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VALOR DE REEMBOLSO NO RECESSO ACIONÁRIO:

Interpretação do art. 45 da Lei das Sociedades por Ações

VALOR DE REEMBOLSO NO RECESSO ACIONÁRIO: INTERPRETAÇÃO DO


ART. 45 DA LEI DAS SOCIEDADES POR AÇÕES
Doutrinas Essenciais de Direito Empresarial | vol. 3 | p. 1177 - 1190 | Dez / 2010
DTR\2012\1846

Fábio Konder Comparato


Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela
Universidade de Paris.

Área do Direito: Comercial/Empresarial


Sumário:

- Parecer

Revista dos Tribunais RT 563/1982 set./1982

Parecer

Em acórdão de sua 1.ª Câmara Civil, o E. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais julgou que
o valor de reembolso das ações do acionista que exerce o direito de retirada da companhia, de
acordo com o disposto no art. 45 da Lei 6.404/76, deve ser apurado mediante avaliação do
patrimônio líquido a preços de mercado. Entendeu, mais precisamente, que o “balanço especial”
referido nesse dispositivo legal deve registrar a reavaliação dos bens do ativo, segundo esse critério.

A análise dessa tese de Direito, assim afirmada no julgado, é duplamente relevante. Em primeiro
lugar, na perspectiva de se reconhecer a possível quebra de uma longa tradição em nosso Direito
Positivo, no concernente ao mecanismo de proteção das minorias nas sociedades anônimas, por via
do direito de recesso. Em segundo lugar, pela inevitável repercussão da conclusão a ser tirada,
também no campo das sociedades por cotas de responsabilidade limitada, onde pela primeira vez
surgiu o recesso societário entre nós, diante da norma do art. 18 do Dec. 3.908/19, mandando aplicar
“as disposições da Lei das Sociedades Anônimas” em todas as hipóteses de lacuna no contrato
social.

Alterar o sentido consolidado há décadas de um elemento importante do direito acionário, com a


possibilidade de extensão desse entendimento às sociedades limitadas, que constituem uma espécie
de sociedade de Direito comum, na prática brasileira, representa, de modo inconteste, mudança de
notável efeito econômico. Tudo isso aconselha, portanto, o máximo de prudência na discussão e
análise jurídica dos elementos em que se decompõe o problema.

Com essa advertência preliminar, que me parece indispensável, proponho tratar o assunto em duas
partes distintas, correspondentes a dois tipos bem marcados de argumentação jurídica: a doutrinária
e a exegética. A primeira coloca o problema no nível geral da Lógica Jurídica, discutindo a estrutura
e a função do instituto em exame sob o aspecto de sua coerência interna, sem ligação necessária
com textos normativos determinados. A invocação destes é meramente exemplificativa. A segunda,
ao contrário, tem por objeto a análise de particulares normas jurídicas, consubstanciadas em textos
cuja interpretação deve ser efetua conforme concretas determinações de espaço e tempo, isto é, por
meio da recolocação de ditas normas na corrente histórica e no contexto sócio-econômico em que
atuam.

Da eventual coincidência nas conclusões de ambas as indagações pode-se inferir um razoável grau
de certeza na solução do problema.

I. Recesso e reembolso de ações na economia societária

Mediante declaração unilateral de vontade, o sócio dissidente de uma deliberação social pode, nos
casos, expressamente previstos em lei, desligar-se da sociedade, obtendo o reembolso do valor de
suas cotas ou ações.

Não é difícil reconhecer, nessa prerrogativa individual, o que a doutrina germânica denominou
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“direito formador” (Gestaltungsrecht)1 e a doutrina italiana, direito potestativo.2 É prerrogativa de


poder jurídico lato sensu, que se opõe ao direito subjetivo pelo fato de comportar uma imissão do
titular na esfera jurídica do sujeito passivo. No direito subjetivo em sentido estrito, o titular depende
da colaboração do sujeito passivo. que deve fazer ou deixar de fazer algo em benefício daquele. No
poder jurídico, ao revés, o outro sujeito é, de fato, totalmente passivo: ele se encontra em situação
de ter que sofrer, em sua pessoa ou seu patrimônio, os efeitos jurídicos de do exercício do poder. É
a sujeição.3 Tal não significa, porém, que após a produção automática desse efeito jurídico em seu
patrimônio, ou sua pessoa, não incumba ao sujeito passivo algum dever de cumprir certa prestação,
como é o caso do reembolso que se segue ao exercício do recesso societário.

