a
esta matérias as regras do CC em matéria de transmissão de dívidas. Portanto, entende
que não pode haver transmissão automática de dívidas para o trespassário, dependendo a
mesma de acordo das partes, e dependendo a exoneração do trespassante de declaração
expressa dos credores nesse sentido. Isto é o que resulta do regime da assunção de dívidas
do CC. Caso não haja esse acordo, o trespassante poderá ser chamado a responder
solidariamente pela dívida. quanto a esta matéria, o Dr. Mota Pinto e o Dr. Vaz Serra
defendem que está aqui uma assunção cumulativa de dívidas. Já o Dr. Antunes Varela
entende que mesmo para assunção cumulativa de dívida é necessário acordo dos credores.

Há, no entanto, casos em que a própria lei consagra a responsabilidade do trespassário


por dívidas anteriores ao trespasse – art.º 285/6 CT (créditos devidos a trabalhadores do
estabelecimento e dívidas à segurança social).

A questão da obrigação de não concorrência

Há ou não uma obrigação de não concorrência do trespassante na sequência do trespasse.


Ou seja, depois de trespassar o estabelecimento, o trespassante tem a obrigação de não
concorrer com esses estabelecimento ou pode fazê-lo? A lei é omissa.

O Dr. Nuno Aureliano e Dr. Pais de Vasconcelos defendem que não há obrigação de não
concorrência no trespasse. E fazem-nos por analogia ao art.º 9 do DL 178/86 (DL que
regula o contrato de agência e ao art.º 136 do CT que admitem que apenas há obrigação
de não concorrência nos casos em que ela é acordada por escrito pelas partes. O
argumento é o art.º 161 da CRP e o princípio da liberdade de iniciativa económica.

Outros autores como o Dr. Coutinho de Abreu, entendem que não há analogia entre o art.º
9 e o art.º 136 e a situação do trespasse porque quer o art.º 9, quer o art.º 136 dizem
respeito a situações em que cessaram contratos e isso aqui não aconteceu. Esta situação é
gerada pela celebração do contrato e não pela sua cessação. Defende Coutinho de Abreu
que a obrigação de não concorrência deriva do dever de o alienante entregar a coisa
alienada e assegurar o gozo pacífico dela. Portanto, o conhecimento especial que o
trespassante tem da empresa tornaria esta atividade concorrente especialmente perigosa

100
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

para a subsistência da empresa alienada. Diz Coutinho de Abreu que precisamente por
isto é que não está abrangido por esta obrigação o trespassante que não conhece
verdadeiramente a estrutura organizativa da empresa. Imaginemos um sucessor que
recebeu a empresa e a trespassou de imediato e nunca trabalhou nela. Aí não há obrigação
de não concorrência. Já diferentemente, diz Coutinho de Abreu que estão abrangidos por
esta obrigação os cônjuges e os filhos do titular do estabelecimento face aos quais se
preenche este pressuposto, bem como o alienante de participações sociais que detinha
uma posição de controlo na sociedade que o coloca em posição especialmente qualificada
para concorrer com o estabelecimento que acompanhou a sociedade na transmissão das
participações sociais. Quanto a este alargamento há dúvidas. Quer dizer, imaginemos que
o marido explorou a vida toda o restaurante que pertenceu à mulher; zangam-se; ele não
pode abrir um restaurante?

De qualquer forma, se admitirmos a obrigação de não concorrência, dela beneficia não


apenas o primeiro trespassário, mas todos os que se lhe seguirem durante o período de
vigência desta obrigação.

A obrigação de não concorrência tem 3 tipos de limites:

a) Material/substantivo: Tem de ser uma atividade que efetivamente concorra com a


atividade do estabelecimento trespassado
b) Espacial: Não é permitido abrir o estabelecimento, mas apenas e só na área
geográfica em que haja um efetivo potencial de concorrência.
c) Temporal: Apenas durante o tempo necessário e suficiente para o trespassário
consolidar os seus valores de organização e exploração da empresa. As decisões
judiciais têm feito oscilar este período entre 2 e 5 anos.

A violação da obrigação de não concorrência desencadeia os procedimentos de


incumprimento do CC: indemnização, possibilidade de resolução do trespasse, sanção
pecuniária compulsória e, segundo alguns autores, encerramento compulsório do
estabelecimento concorrente nos termos do art.º 829/1 CC.

Se a existência da obrigação de não concorrência é dúbia, uma coisa não o é: a


possibilidade de afastar essa obrigação por cláusula contratual no trespasse. É possível
convencionar o afastamento desta obrigação por convenção no contrato.

101
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Art.º 1112 CC e impacto do trespasse no contrato de arrendamento

E se houver o trespasse de um estabelecimento que funciona num imóvel arrendado?


Nos termos do art.º 1112 CC, havendo trespasse de um EC em imóvel arrendado, o
trespassante (que é o arrendatário) pode ceder a sua posição de arrendatário ao
trespassário sem necessidade de autorização do senhorio. As alíneas deste artigo suscitam
dúvidas. O que pretende o art.º 1112/2/a) é determinar que não haverá trespasse (e,
portanto, não se aplica esta regra) quando não seja transmitido bens no âmbito mínimo.

Este artigo 1112º foi muito utilizado para fraude, sobretudo ao abrigo dos regimes de
arrendamento urbano anteriores a 2012, ou seja, anteriores à liberalização das rendas.
Quando tínhamos um regime de rendas controladas, a diferença entre transmitir a posição
de arrendatário à luz do trespasse ou não ser possível essa transmissão era a diferença de
continuar a beneficiar da renda controlada ou passar a ter uma renda não controlada.

Vem dizer o art.º 2/b) que também não há trespasse se, no momento do contrato, o
trespassário tinha a intenção de dar outro destino ao crédito, ou seja, já tinha em vista a
substituição daquele estabelecimento por outro.

