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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

RAFAEL RODRIGUES DA COSTA

ASSIM NA TERRA COMO NO CÉU:


UM ESTUDO SOBRE AS PERCEPÇÕES DOS EVANGÉLICOS PENTECOSTAIS NAS
PERIFERIAS DE SÃO PAULO

Guarulhos
2020
RAFAEL RODRIGUES DA COSTA

ASSIM NA TERRA COMO NO CÉU:


UM ESTUDO SOBRE AS PERCEPÇÕES DOS EVANGÉLICOS PENTECOSTAIS NAS
PERIFERIAS DE SÃO PAULO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências Sociais do Departamento de
Ciências Sociais da Escola Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, da Universidade Federal de São
Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do
título de Mestre em Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Bello

Guarulhos
2020
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou
eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Costa, Rafael Rodrigues da


Assim na Terra como no céu: Um estudo sobre as percepções dos
evangélicos pentecostais nas periferias de São Paulo / Rafael Rodrigues da
Costa.– 2020.
152 p.

Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais ) – Universidade Federal de


São Paulo (Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), Guarulhos, 2020.
Orientação: Prof. D. Carlos Alberto Bello

1.Sociologia. 2.Estratificação Social. 3.Sociologia da Religião. I. Título.


COSTA, Rafael Rodrigues da. Assim na Terra como no céu: Um estudo sobre as percepções
dos evangélicos nas periferias de São Paulo. Dissertação (Mestrado) apresentada à Escola de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo para obtenção do
título de Mestre em Ciências Sociais.

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. ______________________________ Instituição_________________________

Julgamento____________________________ Assinatura__________________________

Prof. Dr. ______________________________ Instituição_________________________

Julgamento____________________________ Assinatura__________________________

Prof. Dr. ______________________________ Instituição_________________________

Julgamento____________________________ Assinatura__________________________

Prof. Dr. ______________________________ Instituição_________________________

Julgamento____________________________ Assinatura__________________________
À Antônio e Teresa, meus avós, por me
ensinarem a beleza de ser pentecostal no
cotidiano.
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São


Paulo (UNIFESP) e seu programa da pós-graduação, que me acolheu no ano de 2018 e
possibilitou a sequência de minha formação com todo o suporte possível.
Agradeço a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) pela concessão da Bolsa de Mestrado nos últimos dois anos, isso viabilizou a
execução e desenvolvimento desta pesquisa.
Agradeço também ao Professor Carlos Alberto Bello, orientador deste trabalho,
pela sua disposição e generosidade intelectual, que me serviram tanto para aprofundar meus
conhecimentos como para ampliar meus horizontes acadêmicos.
Ainda sobre generosidade, não posso deixar de agradecer a Professora Cibele Rizek
e o Professor Márcio Pochmann pela contribuição que tiveram em minha banca de qualificação,
me oferecendo novos olhares para a pesquisa e que certamente foram decisivos para entender
de que modos o valor atribuído ao esforço individual era uma das peças centrais da minha
análise sobre a relação entre as crenças religiosas e a experiência de classe.
Neste sentido, sou um eterno devedor da minha formação na Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), instituição onde não apenas aprendi a desenvolver
minha curiosidade sociológica como dei meus primeiros passos como pesquisador. Em
especial, agradeço a Professora Carla Dieguez, minha orientadora de graduação, a quem tive o
prazer de ouvir pela primeira vez sobre o debate sociológico envolvendo as Classes Sociais e
os seus impactos na vida social. Sua paixão pelo tema me contagiou, e sem dúvida foi um dos
motivos para que eu me inspirasse a continuar na vida acadêmica.
Também faço agradecimento especial a Fundação Perseu Abramo (FPA), que
gentilmente disponibilizou os dados da pesquisa Percepções e valores políticos nas periferias
de São Paulo (2017) para que eu realizasse as análises deste trabalho. Agradeço em especial ao
Professor William Nozaki, professor da FESPSP e coordenador de pesquisa na FPA, que não
se limitou a autorizar a utilização desses dados bem como me incentivou, de inúmeras formas,
a continuar esta pesquisa.
Impossível deixar de agradecer, também, aos amigos queridos que desde a época
de graduação me dão o privilégio de partilhar suas reflexões e vivências. Weslei, Felipe, José,
Caio e Leticia, vocês sabem o quanto foram e são importantes para a minha vida em geral, e
para este trabalho em específico. Meus primeiros insights sobre o possível diálogo entre religião
e classe começaram de nossas conversas intermináveis, e muitos dos apontamentos aqui escritos
guardam a memória desses nossos encontros. À Weslei, agradeço pelas dicas valiosas sobre as
visões weberianas acerca da ética das religiões e a sua influência nos processos de
racionalização, à Felipe, pelas contribuições marxistas que me salvaram de uma visão estática
sobre as classes sociais, à José, pela companhia na leitura das entrevistas, à Caio e Leticia, pelas
provocações intelectuais que me fizeram durante todo este trabalho, me incentivando a enxergar
o fenômeno pentecostal sobre múltiplas perspectivas.
Este trabalho também é um agradecimento a minha família: aos meus pais, Nelson
e Neura, por não medirem esforços para que eu e minha irmã tivéssemos as oportunidades na
vida que eles não puderam ter; a Tati, por além de ser minha irmã, é uma excelente informante
sobre o mundo evangélico; ao Vina, cunhado e melhor amigo, pelo incentivo e pelas boas
conversas de sempre; sem esquecer da Tia Ju, que desde muito cedo me ensinou à paixão pelas
letras, e que sempre foi a principal motivadora da minha vida acadêmica.
À Brenda, que conheci em meio aos tempos turbulentos da dissertação, ainda
procuro palavras para agradecer o nosso encontro. Este trabalho não existiria sem as nossas
trocas inspiradoras, e sem a sua paciência de me ouvir falar por horas a fio sobre os possíveis
nexos de sentido entre fé, moral e periferia.
Sei que essas palavras dizem muito pouco sobre o sentimento que nutro por essas
pessoas, e certamente muitas outras mereciam alguma menção aqui. Na impossibilidade de
agradecer a cada um com a forma que merecem, deixo aqui registrada a minha enorme gratidão
por todos aqueles que, de uma forma ou de outra, fizeram desta pesquisa uma deliciosa
aventura.
A religião é o solene desvelar dos tesouros
ocultos do homem, a revelação dos seus mais
íntimos pensamentos, a confissão pública dos
seus segredos de amor.
(Ludwig Feuerbach)

8
RESUMO

COSTA, Rafael Rodrigues da. Assim na Terra como no céu: Um estudo sobre as
percepções dos evangélicos pentecostais nas periferias de São Paulo, 2020. 152 p.
Dissertação (Mestrado) – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2020.

Resumo: O presente trabalho busca compreender as influências recíprocas entre religião


e classe social, notadamente na relação entre pentecostalismo e as periferias de São Paulo.
Utilizando as entrevistas da pesquisa Percepções e valores políticos nas periferias de São
Paulo da Fundação Perseu Abramo (2017), analisamos de que maneiras os evangélicos
pentecostais apresentam afinidades de sentido com a realidade social vivida e percebida
nas periferias paulistanas. Em nossa pesquisa, essas afinidades se apresentaram sob duas
formas. De um lado, ao considerar a religião enquanto experiência de classe: quando
nossa pesquisa observou como os pentecostais expressam as vivências e percepções das
classes populares em São Paulo, mostrando de que formas o discurso e a prática religiosas
procuram responder aos imperativos da vida material. De outro lado, procura-se observar
a condição de classe justificada pela religião: tendo em vista que a religiosidade não
apenas busca adaptar suas crenças e ritos a uma dada situação econômica, mas também
cria, a partir dela mesma, estímulos morais e justificativas compartilhadas que procuram
atribuir sentido para uma dada condição de vida, nossa pesquisa constatou como a
experiência pentecostal acaba por desenvolver uma racionalidade que, para além dos seus
efeitos religiosos, acaba por produzir uma ética econômica para as demais esferas da vida
cotidiana.

Palavras-chave: Pentecostalismo; Periferias; São Paulo; Religião; Classes Sociais.

9
ABSTRACT

COSTA, Rafael Rodrigues da. On earth as it is in heaven: A study on the perceptions


of pentecostals on the peripheries of São Paulo, 2020. Dissertação (Mestrado) – Escola
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo,
2019.

The current work seeks to understand the reciprocal influences between religion and
social class, notably in the relationship between Pentecostalism and the peripheries of São
Paulo. Using the interviews from the Perceptions and Political Values survey on the
outskirts of São Paulo by the Perseu Abramo Foundation (2017), we analyze how
Pentecostal have affinities of meaning with the social reality experienced and perceived
in São Paulo's peripheries. In our research, these affinities came in two forms. On the one
hand, when considering religion as a class experience: when our research looked at how
Pentecostals express the experiences and perceptions of popular classes in São Paulo,
showing how religious discourse and practice seek to respond to the imperatives of
material life. On the other hand, it seeks to observe the class condition justified by
religion: bearing in mind that religiosity not only seeks to adapt its beliefs and rites to a
given economic situation, but also creates, from itself, moral stimuli and shared
justifications seeking to attribute meaning to a given life condition, our research found
how the Pentecostal experience ends up developing a rationality that, in addition to its
religious effects, ends up producing an economic ethics for the other spheres of daily life.

Keywords: Pentecostalism; Peripheries; São Paulo; Religion; Social Classes.

10
Sumário
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 13

RELIGIÃO E CLASSES SOCIAIS: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES .......... 17

1. DE POBRES PARA POBRES: AS RAÍZES HISTÓRICAS DO


PENTECOSTALISMO BRASILEIRO...................................................................... 26

1.1. SÃO PAULO: ENTRE A RELIGIÃO, A METRÓPOLE E OS POBRES ........ 32

1.1.1. DO IMIGRANTE EUROPEU AO SERIGUEIRO NORDESTINO: A


PRIMEIRA GERAÇÃO PENTECOSTAL ............................................................ 33

1.1.2. DO MIGRANTE NORDESTINO AO MARGINALIZADO DA CIDADE: A


SEGUNDA ONDA PENTESCOSTAL ................................................................. 36

1.1.3. DO EMPRESÁRIO À NOVA CLASSE TRABALHADORA: O


NEOPENTECOSTALISMO E AS NOVAS TRAMAS DA CIDADE ................. 40

2. COSTURANDO SENTIDOS: AS LINHAS ENTRE EXPERIÊNCIA E


CRENÇA ....................................................................................................................... 46

2.1. PROCESSO DE LEITURA EXTERNA: O MOLDE ANALÍTICO .................... 48

2.2. PROCESSO DE LEITURA INTERNA: LINHAS DE SENTIDO E PONTOS DE


VISTA ........................................................................................................................ 61

2.3. PROCESSO DE LEITURA TRANSVERSAL: A COSTURA ENTRE RELIGIÃO E


CLASSE ..................................................................................................................... 65

3. RELIGIÃO E CLASSE NAS PERCEPÇÕES DOS ENTREVISTADOS ...... 68

3.1. “O SUCESSO VEM DE VOCÊ”: PERCEPÇÕES SOBRE O INDIVÍDUO ..... 69

3.1.1. “O ESFORÇO É O SEGREDO DO SUCESSO”......................................... 69

3.1.2. “FALTA DE SUCESSO É FALTA DE OPORTUNIDADES” ................... 75

3.2. “O SUCESSO DEPENDE DA FAMÍLIA”: PERCEPÇÕES FAMILIARES .... 97

3.2.1. “FAMÍLIA É A BASE DE TUDO” ............................................................. 98

3.2.2. “FAMÍLIA SÃO PESSOAS COM QUEM A GENTE PODE CONTAR” . 99

3.2.3. “FAMÍLIA CRIA JUÍZO” ......................................................................... 103

3.2.4. “FAMÍLIA TEM QUE ESTAR LIGADA COM DEUS” .......................... 104

3.3. “O SUCESSO DEPENDE DE DEUS”: PERCEPÇÕES RELIGIOSAS .......... 108

11
3.3.1. O DISCURSO PENTECOSTAL: ENTRE A MOTIVAÇÃO E A DISCIPLINA
.............................................................................................................................. 109

3.3.2. A PRÁTICA PENTECOSTAL: DO PRONTO SOCORRO AO CLUBE


SOCIAL................................................................................................................. 116

4. ALINHAVANDO CONCEITOS: AS AFINIDADES ENTRE


PENTECOSTALISMO E PERIFERIA EM SÃO PAULO ................................... 135

4.1. A RELIGIÃO ENQUANTO EXPERIÊNCIA DE CLASSE: ........................... 136

4.1.1. O PAPEL DA COMUNIDADE RELIGIOSA COMO ELEMENTO


AGLUTINADOR DE CLASSE: .......................................................................... 136

4.1.2. O DISCURSO MOTIVACIONAL E DISCIPLINADOR DA RELIGIÃO:


.............................................................................................................................. 138

4.1.3. A POSIÇÃO DE CLASSE JUSTIFICADA PELA RELIGIÃO: ............... 141

4.1.4. UMA NOÇÃO DE DIGNIDADE CONDICIONADA PELO ESFORÇO


INDIVIDUAL ...................................................................................................... 142

4.1.5. VISÃO PRIVATIZADA DO MUNDO SOCIAL: ..................................... 144

5. REFERÊNCIAS: ................................................................................................ 148

12
INTRODUÇÃO
A influência dos evangélicos na sociedade brasileira tem sido objeto crescente de
interesse dentro e fora da academia. Há boas razões para isso: nas últimas décadas o
Brasil tem vivenciado um crescimento explosivo de evangélicos, saltando de 6,6% nos
anos 1980 para 22,2% em 2010 (Tabela 1). É a religião que mais ganha adeptos no país
– e, na última década, cresceu sete vezes mais do que a população nacional, atingindo a
atual marca de 42 milhões de fiéis1. Dados mais recentes vão além, e estimam que
atualmente três a cada dez brasileiros pertençam a fé evangélica2, o que faz com que
alguns analistas acreditem que até 2032 os crentes ultrapassarão a população católica,
tornando-se o maior segmento religioso do Brasil3.
Ao observar mais atentamente as estatísticas, é possível notar que os evangélicos
no Brasil possuem algumas características específicas. A primeira delas diz respeito ao
notável crescimento da sua vertente mais popular: os pentecostais. Grupo religioso que
atualmente reúne mais de dois terços do total de evangélicos do país, em 1980, eram
apenas 3,9 milhões de brasileiros; em 2010, saltaram para 25,4 milhões, em um
crescimento de 551,3%4. Mas não são apenas os pentecostais que estão crescendo no
país: em 1980, os evangélicos históricos eram 4,0 milhões de brasileiros e, atualmente,
são 9,3 milhões de pessoas, representando um aumento igualmente impressionante de
131,0%.

Tabela 1: Composição Religiosa do Brasil 1980-2010


Religião 1980 (%) 2010 (%)
Católica 88,9 64,6
Evangélica (total) 6,6 22,2
Evangélica histórica (missão) 3,4 4,9
Evangélica pentecostal 3,2 13,3
Evangélica não determinada - 4,8
Espírita 0,7 2

1
Fonte: Pew Research Center - 2016
2
Fonte: Pesquisa Datafolha - 2019
3
IHU. Católicos abaixo de 50% até 2022 e abaixo do percentual de evangélicos até 2032. 06/12/2018.
4
Como lembra Jacob et al (2013, p.12), como a metodologia do Censo 2010 do IBGE acrescentou a
categoria “Evangélicos Não Determinados”, é provável que esses sejam em sua grande maioria pentecostais
que não têm, muitas vezes, uma ideia clara de denominação do seu grupo religioso – o que equivale dizer
que o movimento pentecostal tende a ser maior do que as estatísticas oficiais anunciam.

13
Afro-brasileiras 0,6 0,3
Outras 1,2 2,7
Sem religião 1,6 8
Total 100 100
População total do Brasil 119.011.052 190.755.799
Fontes: IBGE, 1982, 2010

Além do crescimento expressivo, outra característica que chama atenção no


movimento pentecostal é a sua aproximação com as camadas mais pobres. Segundo
dados do último Censo, os evangélicos, sobretudo pentecostais, são a religiosidade que
mais concentra pessoas de baixa renda: 63,7% ganham até um salário mínimo e 28,0%
recebem de um a três salários (Gráfico 1). Quanto à escolaridade, 42,3% dos acima de
15 anos tem o ensino fundamental incompleto e ainda 6,2% são analfabetos (Gráfico 2).
Em termos de raça, 57,3% dos pentecostais são negros enquanto 42,6% são brancos, o
que os torna a religiosidade mais negra do país5 (Gráfico 3).