Dos demais poderes jurídicos distingue-se o “direito formador” pelo objeto, que não são coisas ou um
comportamento humano, mas relações jurídicas. O exercício desse poder acarreta a criação,
modificação ou extinção de uma relação jurídica.

Outra diferença específica separa, ainda, o “direito formador” dos demais poderes jurídicos. É o seu
fim “egoístico”, como dizem os alemães (eigennützig), ou seja, a realização de um interesse no
próprio titular

É importante nos detenhamos um pouco sobre essa nota distintiva do “direito formador”, no caso
específico do recesso societário.

Característica fundamental do negócio jurídico de sociedade é a convergência de todos os atos ou


prestações a um fim comum, considerado de interesse social e, portanto, distinto do interesse
individual dos sócios. É o que a nossa Lei das Sociedades por Ações de 1976 denomina “interesse
da companhia” (arts. 115 e 117, § 1.º, “c”). O interesse social há de sempre prevalecer sobre o
interesse individual, em caso de conflito.

Por outro lado, o Direito moderno assina ao acionista controlador o dever de obrar, também, no
interesse da empresa – que ultrapassa o âmbito puramente societário – bem como em prol do bem
geral da comunidade em que atua a empresa. Obviamente, esses interesses gerais, na lógica
econômica e no sistema jurídico, só podem ser realizados por intermédio da companhia; só podem
ser atendidos enquanto esta existir e desenvolver a atividade constante do objeto social estatutário.

Se a lei atribui ao acionista controlador esse especial dever e responsabilidade de agir no interesse
de todos os acionistas, dos que trabalham na empresa e da comunidade em que esta se insere, está
claro que reconhece no controlador, em princípio, o verdadeiro intérprete do interesse social, diante
dos não controladores. A presunção legal, tanto nas sociedades mercantis quanto na sociedade
política, é de que o titular do poder age no interesse coletivo.

Não se trata, porém, como é óbvio, de presunção absoluta. É livre à minoria e aos que não detêm o
poder, em qualquer circunstância, demonstrar o contrário; tanto mais que todos os acionistas,
majoritários ou minoritários, têm o dever legal de colaborar na realização dos fins sociais.

A demonstração de que a deliberação majoritária antagoniza o interesse social é facilmente dada,


quando ocorre a transposição de certas barreiras postas em lei para a proteção dos que não detém o
poder: os chamados “direitos individuais ou essenciais” do acionista. A ilegalidade da deliberação
majoritária que viola esses direitos é direta e imediata; ela transparece re ipsa.

As legislações ocidentais, consagradoras da técnica dos direitos individuais do acionista, incluem,


nessa categoria, prerrogativas heterogêneas quanto ao seu conteúdo. Há, com efeito, direitos
materiais, tendentes à obtenção de bens econômicos (direito aos lucros ou ao acervo liquido da
companhia em caso de liquidação, p. ex.) e remédios jurídicos, isto é, meios ou recursos de
realização ou proteção de direitos materiais (p. ex., o poder de fiscalizar, na forma prevista em lei, a
gestão dos negócios sociais).

Por outro lado, certos direitos individuais correspondem a prerrogativas essenciais do sócio, em
qualquer tipo de sociedade mercantil, de tal arte que, sem elas, pode-se dizer, não há sociedade. É o
caso paradigmático do direito de participar dos lucros sociais, com a correlata regra da nulidade das
sociedades “leoninas” (CComercial, art. 288). Já o mesmo não ocorre quando o direito individual é
reconhecido em lei unicamente para a proteção do interesse minoritário, a modo de contrapeso ao
princípio do governo social pela maioria. Exatamente porque não se cuida, aí, de prerrogativa ligada
à própria essência da sociedade, nem todas as legislações consagram tais direitos, ou os alçam à
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categoria de poderes intangíveis.

É dessa última espécie o direito de recesso. Trata-se de um remédio jurídico, e não de um direito
material à obtenção de lucros ou vantagens. E remédio reconhecido em lei para a proteção de
interesses individuais do acionista, não correspondentes, portanto, ao interesse social. Deste, o
intérprete primeiro continua sendo o majoritário ou controlador. Ele tem o direito – e, em certas
circunstâncias, até mesmo o dever – de tomar a iniciativa das deliberações sociais que contrariam o
interesse dos minoritários. Mas o sacrifício destes é considerado iníquo sem uma compensação: o
poder atribuído aos dissidentes de se retirarem da sociedade com o reembolso do valor de sua
participação social.