Difícil é a interpretação do art.º 1112/5. Aqui a doutrina divide-se. Há quem entenda que
este nº5 é um reforço do nº2/b). Coutinho de Abreu diz que, se assim fosse, o nº5 era
completamente desnecessário. Portanto, a interpretação que ele dá a esta nº5 é de que este
constitui um nova causa de resolução do contrato de arrendamento que é a decisão
posterior de o trespassário de alterar o destino do prédio, o que, em regra, não é proibido
no contrato de arrendamento. A propulsão do art.º 1112 é proteger o estabelecimento
comercial; se ele muda o EC, então deixa de precisar dessa proteção. Portanto, se mesmo
em momento posterior o trespassário altera o destino do EC, parece que não se justifica
que o senhorio continue ligado contratualmente a uma parte que lhe foi imposta pelo
contrato de trespasse. Tudo isto é muito influenciado pela própria convicção político-
económica que tivermos.

O art.º 1112/3 diz-nos que a transmissão da posição de arrendatário ao abrigo do contrato


de trespasse tem de ser comunicada ao senhorio, seja pelo trespassante seja pelo
trespassário no prazo de 15 dias – art.º 1038/g) CC. A não comunicação atempada que,
pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível a manutenção do arrendamento
confere ao senhorio o direito a resolver o contrato com o trespassário.

102
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Locação do estabelecimento:

A locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo
temporário de um estabelecimento comercial ou não mediante retribuição.

Nos termos do artigo 1109º do CC a locação de estabelecimento rege- se com as


necessárias adaptações pelas regras relativas ao arrendamento, para fins não
habitacionais, aplicando-se aqui as regras relativas À duração do artigo 1110º ; a forma
escrita do artigo 1112º/3; do âmbito mínimo do 1112º/2 alínea a) e artigo 1113º, não
havendo caducidade por morte do locatário ainda que os sucessores possam renunciar a
esta

Os âmbito de entrega são paralelo ao trespasse com as devidas adaptações derivadas da


natureza temporárias da locação ( não há , em princípio , transmissão da propriedade dos
meios empresariais para o locatário, há apenas um direito pessoal de gozo um poder de
disposição que se funda na locação do estabelecimento.

Aqui não se coloca o problema do uso dos objetos de licença de exploração, porque o
direito não é alienado para o locatário ,não sendo necessário o consentimento escrito do
titular licenciante. A obrigação de não concorrência na locação está presente na lei,
nomeadamente o artigo 1037º do CC , que proíbe o locador de praticar atos que diminuam
ou começam o gozo da coisa locada.

Parece de admitir também que o locatário não pode iniciar atividade concorrente com a
praticada no estabelecimento, durante a vigência do contrato de locação, porque isso
implicaria a redução do valor do estabelecimento , e violação do artigo 1043º do CC.

A questão coloca-se após o término do contrato, pode o locatário abrir um


estabelecimento do locador após o término do contrato de locação do estabelecimento
comercial? Aqui , estando em causa a cessação do contrato de locação , parece aplicar-se
por analogia a regra do CT e portanto só há obrigação de não concorrência se e na medida
em que ela seja consagrada no contrato de locação.

Por fim, que se tivermos perante a locação de um estabelecimento situado em prédio


arrendado

103
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Artigo 1102º do CC- O senhorio não tem de autorizar a cedência do gozo do prédio em
contexto de locação do estabelecimento, no entanto, esta transferência tem de ser
comunicada no prazo de 1 mês sob pena de ineficácia.

Aplica-se aqui um regime paralelo ao trespasse em caso de falta de comunicação.

Por força da locação do estabelecimento comercial, o locatário não se substitui ao locador


na posição de arrendatário nem ocupa uma posição de subarrendatário, salvo acordo em
contrário.

MATÉRIA DOS TÍTULOS DE CRÉDITO

Os títulos de crédito são o exemplo máximo de atos objetivamente comerciais,


independentemente da natureza comercial ou não da RJ subjacente.

Os títulos de crédito surgem historicamente para resolver dificuldades associadas à


circulação de notas e moedas. Foi uma criação espontânea que surgiu no mercado e faz
substituir a circulação de moedas e notas por uma circulação de documentos nos quais os
comerciantes faziam constar os créditos. O seu objetivo era literalmente substituir notas
e moedas.

Portanto, todo o regime dos TC está marcado por esta função de circulação de créditos.
Assim, associado aos TC está uma espécie de coisificação dos direitos através da sua
incorporação em documentos (os chamados títulos) que seguem depois as regras de
circulação das coisas móveis.

Noção de título de crédito: O título de crédito é um documento que incorpora um direito


literal e autónomo que legitima o seu titular a exercê-lo e serve de suporte à sua circulação
e mobilização. Tem como função titular e incorporar direitos de modo a permitir e facilitar
a sua circulação e mobilização. Abrange não só documentos tradicionais em suporte de
papel, como também como registos informáticos que representam valores mobiliários
escriturais.

1. CARACTERÍSTICAS DOS TÍTULOS DE CRÉDITO

São 5 as características dos TC que vamos estudar:

104
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

→ Literalidade

→ Autonomia

→ Incorporação

→ Legitimação

→ Circulabilidade

1) Literalidade

O conteúdo e extensão do direito incorporado no título são aqueles que dele constarem
escritos. Ou seja, o direito vale com o exato conteúdo e extensão que constar do título.
Isto permite, a quem examinar o título, ter conhecimento completo e preciso do direito
incorporado, possibilitando assim a sua circulação e mobilização.

A lei estabelece, em relação a cada título de crédito, quais os requisitos para esta
literalidade.
→ Por exemplo, vejamos os art.º 1 quer da LULL quer da LUC. Em ambos os casos,

o art.º 2 estabelece que a falta de qualquer destes requisitos faz com que o título não

produza efeitos como título de crédito. Por exemplo, o art.º 2 da LUC diz que, na

falta de qualquer requisito do art.º 1, o título não produz efeitos como cheque e no

art.º 2 da LULL diz-se que, na falta destes elementos, o documento poderá valer como

documento probatório (ou seja, como quirógrafo) mas não como título de crédito.