Gráfico 1: Percentual de religiões por faixa de renda

80
70
60
50
40
30
20
10
0
Católicos Evangélicos Evangélicos Não- Espíritas Afro-brasileiras Sem religião
Pentecostais pentecostais

Até 1 SM 1 a 3 SM 3 a 10 SM Acima de 10 SM

Fonte: IBGE, 2010

Gráfico 2: Percentual de religiões por faixa de escolaridade

5
Sobre a relação entre evangélicos e negritude, ver Oliveira (2015).

14
Católicos 6,8 39,8 18,3 25,1 9,4 0,5

Evangélico Pentecostal 6,2 42,3 21,3 25,5 4,1


0,7

Outras Evangélicas 3,9 32,2 20,6 32,3 10,20,7

Espíritas 1,8 15,0 14,7 36,5 31,5 0,5

Outras 4,0 30,2 20,5 32,0 12,4 0,7

Sem religião 6,7 39,2 20,2 25,2 8,20,5

0,0 20,0 40,0 60,0 80,0 100,0

Sem instrução Fundamental Incompleto Fundamental Completo


Médio Completo Superior Completo Não determinado

Fonte: IBGE, 2010

Gráfico 3: Percentual de religiões por raça/cor

Católicos 48,8% 49,9% 1,0%

Evangélicos Pentecostais 41,3% 57,3% 0,9%

Outras Evangélicas 49,7% 48,7% 1,0%

Espíritas 68,7% 30,0% 1,1%

Afro-brasileiras 47,1% 51,9% 0,6%

Sem Religião 39,6% 58,1% 1,5%

0,0% 20,0% 40,0% 60,0% 80,0% 100,0%

Branca Negra Amarela Indígena

Fonte: IBGE, 2010

Em São Paulo, a maior cidade evangélica do país em números absolutos6, talvez


seja uma das regiões mais emblemáticas da maior expansão religiosa recente. Sede e
local de fundação das principais denominações pentecostais e a cidade com as maiores
periferias urbanas do país, a capital paulista é, sem dúvida, um dos epicentros do avanço

6
Em números proporcionais, entretanto, São Paulo é a 20ª capital mais evangélica do Brasil. De acordo
com o IBGE, Rio Branco (39,6%), Manaus (35,2%) e Palmas (32,8%) são as três capitais brasileiras com
maior representação evangélica no país.

15
evangélico brasileiro. Em números: são 2,5 milhões de paulistanos que professam a fé
evangélica, perfazendo um total de 22,1% da população.
As mudanças do campo religioso não são apenas estatísticas. O avanço
evangélico é também perceptível na proliferação das igrejas locais nas regiões
metropolitanas – presentes desde os bairros periféricos até as grandes avenidas –, mas
também na produção cultural das periferias – da música gospel aos funks religiosos,
incluindo o recente fenômeno das novelas bíblicas, transmitidas em cadeia nacional pela
segunda maior rede de televisão do país – marcas que atestam a presença física e
simbólica do fenômeno evangélico na vida cotidiana das classes populares brasileiras.
É sabido que durante as últimas décadas uma nova onda de expansão do
pentecostalismo – o chamado neopentecostalismo – tem ultrapassado os espaços
religiosos e ganhado projeção em outras esferas da sociedade, devido à presença cada
vez mais marcante nos meios de comunicação – e também, é claro, na participação
política.
Entendendo os evangélicos como uma religiosidade típica das classes populares,
e compreendendo a importância do crescimento evangélico pentecostal nos diferentes
âmbitos da sociedade brasileira, este trabalho é norteado por duas questões centrais:
afinal, por que os pobres têm optado pelas igrejas evangélicas pentecostais? E por que
os evangélicos têm sido a religiosidade mais atraente nas periferias das últimas
décadas?
O objetivo desta investigação, portanto, consiste em analisar as influências
recíprocas entre o fenômeno religioso evangélico e a experiência de classe dos pobres
moradores de periferias paulistanas. A hipótese aqui trabalhada é de que ao procurar um
sentido para a pobreza, os pentecostais acabaram por desenvolver um sistema de
crenças, práticas e dispositivos com potencial tanto para atribuir sentido moral para
uma dada condição de classe quanto em motivar o engajamento desses em um conflito
social injusto, porém teologicamente justificado.
Para isso, nossa investigação busca, em primeiro lugar, contextualizar como os
pentecostais se constituíram como uma religião de pobres para pobres no Brasil. Em
seguida, procura relacionar a história dos evangélicos com a formação dos pobres na
cidade de São Paulo, de modo a tornar explícito como esses dois fenômenos estão
intrinsecamente relacionados nas periferias paulistanas, tanto do ponto de vista espacial
quanto a sua posição de classe. Mais à frente, pretende-se analisar quais as percepções e

16
as visões de mundo dos fiéis entrevistados, como forma de compreender tanto como uma
determinada fração de classe apreende o senso comum mediante às suas experiências de
vida quanto interpretar como essas opiniões articulam uma interlocução sobre noções
acerca da pobreza, mobilidade e justiça social. Por fim, busca-se refletir quais os papéis
que os discursos e práticas mobilizados pelas igrejas evangélicas na periferia atuam para
além do espaço de culto, oferecendo uma rede de proteção social que ao mesmo tempo
emula mecanismos de dignidade mediante uma gramática de reconhecimento e uma
sociabilidade decorrente.

RELIGIÃO E CLASSES SOCIAIS: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Estudar as aproximações possíveis entre religião e economia, contudo, não é


nenhuma novidade para as Ciências Sociais. Na verdade, o tema sempre esteve na ordem
do dia de filósofos, sociólogos e antropólogos em suas mais diferentes perspectivas. De
Durkheim a Simmel, entre Marx e Weber, de Bourdieu a Foucault, todas as correntes
teóricas clássicas dedicaram alguma reflexão acerca do fenômeno religioso e suas
possíveis imbricações nas demais esferas da vida social, o que inclui a dimensão
econômica7.
Extrapolaria o nosso interesse recuperar todo esse debate aqui. Entretanto,
algumas dessas contribuições clássicas nos são úteis para elucidar em que medida o
fenômeno religioso é capaz de traduzir determinados comportamentos sociais no âmbito
econômico, do mesmo modo em que determinados percepções de classe podem ser
entendidos e explicados por meio das representações, crenças e valores religiosos.

7
Em Durkheim, ver As formas elementares da vida religiosa (2009), um estudo sobre as representações
religiosas vistas da perspectiva cosmológica, isto é, como um princípio fundante e ordenador das
sociedades, cujo o próprio estabelecimento das categorias universais do conhecimento (noções de tempo e
espaço, de gênero e de número, de causa e de substância etc.) são encarados como uma derivação do
fenômeno religioso; além disso, ver Ética e sociologia da moral (2006), um pequeno ensaio no qual o autor
descreve a economia como uma inferência das regras morais (e religiosas, consequentemente) de uma
sociedade.
De Simmel, ver Religião (2010), um conjunto de ensaios no qual se conclui que a construção dos primeiros
traços da personalidade individual é marcada, segundo o autor, pelas relações sociais de pertencimento
entre o indivíduo e o grupo religioso, relação pela qual formulam-se conceitos como destino, doação e dom,
e o sentimento de interdependência entre os membros do grupo e a comunidade. Em Bourdieu, ver Gênese
e Estrutura do Campo Religioso (2004a) e Uma interpretação da Teoria da Religião de Max Weber
(2004b), duas obras em que o sociólogo busca explicitar como a dissolução do campo religioso na
modernidade ensejou num campo simbólico mais amplo, cujas crenças e práticas se secularizam por meio
de outros campos sociais em disputa.

17
De modo a compreender como essa dinâmica está imbricada em nossos dados de
pesquisa, convém estabelecer algumas ponderações teóricas preliminares, mas essenciais
para o nosso estudo. Esquematicamente, essas conceituações estão versadas em dois
níveis de análise: i) no primeiro nível, observamos de que formas a religião nos oferece
subsídios para uma reflexão sobre as classes sociais; ii) em seguida, consideramos os
intercâmbios possíveis entre a visão de mundo religiosa e os impulsos práticos para a
ação.
Para uma discussão dessa magnitude, dois autores foram fundamentais para nossa
investigação. De um lado, está E. P. Thompson. Autor do clássico A Formação da Classe
Operária (1987), Thompson nos traz uma definição peculiar sobre as classes sociais e o
seu papel definidor para a experiência humana. Para o autor, uma classe existe (e
acontece) quando um grupo de homens e mulheres compartilham experiências comuns
apreendidas no decorrer da história por vivências coletivas em termos políticos e
culturais que são materializadas em tradições, sistemas de valores e relações sociais. É
no decorrer deste processo que se constrói uma identidade coletiva de interesses próprios
a uma classe, distintos dos interesses de outras classes.
Thompson apresenta, então, o conceito de classe como uma categoria tanto
histórica como processual. Isso significa que, ao longo do processo histórico, tanto no
nível individual, de pessoas que se comportam de modo classista, como no nível social,
do nascimento e desenvolvimento de instituição com características de classe, a classe
social se manifesta sempre materialmente. É importante, para o autor, ressaltar essa
perspectiva propriamente materialista, com o objetivo de se afastar das correntes
estruturalistas do materialismo, a exemplo de Althusser.
O estruturalismo, para Thompson, busca interpretar a classe social como um
simples produto do desenvolvimento das forças produtivas, valendo-se de explicações e
conceitos puramente abstratos, que tendem a observar as classes como uma estrutura de
dominação social opaca e invisível aos seus agentes. O perigo dessa abstração é criar uma
categoria estática de classe, invariável diante de determinados processos históricos
particulares, e que ignora o processo histórico empírico real da formação da classe8.

8
De acordo com o autor, a fórmula do pensamento estruturalista se constituiria da seguinte forma: “modelos
ou estruturas são teorizados pressupondo-se que neles se verifiquem definições objetivas de classe, como,
por exemplo, a da expressão de relações diversas de produção (THOMPSON, 2001, p 270).

18
Thompson, na contramão, procura privilegiar em sua análise o processo histórico
pelo qual um conjunto articulado de práticas coletivas perpassam os domínios econômico,
político e ideológico-cultural. Isso significaria não tomar classe como um mero
pressuposto teórico, ou como existente desde o início, mas como o resultado de um
processo histórico subjacente, de tal modo que,

(...) as classes não existem como entidades separadas que olham ao


redor, acham um inimigo de classe e partem para a batalha. Ao
contrário, para mim, as pessoas se vêem numa sociedade estruturada de
certo modo (por meio de relações de produção fundamentalmente),
suportam e exploração (ou buscam manter poder sobre os explorados),
identificam os nós dos interesses antagônicos, debatem-se em torno
desses mesmos nós e, no curso de tal processo de luta, descobrem a si
mesmas como uma classe, vindo, pois, a fazer a descoberta da sua
consciência de classe. Classe e consciência de classe são sempre o
último e não o primeiro degrau de um processo histórico real.
(THOMPSON, 2001, p 274)

É nessa medida que o condicionante econômico dessas experiências (pela via


produtiva) não pode ser observado como aquele que esgota o domínio da experiência e
da vivência, mas, a partir da própria acepção do termo condicionante, é o fator econômico
aquele que estabelece causalmente o terreno de possibilidades, o domínio de realização
da experiência, que, na materialidade das relações, é perpassada por elementos também
sociais, culturais e religiosos.
Por essa razão, utilizamo-nos do conceito de experiência, tal qual proposto por
Thompson, entendendo-o como um modelo unificador das ações humanas. Na
perspectiva do autor,

Os valores não são apenas “pensados”, nem “chamados”; são vividos e


emergem no interior do mesmo vínculo com a vida material e as
relações materiais em que surgem nossas ideias. São as normas, regras,
expectativas etc., necessárias e aprendidas (e “aprendidas” no
sentimento), no habitus de viver; e aprendidas, em primeiro lugar, na
família, no trabalho e na comunidade imediata. Sem esse aprendizado
a vida social não poderia ser mantida e cessaria toda produção.
(THOMPSON, 1981, p. 194)

Assim, a experiência para Thompson distingue-se em dois momentos. A


experiência I (experiência vivida), em que as regularidades no interior do ser social
resultam de causas materiais que ocorrem de forma independente da consciência ou da
intencionalidade; e a experiência II (experiência percebida), no qual os efeitos da
experiência vivida são interpretados conforme os seus mecanismos de julgamento e
percepção. Dessa forma, a experiência, “sem bater na porta”, constitui e nega, opõe e

19
resiste, estabelecendo mediações, tornando-se espaço de prática, intervenção, recusa. É o
processo de formação de identidades de classe e, poderíamos acrescentar, de gênero, de
geração, de etnias (MÜLLER, 2002, p.341). Por essa razão, Thompson afirma:

E quanto à “experiência” fomos levados a reexaminar todos esses


sistemas densos, complexos e elaborados pelos quais a vida familiar e
social é estruturada e a consciência social encontra realização e
expressão (...): parentesco, costumes, as regras visíveis e invisíveis da
regulação social, hegemonia e deferência, formas simbólicas de
dominação e de resistência, fé religiosa e impulsos milenaristas,
maneiras, leis, instituições e ideologias - tudo o que, em sua totalidade,
compreende a “genética” de todo o processo histórico, sistemas que se
reúnem todos, num certo ponto, na experiência humana comum, que
exerce ela própria (como experiências de classe peculiares) sua pressão
sobre o conjunto (THOMPSON, 1981, p.188-189)

O significado, portanto, de abraçar uma compreensão holística da experiência


humana, que leve em conta necessariamente todas as dimensões da vida, é o que permite
pensar uma experiência de classe imbuída de fatores que se manifestem tanto nas relações
de produção bem como em outras áreas da vida social, como aspectos culturais, morais e
religiosos.
É com base neste raciocínio que o autor sugere, por exemplo, que foi graças ao
protestantismo triunfante e ao racionalismo que o favoreceu que “a iniciativa privada e
o laissez faire qualificado dominaram a cultura econômica antes mesmo de ter assumido
o poder em uma economia de mercado” (THOMPSON apud LÖWY, 2014, p. 298). Essa
passagem, aliás, revela a distância de Thompson em relação aos intelectuais do
materialismo que buscaram estabelecer alguma relação de causalidade entre os
fenômenos religiosos e os modos de produção, atribuindo dessa forma uma primazia do
econômico sobre o religioso. Thompson, ao contrário, escolhe outro caminho: retomando
o debate clássico sobre a relação entre a ética protestante e o “espírito” do capitalismo,
o historiador observa essa dinâmica como “a interpenetração do modo de produção
capitalista e da ética puritana” (THOMPSON apud LÖWY, 2014, p. 299), o que
comprova o interesse do autor em analisar a religião menos pela ótica da causa-efeito e
mais pela ótica da correspondência das diferentes esferas culturais vividas e percebidas
nas experiências das pessoas em um dado processo histórico.
Aproximando as reflexões ao objeto da pesquisa, os conceitos de Thompson
acerca do papel da experiência na formação da classe social foram fundamentais para
lançar luzes sobre as diferentes maneiras que o pentecostalismo reflete as experiências de
classe dos moradores das periferias de São Paulo, oferecendo subsídios para se pensar de

20
que formas essa religiosidade expressa as percepções e os valores compartilhados pelas
camadas populares e de que maneira elas estão lastreadas pelas vivências dessa
população.
Por outro lado, pensar a religião como uma forma de expressão de classe levou a
pesquisa a percorrer um caminho metodológico inverso, e refletir de que modo o próprio
fenômeno religioso não apenas expressa em termos sacrais o ideário de uma classe social
como também estimula, até certo ponto, determinados comportamentos e estilos de vida
que excedem as fronteiras do religioso e assumem, elas próprias, uma dada organização
prática da vida; em uma racionalidade.
Por essa razão, a segunda corrente teórica que orientou nossa investigação
encontra-se na sociologia da religião de Max Weber. Preocupado em compreender os
processos de racionalização da condução de vida moderna, Weber (1979a) busca na
psicologia social das religiões mundiais os impulsos práticos de ação que conduzem os
indivíduos a uma determinada ética econômica.
Para isso, Weber sugere que essas éticas são portadoras de ao menos dois tipos de
racionalidade: uma de natureza teórica – pela qual são formuladas as éticas dos
compêndios teológicos, as disputas hermenêuticas etc. – e outra prática, na qual a ética
pragmática das religiões é vista como uma força diretriz para uma conduta de vida
específica, aqui entendida como “uma espécie de conformidade nos modos de
comportamento dentro de uma dada esfera social” (WEBER, 1979a, p.310).

No ascetismo do mundo, a graça e o estado escolhido do homem


religiosamente qualificado submetem-se à prova na vida diária. Na
verdade, não o fazem na vida cotidiana como existe, mas nas atividades
metódicas e racionalizadas de vida de trabalho diário a serviço do
Senhor. Transformada racionalmente numa vocação, a conduta
cotidiana torna-se central para a comprovação do estado de graça
(WEBER, 1979a, p. 335)

O exemplo mais famoso de Weber encontra-se no clássico A Ética Protestante e


o “Espírito” do Capitalismo (2004), no qual o autor procura compreender como o
tradicionalismo econômico medieval passa por uma profunda transformação até se
tornar, em fins do século XIX, o capitalismo racional moderno. Para tanto, Weber analisa
os efeitos de significação cultural da Reforma Protestante vinculando os elementos de fé
religiosa das correntes ascéticas do protestantismo ao desenvolvimento de uma ética
econômica capitalista, na qual os ganhos do trabalho não serviam mais como meio para
satisfazer as necessidades materiais, mas haviam se elevado à condição de finalidade de

21
vida. Neste sentido, Weber observa que há mais nessa dinâmica do que uma simples
ganância generalizada (auri sacra fames) e sim a formação histórica de estímulos
psicológicos inculcados pela educação, que buscam justificar a valorização ética do
cumprimento do dever profissional como uma autorrealização moral – ou, como nos
termos religiosos, uma vocação (WEBER, 2004, p. 72). Estariam aqui, portanto, em
formação as bases de um relacionamento de atração mútua entre a racionalidade prática
do protestantismo e a ética econômica do capitalismo, formando aquilo que o autor
metaforicamente chamou por afinidades eletivas.
Com o desenvolvimento da modernidade, Weber (2004) conclui que os
pressupostos de fé que outrora conduziam o protestante ao dever profissional passam
agora a vigorar indistintamente sobre todos os indivíduos da sociedade capitalista9, isto
é, sem a necessidade de uma intermediação religiosa e cuja positivação moral reside no
próprio “espírito” da atividade profissional, desenvolvendo assim um estilo de vida
altamente compatível aos imperativos da expansão capitalista10.
Para o nosso interesse específico, recuperar alguns desses conceitos da sociologia
da religião de Weber podem nos ser úteis a fim de compreender como os discursos e
práticas pentecostais, além de expressar vivências e percepções dos moradores de
periferia, tem o potencial de orientar a conduta de vida dos crentes mediante uma
racionalidade que normatiza um dado comportamento religioso ao mesmo tempo em que
alimenta motivações que sustentam as atitudes econômicas.
Essa é uma afirmação nada trivial, sobretudo quando se tem em mente de que o
pentecostalismo é uma religiosidade que nasce e cresce entre as populações mais pobres
dos centros urbanos; pessoas cujas trajetórias de vida são marcadas por múltiplos
históricos de carência material e denegação de direitos, configurando assim uma dada
experiência de vida periférica.