A doutrina reconhece, portanto, sem discrepância, que o direito de recesso do sócio dissidente de
deliberação social não constitui uma sanção de ato ilícito praticado pela maioria; não representa uma
forma de indenização.4 Se o fora, o sócio recedente seria obrigado a provar o prejuízo sofrido para
exercer a retirada, quando, na verdade, o recesso atua como una espécie de “denúncia vazia” do
vínculo societário. A vigente Lei brasileira das Sociedades por Ações, aliás, admite expressamente
que o acionista possa retirar-se da companhia, mesmo quando não compareceu à assembléia geral
na qual foi tomada a deliberação da qual veio a discordar, ou mesmo quando, comparecendo,
absteve-se de votar (art. 137, § 1.º). Os únicos pressupostos para o exercício desse direito consistem
na deliberação, pela assembléia, sobre matéria especificada em lei como ensejadora do recesso e a
manifestação de vontade do acionista retirante, no prazo legal.

Exatamente por isso, o valor de reembolso é sempre fixo, segundo critério estabelecido em lei ou no
estatuto da companhia. Como não se cuida de ressarcir prejuízos individuais, mas de compensar
interesses particulares, sacrificados legitimamente ao interesse social, o valor pecuniário a ser
recolhido pelo sócio retirante obedece a um cálculo predeterminado, já de todos conhecido. Daí por
que – é curial acrescer-se – subverte completamente o sistema legal a súbita mudança de
interpretação do sentido desse cálculo, na jurisprudência. A previsibilidade do exato valor a ser pago
pela companhia e recebido pelo acionista retirante deixa de existir, tornando aleatória a
compensação do recedente e indefinido o risco econômico da companhia. Aquele já não saberá com
exatidão da conveniência da retirada; esta, pela maioria acionária, já não poderá estimar,
precisamente, o interesse em reconsiderar a deliberação tomada, que ensejou o recesso (Lei 6.404,
art. 137, § 2.º).

Observe-se, ainda, que o reembolso de ações entende também com o interesse dos credores
sociais, se a garantia comum destes últimos reside no ativo social líquido, não podendo os acionistas
reduzir o capital sem acordo dos credores ou pagamento das dívidas sociais quirografárias (Lei
6.404, art. 174), não pode a retirada do acionista afetar o montante dessa garantia fora e além dos
limites impostos pela lei ou pelo estatuto. O interesse individual do sócio retirante, repita-se, não
prevalece sobre o interesse da companhia e o da empresa, a cuja sorte acham-se jungidos os
credores sociais.5

Finalmente, o reembolso não deve ser confundido com a partilha de acervo patrimonial da
companhia, pela boa razão de que o direito de recesso do acionista não importa dissolução da
companhia. Não é dissolução total, obviamente, porque a companhia continua a existir e a
desenvolver sua atividade de empresa. Tampouco pode o recesso se equiparar a uma dissolução
parcial, porque o elemento específico de funcionamento de uma autentica sociedade de capitais é a
interposição das cotas ou ações na relação da sociedade com os sócios. A sociedade anônima – já
se frisou um sem-número de vezes – é antes uma reunião de posições acionárias do que uma
reunião de acionistas. Tanto que, segundo se admite nas diferentes legislações, o valor de
reembolso no caso de recesso acionário, pode ser pago à conta de reservas ou lucros, sem ofensa
ao capital social, de sorte que as ações permanecem em tesouraria, para posterior recolocação no
mercado. Na lei brasileira, assina-se um prazo de 120 dias para a substituição dos acionistas cujas
ações tenham sido reembolsadas; findos os quais, e somente então, procede-se à redução do
capital, com o cancelamento das ações (art. 45, § 4.º).6

Eis por que, nos países do sistema romano-germânico, o critério fixado em lei para o cálculo do
reembolso das ações, uma vez exercido o direito de recesso, costuma ser o do patrimônio líquido
contábil (alternado ou não com o valor bolsístico, quando a companhia é aberta, como na legislação
italiana), e não o do valor venal dos bens da companhia, que continua a exercer sua atividade
empresarial. Tanto mais que esse valor de mercado do conjunto dos bens componentes do ativo
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social inclui mera expectativa de lucro, a ser realizada unicamente com a sua alienação em bloco, o
que sucede apenas quando da liquidação da sociedade.7

Se se determinasse, como norma de princípio, que o acionista dissidente de deliberação de


assembléia pudesse obter o pagamento do valor de suas ações pelo preço de mercado dos bens,
componentes do ativo social, o dissidente teria sempre lucro na retirada, incitando-se, com isso, os
minoritários a agir contra o interesse social. Quem não percebe quanto esse proceder ofende a
lógica do sistema societário?