→ O art.º 75 da LULL estabelece outros requisitos de literalidade que o título tem de

conter.

→ Temos ainda o art.º 370 CCom a propósito da guia-transporte, o art.º 408 CCom

a propósito do conhecimento de depósito de mercadorias em armazéns gerais, o art.º

298 CSC a propósito das ações, o art.º 348 CSC a propósito das obrigações.

O que é que estes artigos têm em comum? Todos eles estabelecem elementos que o título
tem de conter para valer como título de crédito e preencher o requisito da literalidade. O
não preenchimento destes requisitos afasta a qualificação do título como título de
crédito.
105
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Preenchidos e emitidos regularmente, os títulos de crédito valem nos precisos termos que
deles constam. Portanto, em princípio, não podem ser contestados com o auxílio de
elementos estranhos ao título.

Além disso, há aqui um elemento fundamental: é que nos títulos de crédito, o elemento
declarativo tem um valor ainda mais acentuado face ao elemento volitivo. Por
exemplo, isto manifesta-se, no caso das letras, cheques e livranças: havendo uma
diferença entre o montante em algarismos e o montante por extenso, prevalece o montante
por extenso. Se houver vários valores diferentes por extenso, prevalece o mais exíguo.
Isto é o que resulta do art.º 9 LUC e do art.º 6 LULL.

A literalidade é mais intensa nos chamados títulos de credito abstratos do que nos títulos
de crédito causais. Os títulos de crédito abstratos são as letras, livranças, cheques e
extratos de fatura. Nos títulos de crédito abstratos só podem ser invocadas pelo obrigado
exceções extracartulares originadas em convenções exteriores ao título que o liguem
diretamente ao portador credor e não exceções extracartulares que o liguem a qualquer
outro dos titulares cambiários – isto sai sempre em exame. É o que se chamam as relações
mediatas e as relações imediatas. Nos títulos de crédito, só se podem invocar exceções
extracartulares nas exceções imediatas. Isto vale mesmo para vícios de vontade.

Nos títulos de créditos causais (como as ações nas sociedades anónimas) a literalidade
existe apenas por referência, existe muito esbatida. Isto desde logo porque o conteúdo do
título é remetido para o contrato de sociedade. Grande parte do conteúdo encontra-se fora
do título nos títulos causais.

2) Autonomia

O direito incorporado no título é autónomo face ao direito não cambiário subjacente que
lhe deu origem.

Temos de distinguir dois tipos de direitos:


→Direito cartular: direito incorporado no título

→Direito subjacente: é o que está na origem do direito cartular

Com muita frequência, o montante do direito cartular é igual ao montante do direito


subjacente. Mas pode não ser. Eu posso passar vários cheques com vencimentos

106
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

diferentes para pagar uma dívida única e, nesse caso, cada cheque tem um montante
inferior ao da dívida única.

Sempre que o título tenha circulado, há mais do que um direito subjacente, ou seja,
subjacente a cada negócio ou a cada ato de circulação do título há pelo menos um direito
subjacente.

Daqui se retira que esta autonomia entre o direito cartular e o direito subjacente atinge a
sua máxima concretização nos art.º 17 LULL e art.º 22 LUC que são aqueles que dizem
que só é possível invocar exceções nas relações imediatas.

A autonomia também se manifesta ao nível do portador do título. Nos termos do art.º 16


LULL, o detentor de uma letra é considerado portador legítimo se justificar o seu direito
por uma série ininterrupta de endossos, mesmo se o último for em branco. Isto significa
que se uma pessoa for por qualquer maneira desapossada de uma letra (por exemplo,
furto), o portador dessa letra, desde que justifique o seu direito por uma série ininterrupta
de endossos, não é obrigado a restituí-la exceto se a adquiriu de má fé ou se, adquirindo-
a, cometeu falta grave. Este regime também é válido para a livrança nos termos do art.º
77 LULL e para o cheque nos termos do art.º 22 LUC.

Ou seja, o portador do título, desde que esteja legitimado, de acordo com a respetiva lei
de circulação, tem a sua titularidade protegida, mesmo que na cadeia de circulação
anterior algum titular tenha sido ilicitamente desapossado. Isto exceto se adquiriu o título
de má fé ou se, ao adquiri-lo, cometeu falta grave.

3) Incorporação

A incorporação revela-se principalmente no facto de o título ter de existir fisicamente


para que possam ser exercidos os direitos cartulares. Se o título desaparecer, se destruir
ou se perder, os direitos cartulares não podem ser exercidos enquanto o título não for
reconstituído através de um processo de reforma.

4) Legitimação

A posse do título, de acordo com a lei de circulação, legitima o portador a exercer o direito
cartular. Ou seja, o portador não precisa de provar a titularidade.

107
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Isto significa que o obrigado está legitimado a cumprir perante quem se apresentar
portador de acordo com a lei de circulação. E ao cumprir perante esse portador, o
obrigado fica desonerado sem que lhe possa ser oposta a eventual ilegitimidade da
pessoa a quem pagou – art.º 35 LUC e art.º 40/3 LULL.

5) Circulabilidade

Significa que o título de crédito circula de acordo com o regime que a lei lhe atribui e que
se designa normalmente por lei de circulação. Consoante o modo de circulação, os títulos
de crédito podem ser:
→Nominativos: são as ações e obrigações nominativas e caracterizam-se por
identificar no próprio título o seu titular. Estes títulos circulam por declaração do
transmitente escrita no título, pelo pertence lavrado no mesmo e pelo averbamento
no livro de ações da sociedade que os emitiu.

→À ordem: letras, livranças e cheques. No caso dos títulos à ordem, a circulação é


feita por endosso. É uma declaração escrita e assinada no verso do título que, em
regra, se expressa por palavras como «pague-se à ordem de» ou palavras
equivalentes ou uma mera assinatura nesse local. O endosso pode ou não
identificar aquele a quem se endossa (endossatário). Se não identificar o não
endossatário diz-se «em branco». Implica ainda a entrega do título ao
endossatário.