9
“O puritano queria ser um profissional – nós devemos sê-lo. Pois a ascese, ao se transferir das celas dos
mosteiros para a vida profissional, passou a dominar a moralidade intramundana e assim contribuiu para
edificar esse poderoso cosmos da ordem econômica moderna ligado aos pressupostos técnicos e
econômicos da produção pela máquina, que hoje determina com pressão avassaladora o estilo de vida de
todos os indivíduos que nascem dessa engrenagem” (WEBER, 2004, p. 165)
10
Ao comparar a assertiva weberiana presente na relação entre fé religiosa e racionalidade prática no
“espírito” do capitalismo, Côrrea (2018) conclui que “o máximo de racionalidade [protestante] levou, no
entanto, ao máximo de irracionalidade: a fé em um deus que arbitrariamente predestina o destino dos
homens só pode ser considerada uma fé irracional. Contudo, é a crença irracional nessa divindade (produto
do paradoxo do processo de racionalização teórica) que gerou as condições de possibilidade para a
instituição de uma disciplinarização da conduta sem precedentes na história (processo de racionalização
prática). Ou seja, o máximo de irracionalismo teórico produziu também o máximo de racionalismo prático,
possibilitando a conhecida conexão de sentido entre a ‘ética protestante’ e o ‘espírito do capitalismo’”
(CÔRREA, 2018, p. 137-138)

22
Nossa hipótese é que é justamente por essa condição de vida que as camadas
populares se veem atraídas pela religiosidade pentecostal, tendo em vista que ela não
apenas busca atribuir um sentido espiritual para as mais variadas situações cotidianas,
como também cria dispositivos pelos quais os crentes passam a se ver particularmente
dignificados pela sua posição religiosa, procurando dessa forma compensar as privações
e exclusões sociais da pobreza por meio de uma visão de mundo embutida pela fé.
O objetivo do nosso trabalho, portanto, é procurar entender de que maneiras o
universo moral das periferias paulistanas se evidencia a partir da religiosidade
pentecostal, e de modos essa religião acaba por oferecer estímulos para a ação em uma
dada situação de classe.
Por esses motivos, essa investigação percorre o seguinte roteiro:
1. O pentecostalismo, mediante sua formação histórica entre os pobres e
marginalizados, desenvolveu uma religiosidade cuja conduta de vida costuma
relacionar a doutrina de salvação individual com a ideologia do mérito, criando
assim influxos recíprocos entre uma dada visão de mundo periférica e uma
percepção de classe dominada.
2. Dessa forma, a experiência vivida por esses pentecostais, expressão dos dramas
coletivos das privações materiais dos pobres, é ressignificada pela religião
numa experiência percebida como provações espirituais, justificando a
sua posição de classe dominada por meio de uma produção de sentido no qual o
sacrifício pessoal expressa uma noção de dignidade válida dentro e fora da
comunidade religiosa.
3. Em nossa pesquisa, a articulação entre as privações e provações apareceu sob a
forma da noção de sucesso na vida, um conceito que buscou apresentar tanto o
que os entrevistados entendem como um estado de vida satisfatório e o que é
preciso para se chegar lá.
4. A procura por essa concepção fez surgir um dado interessante: embora o esforço
individual seja altamente valorizado na percepção comum dos entrevistados, a
maioria deles também ponderou que para ser bem-sucedido é preciso que o
esforço seja acompanhado por oportunidades de uma vida digna.
5. Dentre essas oportunidades, destacam-se as a) oportunidades de renda e trabalho
(“ter dinheiro”; “conseguir um bom emprego”), b) de estudo (“ter um estudo”);
e c) as oportunidades do governo (“o governo fazer algo pela gente”).

23
6. Embora sejam desejadas e procuradas, a fala dos entrevistados sugere que a falta
de pelo menos uma dessas oportunidades é responsável por tornar o seu esforço
muitas vezes inútil frente a tantas adversidades, sendo motivo de inúmeras
frustrações.
7. Neste sentido, a família ocupa um espaço privilegiado de análise. Tendo em vista
de que existem oportunidades que surgem desde o “berço”, o ambiente familiar
é apresentado como o “segredo do sucesso” (e do fracasso) de muitas pessoas,
quer seja por seus aspectos objetivos (moradia e sustento) seja por seus aspectos
subjetivos (afeto e proteção emocional).
8. Em contrapartida, esses encontram no ambiente religioso um discurso e uma
prática pela igreja que procura, em primeiro lugar, criar laços de apoio mútuo
entre os irmãos de fé – promovendo ações comunitárias de assistência material e
acolhimento espiritual – em seguida, desenvolver comportamentos práticos
lastreados pela ética religiosa, uma racionalidade que versa justificar a posição
social dos fiéis da mesma forma em que se tenta estimular os crentes a participar
da luta social traduzida dentro de uma cosmovisão religiosa.
9. É dessa forma, portanto, que constatamos a aproximação mútua entre a
experiência religiosa dos evangélicos e a experiência de classe periférica. De um
lado, porque a religiosidade expressa a importância da igreja enquanto rede de
proteção social, que geram vínculos de sociabilidade e pertencimento entre os
membros da comunidade religiosa; de outro, porque é a partir da experiência
religiosa em que se é emulada uma sensação de melhora de vida entre os crentes,
conferindo-lhes uma noção peculiar de dignidade ao mesmo tempo em que lhes
exige disciplina espiritual e comprometimento em relação à fé.
10. Essa combinação de fatores se estende as outras dimensões da vida, o que faz
dessa religião uma espécie de dispositivo para que as famílias pobres organizem
as suas vidas mediante os pressupostos da religião, o que torna o pentecostalismo
mais do que uma religião das camadas populares como também um aspecto
significativo do universo moral e do estilo de vida periférico da cidade de São
Paulo.
Antes de avançar propriamente nos dados de nossa pesquisa, cumpre-nos em
primeiro lugar demonstrar como as origens do movimento evangélico brasileiro estão
inseridas dentro de um cenário religioso em transformação ao mesmo tempo em que
acompanham outros processos sociais mais amplos, à exemplo da urbanização das

24
grandes cidades, os processos de imigração, o êxodo rural e, consequentemente, a
emergência de novas frações de classe social no país.

25
1. DE POBRES PARA POBRES: AS RAÍZES HISTÓRICAS DO
PENTECOSTALISMO BRASILEIRO

Para entender as contribuições recíprocas entre pentecostalismo e classes


populares no Brasil é preciso que tomemos alguns passos de distância. Isso porque, do
ponto de vista histórico, não haveria movimento pentecostal sem que esse fosse
acompanhado por amplos e complexos processos sociais, que abrangem desde os influxos
culturais do avivalismo protestante norte-americano do século XVIII às transformações
do capitalismo moderno; da industrialização e urbanização ao êxodo rural. Processos que
não apenas introduziram novos valores e práticas, como também provocaram reações e
resistência, desencadeando novas identidades e novos campos de disputa. O Brasil não
esteve alheio a essas transformações históricas, ao contrário, suas instituições sempre
estiveram atentas a esses processos, buscando sempre na medida do possível adaptar-se
aos novos tempos sem, contudo, perder os aspectos estruturais de sua ordem social
interna.
Fazendo uma leitura esquemática desses processos, é possível afirmar que o
surgimento do pentecostalismo em solo brasileiro é fruto de um conjunto de
transformações sociais ocorridas na virada do século XX que abrangem múltiplos eventos
de natureza religiosa, política e econômica.
No campo religioso, a emergência dos pentecostais no país é resultado da
confluência entre 1) a chegada das missões evangélicas vindas dos Estados Unidos e 2) o
surto profético das comunidades católicas rurais já instaladas no interior do país. Do lado
protestante, essas missões eram oriundas dos “movimentos de santidade”, um avivamento
de inspiração wesleyana11 em curso nos Estados Unidos desde o final do século XVIII12,

11
Imbuído de uma mensagem que frisava a santificação como primeiro passo para uma autêntica vida cristã,
Wesley provocava multidões a abandonar a sua “vida de pecado” e renascer em Cristo por meio do ato da
conversão materializada mediante o rito do batismo nas águas. A novidade neste caso não estava no rito do
batismo em si, mas sim no tipo de religiosidade que surgia acompanhado dele, porque junto com a decisão
individual de conversão/batismo desencadeava-se uma experiência intensamente irracional e emotiva, uma
espécie de regeneração espiritual comprovada por meio da experiência e dos sentidos. O conceito de
santidade nascido no metodismo é importante na medida em que ideias como as de “santidade completa”
“perfeição cristã”, “regeneração” e “pureza do corpo”, tão enfatizadas pela corrente de Wesley, passaram
a ser denominadas, mais tarde, por “batismo no Espírito Santo” (OLIVEIRA, 2015, p.25).
12
Como sublinha Gonzalez (2009), talvez o passo mais notável nessa direção tenha sido a “reunião de
acampamento” de Cane Ridge, no estado de Kentucky ocorrida no final do século XVIII. O encontro tinha
como intuito original ser uma tarde de fé e confraternização na comunidade local, mas acabou por reunir
dezenas de milhares de pessoas – que, inesperadamente, começaram a ser acometidas por fortes expressões
de emoção, “pois uns choravam, outros tremiam, alguns saíam correndo, e não faltavam pessoas que latiam”
nas palavras do historiador (GONZALEZ, 2009, p.29). Aquela reunião perdurou por uma semana, e ao sair
dali muitos estavam convencidos de que aquela era a verdadeira forma de experenciar a presença de Deus,
e começaram a se espalhar pelos Estados Unidos fazendo o que ficou conhecido como encontros de

26
mas que a partir dos anos 1900 é reaquecido por um intenso processo de renovo espiritual
desencadeado pelo Movimento da Rua Azusa13, que incentivava a rejeição a uma vida
mundana e uma busca maior pela “presença de Deus”, manifestada por intermédio do uso
de línguas desconhecidas (glossolalia), milagres, dons de curas e de profecias. Como esse
movimento busca repetir os gestos dos primeiros apóstolos, essa religiosidade passou a
ser chamada de Pentecostal, uma vez que o ponto central dessa expressão de fé era o
“batismo no Espírito” inspirado pelos relatos bíblicos que descrevem a chegada do
Espírito Santo no dia de Pentecostes14 (SYNAN, 2005).
Por se tratar de um movimento formado em uma cidade em franca expansão
urbana como Los Angeles, cujos fiéis eram em sua maioria compostos por negros,
imigrantes pobres e um número significativo de mulheres, a grande novidade do
Movimento da Rua Azusa estava, além do êxtase religioso, na incorporação dos setores
excluídos da sociedade em um espetáculo religioso que misturava as experiências do
espírito com a africanidade do êxtase corporal, expressos no balançar dos corpos e da
música – combinação que, do ponto de vista social, significou nada menos que uma
religiosidade no qual negros e brancos dividiam o mesmo espaço de culto, mitigando a
pressão dos mecanismos que os segregam ao mesmo tempo em que buscavam criar redes
de solidariedade e proteção aos mais vulneráveis da comunidade (ARENARI, 2013).
Em poucos anos, o movimento pentecostal ganhou fama internacional15. Havia
algumas razões para isso: em primeiro lugar, porque as peculiaridades do novo
avivamento evangélico escandalizavam os setores tradicionais da sociedade norte-
americana e as denominações protestantes históricas, uma polêmica que inevitavelmente
publicizou e atraiu visibilidade para a nova religiosidade. Segundo, porque devido a
própria natureza carismática do movimento, combinada a interação com as classes
populares das cidades, fizeram com que os pentecostais se alastrassem rapidamente pelos

“avivamento”. Por esse motivo, muitos historiadores consideram a experiência de Cane Ridge uma espécie
embrionária dos encontros de êxtase espiritual que ensejariam anos depois nas cruzadas pentecostais.
13
Em 1906, William J. Seymour, negro, filho de ex-escravos, foi convidado por uma pastora do movimento
Holiness a compartilhar o seu testemunho de “batismo do Espírito Santo” em Los Angeles, na Califórnia.
O sucesso foi tamanho que Seymour alugou um armazém na Rua Azusa e deu início à sua Missão da Fé
Apostólica (Apostholic Faith Mission), marcando definitivamente o nascimento do movimento pentecostal
nos Estados Unidos (CAMPOS, 2005).
14
O mais famoso deles, certamente, diz respeito ao episódio em que os apóstolos, reunidos no dia de
Pentecostes, sentiram “de repente um vento do céu, e encheu toda a casa na qual estavam assentados. E
viram o que parecia línguas de fogo, que se separaram e pousaram sobre cada um deles. Todos ficaram
cheios do Espírito Santo e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito os capacitava” (Atos dos
apóstolos 2:1-4).
15
Estimativas sugerem que Seymour tenha sido o propagador indireto do pentecostalismo de 26 países em
dois anos (BLEDSOE, 2012, p.27)

27
centros urbanos, fenômeno que caminhou lado a lado com a formação das grandes
metrópoles norte-americanas. Por fim, porque com o intenso fluxo migratório do período,
trabalhadores negros e imigrantes pobres passaram a disseminar a nova fé à medida em
que desbravavam os novos rumos, garantindo a expansão do movimento para outras
cidades americanas, além, é claro, de outros países.
É sobretudo por esse último item que o pentecostalismo chega ao Brasil. Vindo
por intermédio de missionários norte-americanos e imigrantes europeus, o
pentecostalismo aporta em terras tupiniquins menos de quatro anos depois do
Avivamento da Rua Azusa. Em 1910, com a chegada dos italianos Luigi e Rosina
Francescon, fundadores da Congregação Cristã no Brasil, e no ano seguinte, com a
chegada dos suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren, fundadores da Assembleia de Deus.
Mas antes de tratarmos sobre o desenvolvimento dessas denominações, é
importante ter em mente de que o movimento pentecostal surge no Brasil em um
momento em que a Igreja Católica enfrentava uma grave crise de legitimidade. Não era
sem razão: em um país reduto do catolicismo colonial – um catolicismo “frouxo e
permissivo (...) expressão de submissão das classes inferiores”16 – a presença da Igreja na
região era até então rarefeita e muitas vezes apenas formal, o que abriu condições para
que outras expressões de catolicidade assumissem à cena religiosa no interior do país,
inclusive aquelas versões sincréticas de religiosidades indígenas e cultos africanos.
Foi em meio a este caldo de sincretismos que surgem no interior do país os
movimentos dos beatos, um surto profético encabeçado por leigos carismáticos, que
tomados por um forte sentimento místico e uma leitura apocalíptica da realidade,
acabaram por gozar de enorme prestígio entre as camadas populares no final do século
XIX. Considerados heréticos pela Igreja, o movimento dos beatos católicos perdeu força
com o passar dos anos, mas tornou o solo fértil para a chegada das primeiras
denominações pentecostais, atualizando as práticas ascéticas e costumes do catolicismo
popular junto a uma nova teologia de salvação, essa agora sensivelmente associada aos
movimentos de santidade provenientes do pentecostalismo norte-americano. A
convergência dessas duas correntes explica, em certo sentido, as bases religiosas para a
emergência do movimento pentecostal no interior do país.
Bases que estavam intimamente relacionadas ao contexto econômico da época.
Neste sentido, a chegada dos primeiros pentecostais no país coincide com outros

16
Para o conceito de cristandade colonial, ver Dussel (2005).

28
processos econômicos em curso, dentre os quais: 1) a plena integração da economia
brasileira no padrão agroexportador da divisão internacional do trabalho; 2) a entrada de
capitais estrangeiros, que propiciou tanto o avanço das instalações de infraestrutura como
a oferta dos primeiros serviços urbanos das grandes cidades; e 3) o aumento da demanda
por mão-de-obra qualificada na cidade e no campo, resultando nas políticas de imigração.
Resultado do aumento global da demanda por matérias-primas, a inserção do país
no mercado agroexportador do século XX se deu através de duas commodities principais:
a borracha e o café. Naqueles anos, a borracha produzida na região amazônica logo se
tornou essencial para os mercados estrangeiros, sobretudo na indústria automobilística,
do mesmo modo que o café produzido nos cafezais da Região Sudeste havia se elevado a
principal mercadoria brasileira comercializada no exterior. Disso resultou uma onda de
investimentos estrangeiros em projetos de infraestrutura, como a construção de ferrovias
e portos, mas também o estabelecimento dos primeiros serviços públicos das grandes
cidades, dos bondes elétricos a iluminação pública, fornecimento de gás, telégrafos, etc.
Toda essa intensa atividade econômica, consequentemente, demandava uma
multidão de trabalhadores para as mais diferentes áreas, o que era uma relativa novidade
para um país que recém havia abolido o seu sistema de escravidão. Com a passagem para
o trabalho livre, contudo, a força de trabalho nativa (outrora escravizada ou subocupada)
apresentava agora um entrave para a expansão capitalista. Isso porque embora a oferta de
trabalho fosse abundante, ela não apresentava as capacidades técnicas suficientes para a
complexidade que as novas funções exigiam, uma evidência que acabou por intensificar
a necessidade de políticas de imigração de europeus para compor a força de trabalho
brasileira (OLIVEIRA, 1997, p. 405).
Embora esse fosse o argumento principal, a preferência dada ao imigrante europeu
para a constituição da força de trabalho livre neste “novo” Brasil não se dava somente
pela sua qualificação técnica. Como se sabe, havia neste momento uma política deliberada
de “branqueamento” da população, baseada nas teorias racistas em voga, que
consideravam a população de origem africana e indígena como geneticamente menos
disposta ao trabalho e menos dotada intelectualmente. Imbuídos desse raciocínio, o
consenso entre as elites dirigentes era de que era impossível o desenvolvimento do país
com o predomínio dessa força de trabalho, seja do ponto de vista do trabalho ou da raça
(SCHWARZ, 2003).