II. O valor de reembolso de ações na lei brasileira

A exposição de princípios que acaba de ser feita pretende ser a demonstração de que, em regra, ou
seja, salvo determinação em contrário do contrato social ou do estatuto, o reembolso das cotas ou
ações do sócio recedente não deve ser calculado em função do valor de mercado dos bens
componentes do ativo social.

Resta saber se à mesma conclusão se chega pela análise dó Direito societário vigente.

Rege a matéria atualmente, nas sociedades anônimas, o art. 45 da Lei 6.404/76. Para iluminar o
sentido dessa disposição legal, convém proceder por compreensão (cum + prehendere), recolocando
a norma no conjunto sistemático da lei e, também, no processo da evolução legislativa de nosso
País, neste assunto.

Comecemos pelo último procedimento indicado.

O direito de recesso societário ingressou na legislação brasileira com a promulgação de nossa Lei
das Sociedades por Cotas de Responsabilidade Limitada, em princípios do século (Dec. 3.708, de
10.1.19). Declarou, com efeito, esse diploma legal que “assiste aos sócios que divergirem da
alteração do contrato social a faculdade de se retirarem da sociedade, obtendo o reembolso da
quantia correspondente ao seu capital, na proporção do último balanço aprovado“.

O legislador brasileiro inspirou-se claramente, ao redigir a norma, na lei portuguesa de 11.4.01, em


cujo art. 41, § 3.º, lê-se: “Os sócios que não concordarem com a prorrogação ou fusão, ou com o
assunto, reintegração ou redução do capital social, podem, declarando-o na assembléia geral
respectiva, apartar-se da sociedade, obtendo o reembolso da quantia correspondente ao seu capital
na proporção do último balanço aprovado”.

O nosso Dec. 3.708, como se percebe, reproduziu ipsis verbis a lei lusitana na definição do valor de
reembolso das cotas do sócio retirante. E o diploma português, de seu turno, seguiu a orientação
pioneira do Código de Comércio italiano de 1882, verdadeiro criador do instituto no Direito ocidental.

Ora, tanto no Direito italiano quanto no português, nunca ninguém pôs em dúvida que o critério de
apuração do valor das cotas ou ações do sócio retirante é o expresso pelas demonstrações
financeiras: o valor contábil da participação social.8 Nem podem ser de outro modo, quando a norma
se refere, desenganadamente, ao “último balanço aprovado”. O valor dos bens do ativo empresarial
somente pode ser computado, em balanço, segundo os próprios critérios legais, os quais sempre
exigem a adoção do menor valor, entre o custo histórico e o preço de mercado.

Assim, também, na interpretação do disposto no art. 15 do nosso Dec. 3.708. Em mais de meio
século, apenas duas questões foram discutidas em doutrina a respeito desse reembolso de cotas: a
de se saber se na locução legal “quantia correspondente ao seu capital” estaria também incluído o
valor das reservas e dos lucros em suspenso9 e a do sentido da expressão “último balanço
aprovado” 10 . Esta última questão, aliás, foi transposta do Direito italiano. Como se percebe, a
interpretação do dispositivo sempre se fez no âmbito da realidade contábil.

Ao se editar, em 15.6.32, o Dec. 21.536, criador, entre nós, das ações preferenciais, consagrou-se,
por contraste, a indubitabilidade do reembolso do sócio retirante, na sociedade por cotas, como o
valor puramente contábil de sua participação social. É que, com efeito, no art. 9.º daquele decreto de
1932, prevendo-se o direito de recesso dos acionistas preferenciais dissidentes de deliberação que
alterou preferências ou vantagens conferidas a uma ou mais classes dessas ações, dispôs-se: “Na
ausência de disposição em contrário nos estatutos, o valor do reembolso será o resultado da divisão
do ativo líquido da sociedade, constante do último balanço aprovado pela assembléia geral, pelo
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número de ações em circulação na data da assembléia…, salvo para os dissidentes que preferirem o
valor determinado por avaliação, se por ela protestarem…”.

Ou seja, se os acionistas dissidentes não protestassem pela avaliação do ativo social líquido, o valor
deste, para efeito do cálculo do montante do reembolso, seria estritamente o dos lançamentos
contábeis.

Sobrevindo o Dec.-lei 2.627, em 1940, manteve-se para a fixação do valor de reembolso de ações o
mesmo critério do Dec. 21.536, com a supressão do direito de pedir a avaliação do patrimônio social.
Determinou, assim, o art. 107 daquele decreto-lei; “Salvo disposição dos estatutos em contrário, o
valor do reembolso será o resultado da divisão do ativo líquido da sociedade, constante do último
balanço aprovado pela assembléia geral, pelo número de ações em circulação”.