→Ao portador: circulam por entrega real; portanto, aquele que tivesse o título podia
exercê-lo. Era o caso das ações e obrigações ao desapareceram que foram extintas
pela lei 15/2017.

Os títulos impróprios são documentos que, na prática, podem circular, embora não sejam
tipicamente vocacionados para essa circulação. É o caso dos bilhetes de cinema ou dos
bilhetes de metro.

2. CLASSIFICAÇÕES DE TÍTULOS DE CRÉDITOS

a) Títulos de créditos públicos vs. títulos de crédito privados

108
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Os títulos de créditos públicos são emitidos por entidade pública no exercício da sua
atividade pública. São privados todos os restantes.

Por exemplo, os títulos de dívida pública e as obrigações do estado português são títulos
de crédito públicos.

b) Títulos de crédito propriamente ditos, títulos representativos e títulos de participação

Os propriamente ditos são os que incorporam direitos pecuniários. É o caso das letras,
cheques e livranças.

Os títulos de crédito representativos incorporam direitos reais sobre coisas,


nomeadamente mercadorias. É o caso das guias de transporte do conhecimento de carga.

Os de participação incorporam direitos sociais de sócios de sociedades. É o caso das ações


das sociedades anónimas.

c) Títulos de crédito causais e abstratos

Este critério prende-se com a invocabilidade contra o portador que cobra o título de
exceções extracartulares.

São títulos abstratos as letras, livranças e cheques. Os restantes são causais.

Atenção que esta é uma classificação de espectro. Portanto, os títulos podem ser mais ou
menos causais consoante o seu grau de exposição às exceções cartulares.

d) Nominativos, à ordem e ao portador

Já vimos.

e) Títulos de crédito individuais e em série

Os títulos de crédito em série são emitidos em massa, em número muitas vezes avultado,
e destinam-se a diferentes pessoas. É o caso das ações e das obrigações.

Já os títulos individuais são tipicamente emitidos singularmente. É o caso normalmente


das letras, livranças e cheques.

109
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Os títulos individuais são infungíveis porque têm relações subjacentes próprias; enquanto
os títulos em série, em regra, são fungíveis porque têm uma relação subjacente comum
na mesma emissão.

3. PRINCIPAIS NEGÓCIOS JURÍDICOS ASSOCIADOS AOS TÍTULOS DE


CRÉDITO EM ABSTRATO

1) Saque

O saque da letra é o negócio jurídico pelo qual o sacador dá uma ordem ao sacado para
que pague uma certa quantia ao tomador ou à sua ordem e, simultaneamente, promete ao
tomador que o sacado vai aceitar e tomar a letra.

2) Aceite

O aceite é o negócio pelo qual o sacador declara ao sacador que aceita pagar a letra ao
tomador ou à sua ordem e promete pagar a letra ao tomador ou à sua ordem.

3) Endosso

O que é isto de «à sua ordem»? O que é à ordem do tomador? É o endosso. O tomador dá


a ordem ao sacado aceitante para pagar a outra pessoa através do endosso. Portanto, o
endosso é o negócio jurídico pelo qual o tomador ou qualquer outro portador da letra dá
uma nova ordem ao sacado ou a aceitante (se, entretanto, já houve o aceite da letra) para
que pague a letra ao endossatário a quem entrega a letra ou à sua ordem (à sua ordem
porque o endossatário pode fazer novo endosso).

4) Aval

O aval é o negócio jurídico pelo qual o avalista promete pagar a letra se aquele por quem
der o aval a não pagar.

O sacador pode ser o tomador; o sacado é o aceitante. O tomador, que tem uma dívida,
mas que tem um crédito sobre o sacado, diz ao sacado para pagar ao sacador.
Normalmente é assim que funciona. Por exemplo, no caso dos cheques, o sacado é sempre
o banco onde o tomador tem a sua conta bancária. Portanto, o tomador tem um débito
extracartular para com o sacador, diz ao sacado para pagar o valor do título ao sacador.

110
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Todos estes são negócios jurídicos unilaterais que incorporam promessas abstratas.

O crédito cartular é só um, embora possa ter vários devedores. E o título não prova a
relação subjacente.

A função concreta que o negócio cambiário desempenha face à relação subjacente é


regulada pela designada convenção executiva. A convenção executiva é a convenção
entre os intervenientes no ato cambiário paralela a este ato cambiário e que se pode
integrar no próprio negócio subjacente ou constituir um acordo separado, nomeadamente
posterior. É nesta convenção que se determina a função a desempenhar pelo negócio
cartular em relação ao negócio subjacente. Por exemplo, é pela convenção executiva que
se determina se o saque constitui uma dação em função do cumprimento, uma garantia,
uma doação, um adiantamento.

Quando há um endosso de uma letra ou de um cheque, presume-se, salvo convenção em


contrário, que este título funciona pro solvendo. Significa que só o cumprimento efetivo
do direito cartular é que leva à extinção da obrigação subjacente. Mas pode estipular-se o
contrario. Isto resulta do art.º 840 do CC que se aplica por remissão do art.º 3 CCom.

Portanto, a diferença entre a dação pro solvendo e a dação pro soluto é que na primeira
só há pagamento na medida em que a obrigação cambiária for cumprida para extinguir o
direito subjacente. Na dação pro soluto basta a transmissão da obrigação cambiária, seja
esta ou não cumprida, para extinguir o direito subjacente.

Quando temos dois intervenientes num título e entre eles existe uma relação subjacente,
diz-se que a sua relação é imediata. Quando os intervenientes não estão ligados por uma
relação subjacente, então a sua relação é mediata. Vimos já que nos termos do art.º 17
LULL, salvo se o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em
detrimento do devedor, ao portador que se apresenta a cobrar a letra, não podem ser
opostas exceções fundadas nas relações extracartulares vigentes entre outras pessoas que
não o próprio portador e a pessoa a quem ele demanda o pagamento. Ou seja, com exceção
de uma atuação consciente em detrimento do devedor, o portador da letra só pode opor
ao devedor as exceções extracartulares emergentes das relações imediatas.

