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RDC, Vol. 2, nº 1, Maio 2014, pp.

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A posição das cooperativas no cenário concorrencial

Mônica Tiemy Fujimoto1

RESUMO:

A questão relacionada com as atividades cooperativas em cenário concorrencial desafia nossa reflexão
porque o tema, no mínimo, é controverso. Por um lado, a pressuposta fragilidade dos cooperados
quando vistos como agentes individuais levaria a crer - em primeira análise - que estariam cabalmente
afastados da incidência da lei antitruste. Por outro lado, não se pode ignorar o potencial competitivo
que esses cooperados, quando organizados em uma cooperativa, conseguem atingir. Esse fator, por si
só, potencializa seu enquadramento no direito concorrencial. Outro aspecto que pode causar
preocupações é a vulnerabilidade, por falta de competitividade desses agentes, em determinados
setores, mesmo quando organizados em cooperativas.

Palavras chave: Cooperativas; concorrência, economia solidária, ato cooperativo, regra da razão,
cooperativas médicas, cooperativas agrícolas.

ABSTRACT:

The position of cooperatives in the competitive scenario may seem to be a controversial topic. On the
one hand, the weakness of the cooperative members when viewed as individual agents, in a first
analysis, end up ruling out the possibility of incidence of antitrust law. On the other hand, it is
precisely the competitive potential of these members, when organized into a cooperative, that worries
the competition law. Another factor that may cause concern is the lack of competitiveness in certain
sectors of some agents, even when organized in cooperatives.

Keywords: Cooperative, competition, economic solidarity, cooperative act, rule of reason, medical
cooperatives, agricultural cooperatives

1
Graduanda em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), onde preside a empresa
júnior Sanfran Jr. E-mail: monicatfj@gmail.com

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SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Disposições gerais sobre


as cooperativas; 3. Função do direito da concorrência; 4.
Encontro entre o direito da concorrência e o exercício
das cooperativas; 5. Cooperativas médicas; 6.
Concorrência no setor agrícola e as cooperativas; 7.
Considerações finais. 8. Referências Bibliográficas.

1. Introdução

Sob a perspectiva das cooperativas, a análise da regulação antitruste brasileira remete


a um ponto de encontro por vezes nebuloso em razão do contexto concorrencial e do debate
ideológico que a temática normalmente provoca. De um lado, os parâmetros e formas de
regulação do mercado. De outro, temos uma associação sem fins lucrativos que, por definição,
não poderia pretender dominar esse mercado. A reflexão decorre do fato de que ambos –
estudo da regulação e desse “mercado” potencialmente regulado – situam-se em pólos
antagônicos, contudo, com raízes historicamente coincidentes: ascensão do modo capitalista
de produção.
As cooperativas buscam, por meio da associação dos cooperados, o desenvolvimento
destes e a sua inserção nos mercados, de modo a conseguir uma posição competitiva. O
direito concorrencial busca, dentro de suas competências, o bem estar econômico, para que
seja possível a prática da livre iniciativa e da livre concorrência.
Metodologicamente, a apresentação do tema será feita mediante abordagem
introdutória dos aspectos gerais das cooperativas, passando pela parte histórica, com enfoque
nos seus princípios, características, particularidades e doutrinas que versam sobre o tema. A
seguir, discute-se, em termos gerais, a função do direito concorrencial, situando-a na história,
ponto de partida do estudo das cooperativas. Nesses capítulos iniciais busca-se compreender a
sua função social e princípios, relativamente aos temas pesquisados. E, em um terceiro
momento, será discutido a união dos dois temas.
O ponto de encontro entre as sociedades cooperativas e o direito concorrencial será
apresentado nesse trabalho por meio da análise de dois tipos de cooperativas: de serviços
médicos e de produção agrícola. No primeiro caso, a cooperativa é situada nas controvérsias
nas quais se coloca como responsável por condutas anticoncorrenciais e no segundo caso é
demonstrado como essa mesma atividade, modo geral, pode fomentar a concorrência.
Espera-se que, com a produção desse trabalho, seja possível compreender, ainda que
de forma superficial e embrionária que as cooperativas podem atuar no mercado de forma
expressiva, apesar do seu escopo não lucrativo.

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2. Disposições gerais sobre as cooperativas

Para começar a discorrer sobre a posição das cooperativas no cenário concorrencial,


primeiramente, é importante fazer alguns esclarecimentos sobre a natureza desse tipo de
sociedade.
O conceito de cooperativismo surgiu 2 em meio à revolução industrial e a ascensão da
concepção do liberalismo econômico, quando a livre concorrência e defesa da propriedade
privada estavam em alta. A exploração dos trabalhadores e a preocupação com aos efeitos
sociais gerados pela concorrência acirrada do modo de produção capitalista, deu origem,
como contraposição ao movimento liberal, ao socialismo utópico e dentro deste, discussões
acerca do cooperativismo.
Tido como precursor do cooperativismo, Robert Owen teve suas ideias incorporadas
no estatuto da primeira sociedade cooperativa a “Sociedade dos Justos Pioneiros de
Rochdale”, cujo artigo 1º, segundo Lambert 3, defendia a tomada das forças de produção,
educação e governo, com o estabelecimento de uma colônia que fosse autossuficiente e que
pudesse prestar ajuda para que outras colônias também pudessem se estabelecer.
Desta forma, é possível compreender que o cerne do princípio cooperativista é o
desenvolvimento igualitário dos membros da cooperativa de forma que cada um receba
proporcionalmente ao seu trabalho. Princípios estes, que inspiram os teóricos da economia
solidária, modalidade que defende o cooperativismo como forma alternativa para a
desigualdade gerada pelo capitalismo.
No Brasil, tem-se que um dos maiores expoentes da atualidade é o teórico Paul Singer,
para quem o cooperativismo seria uma solução alternativa ao modo de produção capitalista no
qual sempre existe um perdedor e um ganhador, para o autor4·:

“Para que tivéssemos uma sociedade em que predominasse a igualdade entre todos
os seus membros, seria preciso que a economia fosse solidária em vez de
competitiva. Isso significa que os participantes na atividade econômica deveriam
cooperar entre si em vez de competir. O que esta de acordo com a divisão do
trabalho entre empresas e dentro das empresas. Cada um desempenha uma atividade
especializada da qual resulta um produto que só tem utilidade quando
complementado pelos produtos de outras atividades”

2
NETO, Sigismundo Bialoskorski. Aspectos econômicos das cooperativas. Editora Madamentos: Belo Horizonte
- 2006
3
LAMBERT, P. La doutrina cooperativa. Buenos Aires: Intercoop, 1975. 357 p.
4
SINGER, Paul. Introdução a economia solidária. Fundação Perceu Abramo: São Paulo - 2002

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Estudiosos da atividade cooperativa preconizam que, acima de tudo, o objetivo da


entidade deve ser o bem estar de seus cooperados, sendo guiado pelos seguintes princípios
gerais5:
1. Democracia
2. Adesão livre e voluntária
3. Neutralidade política e religiosa da empresa
4. Fomento à educação cooperativista
5. Retorno pro rata das sobras das operações
A princípio, incluía-se nesse rol de princípios a expectativa de se modificar a ordem
econômica, guiada por aspirações socialistas de repartição da propriedade privada como uma
forma de abolir o livre mercado e passar para os cidadãos os instrumentos de produção,
quebrando assim, a hierarquia gerada entre patrão e trabalhador. Dessa forma, o espírito de
competição seria substituído pela cooperação entre os trabalhadores por meio de associações
organizadas pelo Estado.
No Brasil, a pratica do cooperativismo é de certa forma “regulada” e o ideário
Rochdaliano encontra-se presente em trechos da legislação, com o intuito 6 de fomentar e
proteger o vínculo jurídico entre seus membros, pois, as relações entre eles prepondera sobre
motivações de cunho capitalistas. Essa regulação aparece por meio de leis específicas 7 e
também possui previsão no texto constitucional. Sua importância é expressa por Heleno
Taveira Torres da seguinte forma:

“A função precípua do Estado é a realização do bem - estar do cidadão em setores


tidos como prioritários e fundamentais, incumbindo-lhe para alcançar esse fim,
intervir nas relações intersubjetivas, como instrumento de garantia de uma
convivência social harmoniosa, nos termos do quanto autoriza a própria
constituição. E o cooperativismo foi eleito como um dos setores de intervenção
estatal sobre a ordem econômica para garantir tais valores, num sentido de estímulo
evidente, consagrando-se como típico direito social dos seus integrantes, os
cooperativados. Sua nota de direito fundamental é inconteste”
O reconhecimento do que o ideário cooperativista ajustou-se ao modelo de produção
capitalista é pressuposto básico no exame do cenário legal em que tais entidades estão
inseridas. Atualmente são regidas por um capítulo do Código Civil destinada a regular o tipo
societário “Da sociedade cooperativa”. Antes que a matéria fosse regulada pelo Código Civil
de 2002 Waldiro Bulgarelli traçou importantes considerações sobre as sociedades

5
NETO, Sigismundo Bialoskorski. Aspectos econômicos das cooperativas. Editora Madamentos: Belo Horizonte
- 2006
6
TÔRRES, Heleno Taveira. “Regime constitucional das cooperativas de trabalho”. RDT 112/123
7
Lei 12.690/2012 e Lei n.º 5.764/1971

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cooperativas enumerando as características da forma jurídica das cooperativas da seguinte


forma:
1. Poder ou não ter capital social;
2. Seu capital ser sempre variável;
3. Poder adotar qualquer tipo de responsabilidade para os seus associados;
4. Ser regida, subsidiariamente pela legislação das sociedades em geral, e não
especificamente pela de um tipo determinado;
5. Ter alguns tipos que se aproximam mais do regime associativo do que do societário;
6. Estar dividida e subdividida em categorias e tipos os mais diversos;
7. Ser regida por regras oriundas das sociedades de pessoas e das sociedades de capitais,
assentando-se numa estrutura muito semelhante à das sociedades anônimas.
Completando essas características, o autor discorre em outra obra o funcionamento dos
princípios norteadores8:

“Recorde-se a gestão democrática, em que o associado vale por si mesmo,


independentemente do capital aportado; a adesão livre, pela qual ninguém pode ser
compelido a nela ingressar, mas também, que nela permanece de portas abertas para
todos quantos queiram se associar; o princípio da dupla qualidade que põe às claras
o papel desempenhado pela sociedade cooperativa como empresa de serviços
destinada exclusivamente a atender às necessidades de seus associados; o do
retorno, pelo qual a cooperativa distribui equitativamente qualquer sobra apurada
em suas operações, sem qualquer distinção em razão do capital, mas, em função
exclusivamente do montante operacional de cada associado; e consequentemente, a
ausência de fins lucrativos, na incessante busca do justo preço, o que revoluciona os
conceitos capitalistas existentes, dando um sentido humano à economia que tanto o
regime capitalista como o socialista não lhe souberam dar”.