29
Seja como for, fato é que uma multidão de imigrantes passou a aportar em terras
brasileiras na virada do século XX17. Este é um fato que nos importa, afinal, foram os
imigrantes europeus os primeiros pentecostais a chegar ao país, primeiro com os italianos
Luigi e Rosina Francescon, em 1910, fundadores da primeira igreja pentecostal em solo
brasileiro, a Congregação Cristã no Brasil, seguido pela dupla de missionários suecos
Daniel Berg e Gunnar Vingren, fundadores da Assembleia de Deus, em 1911.
Embora fossem todos naturais da Europa, tanto Francescon quanto Berg e Vingren
tiveram uma importante passagem pelos Estados Unidos, especialmente na cidade de
Chicago. Um dos principais centros industriais do país, Chicago vivia naqueles anos a
enorme oferta de emprego das grandes cidades norte-americanas, sobretudo pela
atividade da indústria automobilística, atraindo milhares de imigrantes europeus que
fugiam da grave crise financeira que atingia o Velho Mundo.
Ao mesmo tempo, Chicago também era uma das primeiras cidades a receber os
irmãos do Movimento Pentecostal, tendo o pastor batista William H. Durham como uma
das principais vozes do movimento na região. Sua importância para a chegada do
pentecostalismo no Brasil é grande, uma vez que os fundadores das duas maiores
denominações pentecostais do país receberam a mesma revelação de vir a América do
Sul pela igreja do mesmo William H. Durham18.
Chegando ao Brasil, os primeiros missionários pentecostais iniciam suas missões
em duas cidades estratégicas daquele período: São Paulo e Belém do Pará. No caso da
capital paulista, a chegada dos pentecostais na cidade acontece junto com o afluxo de
trabalhadores imigrantes, em especial italianos, que passam a ocupar os territórios

17
De 1890 a 1929, estima-se que tenham entrado no país mais de 3,52 milhões de imigrantes; a maior
entrada de imigrantes em toda a nossa história. Desses, mais de um terço eram italianos, seguido por
portugueses, espanhóis, alemães, russos, japoneses etc. (FAUSTO, 2015, p. 242).
18
Originalmente presbiteriano, Luigi Francescon conheceu as teses pentecostais do “batismo no Espírito
Santo” graças a Durham, que lhe profetizou o seu chamado de evangelizar as colônias italianas da América.
Foi com base nessa revelação que ele e a mulher arrumaram as malas e partiram rumo a Buenos Aires,
inaugurando o movimento pentecostal na Argentina. Em seguida, os italianos vieram para o Brasil, primeiro
no Paraná e depois em São Paulo, e ali se encontraram com os irmãos da Igreja Presbiteriana do Brás, na
época um bairro tipicamente italiano. As ideias pentecostais dos Francescon geraram, como efeito, uma
enorme polêmica entre os presbiterianos, ocasionando um racha entre os membros daquela comunidade, o
que ensejou na criação da primeira Congregação Cristã no Brasil, em 1910.
Naquele mesmo ano, a dupla de missionários batistas suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren recebem a
revelação do lugar em que ambos deveriam prestar seu ministério: o destino era a região norte do Brasil,
mais especificamente Belém do Pará. Embora fossem naturais da Suécia, o encontro dos dois ocorreu em
uma igreja batista de Chicago, cujo pastor era o mesmo William Durham, que batizara Luigi Francescon
anos antes. Assim como o casal italiano, Berg e Vingren teriam migrado para os EUA para fugir da grave
crise financeira que atingia seu país natal, mas que após a “revelação” missionária decidiram abrir mão da
vida secular para assumir a missão de fundar a primeira Assembleia de Deus do país, em 1911 em Belém
do Pará.

30
próximos as instalações das primeiras fábricas, transformando esses bairros industriais
em verdadeiras colônias da classe operária italiana. Como a missão do casal Francescon
consistia em evangelizar as colônias italianas na América (a Congregação permaneceu
uma denominação étnica até pelo menos meados dos anos 1940), não é estranho que a
primeira congregação tenha sido instalada no bairro do Brás, região originária da
industrialização paulista e porta de entrada para muitos italianos na cidade.
Situação um pouco diferente do que ocorreu na capital paraense. Vivendo os anos
gloriosos do ciclo da borracha, em pouco tempo a cidade passou a abrigar milhares de
seringueiros que foram atraídos para o trabalho de extração de látex na floresta amazônica
(SOUZA, 2014). Formados em sua maioria por trabalhadores que fugiam da seca
nordestina, os seringueiros também foram os primeiros a serem evangelizados pelos
missionários suecos assembleianos, que rejeitados pelo catolicismo institucional e
acostumados a cultura de líderes leigos carismáticos, adotaram sem dificuldades a
doutrina pentecostal, essa principalmente difundida através de cultos domésticos e pela
pregação em bairros e praças (ALENCAR, 2019).
A onda de prosperidade na extração do látex, contudo, encerrou-se abruptamente,
quando a produção brasileira passa a ser substituída pela borracha produzida na Ásia. Isso
significou, na perspectiva dos trabalhadores seringueiros, o fim das oportunidades de
trabalho na região amazônica e o consequente retorno dos migrantes para suas regiões de
origem. A mesma situação, em contrapartida, permitiu que o pentecostalismo avançasse
para outros estados da Região Nordeste e, posteriormente, para todo o país19.
Ou seja, ainda que com diferenças e peculiaridades de seus fundadores, é no
entrecruzamento entre essas realidades que o pentecostalismo brasileiro mostra as suas
raízes históricas com as classes populares desde suas origens. Nascida entre negros,
imigrantes e nordestinos, rejeitada pelas igrejas cristãs tradicionais e disseminada por
entre as ruas e casas dos bairros mais pauperizados das grandes cidades, não é à toa que
muitos irão definir o fenômeno pentecostal como uma “religião de pobres para pobres”;
uma herança cultural que, a despeito de toda a heterogeneidade do movimento e suas
mudanças internas no decorrer do último século, continuam a ser uma marca indelével
dessa religiosidade no país.

19
Conforme descreveu Alencar (2012, p.70), “as Assembleias de Deus iniciadas 1911, em Belém do Pará,
chegaram em 1914 ao Ceará, em 1915, a Alagoas, em 1916 a Pernambuco e Amapá e, em 1924, alcançou
o Rio Grande do Sul. Nos seus primeiros vinte anos, alcançou grande parte do país”.

31
De modo a entender como essas raízes econômicas e religiosas se desenvolveram
na cidade de São Paulo, contudo, é preciso um olhar pormenorizado dentro da trama
social paulistana, sobretudo nas intersecções presentes entre os processos de urbanização
da capital paulista e as ondas de expansão do pentecostalismo.

1.1. SÃO PAULO: ENTRE A RELIGIÃO, A METRÓPOLE E OS POBRES

Se é verdade que o pentecostalismo encontra uma recorrência histórica entre as


camadas mais pobres desde os seus fundadores, é igualmente certo que tanto o campo
religioso como o social passaram por grandes transformações durante o último século.
Quando olhadas de perto, essas transformações revelam conexões a processos mais
amplos, a exemplo da industrialização e urbanização das grandes cidades, que atraíram
os fluxos migratórios para as periferias dos centros urbanos, alterando a territorialização
desses espaços bem como atualizavam os padrões de segregação social por meio do
território.
Segundo Caldeira (2011), a cidade de São Paulo viveu durante o século XX ao
menos três modelos de habitação. A primeira fase tem início no final do século anterior e
se estende até os anos 1940, período no qual toda a população da cidade se concentra no
centro histórico e pelo qual os diferentes grupos sociais estavam segregados por tipos de
moradia. Com a industrialização dos anos 1940 e 1980, a mancha urbana se expande e os
grupos sociais passam a se separar em grandes distâncias, criando o padrão centro-
periferia, segregação pela qual as condições de vida pioram à medida em que se avança
para as regiões mais afastadas da cidade. Por fim, dos anos 1980 até os dias atuais,
sobrepõe-se a essas formas um outro padrão de habitação, do qual a autora chama de
enclaves fortificados, no qual os mais ricos passam a ficar isolados em condomínios
privados, cercados por muros e tecnologias de segurança, enquanto os mais pobres
disputam espaços entre as periferias e favelas da região metropolitana.
Acompanhando os tempos e movimentos da capital paulistana, o pentecostalismo
também sofre importantes mutações neste período. Fazendo uso da periodização
consagrada pela literatura como as “três ondas de expansão pentecostal” (FRESTON,
1995; MARIANO, 2005), essas fases demonstram como o movimento pentecostal se
diversificou durante as décadas e ampliou o seu raio de influência dentre os diferentes
grupos da sociedade. A primeira onda, chamada de pentecostalismo clássico, é o período

32
que abrange o período de sua implantação no país, de 1910 até meados da década de 1950.
Nesse período, os crentes estão concentrados principalmente entre poucas denominações
e sua atuação se resume a ênfase no “dom de línguas” como evidência do “segundo
batismo”; forte ascetismo nos usos e costumes e uma tendência teológica ao
fundamentalismo religioso, marcada pela temática escatológica do “fim dos tempos”.
Já entre os anos 1950 e 1970, uma nova leva de missionários norte-americanos
chega ao país realizando pregações itinerantes em tendas com as “cruzadas de
evangelização”, propiciando assim uma “segunda onda pentecostal” no país. Também
conhecido por deuteropentecostalismo, essa geração foca sua teologia nos “dons
espirituais” da cura divina e exorcismos, além de inovar a sua prática de evangelismo
pelo uso do rádio, dentre outras estratégias de massa. Com a popularização desses grupos,
novas denominações evangélicas passam a proliferar no campo religioso brasileiro.
Ao final dos anos 1970, contudo, os estudiosos passam a observar a emergência
de um novo tipo de pentecostalismo, esse agora associado a uma forte tendência de
acomodação ao mundo, cuja “teologia da prosperidade” torna-se a característica mais
icônica, ao lado da intensa participação na política partidária e utilização ostensiva dos
meios de comunicação de massa. Essa última onda, ainda que com muitos nomes, tornou-
se famosa na cena pública pelo termo neopentecostal.
Nosso interesse em descrever e analisar essas mudanças em conjunto é duplo.
Primeiro, queremos demonstrar a necessidade de refazer a trajetória das classes
populares mediante às mudanças da vida cotidiana na cidade, e como elas estão no
registro das transformações religiosas do pentecostalismo. Segundo, queremos mostrar
que essas mudanças religiosas tendem a responder às transformações sociais de um
tempo, atribuindo um sentido teológico equivalente com a sua experiência de classe.

1.1.1. DO IMIGRANTE EUROPEU AO SERIGUEIRO NORDESTINO: A


PRIMEIRA GERAÇÃO PENTECOSTAL

Como sublinhamos anteriormente, o pentecostalismo é inaugurado no país na


segunda década do século XX concentrado em duas denominações principais: a
Congregação Cristã no Brasil e a Assembleia de Deus20. Embora essa religiosidade tenha

20
É preciso ressaltar, contudo, assim como fez Almeida (2009, p.30), utilizando dados do Censo
Institucional Evangélico (CIN/Iser), que o pentecostalismo contou durante suas primeiras décadas de
presença no Brasil com três outras denominações: Adventista da Reforma, fundada no Rio de Janeiro, em

33
sido “importada” dos movimentos de santidade dos Estados Unidos, sua chegada em solo
brasileiro ganha contornos um pouco distintos de sua árvore genealógica.
A primeira distinção se dá no próprio conteúdo do fenômeno religioso. Enquanto
no pentecostalismo norte-americano o discurso religioso ganhou gradativamente uma
dimensão político-racial (não nos esqueçamos: o movimento é oriundo de um avivamento
protestante sobretudo entre os negros localizados nas zonas urbanas), o pentecostalismo
que chega ao país é uma derivação do movimento entre os brancos, esse mais focado em
um discurso espiritualista e emotivo da religião e distante de qualquer ênfase política
(ROLIM, 1980).
Isso fica evidente, por exemplo, na postura dos seus fundadores: enquanto os
missionários suecos da Assembleia de Deus desde sempre mantiveram uma posição
distante em relação aos possíveis questionamentos gerados pela pobreza na região Norte,
não é menos certo que os líderes da Congregação sempre foram avessos a ideia de
vincular o discurso religioso a uma discussão política, uma recusa notável quando se tem
em mente que a denominação surge no epicentro das lutas operárias do século XX, na
cidade de São Paulo, em particular no bairro do Brás21.
A segunda característica distintiva desse movimento está no combate às demais
práticas religiosas. A bem da verdade, é evidente que o exclusivismo religioso é uma
marca protestante desde as suas denominações históricas, porém, é igualmente verdadeiro
de que o alvo predileto dessa primeira geração de pentecostais no Brasil era o catolicismo
romano. Quer seja pela rarefação da presença institucional da Igreja com os movimentos
de beatos no interior do país ou pela própria aversão dos pentecostais ao culto aos santos
e imagens, em especial do culto a Maria, o pentecostalismo inseriu-se no campo religioso
brasileiro em contraposição à hegemonia da Igreja Católica (ALMEIDA, 2009, p.29).

1925; Adventista da Promessa, em Pernambuco, em 1932; e Metodista Ortodoxa, fundada também no Rio
de Janeiro, em 1934. Como característica própria dos pentecostais, essas igrejas foram formadas a partir de
dissidências nas igrejas Adventista do Sétimo Dia e Metodista, respectivamente. Cumpre salientar, no
entanto, que as três denominações não tiveram o mesmo impacto da Assembleia de Deus e Congregação
Cristã no Brasil durante aquele período.
21
Segundo Almeida (2009): “Em suma, tanto a Assembleia de Deus como a Congregação Cristã no Brasil
marcaram a pregação com forte espiritualismo e a necessidade de um ‘afastamento do mundo’, em especial
da atividade política. E, como se não bastasse, o apolitismo não era resultado de indiferença em relação às
‘coisas do mundo’, mas apresentou-se como uma concordância, por vezes conivência, com o status quo.
Maior expressão dessa postura política foi a posição adotada pela quase totalidade dos pentecostais durante
o regime militar pós-1964. A omissão em relação ao regime, por vezes o apoio a este, caracterizou a posição
política pentecostal. Como contrapartida, os pentecostais, e mesmo os protestantes históricos, acabaram
recendo o apoio explícito do regime militar” (ALMEIDA, 2009, p.28).

34
Por fim, cumpre destacar que se essas características iniciais unem as primeiras
denominações pentecostais no país, o que as diferencia são as inserções que cada uma
realizou no contexto religioso nacional. Isto é, se por um lado a Congregação Cristã se
manteve praticamente restrita à colônia italiana durante as três primeiras décadas,
inclusive com hinos e cultos exclusivos na língua italiana até meados dos 1940, isso se
deve em boa medida a própria teologia adotada pela denominação.
Herança da influência presbiteriana dos seus fundadores, a Congregação preserva
até hoje no interior da sua religiosidade os traços teológicos do calvinismo e sua doutrina
de predestinação – uma ideia de que Deus já determinou numa “eternidade passada” quem
são os eleitos à vida eterna, dispensando a necessidade da atividade evangelizadora da
igreja, uma vez que os escolhidos encontrarão por vontade soberana divina o “único e
verdadeiro caminho” – o que em parte ajuda a explicar o fato dessa denominação nunca
ter atuado ostensivamente em campanhas de evangelização como as demais vertentes
pentecostais, do mesmo modo em que justifica o fato dessa denominação ser tão
“fechada” para o diálogo com as outras denominações protestantes.
Atuação muito diferente da Assembleia de Deus. Inspirada por uma forte ênfase
teológica no “fim dos tempos” e pela urgência missionária de salvar o maior número de
pessoas22, o pentecostalismo assembleiano partiu de imediato para o proselitismo,
arrebanhando novos fiéis a cada lugar que se expandia, o que fez dela poucas décadas
mais tarde a maior denominação evangélica do país. Desprezando a formação teológica
dos seminários, os primeiros líderes da Assembleia foram forjados na própria prática
eclesial de muita pobreza e perseguição, uma proximidade que acabou por atrair os ex-
escravos e seus descendentes, nordestinos e seringueiros desempregados (ALENCAR,
2018, p. 46).
Durante o período de 1910 e 1950, portanto, essas são as características gerais da
primeira geração de pentecostais no país. Concentrados nos principais centros urbanos da
época, e disseminado entre as camadas mais pobres dessas regiões, os pentecostais da
“primeira onda” são marcados, para além da ênfase no “dom de línguas”: 1) um discurso
espiritualista e de cunho emotivo, 2) que motivado por uma leitura apocalíptica da
realidade, 3) apresentava uma forte identificação sectária em torno de sua denominação e
4) um comportamento ascético em relação às “coisas do mundo”.

22
“O pentecostalismo não tem esperança ou alguma boa vontade para com o mundo e tudo o que lhe diga
a respeito. Ele, o mundo, está irremediavelmente perdido e a única relação possível com ele é de desprezo”
(ALENCAR, 2018, p. 46-47).