4. DESAPOSSAMENTO INVOLUNTÁRIO DO TÍTULO

111
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Todos os portadores na corrente cambiária correm o risco de se deparar com pessoas


fictícias ou assinaturas falsas. Reparemos: cada pessoa acrescentada à corrente cambiária
é um reforço da garantia do portador porque este pode exigir o pagamento de todos eles.
É possível sempre exigir o pagamento dos outros obrigados.

Como já vimos nos termos do art.º 16 LULL, o desapossado involuntário não pode
reivindicar a letra contra o terceiro portador de boa fé que seja legitimado por uma série
ininterrupta de endossos. Mas se lhe for exigido o pagamento, ele pode excecionar e
provar o desapossamento involuntário, sem que isso afete a validade das obrigações dos
outros signatários da letra – art.º 7 da LULL.

5. EXTINÇÃO E REFORMA DOS TÍTULOS DE CRÉDITO

Os títulos de crédito podem extinguir-se por causas atinentes ao título ou ao direito


incorporado.

O título extingue-se se for destruído total ou parcialmente ou se for obliterado. Esta


destruição pode ser intencional ou acidental.

O direito incorporado não se extingue pela extinção do título. O direito cartular não se
extingue pela destruição do título. Porém, não pode ser exercido sem ele. Portanto, para
que se possa exercer o direito cartular que se mantém, é preciso reconstruir o título.

O título também se pode extinguir por ineficácia. Por exemplo, depois do protesto por
falta de pagamento ou depois de decorrido o prazo para apresentação a protesto, a letra
deixa de circular como letra e passa a circular de acordo com o regime da cessão de
créditos do CC.

Os títulos também se extinguem pela extinção do direito incorporado (direito incorporado


aqui é o direito cartular e não o da relação subjacente) nomeadamente depois de pago,
cumprindo ou extinto este direito por qualquer outro facto.

Reconstituição do título de crédito pela reforma

112
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Nos termos do art.º 367 CC, podem ser reformados judicialmente os documentos escritos
que, por qualquer modo, tenham desaparecido. Reformar aqui significa reconstituir um
título que se destruiu, danificou ou desapareceu.

O título reformado juridicamente é o mesmo título e não um novo. A reforma opera-se


por um processo judicial comum nos termos do art.º 484 CCom.

Qual é o jogo de interesses associados à reforma de um título? É o risco de o título que


desapareceu estar na posse de terceiro. Por isso é que este processo se caracteriza pela
citação de todos os interessados conhecidos e ainda desconhecidos que eventualmente
possam ter alguma pretensão ao título.

É ainda por isto que o beneficiário da reforma, ao exercer o direito cartular, tem de prestar
caução válida durante 5 anos em garantia dos direitos de um outro titular que possam
surgir e tenha melhor direito sobre o título.

6. LETRAS DE CÂMBIO

A letra e a livrança são dois títulos muito parecidos. A livrança distingue-se da letra
porque a letra é, em regra, emitida por um sacador que ordena ao sacado que pague uma
quantia ao tomador ou à sua ordem. A livrança é emitida por um subscritor que promete
pagar uma quantia ao beneficiário ou à sua ordem. Daí que a letra seja, em regra, uma
ordem de pagamento; e a livrança seja, em regra, uma promessa de pagamento.

As livranças são reguladas nos art.º 71 a 78 da LULL e no art.º 77 da LULL encontramos


uma remissão geral, quase integral, do regime das livranças para o regime das letras.

Vamos agora centrar-nos na Letra.

Vejamos o art.º 1 LULL.

O respeito pelo modelo de letra que vem previsto do código de imposto de selo constitui
uma formalidade fiscal e não condição de validade da letra como título cambiário.

Nos termos do art.º 1/2, art.º 2, art.º 12, art.º 26 e art.º 31, o saque, o aceite, o endosso e o
aval são incondicionáveis.

113
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

● Uma letra não é letra se o saque vier com condição associada. O saque
condicionado impede a qualificação da letra como tal.
● O aceite condicionado é tido como recusa de aceite.
● O endosso condicionado tem-se por não escrito.
● No caso do aval, a única condição que o avalista pode colocar é quantitativa, ou
seja, ele pode limitar quantitativamente o aval. Quanto ao resto, o conteúdo da
obrigação do avalista determina-se pela do avalizado. Isto significa que o
condicionamento do aval tem as mesmas consequências do condicionamento do
ato avalizado, exceto se a expressão do aval, incluindo a da condição, se não puder
ter por fórmula equivalente, caso em que não é considerado como aval.

Letras e livranças em branco (importante para exame)

Um dos maiores problemas suscitados pelos títulos de crédito é o problema das letras ou
livranças em branco.

Uma letra em branco é uma letra que foi criada e posta em circulação sem estar
completamente preenchida com o objetivo de vir a ser preenchida mais tarde. Esta
incompletude é intencional. O preenchimento posterior deve ser feito de acordo com o
designado pacto de preenchimento – convenção pela qual se estipula o modo como o
título virá a ser preenchido mais tarde.

Se a falta de preenchimento não for intencional, e se não tiver sido convencionado o modo
do futuro preenchimento, a letra é incompleta e não vale como letra, tendo mero efeito
probatório.

No momento da cobrança e execução, a letra tem de estar totalmente preenchida.

Estas letras e livranças em branco, talvez até mais a livrança, estão muito associadas a
aberturas de crédito em contas correntes caucionadas. Ou seja, o banco mantém em
carteira a letra ou livrança e preenche a data de vencimento e o valor quando decide cobrar
judicialmente o crédito em caso de incumprimento do cliente.