Em suma, a principal diferença entre as cooperativas e as empresas capitalistas,


segundo Bulgarelli9, é que as cooperativas são organizadas para atender aos seus associados,
por meio do fornecimento de bens e serviços, e as sociedades empresariais tem como foco as
operações de mercado e a distribuição do lucro gerado por estas entre os sócios.
Postas as diferenças entre as cooperativas e as atividades que possuem fins lucrativos,
podemos compreender também a razão de ser dos incentivos estatais atribuídos àquelas.
Como estas possuem natureza jurídica própria 10, de natureza civil, não sujeitas à falência,
constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas

8
BULGARELLI, Waldiro. “As sociedades cooperativas e sua disciplina jurídica”. Editora Renovar; 2ª edição.
Rio de Janeiro /São Paulo – 2000.
9
BULGARELLI, Waldiro. “As sociedades cooperativas e sua disciplina jurídica”. Editora Renovar; 2ª edição.
Rio de Janeiro /São Paulo – 2000.
10
RIZZARDO, Arnaldo. “Tributos e contribuições das cooperativas”.RT 851/2006 – set/2006

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diversas características relacionadas na própria lei, a matéria relativa a tributos merece um


tratamento especial. Renato Lopes Becho 11 elucida:

“Pelo princípio da igualdade, bem como pelo incentivo dado ao cooperativismo pela
Constituição Federal de 1988, entendemos que não pode haver uma tributação
igualitária sobre esse resultado positivo com o lucro das sociedades comerciais. De
fato, tributar igualmente o resultado eventual da cooperativa é tributar igualmente os
desiguais. Esse resultado não é perseguido como objetivo, mas decorre de
circunstâncias de mercado ou operacionais, ou como forma de ampliar os
conhecedores do sistema. Esse resultado, ressalte-se, nem vai compor em nenhuma
hipótese, o patrimônio dos associados. Por isso, falta à cooperativa a capacidade
contributiva típica do imposto sobre a renda, como visto”.

O tratamento estatal deixa clara a diferença entre as sociedades, mesmo que deixadas
de lado as diferenças ideológicas que as inspiraram.

3. Função do direito da concorrência

O estudo embrionário da atividade das cooperativas na perspectiva da análise


concorrencial pareceu pertinente porque, em princípio, não estão elas sujeitas ao direito
antitruste, por causa dos princípios de solidariedade e pelo escopo não lucrativo que permeia
sua atividades. Historicamente, situamos nossa reflexão inicial no mesmo ponto de onde
partimos no estudo das cooperativas: a revolução industrial.
A partir do momento em que a relação maestro aprendiz foi substituída pela relação
patrão empregado, aumentam-se os investimentos, os riscos e a necessidade de retorno. Existe
também a necessidade de uma maior liberdade de atuação deste empresário, ele não pode
mais ficar preso às amarras das corporações de ofício. A estabilidade que se oferecia por meio
da proteção dos interesses dos produtores e comerciantes, teve que dar lugar para a
concorrência, pois esse novo modo de produção precisava conquistar mercados para
sobreviver 12.
Nessa época o liberalismo de Adam Smith concretizou a necessidade de libertação do
agente econômico sob os princípios da livre iniciativa e livre concorrência. Pregava-se que o
livre mercado remetia à liberdade de se conquistar os consumidores, por meio do comércio e
da indústria, em um ambiente de livre concorrência. Esse contexto de livre concorrência

11
BECHO, Renato Lopes. “Tributação das cooperativas”. Apud. RIZZARDO, Arnoldo.
“Tributos e contribuições das cooperativas”. Revista dos Tribunais. 851/2006 – Set/ 2006
12
FORGIONI, Paula A.. “Os fundamentos do antitruste”. Revista dos Tribunais. 6. edição. São Paulo - 2013

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trouxe distúrbios sociais causados pelas concentrações e monopólios, além disso, as


concentrações de poder econômico sujeitavam o operariado a condições de trabalho
deploráveis13, contexto que surgiu o movimento cooperativista.
A regulação da concorrência não acabou com o espírito do liberalismo econômico, e
sim, tão somente buscou eliminar as distorções conjunturais decorrentes do mercado e do
modo de produção, protegendo assim, o próprio mercado e a atividade dos agentes
econômicos.
O Estado exerce um papel insubstituível e de extrema relevância na aplicação
normativa, buscando, por meio destas, o bem estar da população. No exercício da atividade
empresarial os interesses dos capitalistas, trabalhadores e da comunidade onde ela ocorre
devem ser levados em consideração 14. Calixto Salomão Filho defende que a função do Estado
vai além de garantir o funcionamento do livre mercado, ele introduz uma forma de
organização das relações econômicas que não se rege pela lógica concorrencial. Nesse cenário
ele possui a função de fiscalizar, regular e assegurar o correto funcionamento do sistema e
impedir abusos e atua por meio do Direito Concorrencial. Calixto Salomão elucida que dois
requisitos devem ser seguidos: a liberdade de escolha e a máxima precisão possível das
informações transmitidas, e acrescenta:

“Ora, para atender a esses dois requisitos mínimos, o conteúdo central (mas não
exclusivo do direito concorrencial deve ser a regulamentação do poder econômico
no mercado. É intuitivo que a existência de agentes com poder sobre o mercado,
quando levada ao ponto máximo do monopólio, elimina por completo a
possibilidade de escolha (de todos os agentes, consumidores e produtores) quando é
suficientemente grande para criar barreiras à entrada de concorrentes”.