Bem se vê que a fórmula legal reproduziu literalmente a primeira parte do parágrafo único do art. 9.º
do decreto de 1932.

O valor de reembolso assim especificado, como reconheceu o autor do anteprojeto do Dec.-lei 2.627,
“é o valor contábil da ação”.11 Nem poderia ser de outra forma, pois, ao se falar em “último balanço
aprovado pela assembléia geral”, aludiu-se, por lógica inferência, às normas legais reguladoras do
levantamento regular de balanços nas companhias, e não a avaliações extracontábeis de ativo.

Comentando o dispositivo, Tulio Ascarelli foi incisivo ao bater no ponto exato da controvérsia: “Não
me parece possa o sócio recedente impugnar o balanço por não ter este considerado as
“valorizações” dos bens sociais. Com efeito, a valorização dos bens sociais não deve, em princípio,
ser encarada no balanço, justamente por ser ela apenas uma esperança de lucro; é apenas quando
o bem tenha sido reavaliado e a reavaliação aproveitada num aumento do capital ou das reservas
que será ela levada em conta na determinação do valor a reembolsar ao acionista que se retira. Sob
este aspecto ressalta a diferença entre o valor “contabilístico” da ação (levado em conta quanto ao
valor de reembolso, caso o acionista se retire da sociedade, conforme o art. 107) e o valor real dela;
entre os direitos do acionista recedente e aqueles do acionista na liquidação da sociedade. Este
realmente aproveita da valoriza cão dos bens sociais, quer seja esta realizada por meio da alienação
destes bens, quer sejam estes diretamente divididos entre os sócios”.12

Na determinação do valor de reembolso, a Lei 6.404/76 usou de expressão diversa, relativamente ao


Direito anterior: “O estatuto poderá estabelecer normas para determinação do valor de reembolso,
que, em qualquer caso, não será inferior ao valor de patrimônio líquido das ações, de acordo com o
último balanço aprovado pela assembléia geral”.

O confronto com a norma contida no art. 107 do revogado Dec.-lei 2.627 revela que a única variação
expressional consistiu na substituição da locução “o resultado da divisão do ativo líquido da
sociedade… pelo número de ações em circulação” pela expressão sintética “valor de patrimônio
líquido das ações”. Tanto no decreto-lei de 1940 quanto na lei vigente, essa fixação estatutária é um
mínimo legal; e em ambos os diplomas o valor do ativo líquido, ou do patrimônio líquido, é
computado com base no último balanço aprovado pela assembléia geral” .

Teria o “patrimônio líquido”, na nova lei acionária, acepção diversa do “ativo líquido da sociedade”,
no Direito anterior?

Pelo disposto no art. 178, § 2.º, da Lei 6.404, vê-se que “patrimônio líquido” corresponde a uma das
subdivisões do passivo contábil, mais precisamente ao grupo de contas que inclui o capital social, as
reservas de capital, as reservas de reavaliação, as reservas de lucros e os lucros ou prejuízo
acumulados. Todas essas contas são discriminadas no art. 182. Trata-se, por conseguinte, de
valores meramente contábeis, não correspondentes a bens ou direitos determinados. Ou, melhor,
tais valores são a exata contrapartida de bens ou dívidas, da totalidade do ativo deduzido das
exigibilidades. Pois é isto, exatamente, o que o decreto-lei de 1940 denominava “ativo líquido”.

Podemos, assim, desde já, concluir, preliminarmente, que sem embargo da mudança de redação,
em confronto com o art. 107 do Dec.-lei 2.627, o art. 45 da Lei 6.404 apresenta idêntico sentido, E
essa conclusão é confirmada, indiretamente, pela leitura da Exposição de Motivos do projeto de lei,
ao se deixar claro que o novo diploma, nesse particular, em nada inovou com relação ao Direito
anterior.

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Prossigamos, agora, na exegese da norma, recolocada em seu contexto.

Se o patrimônio líquido de uma companhia faz parte do grupo de contas passivas, ele não é, a rigor,
objeto de avaliação, e, sim de mera certificação contábil. Avaliáveis são, apenas, os bens
constituintes do ativo.