Para autores como Pinto Coelho e Oliveira Ascensão, a letra em branco não é ainda uma
letra; como tal, não tem ainda natureza cambiária. Mais: numa posição ainda mais radical,
que é defendida pela Dra. Carolina Cunha, enquanto a letra não estiver preenchida, os

114
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

atos como o aceite, o saque, o endosso e o aval, são apenas atos preparatórios e, portanto,
não são vinculativos para os seus autores que se podem desvincular livremente deles.

Uma outra posição, defendida nomeadamente por Pais de Vasconcelos, defende que a
letra de câmbio em branco já tem natureza cambiária e, portanto, já é vinculativa, bem
como todos os atos a ela associados. Fundamentam esta posição no art.º 10 LULL que
permite que, após criado o título em branco, o primeiro portador pode transmiti-lo ainda
em branco por endosso e o título pode circular em branco por sucessivos portadores.
Portanto, Pais de Vasconcelos diz que depois estes sucessivos portadores se podem
desvincular da letra. Se a lei permite a circulação de uma letra em branco, ela tem de ter
validade cambiária; caso contrário, qualquer pessoa se poderia desvincular dela
livremente.

Um dos grandes problemas da letra em branco é o preenchimento abusivo –


preenchimento em violação do pacto de preenchimento. Nos termos do art.º 10 LULL, o
preenchimento abusivo não é oponível ao 3º portador da boa fé. Este regime faz lembrar
o regime do art.º 17. Portanto, aquele que foi vítima do preenchimento abusivo resta
apenas demandar aquele que preencheu abusivamente, exigindo uma indemnização ao
abrigo da responsabilidade contratual.

Em termos semelhantes se processa o desrespeito de um pacto de aval que também tem


caráter obrigacional e só vincula as partes.

Uma das questões mais impactantes na vida dos comerciantes é o chamado aval em
branco ou a pretensão de desvinculação do avalista. Normalmente o aval é prestado
por sócios gerentes (ou pelos cônjuges) de sociedades que são os sacados. Um dos grandes
problemas que se coloca é quando esse sócio gerente deixa de ser sócio gerente.

Até que ponto é que um avalista se pode desvincular de um aval quando


desaparecem as razões subjacentes à aceitação dessa posição? Um avalista que
avalizou a dívida porque é sócio gerente e controla as dívidas da sociedade pode
desvincular-se porque, entretanto, deixou de controlar se a sociedade paga ou não o que
deve? Ao aval aplicam-se as regras do art.º 10 e art.º 17 LULL. Portanto, se o avalista é
parte no pacto de preenchimento que é celebrado entre o avalizado e o credor, ficam estas
3 partes vinculadas ao conteúdo do pacto. Mas se o avalista não é parte neste pacto, então

115
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

ele fica vinculado pelo acordo entre o subscritor e o portador, sendo que o pacto de aval
entre avalista e avalizado apenas vincula as partes com eficácia meramente obrigacional.

Resulta do AUJ 4/2013 «que, tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada,
não é admissível a sua denúncia por parte do avalista sócio de uma sociedade a favor de
quem ele foi prestado em contrato em que a mesma é interessada, mesmo que, entretanto,
venha a ceder a sua posição social na sociedade avalizada».

Portanto, o que temos de analisar é:


→Se essas limitações ao aval resultam de um acordo que abranja o credor

subjacente beneficiário do aval na qualidade de portador do título e, neste caso,

é-lhe oponível nos termos do art.º 17;

→Se esse acordo foi apenas celebrado entre avalista e avalizado e não abrange o

portador do título, então gera apenas responsabilidade contratual face à

contraparte que não respeitou o cumprimento, mas não pode ser invocado

contra o portador.

Um outro argumento que tem sido utilizado para permitir a desvinculação de avalistas é
a invalidade da fiança omnibus. Isto vem do AUJ 4/2001. Este AUJ diz isto: é nula, por
indeterminabilidade do seu objeto, a fiança de obrigações futuras quando o fiador se
constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em
direito sem menção expressão da sua origem ou natureza e independentemente da
qualidade em que o afiançado intervém.

No entanto, diz Pais de Vasconcelos que não é transponível este juízo da fiança para o
aval. A fiança é causal; o aval é abstrato. Portanto, esta invalidade, a existir, apenas
afetaria o acordo entre o avalizado e o avalista, mas nunca poderia ser oposta a portadores
terceiros de boa fé.

7. ATOS ASSOCIADOS AOS TÍTULOS DE CRÉDITO

1) Saque

116
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

O saque é ato, sendo um negócio jurídico unilateral, que tem por conteúdo uma ordem
que é dirigida ao sacado pelo sacador para que pague uma determinada quantia ao
tomador ou à sua ordem.

É também uma promessa do sacador dirigida ao tomador ou à sua ordem de que o sacado
irá aceitar e pagar a letra e que, se isso não acontecer, o sacador a pagará ele próprio.

Em regra, o tomador é um terceiro. Normalmente temos aqui uma relação triangular.


Mas pode não ser. O tomador pode ser o próprio sacador: aquele que dá a ordem ao
sacado do pagamento é também aquele que recebe o pagamento.

Também pode acontecer que a letra seja sacada sobre o próprio sacador, ou seja, o sacador
é também sacado. Ele promete ao tomador pagar-lhe uma determinada quantia.

De acordo com o art.º 9 LULL, normalmente o sacador responde pelo aceite e pelo
pagamento da letra. Ou seja, assume a responsabilidade de o sacado aceitar e assume o
pagamento da letra se o sacado não pagar.

O sacador pode desresponsabilizar-se do aceite, inserindo na letra uma cláusula de letra


não aceitável, aceite proibido ou equivalente. Nestes casos, em que o sacador se
desresponsabiliza pelo aceite, ele apenas assegura que a letra será paga, mas não assume
que ela será aceite.

O sacador pode ainda estipular juros no momento dos juros e tem de fazer constar essa
estipulação na letra.