35
Nesse meio tempo, tanto o país como mundo viviam vertiginosas mudanças
econômicas e políticas. Resultado das crises econômicas nos países desenvolvidos
agravados pelos conflitos das duas Grandes Guerras, o nível das trocas entre os países
diminuiu, atingindo em cheio as economias agroexportadoras. Como reação, a
cafeicultura, principal atividade econômica brasileira até então, ficou particularmente
vulnerável, o que significou tanto a ruína da oligarquia agrária, que perdeu a sua primazia
política frente aos assuntos de Estado, bem como a ascensão de um projeto político que
encarava como prioridade o desenvolvimento de uma indústria voltada para o mercado
interno (SINGER, 1997).
É daí que se inicia o momento da industrialização brasileira. Evidências dessa
transformação eclodiam em toda a parte: desde a expansão das indústrias leves e pesadas;
da construção de pontes e estradas e o aprimoramento dos serviços de comunicação; da
introdução de novos hábitos de consumo às novas oportunidades de trabalho; mudanças
que não só diminuíam as distâncias espaciais entre o campo e a cidade como também
aproximavam o universo rural “atrasado” às dinâmicas da “moderna” vida urbana
(MELLO; NOVAIS, 2000).
É em meio a este caldo de circunstâncias que surge uma “nova onda” de expansão
do pentecostalismo brasileiro. Designada pela literatura por pentecostalismo neoclássico
ou deuteropentecostalismo, a “segunda onda pentecostal” é a soma do pentecostalismo
tradicional com os novos movimentos oriundos das missões evangélicas norte-
americanas das “cruzadas de evangelização” – campanhas missionárias itinerantes, com
pregações focadas em curas divinas e exorcismos – mas que não demoraram muito para
formar líderes e adeptos brasileiros, desencadeando assim o nascimento de novas
denominações evangélicas e a projeção do movimento como um fenômeno de massa nos
grandes centros urbanos do país.

1.1.2. DO MIGRANTE NORDESTINO AO MARGINALIZADO DA CIDADE: A


SEGUNDA ONDA PENTESCOSTAL

Se o pentecostalismo dos anos 1910-1950 marca a história do campo religioso


brasileiro como a fase de implantação da religiosidade no país, será entre os anos 1950-
1970 que o pentecostalismo se tornará um assunto de ampla repercussão nacional.
Havia, afinal, boas razões para isso: em primeiro lugar, porque junto aos surtos
de urbanização e migração interna, milhares de fiéis evangélicos nordestinos, até então

36
isolados dos centros urbanos, passaram a emigrar em massa para as regiões
metropolitanas do Sudeste, expandindo a fé pentecostal com a mesma intensidade em
que esses migrantes se instalavam nas grandes cidades.
Em segundo lugar, porque o próprio movimento evangélico instalado nessas
metrópoles passou a conviver cada vez mais com surtos de avivamento pentecostal: seja
através do novos movimentos das “cruzadas de cura divina”, que passaram a empregar
um novo estilo de proselitismo utilizando-se de estratégias de comunicação de massa;
seja através dos “movimentos de renovação” das igrejas tradicionais, que passaram a
experimentar a adoção de práticas pentecostais no interior das suas comunidades
religiosas.
Para compreender como esses fenômenos se relacionam ao seu período histórico,
tratemos os eventos por partes. Primeiro, a relação migração-pentecostalismo: como
falamos acima, é a partir da segunda metade do século XX que grandes centros urbanos
como São Paulo passam a demandar uma gigantesca mão de obra para os mais diferentes
tipos de trabalho. Com a intensificação da indústria, novos serviços começam a surgir
tanto no mercado formal como na informalidade, atraindo uma multidão de migrantes
para a capital paulista.
São Paulo, porém, não estava preparada para atender aquele repentino
crescimento populacional, abrindo espaço para que grileiros e especuladores imobiliários
assumissem a urbanização da cidade por meio da invasão de terras nas regiões mais
afastadas da cidade. Nesses locais, a precariedade da infraestrutura urbana era
compensada pelo preço barato das terras, tornando-se um inevitável atrativo para aqueles
que son vhavam em uma “vida melhor” na “terra das oportunidades”.
Um sonho que nem sempre era capaz de se transformar em realidade. Isso porque
a “terra das oportunidades” colidia-se com a metrópole das grandes distâncias espaciais
e sociais. Onde os migrantes tinham finalmente a chance de comprar a casa própria, mas
longe da infraestrutura urbana adequada; onde a oferta de emprego era abundante, mas
em postos de trabalho precários e mal remunerados; onde a cidadania finalmente se
tornava acessível, mas somente para aqueles que tinham carteira assinada.
É nesse cenário social contraditório e excludente que nasce a segunda geração
pentecostal em São Paulo. Isto é, frente ao abandono do poder público no amparo dessas
populações recém chegadas a cidade, associado com a histórica denegação de direitos e
relações de trabalho pauperizadas vivenciadas por esses grupos, a igreja evangélica

37
acabou por se tornar um meio pelo qual os moradores de periferia passaram a formar de
comunidades de apoio mútuo, cujos efeitos da religiosidade se manifestavam tanto nos
planos material e espiritual.
Não à toa, o fenômeno chamou atenção de pesquisadores que, na busca por
entender o crescimento pentecostal nas periferias, encontraram diferentes perspectivas
de análise. Grosso modo, pode-se dizer que essa primeira leva de estudos sobre o
pentecostalismo esteve dividido entre três argumentos principais. A perspectiva
funcionalista, que buscou enfatizar a religião pentecostal enquanto resposta a “anomia
social” provocada pelos processos de industrialização e urbanização, destacando de que
modos a igreja local era um espaço de reconstrução das relações primárias, propiciando
a “integração social” desses indivíduos no contexto urbano. A perspectiva
modernizadora, que enfocou nos efeitos morais da “conversão” religiosa, buscando
refletir de que modo o pentecostalismo incutia no seio das camadas populares uma ética
puritana, embutindo assim mecanismos de racionalidade modernizantes entre as
populações “atrasadas”. E, por fim, a perspectiva materialista, que observou o
pentecostalismo sob o prisma das relações de classe, buscando compreender de que
maneira essa religiosidade produzia um nexo orgânico entre a exclusão social dos pobres
e a ideologia subalterna do pentecostalismo23.
Sem entrar no mérito específico dessas discussões, todas essas pesquisas nos são
esclarecedoras acerca da multiplicidade de fatores sociais que envolveram a relação entre
pentecostalismo e periferia a partir dos anos 1950. À sua maneira, cada uma delas mostra
de que modos a religião pentecostal neste período: 1) facilitou a chegada de migrantes
nos centros urbanos, incentivando a criação de redes de proteção social nas periferias
metropolitanas mediante laços de solidariedade entre os irmãos de fé; 2) promoveu
estímulos morais e normas de comportamento que ajustam o indivíduo converso a uma
conduta de vida ascética; 3) traduziu os dilemas da privação material e exclusão social
da pobreza em lutas espirituais, adequando a teologia pentecostal a uma ideologia
subalterna.
Trataremos melhor desses aspectos mais à frente. O mais importante a se ter em
mente é de que esses são elementos constituem a experiência pentecostal há muito tempo,

23
Estamos considerando como perspectiva funcionalista os trabalhos de Willems (1967), D’Epinay (1970)
e Procopio Camargo (1973). Na perspectiva modernizante, Willems (1967) e Procopio Camargo (1973).
Na perspectiva materialista, Alves (1978) e Rolim (1985).

38
o que ajuda a explicar a capilaridade dessa religiosidade entre as camadas populares e o
seu crescimento exponencial nas últimas décadas.
Por outro lado, é preciso ter em conta de que foi também nesses anos que o
cenário evangélico passou por intensas transformações religiosas. Um dos principais
marcos dessa geração foi a Cruzada Nacional de Evangelização24. Ministério
interdenominacional voltado para a realização de eventos voltados para conversão e cura
divina em grandes concentrações, a Cruzada abriu caminhos para que o movimento
evangélico se popularizasse entre as massas urbanas, inclusive formando líderes que
tempos mais tarde seriam os fundadores das grandes denominações pentecostais nascidas
no período, a exemplo da Igreja do Evangelho Quadrangular, O Brasil Para Cristo, Deus
É Amor, Casa da Bênção e inúmeras outras de menor porte25.
As igrejas tradicionais também entraram na onda. Com o avanço pentecostal
acompanhando o declínio da hegemonia católica em praticamente todas as regiões
brasileiras, tanto as correntes protestantes históricas quanto o catolicismo devocional
passaram a ser direta ou indiretamente influenciadas pela revolução carismática do
pentecostalismo. Assim, muitos presbiterianos, batistas, metodistas, etc. passaram a
requer o “fogo de Pentecostes” em suas denominações, o que inevitavelmente trouxe um
clima de divisão interna em todas as igrejas históricas. O mesmo movimento, contudo,
dez com que parte do protestantismo histórico entrasse na onda pentecostal pelas
“denominações renovadas”, do mesmo modo que fez emergir, no lado católico, a sua
versão pentecostal a partir da Renovação Carismática (FRESTON, 1999).

24
O movimento chegou ao Brasil pelos missionários Harold Williams e o pastor peruano Jesús Harmínio
Vásques Ramos, em 1950 em São Paulo.
25
Dentre esses, o evangelista Manoel de Mello é, sem dúvida, um dos símbolos mais emblemáticos deste
período. Pernambucano de origem humilde, o evangelista percorreu o caminho dos migrantes nordestinos
em direção a São Paulo já no final dos anos 1940. Na cidade paulista, Manoel alternava os serviços
missionários com os trabalhos de pedreiro, quando conheceu o movimento da Cruzada Nacional de
Evangelização, em 1953. Anos mais tarde, ele inaugura o programa de rádio que daria o nome da sua
própria denominação: a Igreja Pentecostal O Brasil Para Cristo. Com “mensagens carregadas de palavras
de consolo às pessoas que, como ele, haviam se aventurado numa cidade grande como São Paulo”
(OLIVEIRA, 2015, p.39), Manoel de Mello provou sua habilidade de comunicador para além das tendas
religiosas, ao utilizar de uma oratória simples de forma persuasiva e envolvente, mas que também
combinava elementos de cultura popular ao publicizar canções evangélicas em ritmos regionais, sendo
portanto um pioneiro na popularização da música gospel nos meios de comunicação de massa (BLEDSOE,
2012; LIMA, 2012). Crítico do regime militar (1964-1985), Manoel de Mello tornou-se também uma das
vozes evangélicas mais ativas de resistência contra a tortura, chegando inclusive a representar o país em
fóruns internacionais como o Conselho Mundial de Igrejas para denunciar os abusos da ditadura; uma
postura muito diferente da adotada pela maior parte das lideranças protestantes e pentecostais do seu tempo,
que preferiram manter uma postura política passiva durante o período autoritário – quando não, por vezes,
até mesmo apoiá-lo.

39
A fragmentação das denominações multiplicou a oferta pentecostal, favorecendo
a sua expansão. Inclusive entre os setores da classe média urbana, que através de novas
denominações como a Igreja Pentecostal de Nova Vida, fundada pelo bispo Robert
McAlister nos anos 1960 na Zona Sul do Rio de Janeiro, mostravam que o crescimento
pentecostal daqueles anos também estava diversificando para os setores mais abastados
da sociedade. Aliás, será através dessa denominação no final dos anos 1970 que o
pentecostalismo conhecerá sua próxima fase expansionista no cenário religioso
brasileiro, que por meio de uma nova teologia associada a uma nova estrutura de
organização eclesiástica, desaguam naquilo que os cientistas sociais chamaram por
movimento neopentecostal.

1.1.3. DO EMPRESÁRIO À NOVA CLASSE TRABALHADORA: O


NEOPENTECOSTALISMO E AS NOVAS TRAMAS DA CIDADE

A terceira onda de expansão pentecostal, conhecida na literatura sociológica como


neopentecostalismo, é o período que se inicia ao final dos 1970, mas ganha força especial
a partir da década de 1980 e chega até os dias atuais. Do ponto de vista religioso, seu
marco inicial se dá no nascimento da Igreja Universal do Reino de Deus, em 1977 no Rio
de Janeiro, mas também se estende ao surgimento das denominações Igreja Internacional
da Graça de Deus (1980), Igreja Renascer em Cristo (1986), Comunidade Sara Nossa
Terra (1992), entre outros.
Ainda que mantenha certos traços das ondas anteriores, como as cruzadas
evangelísticas envolvendo milagres e exorcismos e a utilização do rádio e TV como
estratégias de comunicação, o neopentecostalismo é marcado por uma série de inovações.
A primeira delas está na ênfase teológica na “guerra contra o diabo”. Entendendo a
relação entre Deus e o diabo como uma disputa constante pelo controle do ser humano,
no neopentecostalismo todos os eventos da vida individual e coletiva passam a ser
interpretados pela ótica maniqueísta da “batalha espiritual”, no qual a atuação de uma
entidade ou de outra dependem da disposição e da atitude tomada pelos seres humanos.
Dessa forma, episódios corriqueiros da vida cotidiana como doenças e curas,
desempregos e contratações, casamentos e divórcios, são encarados como vitórias ou
derrotas do “inimigo”, cujo resultado está diretamente associado a “liberação” que um ou
mais indivíduos deram para Deus ou o diabo em determinada situação.
Consequentemente, essa religiosidade de tipo bélica elegeu como representantes
do “mal” as religiões afro-brasileiras, consideradas como demoníacas, o que explica em

40
certo sentido os inúmeros episódios recentes de intolerância religiosa e perseguição de
evangélicos contra esses grupos (MARIANO, 2014, p.122-123).
A segunda característica está na liberalização dos usos e costumes tradicionais.
Diferentemente dos pentecostais mais antigos, no qual os estilos de roupa e de
comportamento marcavam o distanciamento social dessa religião com as “coisas do
mundo”, é no neopentecostalismo que os crentes passam a flexibilizar essas doutrinas,
inclusive como estratégia para atrair os jovens e setores da classe média. Surge, assim, a
indústria cultural gospel: no qual artistas e produtores evangélicos das mais diferentes
áreas (arte, música, moda, revistas, cinema, shows, etc.) passam a criar um tipo específico
de consumo (material e simbólico) que procura se ajustar às tendências de mercado
mundano sem, no entanto, perder o lastro com a experiência religiosa (CUNHA, 2011).
Por fim, tem-se a tão comentada Teologia da Prosperidade: uma interpretação
religiosa mista de ética econômica que exalta o consumo e a riqueza como signos da
“vitória” e provas da predileção divina. Ou seja, ao contrário da ética protestante vista por
Weber (2004), em que o lucro resulta de uma conduta de vida metódica e cuja ética
confere valor religioso a quem é bem sucedido no trabalho secular; ou da ética pentecostal
clássica, em que uma “teologia da providência” confere a noção de que Deus provê
aqueles que permanecem fiéis nos momentos de necessidade, o neopentecostalismo prega
uma ética econômica voltada para o mundo, onde possuir e ascender são sinais de que
Deus, e não o diabo, agem em sua vida” (ALMEIDA, 2017, p.14).
É dessa maneira que entrecruzam-se as noções de guerra espiritual e teologia da
prosperidade, pois à medida que a riqueza é vista como uma insígnia do favor de Deus
sobre as pessoas, a pobreza é enxergada como seu retrato negativo, encarada como um
sinal de maldição demoníaca, fruto de algum “trabalho de macumba” ou “brecha de
pecado” de algum membro da família ou da comunidade.
Para ser liberto dessa maldição, contudo, a fé por si só não é suficiente: é
necessário que o crente esteja disposto a fazer sacrifícios materiais (como dízimos,
ofertas, votos etc.) bem como comprometer-se aos “desafios” propostos pela igreja (como
financiar seus programas de rádio e TV, comprar terrenos para novos locais de culto,
alugar novos prédios, etc.), unindo assim a um só tempo os anseios individuais de
enriquecimento com o projeto de expansão dessas igrejas.
Mais do que isso: tendo em vista que esse discurso religioso emerge entre os
períodos econômicos turbulentos das décadas de 1980 e 1990, momentos marcados pelo
desemprego em massa e pela expansão da informalidade, que tornavam a “viração” e o

41
trabalho autônomo os meios de subsistência mais comuns nas periferias, o
neopentecostalismo mostrava-se como uma opção de fé diametralmente oposta àquela
observada pelo outro movimento religioso que tomava as periferias paulistanas naquele
momento histórico, a Teologia da Libertação.
Ou seja, ao contrário da experiência dos movimentos sociais e das lutas operárias
que, naquele momento, aproveitavam-se da conjuntura política favorável a
democratização para reivindicar do Estado o direito a melhores condições de trabalho e
de vida – reivindicações, aliás, imbuídas de uma potente narrativa cristã à esquerda – o
neopentecostalismo, por sua vez, buscava um caminho diverso. Como? Individualizando
as perdas e ganhos materiais, ressignificando a falta de oportunidades econômicas pela
lente espiritual da “maldição demoníaca”, ao mesmo tempo em que estimulava os fiéis a
enxergar “porta fechada” do desemprego como uma “oportunidade que Deus abriu” para
um negócio próprio, gerando assim as “disposições empreendedoras de caráter
individualista” tão características do neopentecostalismo brasileiro (ALMEIDA, 2017,
p.15).
Com a chegada dos anos 2000, no entanto, a recuperação da economia nacional
naqueles anos significou uma importante mudança de rota nas condições de vida dos
brasileiros, sobretudo entre os mais pobres. Isso porque junto com a melhora dos
indicadores econômicos, associado com a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao
governo federal, uma série de novas políticas foram desenhadas com o objetivo de
diminuir pobreza extrema e uma melhor dinamização na redistribuição de renda em
âmbito nacional. Para isso, a estratégia adotada pelo governo enfocou na expansão do
emprego formal, no aumento do salário mínimo real, na ampliação de programas
assistenciais (como o Bolsa Família, entre outros), além de uma política que facilitasse o
acesso ao crédito (SINGER, 2012, p.67).
Tais mudanças atingiram especialmente a base da pirâmide social brasileira,
propiciando novos postos de trabalho e elevando sensivelmente a renda e o poder de
consumo de um grande contingente de brasileiros26. O otimismo que envolvera tamanhas
mudanças econômicas chegou a tal ponto que alguns estudiosos sugeriram que o que
estávamos a assistir na última década era o nascimento de uma nova classe média no país
e, que graças à emergência deste novo grupo, o Brasil teria finalmente alcançado a

26
Estima-se que entre os anos de 2004 e 2010 a renda per capita dessa parcela da população tenha subido
uma média de 3,4% ao ano, possibilitando com que aproximados 30 milhões de pessoas ultrapassassem a
linha de subsistência e adentrassem para o mercado de consumo (POCHMANN, 2012, p.16).