No entanto, em vários dos seus dispositivos, a Lei 6.404 fala em avaliação do patrimônio líquido,
como se pode ver nos arts. 224, III, 228, § 1.º, 256, “b”, e 264. Com exceção do penúltimo artigo,
com significação apenas paramétrica, todos os demais dizem respeito aos processos de
incorporação, fusão ou cisão societária, em que ocorre a extinção de organizações empresariais (na
incorporação e na fusão) , ou alteração em sua composição patrimonial (na cisão). Daí por que, no
art. 227, § 1.º, a lei emprega a expressão “versão do patrimônio líquido” e no art. 229, § 1.º,
“patrimônios líquidos transferidos”. O que se leva em conta aí, necessariamente, é o conjunto de
elementos ativos e passivos, transferidos globalmente ou em parcelas a outras sociedades; isto é, a
própria empresa.

É esta realidade empresarial, também, um dos parâmetros de valor indicados no art. 256, ao regular
a aquisição, por companhia aberta, do controle de qualquer sociedade mercantil. Como o poder de
controle implica, necessariamente, o comando da empresa, enquanto organização lucrativa, é ele
sempre apreciado em função desse aviamento, que justifica o ágio. O que se adquire não são ações,
exclusivamente consideradas, mas a própria empresa. Ultrapassa-se, pois, o nível contábil do
patrimônio líquido e busca-se a organização real que ele representa.

Por outro lado, dos cinco dispositivos legais em que há referência à avaliação do patrimônio líquido,
apenas dois contêm a determinação de que essa se faça “a preços de mercado”. O que significa,
desenganadamente, que nas demais hipóteses esse critério não é exigido.

Ora, no art. 45, a Lei 6.404 não fala em avaliação de patrimônio líquido, e sim em “valor de
patrimônio liquido das ações”, que pode ser, e efetivamente é, obtido sem recuso a qualquer
avaliação. Basta, para tanto, dividir, como explicitava o Dec.-lei 2.627, o montante global desse
patrimônio líquido pelo número de ações em circulação.

De resto – e vai aqui um argumento capital – o art. 264, refere-se a essa avaliação do patrimônio
líquido a preços de mercado, para estremá-la do “valor de reembolso fixado nos termos do art. 137“.

O § 3.º daquele artigo, na verdade, distingue três valores diversos para as ações de uma companhia:
o de patrimônio líquido contábil, o do mercado de capitais (Bolsa ou mercado de balcão) e o de
patrimônio líquido a preços de mercado (também chamado “valor de liquidação global da
companhia”).

Parece claro, por essas considerações, que o critério de fixação do valor de reembolso das ações,
constante do art. 45 da Lei 6.404, não é o de avaliação do ativo empresarial a preços de mercado.

Essa conclusão exegética importaria consagrar uma lesão aos direitos do acionista minoritário de
“participar do acervo da companhia em caso de liquidação” (art. 109, II)?

De modo algum. O exercício do direito de recesso, como vimos, não pode ser equiparado a uma
liquidação da companhia. Ao contrário, ele foi estabelecido, justamente, para permitir a continuação
da atividade empresarial sem agravo desmedido aos interesses individuais dos dissidentes.

Mas esse agravo ao interesse individual dos minoritários não é inevitavelmente aumentado pela
desvalorização monetária?

Também não. É aqui, aliás, que o desconhecimento da lei acionária costuma levar o intérprete
desavisado a grandes desvios.

Desde há muitos anos a legislação fiscal vinha impondo a correção monetária do ativo patrimonial
das pessoas jurídicas, a fim de evitar distorções tributárias. A Lei 6.404 generalizou o procedimento,
agora na perspectiva da economia societária. Estabeleceu a obrigatoriedade da correção monetária
ânua do custo de aquisição dos elementos do ativo permanente e mais a dos “saldos das contas do
patrimônio líquido” (art. 185).

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Interpretação do art. 45 da Lei das Sociedades por Ações

E justamente, como essa atualização do valor nominal das contas do patrimônio líquido somente se
efetua por períodos correspondentes ao exercício social (normalmente 12 meses), estabeleceu o
próprio art. 45 o procedimento da atualização excepcional do saldo do patrimônio líquido, caso a
deliberação majoritária, ensejadora do recesso, ocorra “mais de 60 dias depois da data do último
balanço aprovado” (§ 2.º).

Eis o sentido e o alcance desse “balanço especial”. Trata-se, como esclareceu a Exposição de
Motivos do projeto governamental, de mera atualização monetária, na estrita lógica do sistema
consagrado genericamente no art.185. Levanta-se esse balanço especial “a fim de que o patrimônio
líquido da empresa seja expresso em moeda de poder aquisitivo contemporâneo ao pagamento”.
Nada mais. Essa a única finalidade desse levantamento extraordinário das contas sociais.