No Brasil, a lei que regula a concorrência atualmente é a Lei 12.529/2011. As práticas


antitruste são classificadas por irregularidades em 3 principais formas: abuso de posição
dominante, acordos (horizontais ou verticais) e concentrações. Como o sistema é híbrido,
pode-se caracterizar o objeto como ilícito pelo objeto ou efeito 15, basta que o ato determine a
incidência do art 36.
O Direito da Concorrência não restringe seu objetivo à regulação dos mercados. Além
de buscar uma harmonia na concorrência, visa estimular a concorrência que de fato exista. Há
um viés social no controle das práticas abusivas. Busca-se a tutela do consumidor e dos outros
concorrentes, o que é regulado é a concorrência, e não o mercado. A possibilidade de escolha

13
FORGIONI, Paula A.. “Os fundamentos do antitruste”. Revista dos Tribunais. 6. edição. São Paulo - 2013
14
COMPARATO, Fábio Konder. “Estado, empresa e função social”. RT 732/1996 – out/1996.
15
FORGIONI, Paula A.. “Os fundamentos do Anti-truste”. Revista dos Tribunais. 6. edição. São Paulo - 2013

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por parte do consumidor ou mesmo do agente econômico é dotado de um valor social que
deve ser protegido pelo direito. Dessa forma, o direto é tomado de um papel garantidor da
igualdade de condições nas relações econômicas.
Quando se afirma que o que se visa é uma concorrência que de fato exista, é buscado o
bem estar do consumidor e do concorrente. A vulnerabilidade do consumidor no mercado
ressalta a necessidade de uma intervenção do Estado para o equilíbrio de sua fragilidade
frente o desequilíbrio de informações entre a esfera empresarial e aquele para o qual os
produtos são direcionados. É de interesse do consumidor que exista concorrência entre os
fornecedores pois, esta acaba por dispor uma maior variedade de produtos para os
consumidores por preços mais baixos do que quando ocorre o monopólio 16.
Ao proteger a concorrência pode-se depreender que o direito concorrencial tem a
função de regular o mercado de modo que este tenha espaço para entrada e atuação de novos
agentes. A concentração de poder inviabiliza a livre atuação de concorrentes de menor poder
de mercado.

4. Encontro entre o direito da concorrência e o exercício das cooperativas

A primeira vista pode parecer estranho a atuação do direito concorrencial na regulação


da atividade das cooperativas, uma vez que as cooperativas surgiram justamente com o
objetivo de apresentar uma alternativa à empresa capitalista, grande responsável pela
17
necessidade de se criar um mecanismo de controle sobre as relações econômicas .
Aparentemente, seriam elas as vítimas do cenário concorrencial predatório. Existem dois tipos
de cooperativas: aquelas que são fiéis aos princípios da solidariedade e da autogestão, e as
conhecidas como “cooperfraudes” ou “pseudocooperativas”. Ambas posicionam-se dentro do
cenário concorrencial, porém, cada uma em um polo.
As primeiras buscam dentro de uma realidade capitalista uma alternativa
organizacional, de modo que ao unir forças de trabalho em uma associação, por meio da ajuda
mútua e do trabalho cooperado, essas cooperativas conseguem adquirir força competitiva para
que seus integrantes possam prover o necessário para o seu sustento. Nesse contexto, os

16
FILHO, Calixto Salomão. “Direito concorrencial – As estruturas”. Malheiros Editores. 2. edição. São Paulo -
2002
17
LIMA, Jacob Carlos. “O trabalho auto gestionário em cooperativas de produção: o paradigma revisado”.
RBCS. Vol. 19. n. 56 – Outubro/2006

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integrantes atuando de forma individual não poderiam entrar no mercado. Como por exemplo,
cooperativas de catadores de lixo, que, por meio da coleta seletiva, conseguiu criar um cenário
mais favorável 18 para o desenvolvimento e inclusão dessa atividade, por meio do trabalho
autogestionado19.
As segundas atuam dentro da lógica de mercado e não seguem os princípios
cooperativistas e acabam, por meio dessa situação, adquirindo vantagens frente aos
concorrentes por acabarem driblando leis trabalhistas, pagamento de impostos, por meio de
leis de incentivo. Além disso, essas “cooperfraudes” podem até mesmo ter uma forte
concentração de poder de mercado, a partir do momento em que possuem porcentagens altas
de mercado relevante e, utilizando de sua estrutura de associação, e acabam por aplicar
medidas abusivas de preços.
Agora, retornando ao ponto da definição de associação cooperativa, parece-nos de
suma importância salientar a natureza ímpar desse tipo de sociedade. Sua estrutura, apesar da
semelhança com outras empresas de cunho comercial, possui tratamento diferencial, previsto
na constituição.
Parte-se do pressuposto que a atuação em cooperativa é decorrência da ideia de ajuda
mútua para o melhor desempenho social, de modo que, ao executar uma tarefa, atingir um
objetivo, negociar e deter melhores condições de desenvolvimento econômico busca-se o
crescimento coletivo, e não do indivíduo somente. Dessa forma, o principio constitucional de
apoio é um incentivo à associação revestida do espírito de solidariedade 20.