Se a letra for sacada à vista ou a certo termo de vista, nos termos do art.º 33 LULL, os
juros têm estipulação autónoma inscrita no texto da letra – art.º 5 LULL.

Se a letra for sacada a certo termo de data ou a data certa – art.º 33 LULL – os juros
são inseridos no montante do saque e não podem ser objeto de estipulação própria. Se
existir essa estipulação, ela tem-se por não escrita – art.º 5 LULL.

Os art.º 7 e art.º 8 LULL tratam com aspetos relacionados com a assinatura da letra.
Assim, por exemplo, se a letra contiver assinatura de pessoas incapazes para o ato ou
assinaturas falsas ou de pessoas fictícias, as obrigações dos demais signatários continuam
válidas. Nos casos consagrados no art.º 8 LULL, temos casos de representação sem

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

poderes. Nestes casos em que há representação sem poderes ou excesso de representação,


não fica vinculado aquele cujo nome foi assinado na letra, mas aquele que assinou a letra.

2) Aceite

O aceite é também um negócio jurídico unilateral pelo qual o sacado aceita a ordem de
pagamento que lhe foi dirigida pelo sacador e promete pagar a letra no vencimento ao
tomador ou à sua ordem – art.º 28 LULL.

O aceite é escrito na letra através da palavra «aceite» ou equivalente e a assinatura do


sacado aceitante ou apenas a assinatura.

Pelo aceite, o sacado passa a designar-se aceitante. Fica, assim, responsabilizado pelo
pagamento da letra no vencimento.

Atenção que o sacado não é obrigado a aceitar a letra. Portanto, quando há um protesto
por falta de aceite, esse protesto é feito contra o sacador e não contra o sacado.

A apresentação da letra a aceite é facultativa, exceto se o sacador estabeleceu a sua


obrigatoriedade (art.º 22 LULL) ou quando a letra é pagável à vista ou a termo de vista,
porque nestes casos é a apresentação que determina o vencimento ou o início do curso do
prazo, respetivamente.

O sacador pode ainda determinar que a letra não pode ser apresentada a aceite antes
de determinada data.

O aceite não pode ser condicionado, mas pode ser um aceite parcial ou modificado.

A recusa de aceite, o aceite parcial ou modificado dão lugar ao vencimento imediato


da letra – art.º 43 LULL.

Se o sacado riscar o aceite antes de restituir a letra, o aceite considera-se recusado, exceto
se o sacado informou por escrito o sacador ou outro dos intervenientes que aceita a letra

Sendo a letra pagável a certo termo de vista, o aceite deve ser datado, para que a partir
dessa data possa ser contado o prazo de vencimento.

O portador pode, porém, exigir que o aceite seja datado não da data em que tenha sido
dado, mas daquela em que a letra foi apresentada a aceite.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

O aceite também deve ser datado nas letras que devam ser aceites num determinado
prazo. Não sendo, o portador deve fazer constar a omissão da data por um protesto feito
em tempo útil sob pena de perder os direitos emergentes da letra contra o sacador e os
endossantes – art.º 25 LULL.

3) Endosso

O endosso é o negócio cambiário que permite circular o título. Também é um negócio


jurídico unilateral e abstrato que tem por conteúdo uma nova ordem dada por um
portador da letra ao sacado ou aceitante (depois do aceite), para que este pague, não a ele
endossante, mas ao endossatário ou à sua ordem.

Tem também uma promessa de que ele endossante pagará a letra se o sacado não aceitar
ou não pagar ou se algum dos demais obrigados o não fizer.

Sempre que a um endosso em branco se siga um outro endosso, presume-se que o


signatário seguinte recebeu a letra pelo endosso em branco, o que permite assim segurar
a lei de circulação do art.º 16 LULL.

Cada endossante responde pelo aceite e pelo pagamento da letra, pelo que se a letra
não for paga ou não for aceite, o portador pode exigir o pagamento a qualquer dos
endossantes. Mais: uma vez paga a letra, o endossado pode cobrá-la de qualquer um dos
endossantes anteriores.

O endossante pode exonerar-se da responsabilidade pelo aceite ou pelo pagamento,


apondo na letra uma cláusula nesse sentido. Essa cláusula só exonera o endossante que a
inseriu no título.

O endossante pode ainda proibir um novo endosso e, neste caso, fica exonerado da
responsabilidade pelo pagamento da letra perante os endossatários subsequentes.

Nos termos do art.º 18 LULL, o endossante pode ainda apor cláusulas ao endosso no
sentido de que o endossatário não se torna proprietário da letra, mas um mero
procurador do endossante.

Nos termos do art.º 19 LULL, o endossante pode colocar na letra uma menção pela qual
os obrigados não podem opor ao endossatário as exceções oponíveis ao endossante, a

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

menos que o endossatário, quando recebeu o título, o tenha feito conscientemente em


detrimento do devedor.

O endosso feito posteriormente ao protesto por falta de pagamento ou ao termo do prazo


para esse protesto, assim como o endosso feito quando o sacador tiver aposto na letra a
cláusula «não à ordem» ou equivalente, vale apenas como cessão ordinária de crédito –
art.º 20 LULL.

4) Aval

O aval é um negócio também unilateral que tem por conteúdo uma promessa de pagar
a letra e por função a garantia desse pagamento.

O aval pode ser prestado por um terceiro ou por um signatário da letra e tem de ser
prestado a favor de um dos obrigados.

Não constando da letra o obrigado a favor de quem o aval é prestado, considera-se que é
a favor do sacador.

O aval pode ser parcial e é escrito na letra ou numa folha anexa. A simples assinatura
na face anterior da letra, se não for do sacador nem do sacado, vale como aval.

Agora um ponto importante: a responsabilidade do avalista é determinada pela do


avalizado. Só que o aval subsiste mesmo que o ato do avalizado seja nulo por qualquer
causa, menos vício de forma. A nulidade do ato avalizado não afeta o aval, exceto se for
por vício de forma.