Se se tratasse de verdadeira avaliação dos bens sociais, o art. 45 faria expressa remissão ao
procedimento regulado no art. 8.º da lei, analogamente ao disposto no art. 182, § 3.º. Ou seja,
haveria, necessariamente, a criação de uma reserva de reavaliação.

Remate-se, por último, com a observação de que o entendimento desse “valor de patrimônio liquido
das ações”, referido no art. 45 da Lei 6.404, como comportando uma avaliação de bens da empresa,
introduziria um elemento de contradição no mecanismo legal do direito de recesso. É que,
justamente no intuito de fazer preponderar o interesse social sobre o interesse individual dos
dissidentes, a lei permite à maioria, tal seja a magnitude do reembolso a ser pago aos recedentes,
reconsiderar a deliberação que ensejou a retirada (art. 137, § 2.º). Essa faculdade, no entanto, deve
ser exercida em prazo curtíssimo: 10 dias subseqüentes ao término do prazo para a manifestação do
recesso. Durante esse prazo exíguo é sempre possível calcular o valor de reembolso, mesmo com a
atualização monetária prevista em lei; mas é manifestamente impossível estimar o valor de mercado
dos bens da empresa.

Quer isto dizer que, adotada a interpretação consagrada no acórdão recorrido, a maioria acionária
ficaria sem condições para julgar, com exato conhecimento de causa, da conveniência empresarial
de se tomar uma deliberação prevista no art. 137 da lei, pois o direito de retirada dos dissidentes
constituiria uma perpétua fonte de surpresas. A não ser que se procedesse, sistematicamente, à
avaliação da empresa antes de qualquer deliberação da assembléia suscetível de gerar o recesso e
que essa avaliação fosse aprovada pelos futuros dissidentes.

Quem não percebe o absurdo prático dessa situação?

III. Conclusão

Não hesito, pois, em concluir, na linha de longa tradição, tanto no Direito brasileiro quanto do
estrangeiro do qual recebemos o instituto do direito de recesso, que o reembolso das ações dos
acionistas dissidentes, no teor do disposto no art. 45 da Lei 6.404/76, salvo previsão diversa do
estatuto, deve ser estabelecido com base no valor do patrimônio contábil da companhia: e que “o
balanço especial” referido nesse artigo de lei tem por finalidade, unicamente, a atualização monetária
das contas do patrimônio líquido.

São Paulo, 31 de maio de 1982.

1 Cf. Karl Larenz, Allgemeiner Teil des deutschen bürgerlichen Rechts, Munique, C. H. Beck’sche
Berlagsbuchhandlung, 1967, p. 233 e ss; Andreas von Tuhr Allgemeiner Teil des Schweizerischen
Obligationenrechts, Tübingen, J. C. B. Mohr, 1924, § 3, p. 18 e ss; Ennecerus-Nipperdey, Derecho
Civil – Parte General, 2.ª ed., vol. 1.º, trad. espanhola, Barcelona, Bosch, p. 287 e ss; Haluk
Tandogan, Notions Préliminaires à La Théorie Génerale des Obligations, Genebra, Georg, 1972, p.
37 e ss. Na doutrina brasileira, cf. Pondes de Miranda, Tratado de Direito Privado, 3.ª ed., t. V, § 580
e ss.

2 Cf. Puleo, I Diritti Potestativi, Milão, Giuffrè, 1959.

3 Francesco Carnelutti, Teoria Generale del Diritto, 3.ª ed. Roma, Foro Italiano, 1951, pp. 169 e ss.

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VALOR DE REEMBOLSO NO RECESSO ACIONÁRIO:
Interpretação do art. 45 da Lei das Sociedades por Ações

4 Cf. Ascarelli, Studi in Tema di Società, Milão, Giuffrè, 1952, nota 9, pp. 184; Pontes de Miranda,
Tratado de Direito Privado cit., t. L, § 5.313, 6; A Velasco, La Separación del Accionista, Barcelona,
Editoriales de Derecho Reunidas, 1976, p. 58.