“O legislador impressionado com os objetivos não capitalísticos da cooperativa,


pareceu entender que esta fosse por si só e independente da forma organizacional
adotada, fator de promoção de interesse público. Como consequência, definiu-se
forma organizacional de maneira pouco rígida desacompanhado de uma proteção
efetiva do cooperado em suas relações internas”.21

18
Apesar de ainda não ter atingido um nível ideal
19
“As relações estabelecem relações sociais,favorecem a contribuição dos atores participantes e abrem espaço
para que a gestão esteja enraizada na sociedade na busca de mecanismos para o fortalecimento e empoderamento
desses atores na perspectiva da justiça social” - BESEN, Gina Rizpa. “Coleta seletiva com inclusão de
catadores:construção participativa de indicadores e de índices de sustentabilidade”. Tese de doutorado. São
Paulo - 2011
20
LIMA, Helder Gonçalves. “Atos cooperativos e sua Tributação pelo ISS à luz da Teoria Geral do Direito”. In
“Problemas atuais do direito cooperativo”. Dialética, São Paulo -2012.
21
FILHO, Calixto Salomão.”Sociedade cooperativa e disciplina da concorrência”. RT 693/1993-jul/1993.

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Na perspectiva da análise econômica, esse incentivo à ajuda mútua como forma de se


adquirir força concorrencial é explicado com base na teoria dos jogos 22 . Sustenta-se que,
observando as probabilidades, a opção pela atuação em cooperativas é mais favorável para o
grupo, do que quando este atua em sociedades que não são de ajuda mútua. Quando utilizado
um elemento de cooperação – princípio ético – o resultado final seria mais benéfico para a
sociedade em geral e para o indivíduo isoladamente considerado 23.
Assim, por intermédio da teoria dos jogos poderia chegar-se à conclusão de que a
associação voluntária é um ato benéfico para o agente. Contudo, essa associação, quando não
regida pelos princípios cooperativos, pode ser nociva se estes detêm grande poder de
mercado, e é nesse ponto que reside o grande perigo das chamadas “cooperfraudes” .
Cooperativas que se aproveitam dos benefícios e incentivos a esse tipo de organização,
mas que não são regidas pelos preceitos éticos de atuação podem atuar de maneira
extremamente prejudicial para a sociedade. Ao unir agentes, é possível que se elimine
também a concorrência em um setor inteiro. Por um lado a cooperativa é uma forma de
inserção em um mercado competitivo e com pouco espaço para agentes individuais atuarem,
por outro lado, quando essas cooperativas tomam grandes proporções, o resultado imediato é
que o consumidor estará sujeito às imposições de preço e a concorrência é prejudicada, pois,
não consegue se inserir no mercado.
Dois pontos que também devem ser analisados, segundo Calixto, é a relação entre
preço e custo de produção. Preços muito superiores ao custo de produção são danosos para o
consumidor e a pratica do dumping é uma forma de eliminar os concorrentes. Essa analise não
se restringe à concentração horizontal. Nesse plano, a concentração vertical é uma facilitadora
do dumping. Dessa forma, a lei de concorrência estabeleceu um patamar de concentração de
mercado de 20% para auxiliar a análise, de modo que os operações devem ser levadas ao
Cade para que ocorra a análise da reserva de mercado.
A relação entre as cooperativas e o direito da concorrência se dá diretamente, pelas
situações acima expostas. Quando uma cooperativa tem poder de mercado o suficiente para
prejudicar este e a partir do momento que ela não possui poder de mercado para entrar neste.

22
“A cooperação voluntária pode ser entendida por meio da teoria dos jogos fazendo-se uso da situação de
equilíbrio descrita como o dilema do prisioneiro. A argumentação é de que exista uma situação semelhante na
cooperação, isto é, um 'dilema do cooperante', no qual os mercados concentrados e o tamanho das firmas
obriguem os produtores a uma situação de interdependência mútua, mas em um equilíbrio que pode ser rompido”
- NETO, Sigismundo Bialoskorski. “Aspectos econômicos das cooperativas”. In______ A natureza institucional
das organizações cooperativas. Fl 53/54 Editora Madamentos: Belo Horizonte - 2006
23
FILHO, Calixto Salomão. “Direito concorrencial – As condutas”. Malheiros Editores. 2. edição. São Paulo -
2002

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O primeiro constitui um abuso de poder e o segundo a falta dele e em ambos os casos o Cade
pode ter um papel fundamental ao regular a concorrência.

5. Cooperativas médicas

As cooperativas de prestação de serviços médicos são caracterizadas como


cooperativas de prestação de serviços. Essas cooperativas tem como ponto crucial a relação
com terceiros. Estes viabilizam o interesse comum, propiciado por ela, ao buscar e conquistar
clientes. Ives Gandra da Silva Martins elucida 24:

“Nesse caso, como o polo ativo é ocupado por um cooperado, o intermediário é a


cooperativa, e no polo passivo encontra-se o terceiro atraído pela ação da entidade, o
ato decorrente dessa relação tem natureza cooperativa e não mercantil”.

Atualmente, também estão sendo julgadas cooperativas de anestesistas, as quais


possuem significativa parcela de mercado em cidades pequenas, de modo que se verifica um
grande aumento nos preços cobrados pelo serviço em relação às cidades que não possuem
cooperativas. Assim, a atividade desta assemelha-se muito à desempenhada por cartéis.
Um caso de cooperativas médicas julgado pelo Cade e com grande repercussão foi o
caso das UNIMEDs 25 , no qual se instaurou um Processo Administrativo porque as
cooperativas foram denunciadas por estarem impondo exclusividade aos cooperados, de modo
que prejudicavam a concorrência e os próprios associados. O relatório da SDE constava que:
I – As Unimeds representadas estavam exigindo exclusividade na prestação de
serviços médicos dos cooperados, impedindo-os de atender os usuários dos demais
planos de saúde.
II – De acordo com os estatutos sociais, os médicos cooperados que se filiarem a outro
plano de saúde correm sérios risco de serem excluídos do quadro da cooperativa, sob o
argumento de estarem exercendo atividade prejudicial à cooperativa e contrária aos
seus objetivos.
III – Destarte, essa vedação estatutária estabelecida pelas Unimed's impõe de forma
abusiva, a eliminação da concorrência neste setor da economia, impedindo que
empresas permaneçam e/ou ingressem naquele mercado.