A posição do avalista é acessória do avalizado em matéria de prescrição e perda do direito


de ação por falta de protesto.

O avalista que é chamado a pagar a letra fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra
contra a pessoa a quem foi dado aval e contra os obrigados para com esta em virtude da
letra.

Havendo vários avales, tem de se verificar se é um co-aval e nesse caso a responsabilidade


é solidária; ou uma pluralidade de avales, caso em que cada um é uno e independente.

5) Vencimento e pagamento da letra

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

Há 4 modalidades de vencimento de uma letra:


● À vista;
● A um certo termo de vista;
● A um certo termo de data;
● Em dia fixado.

São nulas as letras com vencimentos diferentes ou com vencimentos sucessivos. Portanto,
para cada data de vencimento tem de haver uma letra.

A letra à vista é pagável no momento de apresentação. Daí que, nesse caso, não existe
aceite. O aceite é absorvido pelo pagamento. Esta letra deve ser apresentada a pagamento,
em princípio no prazo de 1 ano a contar da sua data. O sacador pode, contudo, reduzir ou
alargar este prazo e os endossantes podem reduzi-lo.

A falta de apresentação do pagamento da letra à vista ou a certo termo de vista importa,


para o portador, a perda dos direitos emergentes da letra contra o sacador, contra os
endossantes e contra demais obrigados – art.º 53 LULL.

Na letra a certo termo de vista, o prazo de vencimento conta-se da data do aceite. Se


houver recusa do aceite, conta-se a partir do protesto por falta de aceite.

As letras sacadas a termo de data ou pagáveis em dia fixado vencem-se nos termos
dos respetivos prazos e devem ser apresentadas a pagamento ou numa câmara de
compensação no próprio dia de vencimento ou nos dois dias úteis seguintes

As letras vencem-se antecipadamente nos seguintes casos:


● Recusa total ou parcial de aceite
● Insolvência do sacado, suspensão de pagamentos do mesmo, ainda que não
constatada por sentença, ou promoção sem resultado de execução dos seus bens.
● Insolvência do sacador de uma letra não aceitável

O portador não pode recusar o pagamento parcial, mas pode recusar o pagamento
antecipado.

6) Protesto

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

A recusa do aceite e a recusa do pagamento podem ser certificadas por protesto. O


protesto é um ato formal que tem de ser praticado por um notário.

O protesto por falta de aceite deve ser feito dentro do prazo para apresentação a
aceite. Mas se a letra foi apresentada no último dia do prazo, o protesto pode ser feito no
dia útil seguinte.

No caso de letra pagável em data certa ou a certo termo de data o protesto tem de ser feito
nos dois dias úteis seguintes à data que o pagamento deveria ser feito.

Se for uma letra pagável à vista, o protesto segue o regime do protesto por falta de aceite
e é dispensado o protesto por falta de pagamento, bem como a apresentação a pagamento.

O portador que protesta a letra deve, no prazo de 4 dias, avisar da falta de aceite ou de
pagamento aquele que lhe endossou a letra e o sacador. Cada um dos endossantes deve,
por sua vez, avisar aquele que o antecede na cadeia cambiária no prazo de dois dias e
assim sucessivamente até chegar ao sacador.

Os avalistas são avisados no prazo dos avalizados. A falta de aviso é causa de


responsabilidade civil.

Em caso de falta de protesto, o portador passa a poder cobrar a letra apenas do aceitante
e do seu avalista.

O protesto pode ser dispensado se houver cláusula nesse sentido. Se a cláusula for
aposta pelo sacador produz efeitos em relação a todos os intervenientes da letra. neste
caso, os beneficiários não perdem os seus direitos de ação por falta ou intempestividade
do protesto.

Os prazos de prescrição dos direitos cartulares estão no art.º 70 LULL. A prescrição do


direito cartular não implica a prescrição do direito subjacente.

II. Noções dos principais sinais distintivos de empresa e produtos

Os principais distintivos da empresa são os logotipos e recompensas. Os principais


sinais distintivos dos produtos são as marcas, denominações de origens e indicações
geográficas.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO COMERCIAL

O logótipo é um signo suscetível de representação objetiva e autónoma para distinguir


entidade ou sujeito e eventualmente estabelecimentos deste. Servem sobretudo para
distinguir sujeitos que prestem serviços ou produzam bens destinados ao mercado.

O titular de um logótipo não tem de ser um empresário. É um sinal distintivo bi-


funcional: tanto pode distinguir sujeitos como estabelecimentos. É possível que cada
sujeito tenha mais do que um logótipo.

As marcas são sinais suscetíveis de representação objetiva clara e autónoma destinados


a distinguir certos produtos de outros produtos idênticos ou afins.

A denominação de origem é o nome de uma região, de um local determinado ou, em


casos excecionais, de um país que serve para designar um produto originário dessa zona,
cujas qualidades ou características se devem essencialmente ou exclusivamente ao meio
geográfico.

Também são consideradas denominações de origem certas denominações


tradicionais, geográficas ou não, que designem produtos originários de uma região ou
local determinado cujas qualidades ou características se devem essencialmente ao meio
geográfico e cuja produção, transformação e elaboração ocorrem nas áreas geográficas
delimitadas.

A indicação geográfica é o nome de uma região, local determinado ou, em casos


excecionais, de um país que serve para designar um produto originário dessa zona cuja
reputação, determinada qualidade ou outra característica podem ser atribuídas a essa
origem geográfica e que é produzido, transformado ou elaborado na área geográfica
delimitada.

A diferença principal entre estas duas é que as primeiras identificam produtos cuja
qualidade está ligada ao meio geográfico e as segundas designam produtos que podem
ser produzidos com a mesma qualidade noutras zonas mas que devem a sua fama ou certas
características à área territorial de onde deriva a identificação geográfica.

As recompensas são prémios e títulos de distinção oficiais ou oficialmente


reconhecidos concedidos a empresários por virtude da bondade/mérito dos seus
estabelecimentos ou produtos.

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