42
estratificação social dos países desenvolvidos, regiões onde as classes médias
representam a maior fração numérica da população (NERI, 2010; LAMOUNIER;
SOUZA, 2010).
Críticos dessa conceituação, contudo, surgiram de todos lados – e por diferentes
motivos. Em primeiro lugar, porque aquilo que estava sendo chamado de “nova classe
média” estava muito distante do estilo de vida da classe média tradicional, cuja
estabilidade econômica pode ser atestada por marcadores sociais como o alto padrão de
habitação e acesso a bens e serviços diferenciados, como escolas particulares, planos de
saúde, viagens, etc. (QUADROS, 2008; KERSTENETZKY; UCHÔA, 2013). Em
segundo lugar, porque os postos de trabalho abertos no período estavam concentrados no
setor ocupacional mais instável e com menor taxa de remuneração, o que diferenciava
dos padrões de ocupação típicos das camadas intermediárias dos países desenvolvidos
(POCHMANN, 2012; BRAGA, 2012). Em terceiro, porque mesmo com a melhora
econômica dessa população, a ausência de estímulos psicológicos e afetivos provenientes
das famílias tradicionais da classe média, essa nova fração de classe não apresentava as
pré-condições necessárias para integrar as redes de sociabilidade da classe média,
impossibilitando assim a sua identificação com este grupo (SOUZA, 2012; 2013).
A despeito do debate acadêmico suscitado por esses pontos, o que nos importa
salientar neste momento é que o aumento de renda que beneficiou as camadas mais pobres
durante os anos 2000, embora não tenha se traduzido em uma “nova classe média”,
ensejou numa considerável melhora nos padrões de consumo das classes trabalhadoras, o
que inevitavelmente provocou novas oportunidades e aspirações de vida, bem como uma
evidente sensação de ascensão social. E sendo os pobres os grandes beneficiários dessas
políticas, não é surpreendente que durante esses anos as igrejas neopentecostais tenham
sido um dos segmentos religiosos que mais cresceram no país: afinal, em que pese todas
as críticas a Teologia da Prosperidade, é fato inegável que os crentes, enfim, prosperaram.
Por outro lado, com o aumento do discurso do empreendedorismo ganhando cada
vez mais a opinião pública – incentivado, inclusive, por políticas públicas como a
formalização do Micro Empreendedor Individual (MEI) – o neopentecostalismo mais
uma vez se mostrou como uma potente ética econômica para atribuir sentido a essa nova
situação de trabalho, tendo em vista que algumas das principais denominações
evangélicas desse segmento, a exemplo da Universal, também passaram a oferecer cursos
para empresários empreendedores, com orientações contábeis, de legislação,
planejamento econômico, etc. (ALMEIDA, 2017).

43
Tudo isso para dizer que a geração pentecostal que dominou a nova expansão
religiosa encontra íntima afinidade com os tempos e movimentos do novo capitalismo
brasileiro. Desde os anos 1980 até os dias atuais, o neopentecostalismo tem anunciado
uma mensagem que apresenta íntima correspondência aos anseios de ascensão social das
camadas populares, sobretudo nas periferias urbanas. Seja nos momentos de recessão ou
nos ciclos de prosperidade, o discurso individualista de cunho espiritual, que encontra no
sacrifício religioso a tradução perfeita do seu próprio esforço pessoal, o
neopentecostalismo procura materializar nos ritos a racionalidade econômica inscrita em
sua teologia meritocrática.
Mas é preciso lembrar que o neopentecostalismo é apenas uma das vertentes da
grande e diversa religiosidade pentecostal, um movimento que mesmo com as suas
diferentes “ondas” emergindo em diferentes períodos históricos, continua a atuar e se
expandir simultaneamente seja pelo pentecostalismo clássico, seja pelas demais
correntes. O mais interessante a se observar, porém, é que em todas essas fases é possível
detectar certos traços de aproximação com as necessidades experienciadas pelo cotidiano
da população, e de que nos diversos momentos econômicos e sociais do país ela buscou
ajustar os seus imperativos de fé a realidade social desses crentes.
Em linhas gerais, notamos que essas semelhanças operam em quatro pontos
principais:
1. O pentecostalismo confere um sentido teológico para a condição de classe:
seja pela teologia da providência (pentecostalismo clássico) ou pela teologia da
prosperidade (neopentecostalismo), a religião pentecostal procura atribuir um
sentido espiritual para a condição econômica. A diferença é que, no primeiro caso,
a pobreza é vista como uma parte da jornada do crente; no segundo, como efeito
de maldição.
2. A salvação é individual: diferentemente de outras religiosidades, o
pentecostalismo acredita que o ingresso para a vida eterna está disponível a
qualquer ser humano independentemente de sua etnia, gênero, escolaridade ou
condição social. Em contrapartida, essa depende prioritariamente da adesão e
comprometimento daquele indivíduo em função de sua própria salvação.
3. O sacrifício pessoal é pré-requisito do favor divino: nesse sentido, uma das
exigências sacrais para salvação pentecostal é o sacrifício pessoal, entendido
como o esforço de fé em que o indivíduo deliberadamente abre mão de algo que
lhe seja valioso em favor da “nova vida em Cristo”. No pentecostalismo clássico,

44
a ênfase do sacrifício está na renúncia do pecado e das coisas mundanas, ao passo
que no neopentecostalismo o enfoque recai sobre os votos monetários.
4. A igreja é o local onde Deus determina a benção: embora a salvação seja
individual, a comunidade religiosa exerce um papel fundamental na vida do crente
pentecostal. Seja pelos laços pessoais que geram vínculos de sociabilidade e de
ajuda mútua, seja pela doutrina que orienta a conduta dos indivíduos, seja pelos
ritos que determinam a “vitória” do crente em alguma situação específica, a igreja
pentecostal oferece, em sua multiplicidade religiosa, fatores sociais e terapêuticos
que ajudam os crentes a não apenas interpretar suas questões cotidianas bem como
enfrenta-las por meio da fé compartilhada.

Com esses pontos acerca da religiosidade pentecostal em vista, nossa pesquisa


buscou compreender como essa concepção religiosa responde aos imperativos
econômicos e sociais das populações periféricas, e de que maneiras elas buscam
desenvolver uma racionalidade pela qual as necessidades de classe são justificadas pela
lente religiosa. Para isso, cumpre-nos, portanto, observar a experiência pentecostal na
perspectiva dos próprios evangélicos moradores de periferia.

45
2. COSTURANDO SENTIDOS: AS LINHAS ENTRE EXPERIÊNCIA E
CRENÇA

Na seção anterior, vimos brevemente como o pentecostalismo está inserido nas


camadas populares desde as suas origens até os dias atuais. Acompanhando os fluxos e
transformações sociais dos períodos, observamos como essa religiosidade nascida entre
pobres e periféricos se desenvolveu em simultâneo a processos históricos mais amplos, a
exemplo da urbanização e as migrações internas, bem como as novas questões sociais em
torno das novas relações de trabalho e as novas redes de sociabilidade e de identificação
decorrentes.
Uma pergunta, contudo, permanece em aberto: admitindo que o pentecostalismo
é uma religião “de pobres para pobres”, o que essa religiosidade nos ajuda a
compreender sobre a visão e concepção de mundo dos moradores de periferias
paulistanas? Ou, dito de outro modo: o que a experiência de vida dos evangélicos na
periferia nos esclarece sobre o universo moral dos pobres e suas justificativas para uma
dada condição de classe?
Perguntas difíceis exigem respostas complexas, sobretudo quando se tem em
mente que se trata de estabelecer aproximações mútuas entre campos sociais distintos e
autônomos, que embora tenham formações culturais específicas, encontram entre si
afinidades e tensões, contradições e interdependências.
Na busca por caminhos que respondam a essas questões, nossa pesquisa é fruto
da análise de 21 entrevistas em profundidade, feita com evangélicos pentecostais27
moradores de periferias paulistanas. Utilizando como base de dados as transcrições da
pesquisa Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo28 (2017) – realizada
pela Fundação Perseu Abramo no final de 2016 com eleitores da capital paulista com
renda familiar de até 5 salários mínimos e que não votaram no Partido dos Trabalhadores
na eleição municipal daquele ano –, a pesquisa buscou compreender, para além do

27
Embora a pesquisa na divulgação tenha chamado equivocadamente todos os entrevistados evangélicos
de “neopentecostais”, muitos pesquisadores do tema – incluindo Ronaldo Almeida (Unicamp), Regina
Novaes (UFRJ) e Edin Abmanssur (PUC-SP) – criticaram o reducionismo da categoria aplicada na
pesquisa, uma vez que o termo aparentemente englobaria as três ondas de expansão pentecostais em uma
única classificação. Ciente dessa informação, reutilizo as entrevistas incorporando a recomendação dos
pesquisadores supracitados.
28
Tive oportunidade de colaborar na participação dessa pesquisa, na etapa de coleta de dados, visitando em
domicílio e entrevistando alguns dos pesquisados, o que me permite dizer que mesmo que este trabalho
pretenda ser uma análise sistemática das transcrições, inevitavelmente ele também é fruto de algumas
incursões etnográficas.

46
interesse político, “os elementos que têm formado a visão de mundo e o imaginário social
nas periferias da cidade de São Paulo” (FPA, 2017). Em vista disso, as entrevistas
abordaram uma série de assuntos relacionados ao universo cotidiano dos entrevistados
(como percepções relacionadas ao bairro, família, escola, trabalho e empreendedorismo,
lazer, consumo etc.), além de percepções gerais sobre política, religião, gênero e raça,
direitos humanos, dentre outros.
Dado o amplo leque de assuntos e abordagens das entrevistas, as transcrições se
mostraram um excelente material de análise por dois motivos. De um lado, porque elas
iluminam certas experiências comuns que esses moradores de periferia relatam sobre o
curso de suas vidas, presentes desde os registros familiares até os expedientes
mobilizados no cotidiano para sobreviver e ganhar a vida; de outro, porque a partir delas
era possível delinear certos elementos da concepção de mundo desses indivíduos, pelo
qual derivam-se certas justificativas e crenças compartilhadas, capazes de atribuir tanto
um sentido moral como uma certa conduta ética aplicáveis para determinadas situações
de classe ou modos de vida.
É dessa possível convergência entre as experiências e crenças que surgiu a
inspiração para aquilo que chamamos aqui, alegoricamente, de costura de sentidos.
Assumindo a tarefa de apontar os possíveis alinhamentos entre o “tecido” da experiência
de classe e o “tecido” das crenças e práticas religiosas, preparamos um roteiro de
investigação no qual fosse possível “costurar” a percepção dos entrevistados acerca de
suas formas de viver, expressar e julgar, e de que modo elas esclarecem (ou não) a
pertinência de análise acerca da relação ativa entre religião e classe social no Brasil,
notadamente na dimensão estudada entre evangélicos pentecostais e moradores de
periferia em São Paulo.
Para isso, algumas perguntas orientaram a nossa “costura” metodológica:
 A amostra selecionada tem relevância para o objetivo da pesquisa?
 O material encontrado na amostra apresenta conteúdo consistente para a análise
pretendida?
 De que maneira o material analisado apresenta a percepção dos entrevistados
acerca de seus valores e modos de vida e de que forma elas tecem possíveis
influências entre as experiências de classe e ação religiosa?
À luz dessas questões, procuramos desenvolver uma metodologia de pesquisa
inspirada pela técnica de sistematização cunhada por Anselm Strauss e Juliet Corbin

47
(2008) como Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), metodologia da qual se procura
estruturar as ações e os pensamentos mobilizados a partir das falas dos interlocutores
pesquisados, de modo a compreender tanto as suas relações e conexões, bem como
entender e interpretar seus nexos de significados e percepções.
Para tanto, o processo de análise da TFD é separado por três etapas de
sistematização: coleta de dados, codificação/categorização e redação da teoria. Elas
organizam a pesquisa desde o armazenamento das informações iniciais até o diagnóstico
final, passando pela hierarquização das categorias de análise e as correlações
estabelecidas entre si.
Em nossos termos, essas etapas de pesquisa foram traduzidas por meio de três
processos de leitura:
 Processo de leitura externa: onde a apreensão do material se dá na forma de
explorar as informações gerais da amostra e suas principais recorrências
quantitativas, definindo o molde de análise da pesquisa;
 Processo de leitura interna: etapa de imersão nos dados, quando as
recorrências são observadas de acordo com a ênfase dada pelos pesquisados,
categorizando os pontos de vista dos entrevistados e as linhas de sentido entre
as entrevistas;
 Processo de leitura transversal: quando a investigação chega na síntese das
vivências e percepções dos entrevistados, estabelecendo as principais conexões
de significado entre a experiência de classe e as representações de crenças e
valores religiosos, costurando os sentidos entre as trajetórias das periferias
paulistanas e as vivências religiosas em São Paulo.
De modo a compreender como essas etapas foram úteis ao processo analítico,
cumpre-nos detalhar cada uma delas a seguir:

2.1. PROCESSO DE LEITURA EXTERNA: O MOLDE ANALÍTICO

Tendo selecionado a base de dados para a investigação, a primeira tarefa foi


examinar de que maneira a amostra escolhida tinha relevância para o objetivo da pesquisa.
Transformando em pergunta: quais aspectos os relatos das pessoas entrevistadas têm a
contribuir para a análise da relação entre evangélicos e as periferias de São Paulo?

48
Em vista disso, a primeira parte do processo de investigação se concentrou em
explorar algumas informações preliminares, de modo a saber se o perfil socioeconômico
e religioso dos entrevistados atendia aos critérios iniciais da investigação e sob quais
condições29.
Para tanto, chamamos essa fase de processo de leitura externa, uma vez que essa
primeira leitura do material se deu “por fora” das entrevistas e buscou apenas delinear
alguns dados gerais sobre a amostra pesquisada e sobre quais assuntos o seu conteúdo
transcreve.
Nesse sentido, a tabela abaixo reúne algumas informações gerais dos
entrevistados:
Tabela 2 – Perfil socioeconômico dos entrevistados
Renda
Nome Bairro Zona Cor Idade Escolaridade Profissão
Familiar
Superior
1 Clara Heliópolis Sul Branca 30 Dona de casa Até 2 SM
Completo
Superior Representante
2 Daniel Itaquera Leste Branco 37 2-5 SM
Completo Comercial
Jardim Superior
3 Fernanda Sul Parda 26 Recepcionista 2-5 SM
Angela Incompleto
Jardim Três Médio
4 Rosa Leste Branca 39 Manicure 2-5 SM
Marias Completo
Médio Auxiliar de
5 Adilson Grajaú Sul Pardo 27 2-5 SM
Completo Produção
Capão Superior Operadora
6 Tássia Sul Branca 36 Até 2 SM
Redondo Incompleto telemarketing
Vila Santa Médio
7 José Sul Negro 19 Ajudante geral 2-5 SM
Catarina Completo
Médio
8 Odilon Vila Carioca Sul Negro 21 Desempregado Até 2 SM
Completo
São Miguel Médio
9 Clarissa Leste Branca 48 Dona de casa 2-5 SM
Paulista Incompleto
Cidade A.E. Médio
10 Ana Leste Parda 21 Desempregada Até 2 SM
Carvalho Completo
Médio
11 Laura Casa Verde Norte Parda 41 Dona de casa Até 2 SM
Incompleto
Jardim Agente de
12 Valéria Norte Negra 42 Pós-graduação Até 2 SM
Brasília saúde
Vila das Médio Auxiliar de
13 Felipe Sul Pardo 34 2-5 SM
Belezas Completo Escritório

29
Seguindo os passos de Strauss e Corbin (2008), esse é o momento da “coleta de dados”, fase na qual a
pesquisa suspende o trabalho teórico para se aproximar do campo, esboçando assim os primeiros contornos
do material empírico.