24
MARTINS, Ives Gandra da Silva. “Sociedades cooperativas de prestação de serviços médicos”. Revista dos
Tribunais 53/2003 – mar-jun/2003.
25
Processo Administrativo n. 08012.005071/2002-71

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Dessa forma, constava no próprio estatuto social das cooperativas a obrigatoriedade do


vínculo exclusivo do cooperado com o plano de saúde. Como essas cooperativas estão
inseridas no mesmo contexto que as empresas mercantilistas, elas buscaram a cláusula como
forma de adquirir força competitiva, de modo que o médico continuava livre para sair da
cooperativa se fosse de seu interesse. As cooperativas alegaram que a cláusula era coerente
com o princípio cooperativo, pois visava o desenvolvimento desta e, a partir do momento que
um cooperado pudesse prestar serviços para outros planos de saúde, ele estaria colaborando
com a concorrência e prejudicando a própria cooperativa.
Nesse caso, os próprios cooperados são prejudicados, como foi o caso do médico
Fabio Cláudio Lacerenza, terceiro interessado do Processo Administrativo n.
08012.005071/2002-71, instado a sair da cooperativa, por ter prestado serviço para um plano
de saúde concorrente. Os prejuízos decorrentes das saídas se dão porque a Unimed é o grupo
mais forte dos mercados analisados no presente caso, de modo que a atuação profissional fora
dela é extremamente difícil por causa do monopólio constatado em relacao as atividades da
Unimed.
Em análise realizada pela SDE foi possível constar que as Unimeds denunciadas
possuíam forte poder de mercado. Prejudicavam a livre concorrência e a livre iniciativa na
medida em que impediam que seus cooperados prestassem serviços para concorrentes, como
consta a tabela a seguir:

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Em voto, o conselheiro Afonso Arinos expõe a falta de eficiência econômica quando o


ato em questão é realizado na fora do que se constatou no PA 08000.004961/95-76. Defendeu
que a imposição de exclusividade de filiação dos médicos em relação aos planos de saúde
engessa o funcionamento do mercado, por causa da exigência de exclusividade do
atendimento médico. Os custos de transação acabariam por coibir a saída do médico, pois este
encontraria dificuldades para refiliar-se a outros planos de saúde. Para a empresa, a prática é
tida como benéfica para a empresa pois, coíbe a entrada de concorrentes no mercado. Como a
demanda por serviços de saúde não se concentra em uma única área, o paciente quando vai
procurar o plano de saúde com a maior quantidade de médicos, de modo que quando um
plano congrega médicos de varias especialidades, este costuma ser o procurado. Nas palavras
do conselheiro:

“Por isso, em mercados geográficos de pequenas dimensões, a prática de


exclusividade de filiação pode se tornar uma barreira à entrada importante no
mercado de planos, já que poderia não haver escala suficiente para a sobrevivência
econômica de dois planos, cada um obrigado a contratar o tempo integral de cada
profissional especializado em tratamentos com baixa demanda estatística.
As possíveis razões para ganho de eficiência das práticas de exclusividade estão
relacionadas com o desestímulo à livre apropriação da reputação ou de outros
recursos próprios de uma empresa pela outra através da dupla filiação do
profissional empregado. Não há, contudo, nenhum indício nos autos de que a
reputação de um plano tenha sido explorada por outro ou que possa ser transmitida a
outro, através da filiação de um mesmo médico a ambos. Também não há notícias de
que uma empresa tenha sido prejudicada em favor da outra em outras medidas, além
da reputação, em razão da dupla filiação profissional.”

166
A posição das cooperativas no cenário concorrencial

Concluiu-se naquele caso, que as Unimed's, em sua condição de cooperativa,


incorreram nas infrações tipificadas nos artigos 20, I, II, IV, c c/ o art. 21, IV, V, VI, ambas da
Lei n, 8.884/94 26 . Incidindo nesse caso, a segunda hipótese elucidada no capítulo 4 do
presente artigo, em que as cooperativas abusam de sua posição dominante, de modo que não
mais são uma forma de inserção no mercado e sim utilizam a sociedade cooperativa e suas
características para obter vantagens no mercado. Neste caso, não incide o inciso XVIII do
artigo 5º da Constituição Federal que prega a não interferência estatal em seu funcionamento,
de modo que se demandou a exclusão da cláusula de não concorrência do contrato social das
cooperativas em questão.
Pode-se expor como práticas anticompetitivas, nos casos das cooperativas médicas, a
unimilitância e o tabelamento. De modo que, no primeiro caso, o instrumento utilizado para o
aferimento da unimilitância são as cláusulas de exclusividade, como abordado anteriormente
no caso das UNIMEDs, sendo explicadas pelo ex-conselheiro Roberto Augusto Castelhanos
Pfeiffer da seguinte forma:

“Nas hipóteses em que a exclusividade é imposta por cooperativas com poder de


mercado, elas limitam a possibilidade de concorrência, criando dificuldades para
outros planos concorrentes entrarem e permanecerem no mercado relevante. Com
efeito, as operadoras concorrentes necessitam de médicos conveniados de bom
padrão, para estimular os consumidores a contratarem-na. Quanto maior o número
de médicos de qualidade que as representadas mantiverem cativos graças a tal
cláusula de exclusividade, maior será a dificuldade de as concorrentes entrarem no
mercado relevante e competirem em igualdade de condições com as
representadas.”27