5 Em acórdão de 10.9.74, a Corte de Cassação italiana repeliu a argüição de inconstitucionalidade


dos arts. 2.427 e 2.494 do CC, feita sob a alegação de que o reembolso das cotas de sócio retirante
pelo valor contábil ofenderia o principio de que toda desapropriação exige o pagamento de justa
indenização. Comentando o aresto, disse o emérito comercialista Giuseppe Ferri: “La posizione dei
soci è in funzione del capitale, degli utili e delle perdite: la liquidazione della quota del socio non può
essere, finché la società permane, che in funzione di questi tre elementi. Non si può solo perchè il
socio recede dalla società creare una contaminazione tra quello che è nel patrimonio del socio e
quello che è nel patrimonio della società e svincolare la posizione del socio da quel rigoroso sistema
che è posto a tutela dei ereditori sociali e che costituisce la necessaria premessa del principio di
responsabilità limitada. Indunbiamente, sciogliendosi il rapporto sociale, il socio ha diritto di vedersi
attribuito tutto che è di sua spettanza, e cioè non soltanto la sua quota di capitale, ma anche la sua
quota sugli utili accantonati. Quel diritto, che é soltanto latente, diviene attuale, con lo scioglimento
del rapporto, ma non può lievitare ed accrescersi solo perchè il valore del patrimonio sociale è
superiore ai valori di libro e tanto meno può tradursi in un diritto sul patrimonio che è e deve rimanere
della società, costituendo la sola ed esclusiva garanzia dei creditori sociali” (Rivista del Dirrito
Commerciale e del Diritto Generale delle Obligazioni, LXXIII/140 e 141, maio-junho de 1975, 2.ª
parte).

6 Como escreveu excelentemente Ascarelli, “la differenza tra il valore spettante al socio in sede di
recesso e quello spettante in sede di liquidazione è giustificata dalla differenza tra i due istituti; il
recesso presuppone difatti la persistenza dalla società e l’esistenza di una deliberazione validamente
presa dalla maggioranza e che vincola il sócio, seppure questo poi goda dell’eccezionale tutela
derivante dal recesso. La differenza tuttativa dimostra Che il recesso rappresenta una tutela
solamente parziale dell’azionista e ciò appunto perchè lo tutela di frente a una deliberazione
maggioritaria tuttavia legittimamente vincolante anche nei suoi confronti. Il recesso non equivale
perciò al rimborso di quanto spetterebbe all’azionista in sede li liquidazione, sicchè non può essere
identificati con una liquidazione parziale dellu società” (Studi in Tema di Società cit., nota 9, p. 184).

7 Comentando, por sua vez, o mesmo acórdão da Corte de Cassação italiana citado na Corte de
Cassação italiana citado na nota 5, acima, observou Giannattasio que “Il sócio che dichiara di
recedere há diritto allá liquidazione della própria quota così come questa risulta dal bilancio
dell’ultimo esercizio e non in proporzione all’affettivo patrimônio della società. Ciò perchè la legge
indica come prezzo massimo per la valutazione dei beni da farsi in bilancio il prezzo di acquisito o di
costo, e non è possibile ne la rivalutazione econômica ne quella monetária di tali Beni, tanto meno
adopera di giudice cui tale potere non è atribuito da alcuna norma”(Giustizia Civile, vol. I/1.075,
1974). Escusa lembrar que, no Direito brasileiro vigente, a reavaliação monetária dos lançamentos
do balanço é feita anualmente (Lei 6.404, art. 185).

8 No regime do Código de Comércio de 1882, escreveu Vivante: “Stabililo qual è il bilancio decisivo
bisogna determinare il valore dell’attivo sociale, e quindi il valore di ogni azione. Per otternerlo si
sommeranno, di regola, il capitale sociale, le riserve, gli utili eventualmente accantonati per
l’approvazione dell’assemblea; se ne detrarranno le perdite che fossero eventualmente annotate
nell’attivo, e dividendo il residuo pel totale delle azioni, si otterrà il valore di clauscuna, quale risulta
dal bilancio” (Trattato di Diritto Commerciale, 5.ª ed., vol. II/252 e 253, 1929, n. 520 bis). Trata-se da
explicitação do que veio a ser inscrito em nosso Dec.-lei 2.627/40, como se verá de imediato.

9 Cf. Waldemar Ferreira, Sociedades por Quotas, 5.ª ed., São Paulo, Cia. Graphico – Editora
Monteiro Lobato, 1925, n. 157; Egberto Lacerda Teixeira, Das Sociedades por Quotas de
Responsabilidade Limitada, São Paulo, Max Limond, 1956, p. 214.

10 Cf. Waldemar Ferreira, Tratado de Direito Comercial, 3.º vol., São Paulo, Saraiva, 1961, n. 553;
Egberto Lacerda Teixeira, ob. cit., p. 215 e ss.

11 Sociedades por Ações, 3.ª ed., vol. I/65, Rio, Forense, n. 108.

12 Tulio Ascarelli, Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado, 2.ª ed., São Paulo,
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Interpretação do art. 45 da Lei das Sociedades por Ações

Saraiva, nota 16, p. 396.

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