49
Freguesia do Médio Auxiliar de
14 Tânia Norte Parda 21 2-5 SM
Ó Incompleto Produção
Superior
15 Afonso Jardim Ricão Oeste Branco 39 Taxista 2-5 SM
Incompleto
Vila Médio Estudante
16 Letícia Leste Negra 18 2-5 SM
Nhocuné Completo Enfermagem
Parque das Fundamental
17 Jônatas Leste Branco 47 Encanador Até 2 SM
Flores Incompleto
Vila São Médio
18 Marcos Leste Branco 19 Ajudante geral Até 2 SM
Francisco Incompleto
Médio
19 Maria Vila Sílvia Leste Branca 44 Dona de casa Até 2 SM
Completo
Jardim Médio
20 Valentina Norte Negra 16 Estudante Até 2 SM
Primavera Completo
Fundamental
21 Edileusa COHAB 4 Leste Branca 49 Autônoma Até 2 SM
Incompleto
Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

A amostra dos 21 entrevistados é composta de 13 mulheres e 8 homens, cuja


média de idade é de 32 anos, sendo a mais velha, 49, e a mais nova, 16. Sobre território,
são em sua maioria moradores da Zona Leste (9), seguida pela Zona Sul (7), Zona Norte
(4) e Zona Oeste (1). No que se refere a cor, a maior parte dos entrevistados se declarou
branca (10 respostas), enquanto 6 entrevistados se autodeclararam pardos e 5 negros.
Sobre escolaridade, 9 dos entrevistados afirmaram ter Ensino Médio Completo, enquanto
4 ainda não concluíram; 2 possuem Superior Completo e um possui pós-graduação; dois
entrevistados afirmaram ainda não ter terminado o ensino básico. No que tange à
trabalho, as profissões são variadas: manicures, taxistas, auxiliares de escritório,
operadores de telemarketing etc.; a maioria na informalidade. Sobre a renda familiar,
embora a média dos rendimentos mensais estejam em R$ 2.115,24 (em 2016, seria o
equivalente a quase três salários mínimos), quando observados a mediana e a moda, é
possível notar uma maior incidência dos entrevistados para uma renda de até 2 salários
mínimos. Para encerrar, nos tipos de moradia, 11 entrevistados declararam-se moradores
de comunidade/favela, enquanto outros 10 afirmaram morar em bairros periféricos. Os
gráficos e a tabela abaixo resumem algumas dessas informações:

Gráfico 4 – Sexo dos entrevistados

50
8

13

Masculino Feminino

Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

Gráfico 5 – Perfil racial dos entrevistados

10

Branco Negro Pardo

Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

Gráfico 6 – Perfil escolar dos entrevistados

51
1 2
2

4
3

Ensino fundamental incompleto Ensino médio incompleto


Ensino médio completo Ensino superior incompleto
Ensino superior incompleto Pós-graduação

Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

Gráfico 7 – Perfil de moradia dos entrevistados

10

11

Comunidade Periferia

Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

Tabela 3 – Idade e renda familiar dos entrevistados


Idade Renda Familiar
Cálculo
(anos) (R$)
Média 32,10 2.115,24
Mediana 34,00 1.980,00
Moda 21,00 1.500,00
Mínimo 16,00 1.300,00
Máximo 49,00 3.500,00
Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

52
No que tange à religião, os entrevistados afirmaram pertencer as denominações
pentecostais dos mais diferentes tipos, do pentecostalismo clássico ao movimento
neopentecostal, inclusive com algumas denominações do protestantismo histórico
pertencentes a renovação pentecostal.
Separados por denominação, é possível notar uma proeminência dos
assembleianos (5 entrevistados), seguida pelos membros da Congregação Cristã no
Brasil (2 entrevistados), o que denota a força do pentecostalismo clássico mesmo após
as ondas sucessoras. Agregando-os segundo as “três ondas de expansão do
pentecostalismo”30, 7 dos entrevistados estão tipificados no movimento pentecostal
clássico, 5 no pentecostalismo neoclássico/independente, 3 no protestantismo renovado
e 2 eram neopentecostais (Gráfico 8). Cumpre observar que 3 dos entrevistados
responderam ser evangélicos, mas sem pertencer a nenhuma denominação em específico,
um fenômeno que as estatísticas oficiais têm procurado categorizar nos últimos anos
como “Evangélicos Não Determinados”.
A Tabela 4 e o Gráfico 8 reúne as informações religiosas dadas pelos
entrevistados:

Tabela 4 – Perfil denominacional dos entrevistados


Nome Denominação Tipo
1 Clara Comunhão e Graça Neopentecostal
2 Daniel Assembleia de Deus Pentecostal clássico
3 Fernanda Assembleia de Deus Pentecostal clássico
4 Rosa Evangélica S/R
5 Adilson Evangélica S/R
6 Tássia Universal do Reino de Deus Neopentecostal
7 José Evangélica S/R
8 Odilon Assembleia de Deus Pentecostal clássico
9 Clarissa Adventista da Promessa Protestante renovada
10 Ana Batista Renovada Protestante renovada
11 Laura Incandescente Luz Pentecostal neoclássico/independente
12 Valéria Congregação Cristã no Brasil Pentecostal clássico
13 Felipe Presbiteriana Renovada Protestante renovada
14 Tânia Congregação Cristã no Brasil Pentecostal clássico
15 Afonso Tabernáculo do Senhor Pentecostal neoclássico/independente

30
Para saber mais sobre as diferentes vertentes do pentecostalismo, ver Freston (1994) e Mariano (1996).

53
16 Letícia Assembleia de Deus Pentecostal clássico
17 Jônatas Igreja Visão da Fé Pentecostal neoclássico/independente
18 Marcos Templo da Adoração Pentecostal neoclássico/independente
19 Maria Assembleia de Deus Pentecostal clássico
20 Valentina Igreja Formosa de Cristo Pentecostal neoclássico/independente
21 Edileusa Comunidade Aviva-nos Pentecostal neoclássico/independente
Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

Gráfico 8 – Perfil denominacional dos entrevistados por “onda”

3 2

3
7

Neopentecostal Pentecostal clássico


Pentecostal neoclássico/independente Protestante renovada
NR

Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

Outro dado que levantamos nessa fase preliminar diz respeito ao tempo que os
entrevistados têm de proximidade com a religião. Segundo o levantamento, a maior parte
das pessoas frequenta a igreja desde a infância, os conhecidos “evangélicos de berço”,
que totalizaram 10 respostas, seguido pelos fiéis que conheceram a fé na adolescência (5
respostas), 4 que conheceram depois do casamento e 2 que tiveram envolvimento com a
religião há pouco tempo (Gráfico 9). É possível observar também que essa aproximação
vem sobretudo sob influência dos familiares (15 respostas), focada especialmente na
figura da a mãe. Amigos, vizinhos e cônjuge somaram 2 respostas cada (Gráfico 10).

Tabela 5 – Fases de aproximação da igreja


Fase que começou a Conheceu a
Nome Idade Denominação
frequentar igreja por quem
1 Clara 30 Desde a infância Família Comunhão e Graça
2 Daniel 37 Adolescência Vizinhos Assembleia de Deus

54
3 Fernanda 26 Pouco tempo Família Assembleia de Deus
4 Rosa 39 Casada Cônjuge Evangélica
5 Adilson 27 Adolescência Amigos Evangélica
6 Tássia 36 Casada Família Universal do Reino de Deus
7 José 19 Desde a infância Família Evangélica
8 Odilon 21 Desde a infância Família Assembleia de Deus
9 Clarissa 48 Desde a infância Família Adventista da Promessa
10 Ana 21 Desde a infância Família Batista Nacional
11 Laura 41 Pouco tempo Vizinhos Incandescente Luz
Congregação Cristã no
12 Valéria 42 Adolescência Família
Brasil
13 Felipe 34 Adolescência Amigos Presbiteriana Renovada
Congregação Cristã no
14 Tânia 21 Casada Cônjuge
Brasil
15 Afonso 39 Desde a infância Família Tabernáculo do Senhor
16 Letícia 18 Adolescência Família Assembleia de Deus
17 Jônatas 47 Desde a infância Família Igreja Visão da Fé
18 Marcos 19 Desde a infância Família Templo da Adoração
19 Maria 44 Desde a infância Família Assembleia de Deus
20 Valentina 16 Desde a infância Família Igreja Formosa de Cristo
21 Edileusa 49 Casada Família Comunidade Aviva-nos
Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

Gráfico 9 – Há quanto tempo você frequenta a igreja? (Resposta espontâneo)


12

10
10

6
5
4
4

2
2

0
Desde a infância Adolescência Casada Pouco tempo

Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

Gráfico 10 – Como você conheceu a religião? (Resposta espontâneo)

55
16 15

14

12

10

4
2 2 2
2

0
Família Amigos Vizinhos Cônjuge

Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

Com os perfis socioeconômicos apresentados e as pertenças religiosas


delineadas, foi possível ter uma clareza maior sobre características gerais da amostra e
suas dimensões, de modo que os dados preliminares sobre renda e escolaridade, gênero
e idade, moradia e denominação religiosa confirmam a relevância do material em análise.
Em linhas gerais, a amostra selecionada mostra que os entrevistados são
evangélicos pentecostais moradores de periferia, não-brancos, concentrados em
comunidades, em sua maioria com renda de até dois salários mínimos, cuja média de
idade acima dos 30 anos revela uma longa jornada de convívio com a igreja evangélica,
uma vez que a maior parte da amostra participa ativamente do universo religioso desde
a infância, influência vinda principalmente por familiares.
Os pontos de vista menos frequentes também enriqueceram a análise. Tendo em
vista a amplitude geracional da amostra alta (a entrevistada mais jovem tinha 16 anos
enquanto a mais velha tinha 49 anos) e a considerar as diferentes posições e situações
que os entrevistados se encontram, o material selecionado apresenta um tecido rico em
pontos de vista, que ajustado adequadamente a um molde analítico poderá ser capaz de
vestir a nossa problemática em torno das influências de sentido entre a posição social e
a vida religiosa.
Após organizar as informações iniciais da amostra, a fase seguinte consistiu em
examinar o conteúdo das transcrições. Strauss e Corbin (2008) chamam essa etapa da
pesquisa como processo de codificação aberta, momento em que o processo analítico
identifica nos dados coletados os conceitos, e suas propriedades e dimensões

56
(STRAUSS; CORBIN, 2008, p.104). Esse processo envolve as atividades de examinar,
comparar, conceituar e categorizar os dados sumarizados em uma linha ou códigos e
categorias (PINTO, 2012).
Chamamos essa linha de códigos em nossa pesquisa de molde analítico. Tendo
em vista que a pesquisa aborda uma grande variedade de assuntos e abordagens,
selecionamos por meio dessa leitura “de fora” as recorrências de palavras usadas pelos
entrevistados e como eram aplicadas em seus graus de aproximação. Durante esse
processo, utilizamos o auxílio do software de análise de texto Iramuteq para contabilizar
tanto as frequências das palavras bem como elas se relacionam entre as frases.
Dessa forma, ao gerar um arquivo com todas as transcrições das entrevistas e
excluindo as falas dos entrevistadores, o software contabilizou 368.859 palavras nas
1.180 páginas analisadas. Dentre elas, nota-se que as cinco palavras com maior
incidência nas entrevistas foram “Casa”, “Trabalhar”, “Igreja”, “Família” e “Escola”
(Tabela 3).

Tabela 6 – Ranking das palavras mais recorrentes utilizadas pelos entrevistados


# Palavra Recorrência
1 Casa 1.023

2 Trabalhar 842

3 Igreja 739

4 Família 702
5 Escola 661
Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

Para a ilustrar a frequência dos termos utilizados pelos entrevistados, foram


inseridos os 100 termos mais recorrentes nas transcrições em uma nuvem de palavras.
Os tamanhos diferem de acordo com a quantidade de palavras repetidas, conforme ilustra
o gráfico a seguir:

Gráfico 10 – Nuvem das palavras mais recorrentes utilizadas pelos entrevistados

57
Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

Ainda utilizando as ferramentas do Iramuteq, a pesquisa procurou analisar em


qual grau de aproximação estão as palavras mais recorrentes que os entrevistados
utilizaram, o que nos ajudou a desenhar os principais assuntos abordados entre as
entrevistas. Conforma ilustra o Gráfico 5, as linhas que relacionam as palavras são
proporcionais a frequência com que os entrevistados as inseriram dentro das frases.

Gráfico 11 – Aproximação e similitude geral das palavras

58
Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

Com o intuito de melhor compreender como esses assuntos nos servem como um
panorama geral das transcrições, o gráfico de similitude nos é útil para constatar ao
menos os cinco termos-chave durante as entrevistas, a saber: i) casa: que englobam os
conteúdos relacionados à família quer seja como elemento autobiográfico (trajetórias,
lembranças, vivências, etc.) quer seja como estrutura afetiva (comentários sobre o
convívio entre pai, mãe, filhos e parentes); ii) trabalho: com temas associados a vida
material (sustento e trabalho; dinheiro e condições financeiras etc.); iii) escola: que
incluem temas correlatos a escola, estudo e formação; iv) governo: sobre falas que
envolvem a percepção sobre Estado, governo e políticas públicas; e, finalmente, iv)
igreja: que indicam as relações desde as crenças religiosas às práticas da religião
(Gráfico 6).

59
Gráfico 12 – Codificação inicial das palavras por palavras-chave

Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

Tendo concluído o desenho geral das entrevistas, o processo de leitura externa nos
ajudou a dar forma para as principais recorrências do material e como suas conexões entre
si. Dessa forma, essa organização dos termos-chave nos serviu como uma espécie de
molde analítico para orientar a leitura do material, de modo que, na etapa seguinte, cada
entrevista passou a ser analisada segundo de acordo com esses “cinco pontos de atenção”
(Gráfico 13).

Gráfico 13 – O molde analítico

60
Fonte: Pesquisa FPA (2017); elaboração própria

Definido o molde analítico das entrevistas, o processo de leitura externa mostrou-


se relevante por demonstrar a pertinência do material analisado para os objetivos da
pesquisa, de um lado, por mostrar os aspectos gerais dos interlocutores (“quem fala”) e,
de outro, por apresentar como os assuntos mais recorrentes das entrevistas (“do que fala”)
denotam alguma importância de análise para a nossa reflexão.
Na etapa seguinte, veremos como a leitura “de fora” do material foi fundamental
para criar um roteiro de observação das trajetórias, opiniões e julgamentos dos
entrevistados “por dentro” do seu contexto de fala, dando forma, assim, ao processo de
leitura interna da pesquisa.

2.2. PROCESSO DE LEITURA INTERNA: LINHAS DE SENTIDO E PONTOS DE


VISTA

Finalizada a leitura externa do material, a segunda fase da investigação consistiu


em analisar o conteúdo propriamente dito das entrevistas. Isto é, reconhecendo que o
material apresenta conteúdo relevante para o objetivo da pesquisa, de que maneira as falas
dos pesquisados expressam suas as vivências e percepções de mundo e sob quais aspectos
essas experiências apontam a relação dos sentidos entre religião e classe social?
Para responder essa tarefa, a investigação se encaminhou para o processo de
leitura interna do material estudado. Nessa fase, iniciamos um processo de leitura integral

61
das entrevistas examinando cada entrevista de forma pormenorizada, isto é, uma leitura
do texto respeitando o seu contexto de fala. Atentando para o que cada entrevista poderia
informar acerca dos cinco temas-chave, marcamos os pontos e trechos biográficos que
tinham interesse em potencial para o nosso objeto de pesquisa, buscando apresentar não
apenas “quem” ou “o que” se fala, mas também “como” se fala.
Dessa forma, o molde analítico nos ajudou a examinar metodologicamente todas
as transcrições percorrendo o seguinte roteiro:

 Casa: o que o entrevistado relatou sobre os assuntos referentes à família? Quais


as lembranças que o entrevistado tem sobre a família? Como é a relação atual
dele com os parentes?
 Trabalho: o entrevistado trabalha? Em qual profissão? Quais empregos ele já
trabalhou? Sobre o atual trabalho, ele gosta do que faz? O salário é suficiente
para pagar as contas? Se não estiver trabalhando, como tem sido a experiência
de procurar emprego? Faz bicos para complementar renda? Tem desejo de abrir
um negócio próprio?
 Escola: o entrevistado estudou até qual ano? Quais as lembranças que ele tem
dos tempos de escola? Qual a importância dos estudos (ou falta dele) para o
pesquisado?
 Governo: como o entrevistado enxerga a importância do governo na vida das
pessoas? Ele utiliza ou já utilizou algum serviço público ou acessa/acessou
algum benefício social do governo? Qual a opinião dele sobre programas
sociais como o Bolsa Família e as cotas raciais?
 Igreja: qual a importância da religião na vida do entrevistado? Há quanto
tempo ele se converteu? Como ele conheceu a igreja? Qual o envolvimento
dele com a comunidade religiosa?

Com essas perguntas em vista, iniciamos o processo de leitura integral das


entrevistas. Elas nos deram uma visão minuciosa das ideias, sentimentos, intenções e
contextos da vida pessoal, familiar e religiosa de cada um dos entrevistados, o que nos
forneceu uma visão profunda acerca do material de pesquisa e o seu potencial analítico.
Terminada a leitura integral da amostra, selecionamos os trechos que captassem a
visão dos entrevistados acerca dos assuntos-chave, e os condensamos em um novo

62
arquivo. Chamamos essa parte do processo de seleção de relatórios de pontos de vista,
o que na prática tornou-se uma espécie de fichamento contendo um resumo das
experiências relatadas pelos entrevistados junto as informações relevantes de cada
interlocutor31.
A produção desses relatórios nos serviu como um importante material de consulta
durante todo o processo de pesquisa, mas também nos foi útil para observar como os
assuntos se entrecruzavam (casa-escola; trabalho-igreja; governo-casa; escola-igreja
etc.), de modo que essas intersecções nos ofereceram algumas pistas acerca dos padrões
de narrativas encontrados entre as entrevistas.
Em nossa investigação, denominamos esses padrões narrativos como linhas de
sentido, tendo em vista que tanto os temas abordados externavam conexões de
significados para os interlocutores bem como as próprias falas dos pesquisados
apresentavam traços de semelhança entre si (Gráfico 7).

Gráfico 14 – O processo de leitura interna

Fonte: Elaboração própria

31
Strauss e Corbin (2008) chamam essa etapa da pesquisa como processo de codificação, momento em que
os dados são analisados de maneira aprofundada, entendendo também questões emocionais, atitudes,
cenários, relatos, encadeamentos, como também os silêncios do participante (STRAUSS; CORBIN, 2008,
p.115).