Em relação ao tabelamento, a prática lesiva é usual nas cooperativas de anestesia, por


meio de cláusula que estabelece valor de honorários médicos. O parecer da ProCade do
Processo Administrativo nº 08012-007042 acerca da conduta da COOPENEST- BA28 cita o
ex-conselheiro Ronaldo Porto Macedo Junior, no voto proferido no Processo Administrativo
nº 08012.004372/2000-70:

“A imposição do uso de tabelas de preços constitui prática prejudicial à livre


concorrência e à livre iniciativa, uma vez que busca uniformizar os preços dos
procedimentos médicos de modo a eliminar as negociações individuais,

26
Legislação vigente na época. Atualmente a lei correspondente é a 12.529/2011.
27
PFEIFFER. Roberto Augusto Castellanos. Defesa da Ordem Econômica e Cooperativas Médicas. In:
MORATO, António Carlos; NERI, Paulo de Tarso. 20 anos do Código de Defesa do Consumidor: estudos em
homenagem ao Professor José Geraldo Brito Filomeno. São Paulo: Atlas, 2010, p. 646-657.
28
Cooperativa dos Médicos Anestesiologistas da Bahia

167
RDC, Vol. 2, nº 1, Maio 2014, pp. 154-172

desconsiderando, dessa forma, as peculiaridades de cada contrato de prestação de


serviços médicos”.

A violação de direitos fundamentais ocasionadas pelo abuso de poder realizado pelas


cooperativas sobrepõe à necessidade delas se inserirem no contexto das empresas mercantis,
por meio de uma tutela estatal. Nos casos apontados, as cooperativas conseguiram alcançar
um nível de influência no setor em que atuam de tamanha magnitude que acabaram causando
danos para a ordem econômica.

6. Concorrência no setor agrícola e as cooperativas

A função deste capítulo é mostrar a importância do desenvolvimento da atividade


cooperativa para a melhora no cenário concorrencial no setor agrícola, em contraposição ao
exemplo das cooperativas médicas, que a atividade cooperativa impedia a entrada de agentes
no mercado. A concorrência no setor agrícola é, constantemente, matéria de análise pelo
Cade, quando se trata de operações relacionadas ao agronegócio. Contudo, o que será
questionado é a importância da formação de cooperativas dentro da realidade competitiva do
mercado agrícola brasileiro em matéria de entrada no mercado, e não da constituição de um
risco anticompetitivo. Os pequenos e médios agricultores se inserem nesse cenário por meio
de cooperativas para ganhar força competitiva em detrimento do agronegócio.
A estrutura agrária brasileira advém da realidade colonial a qual, inicialmente, era
organizada em sesmarias. A partir desse momento, o latifúndio foi se moldando, tendo como
marco a consolidação da propriedade privada a Lei de Terras. Desde então, a população busca
alternativas para o domínio das grandes propriedades. Politicamente, esforços começaram a
ser direcionados para o problema com o governo de Jango e sua tentativa de realizar reformas
de base. Apenas em 64, no governo ditatorial, foi instituído o “Estatuto da Terra”, por causa
da necessidade de distribuição de terras no Brasil. Contudo, pode-se dizer que até hoje não se
aplicou a tão esperada reforma agrária 29, como explicado a seguir:

“Na década de 1970, o chamado “Milagre Econômico” produziu avanços que


alteraram profundamente o panorama da sociedade brasileira, mudando o perfil de
diversos setores produtivos, através da injeção de capital financeiro e tecnológico, e
influindo substancialmente nos processos de desconstrução e reconstrução social e
cultural. Em linhas gerais, tais mudanças na realidade brasileira, motivadas por essas

29
FILHO, José Luiz Alcantara; FONTES, Rosa Maria Olivera. A formação da propriedade e a concentração de
terras no Brasil. Revista de História Econômica & Economia Regional Aplicada – Vol. 4 Nº 7 Jul-Dez 2009

168
A posição das cooperativas no cenário concorrencial

políticas modernizantes, produziram, entre outros aspectos, uma alteração no perfil


da sociedade brasileira, conferindo-lhe um caráter, cada vez mais, urbano e voltado
para as demandas do setor industrial. Na agricultura, as políticas iniciadas pelos
governos populistas e continuadas no Regime Militar, afetaram as pequenas e
médias propriedades rurais, uma vez que a agricultura comercial modernizada e
dependente, concebida a partir de políticas que forjaram o modelo agro-exportador
brasileiro, promoveu um processo de concentração de capital e da propriedade no
meio rural, provocando a descapitalização e a exclusão social do pequeno agricultor
familiar.”30

A questão da má distribuição de terras e a predominância dos latifúndios é relevante


para a análise da posição das cooperativas no cenário concorrencial porque o fato demonstra a
necessidade de pequenos agricultores se unirem para disputar espaço no mercado com as
grandes propriedades. A lei das cooperativas foi implementada pouco tempo depois do
estatuto de reforma agrária de 64, em 71. Os dois movimentos tiveram sua previsão na
Constituição Cidadã de 1988, de modo que se pode perceber uma preocupação com a questão
agrária por meio das tentativas de inserir novos agentes no contexto agropecuário.
Para análise da estrutura agrária atual, alguns dados são relevantes. O Censo
Agropecuário de 2006 mostrou que a agricultura familiar ocupava 84,4% do total de
estabelecimentos agropecuários do Brasil, 74,4% da quantidade do pessoal ocupado e em
relação à quantidade de terras, 24% da área total. Nessa mesma linha, analisa-se que a
quantidade de cooperativas é maior em áreas com uma melhor distribuição de terras e que,
nessas áreas, a produtividade pode atingir resultados relevantes representando atualmente
43% do faturamento do setor31.
Sem dúvidas, o desenvolvimento das cooperativas de agricultura dos pequenos
produtores pode gerar bem estar econômico na região em que ela é implementada porque
inegavelmente ela fomenta o crescimento da comunidade, fato que demonstra que podem ser
afastadas as causas estruturais da marginalização.32 Além disso, defende-se também que o fato
das cooperativas não buscarem lucro e consequentemente levarem a redução de preços gerais,
pode ser uma forma de conter abusos do poder econômico, sendo, pois, benéfica para o
fomento da atividade e para os consumidores. 33

30
CREMONESE, Camila; SCHALLENBERGER, Erneldo. Cooperativismo e agricultura familiar na formação
do espaço agrícola do Oeste do Paraná. Revista Tempo da Ciência (12) 23 : 49-63, 1º semestre 2005
31
MOREIRA, Vilmar Rodrigues; SILVA, Christian Luiz da; MORAES, Edmilson Alves de; PROTIL, Roberto
Max. O Cooperativismo e a Gestão dos Riscos de Mercado: análise da fronteira de eficiência do agronegócio
paranaense. RESR, Piracicaba-SP, Vol. 50, Nº 1, p. 051-068, Jan/Mar 2012 – Impressa em Abril de 2012.
32
SINGER, Paul. De dependência em dependência: consentida, tolerada e desejada. Estudos Avançados, 1998.
33
FORGIONI, Paula A. Cooperativas, empresas e a disciplina jurídica do mercado - Direito empresarial e outros
estudos em homenagem ao professor José alexandre Tavares Gerreiro. Editora Quartir Latin do Brasil. São
Paulo - 2013

169
RDC, Vol. 2, nº 1, Maio 2014, pp. 154-172

É importante ressaltar que raras são as cooperativas que conseguem efetivamente


estabelecer-se como tal. Também, parece notório o fato de que é grande o número de agentes
que individualmente não conseguem nem entrar no mercado. O MST (Movimento dos
Trabalhadores Sem terra) atualmente congrega uma média de 92 mil famílias. Esse dado
parece demonstrar que a concentração no mercado agrícola impede a entrada de novos
agentes, de modo que não existe apenas uma reserva de mercado, mas também uma reserva
no espaço físico necessário para a produção.
Pode-se dizer que o predomínio de grandes propriedades, com o agravante de serem
tão grandes quanto pouco produtivas, afigura-se em fator indicador de concentração digno de
análise. Ademais, no contexto brasileiro, não poderia negar que os latifúndios representam –
ao menos potencialmente – um entrave para a entrada de novos agentes e que dificultam,
senão impedem, a atuação dos polos de agricultura familiar. E, ainda assim, é possível
observar um crescimento da atividade cooperativa em polos regionais, apesar da concorrência
de grandes produtores, como, por exemplo, a cooperativa familiar produtora de iogurte
Coopag34 , que mostra crescimento mensal da produção de iogurte.
No caso da agricultura familiar, a organização de agentes em cooperativas tem sido
forma eficiente de atuação no mercado, pois, estas agem como uma forma de prover bem estar
econômico por meio da criação de polos de crescimento microrregionais e locais, onde atuam.
Assim, utiliza-se o exemplo das cooperativas agrícolas para ilustrar a importância destas no
cenário concorrencial, para que se perceba os dois lados da matéria concorrencial no caso das
cooperativas.

7. Considerações finais

A conclusão preliminar deste trabalho é que, apesar da natureza não lucrativa que está
presente no cerne da atividade das cooperativas, estas, possuem fundamental importância em
matéria de concorrência. O Cade, em sua função de órgão responsável pela regulação
econômica, possui ferramentas de implemento do bem estar social quando as cooperativas
acabam abusando de sua função de fortalecimento dos agentes econômicos. Objetivo este que
norteia as decisões atuais da autarquia, todas tendentes a indicar que se trata de instância
consciente do poder-dever que se lhe atribui o Ordenamento. Os desafios batem à porta.

34
Disponível em: http://www.cooperativismo.org.br/cooperativismo/noticias/noticia.asp?id=25518

170
A posição das cooperativas no cenário concorrencial

Quando apresentada a problemática das cooperativas e sua inserção na lógica capitalista,


vemos que o papel do Cade passa a ser fundamental para que a atuação dessas entidades seja
de fato relevante, dentro do contexto mercadológico, e, quiçá não abusiva.
A importância da análise dupla da atuação das cooperativas no cenário concorrencial é
de essencial. Esta pode se apresentar como mecanismo de inclusão de agentes no mercado e
também, e em oposição, no extremo, em abuso de sua posição dominante, como causa da
própria exclusão.
Ao cabo desta pesquisa, creio que, ao menos foram oferecidos indicativos de que o
Cade poderia – e/ou deveria - atuar no exame concorrencial das atividades cooperativas, sem
perder de vista o papel que tais entidades poderiam exercer, enquanto sociedades sem fins
lucrativos, se efetivamente inseridas no atual cenário capitalista. Ao final, em que pese a
natureza dúbia das cooperativas, não se poderia isentá-las da análise do direito antitruste,
porque na esteira desse exame o Cade poderia - a nosso ver - corrigir distorções
concorrenciais que dificultam maior inserção dessas entidades no mercado.

171
RDC, Vol. 2, nº 1, Maio 2014, pp. 154-172

8. Referências bibliográficas

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