63
De modo a entender especificamente como esses pontos de vista individuais se
relacionavam com as linhas de sentido entre os interlocutores, geramos uma nova
organização dos dados, essa agora comparando exclusivamente as recorrências e ênfases
apresentadas pelos entrevistados.
Neste novo formato, extraímos as falas do seu contexto original para serem
inseridas em um novo documento, do qual se agrupou os registros de acordo com a linha
dos assuntos (familiar, econômico, cultural, político e religioso). Dessa forma, foi
possível visualizar, de forma comparada, as semelhanças dos relatos dados pelos
entrevistados e suas diferenças de perspectiva, organizando assim os primeiros contornos
das vivências e percepções32 em comum dos pesquisados sobre os temas em análise
(Gráfico 15).

Gráfico 15 – Pontos de vista e linhas de sentido

Fonte: Elaboração própria

32
O que estamos aqui definindo como vivências e percepções se inspira naquilo que Thompson (1981)
preconizara na dialética entre a experiência vivida e a experiência percebida. Segundo o autor, a distinção
entre essas duas instâncias estaria no fato de que a experiência vivida seria aquela determinada
objetivamente na vivência da realidade social, ao passo que a experiência percebida diz respeito ao conjunto
de percepções herdadas, partilhadas e institucionalizadas por meio dos valores, costumes e do senso
comum. Há nessa relação entre as experiências a possibilidade da construção de identidades e interesses
organizados de maneira compartilhada. Ou, como afirma Thompson: “Os valores não são ‘pensados’, nem
‘chamados’; são vividos, e surgem dentro do mesmo vínculo com a vida material e as relações materiais
em que surgem nossas ideias. São as normas, regras, expectativas etc. necessárias e aprendidas (e
‘aprendidas’ no sentimento) no ‘habitus’ de viver; e aprendidas, em primeiro lugar, na família, no trabalho
e na comunidade imediata. Sem esse aprendizado a vida social não poderia ser mantida e toda produção
cessaria” (THOMPSON, 1981, p.194)

64
Insistindo na analogia da costura, este é o momento de alinhavar o material de
análise com os objetivos da pesquisa. Isto é, enquanto na leitura externa exploramos um
olhar “de fora” o material analisado, observando os temas centrais abordados pelos
interlocutores como um molde analítico para as entrevistas, e a leitura interna foi o
momento de imergir nos dados transcritos como forma de entender “por dentro” das
entrevistas, categorizando os pontos de vista dos entrevistados e as linhas de sentido entre
as vivências e percepções desenvolvidas por eles, é na etapa seguinte que chegamos “ao
centro” da investigação; momento em que a relação entre as categorias com as
subcategorias aponta encadeamentos lógicos entre as vivências de classe e as
representações religiosas, de um lado, e as percepções religiosas presentes nos
agenciamentos da vida cotidiana.
É o que chamamos de processo de leitura transversal. Entendendo-o como o
momento da pesquisa dedicado a organizar, a partir das vivências e percepções dos
entrevistados, os principais vínculos sociais entre as condições da vida material e os
estímulos da vida religiosa, esta é a etapa onde as costuras metodológicas buscam
intermediar os processos de leitura anteriores (“quem fala” + “do que falam” + “como
falam”) lançando mão de uma leitura final, essa costurando a experiência dos
entrevistados às reflexões sociológicas acerca das “afinidades eletivas” entre religião e
classe social, com enfoque na relação entre evangélicos e periferias de São Paulo.

2.3. PROCESSO DE LEITURA TRANSVERSAL: A COSTURA ENTRE


RELIGIÃO E CLASSE

Concluída a leitura do material e estabelecido os pontos e linhas dentro de análise,


chega-se ao momento da apresentação dos resultados de pesquisa33. Em nossa pesquisa,
denominamos essa parte do processo de leitura transversal, tendo em vista que foi
através da combinação entre as leituras anteriores que elaboramos um corpus analítico

33
Segundo Strauss e Corbin (2008), esse é o momento da pesquisa em que se reduz os dados de muitos
casos em conceitos e os refina em conjuntos de declarações relacionais que podem ser usados para explicar
o que está acontecendo, formando aquilo que os autores designam por todo explanatório. O todo
explanatório seria, neste sentido, uma narrativa produzida pela categoria central da pesquisa, que norteará
a investigação e integrará as subcategorias dentro de um conjunto lógico. Dessa forma, procuramos
sintetizar os resultados da nossa análise dentro das quatro categorias principais e, assim, norteamos a
produção de nossas conclusões (STRAUSS; CORBIN, 2008, p.145).

65
para compreender as influências recíprocas entre o fenômeno religioso evangélico e os
valores e práticas das periferias paulistanas.
Valendo-se das falas que evidenciam as vivências e percepções dos entrevistados,
procuramos “costurar” um quadro de referências que trouxesse à tona trajetórias,
opiniões e sentimentos dos pesquisados, de forma a captar não apenas o contexto social
que esses evangélicos de periferia estão inseridos como também demonstrar de que
maneira a identificação com a fé religiosa é capaz de conduzir a estímulos morais
altamente eficazes para lidar com o cotidiano dessa população.
Separando os destaques dos pesquisados em três níveis de vivências e percepções
– individual, familiar e comunitário – procuramos mostrar como os relatos dos
evangélicos entrevistados revelam correspondências de sentido entre os imperativos da
vida material e as representações da vida espiritual, uma concepção de mundo que se
traduz desde as noções mais íntimas desses indivíduos até as suas percepções mais
coletivas e genéricas (Gráfico 16).

Gráfico 16 – Vivências e percepções dos entrevistados

Fonte: Elaboração própria

Por fim, como última etapa da pesquisa, buscamos apresentar de que maneira os
relatos analisados nos esclarecem acerca das influências recíprocas entre o fenômeno
pentecostal e a realidade social vivenciada pelas periferias paulistanas. É o que chamamos
em nossa investigação de costuras de sentidos: de um lado, por meio de um vetor que

66
mostra de que formas o pentecostalismo atua enquanto uma experiência de classe nas
periferias paulistanas, seja por sua mensagem de-pobres-para-pobres como de suas
práticas de proteção social aos membros da igreja, de outro, pela forma como a condição
social periférica é enxergada pela lente pentecostal, mostrando quais são os estímulos que
acabam por justificar a experiência de classe pela perspectiva religiosa (Gráfico 17).

Gráfico 17 – As costuras de sentido

Fonte: Elaboração própria

Para facilitar a compreensão dos resultados de pesquisa, os três níveis de vivências


e percepções – individual, familiar e comunitário – nos servem como um recorte didático
para demonstrar como a relação religião-classe permeia as visões de mundo e valores dos
entrevistados nas diferentes esferas da vida social. Foi com base nessa divisão que
estruturamos as seções seguintes, e que nos ajudarão para alinhavar a dinâmica social
entre pentecostalismo e pobreza em São Paulo.

67
3. RELIGIÃO E CLASSE NAS PERCEPÇÕES DOS ENTREVISTADOS

Entender as afinidades de sentido entre a religião pentecostal e a visão de mundo


das classes populares exigiu da pesquisa diferentes olhares sobre a fala dos entrevistados.
Primeiro, porque muitas das concepções religiosas eram notadamente marcadas pela
experiência de classe; segundo, porque muitos dos valores e práticas sociais relatados
revelavam correspondências com formas de expressão da religião.
De modo a explicitar como essas relações se justificam reciprocamente, iniciamos
uma reflexão sobre a visão dos entrevistados acerca da sua posição na sociedade e de que
modos eles vislumbram as suas possibilidades de mobilidade e ascensão social. Para
tanto, um das formas que encontramos para captar essas percepções foi analisando o que
eles entendiam sobre a noção de sucesso.
Isto é, diante de um cenário em que a distribuição desigual de recursos acaba por
segregar pessoas, famílias e comunidades entre ricos e pobres, e tendo em vista que essa
distinção de classe tende a ser o exemplo social mais evidente do que a sociedade entende
por ter “sucesso na vida” (ou a falta dele), o que justifica para esses evangélicos
moradores de periferia essas diferentes posições na sociedade? Como eles se enxergam
diante desse cenário? E qual é o segredo do sucesso para uns e o motivo do fracasso para
(tantos) outros?
Para compreender essas diferentes percepções pela fala dos entrevistados,
organizamos as respostas em três níveis de análise. Elas nos ajudam a visualizar as
diferentes definições de sucesso mobilizadas pelos interlocutores e de que modos eles
enxergam a sua posição de classe em diversos registros da vida social:
 O sucesso depende de você: onde se reúnem as percepções individuais acerca de
uma vida bem-sucedida, e o que é necessário para que o sucesso aconteça na vida
de uma pessoa.
 O sucesso depende da família: no qual se agregam as percepções familiares, e
de que maneira os laços familiares são entendidos como um elemento importante
para uma vida bem-sucedida.
 O sucesso depende de Deus: em que se concentram as percepções religiosas dos
entrevistados, onde a vida de fé se combina ao ambiente comunitário da igreja,
evidenciando a importância da religião para uma vida de sucesso.
A seguir, veremos como essas definições surgem na fala dos pesquisados.

68
3.1. “O SUCESSO VEM DE VOCÊ”: PERCEPÇÕES SOBRE O INDIVÍDUO

3.1.1. “O ESFORÇO É O SEGREDO DO SUCESSO”

Em um primeiro momento, grande parte das respostas compreendeu o sucesso


como um estado de realização pessoal, materializado seja pelos postos de trabalho
qualificados (empregos com formação universitária: advogados, médicos), seja pelo
consumo de alguns tipos de bens e serviços específicos (casa própria em bairro nobre,
carro zero km, empregada doméstica, consumo em restaurantes, etc.).

Sucesso é dinheiro, quando você tem dinheiro e você compra o que você
quer (...) se você está com vontade de comer, vai lá e come, então você
já fica toda feliz, porque você tem dinheiro (Fernanda, 26 anos,
recepcionista)

A pessoa bem sucedida ia morar no Morumbi, não ia andar a pé, ia


andar de carrão, sapato, terno. A mulher de saltinho e tal (...) [ela] come
em restaurante, tem empregada, não precisa fazer nada (Tássia, 36 anos,
operadora de telemarketing)

Uma pessoa bem sucedida é uma pessoa que consegue realizar os


desejos dela. Por exemplo, se a pessoa tem um desejo de ter um carro
zero o sonho dela é isso, ela realiza esse sonho, ela foi uma pessoa bem
sucedida naquilo que ela queria, não é? Se a pessoa quer ser, por
exemplo, um advogado criminalista, ele consegue fazer uma faculdade
e vira advogado criminalista é uma pessoa bem sucedida naquilo, sabe?
(Daniel, 37 anos, representante comercial)

Eu me consideraria bem sucedida se eu tivesse uma profissão, se eu


fosse formada, como eu quero ajudar meus filhos a se formarem e ter
uma casa própria mesmo, uma casa minha (Clarissa, 48 anos, dona de
casa)

Por outro lado, o sucesso também foi associado a uma condição financeira
estável; uma recompensa conquistada após o devido empenho dedicado a algum trabalho,
em que se é possível converter o esforço da vida profissional pelo “sossego” das
condições materiais estabilizadas:

O sucesso, para mim, é um “ufa”, por exemplo. Tipo: “ufa, consegui”.


Tipo: “eu lutei, eu corri atrás, e agora sou bem sucedido” (José, 19
anos, ajudante geral)

[Uma pessoa bem sucedida] é aquela com as contas tudo paga. Que
pode pagar: trabalhar e pagar. Arcar com seus compromissos, ter
sossego pra você não ter que pagar uma conta de luz e deixar outra [sem
pagar] (Laura, 41 anos, dona de casa)

69
É ter uma estabilidade de vida maior, um conforto maior, pra poder dar
pros filhos (Tânia, 21 anos, auxiliar de produção)

Por último, o sucesso se encerra na evidência de um projeto de ascensão social.


Tendo em vista que o desejo de estabilidade e realização estão traduzidos em melhores
condições de trabalho e renda, o sucesso também pode ser interpretado como uma
expectativa de que a vida poderá ser melhor no futuro na medida em que o acesso ao
consumo aumentam, e assumem a dimensão dignificadora do “poder fazer”:

[Sucesso] eu vejo muito com ter um cargo legal, uma remuneração legal
na empresa, ter um carro. Poder dar um conforto pra sua família. Ter
vontade de fazer alguma coisa e poder fazer. Querer ir num restaurante
e ir. E não ficar só com vontade de fazer. É ter uma meta para sair dessa
vida, e sair (Felipe, 34 anos, auxiliar de escritório)

Cumpre salientar que embora esse projeto quase sempre esteja vinculado ao
trabalho, quase nunca ele é vinculado a um ponto de vista estritamente individual, sendo
que em muitos casos ele se apresenta como objetivo de alcançar toda a família,
garantindo assim um patamar de estabilidade e realização não apenas para si e os seus
como também para as próximas gerações.
Para ser bem-sucedido, portanto, o esforço é uma categoria central para
praticamente todos entrevistados. Também explicitado por termos análogos como
“correr atrás” e “ir para a luta”, o imaginário do esforço apresentado está assentado na
noção de que “tudo é possível” por meio da iniciativa individual, sobretudo no que diz
respeito a uma vida bem-sucedida.

Se todo mundo se esforçar, todo mundo tem condições (...) através do


trabalho, [porque] sem trabalhar como você vai ter dinheiro? Não vai
cair do céu o dinheiro, tem que acordar cedo e ir pra luta (Laura, 41
anos, diarista)

Vai depender da pessoa. Se ela lutar, correr atrás dos objetivos vai ser
bem-sucedido. Estudar, fazer as coisas tudo certo, consegue (Marcos,
19 anos, ajudante geral)

A gente tem mania de colocar a culpa nos nossos governantes, a gente


tem mania de colocar a culpa no mundo, mas se você não tiver força de
vontade, meu amigo, você não vai ter nada. Você não vai ter saúde,
você não vai ter nada, porque até pra ter saúde você vai ter que ter o
cuidado com a sua saúde... (Clara, 30 anos, dona de casa)

Acho que isso aí de subir na vida (...) depende da força de vontade da


pessoa, com certeza. Porque aquela pessoa que tá acostumada só com
aquilo, sempre vai ter só aquilo (Tânia, 21 anos, auxiliar de produção)

Todo mundo tem [chance], todo mundo. Basta haver uma força de
vontade, haver um querer dentro dela (José, 19 anos, ajudante geral)

70
Vai do esforço de cada um, independente, claro que (...) tem que partir
dela, não é? Se você quiser passar num concurso público sem estudar
você não vai passar, se você se esforçar (...) você vai conseguir passar
(Daniel, 37 anos, representante comercial)

Entendendo o “esforço individual” como uma espécie de sinônimo da força de


vontade, os entrevistados parecem equacionar a ideia de que o princípio ativo para se ter
uma “chance na vida” encontra-se na capacidade do indivíduo se empenhar em alguma
atividade que ele deseja. O contrário disso, naturalmente, é o comodismo: a “doença”
que faz as pessoas perderem a coragem de ir para a luta porque se “acostumaram”, fruto
de um não “haver um querer dentro delas”.. Consequentemente, uma das figuras mais
comuns do comodismo aparece na fala dos entrevistados pelo “tempo na cama”, tido
como um indicador da força de vontade de um indivíduo de querer “vencer na vida”.
Alguns entrevistados, inclusive, foram provocados a relacionar fé e esforço.
Buscando entender quais as suas percepções em ditados populares que reforçam a ideia
da meritocracia, como Deus ajuda quem cedo madruga ou Faça por ti que eu ajudarei,
as respostas caminharam favoráveis ao esforço e a dedicação individual, mostrando que
até mesmo Deus só pode fazer algo por aqueles que se esforçam:

Deus ajuda quem cedo madruga sim, porque se você acordar 10 horas
da manhã e ficar sentado no sofá Ele não vai fazer nada, [mas] se você
acordar 5 horas da manhã e correr atrás do pão de cada dia Ele vai ajudar
(...) Você está ajudando, mas Ele também está ajudando (Daniel, 37
anos, representante comercial)

Eu vejo que as pessoas que ficam dormindo o dia inteiro não vão
conseguir nada, fica deitado esperando Deus jogar do céu algo. Tipo,
por exemplo, que fica só orando, se você orar e não tiver uma ação,
você não vai conseguir nada desse jeito, você tem que correr atrás (...)
Deus ajuda a quem se dedica, quem está disposto a querer mudar, quem
está disposto a buscar algo melhor para sua vida (José, 19 anos, ajudante
geral)

Cada um tem o que merece de Deus, né? Se você dá atenção pra Deus
todo dia você vai ter mais atenção dele, se você só pede quando você tá
precisando, ele só vai te atender quando ele achar que deve (Tássia, 36
anos, operadora de telemarketing)

Outra forma de analisar o imaginário do esforço como segredo do sucesso foi


observar quem são as pessoas famosas que os entrevistados admiram e acreditam ser um
exemplo de pessoa bem-sucedida. A tabela abaixo mostra o ranking das respostas:

Tabela 7 – Qual pessoa famosa você considera um exemplo de bem-sucedida?


(resposta espontânea)

71
# Pessoa que admira N.º de respostas
1 Silvio Santos 9
2 Xuxa 4
3 João Doria 3
4 Neymar 2
5 Rodrigo Faro 2
Fonte: Elaboração própria

Percebe-se pela tabela acima que das 21 entrevistas analisadas, 9 tiveram Silvio
Santos como principal exemplo de sucesso. Uma evidência impressionante quando
observada de que as respostas foram espontâneas e não estimuladas pelos
entrevistadores.
Figura mista de empresário, apresentador de TV e dono do “Baú”, a imagem de
Silvio Santos representa muito mais do que o exemplo de pessoa bem-sucedida. No
imaginário social periférico, ele é o testemunho vivo de que o esforço é capaz de vencer
as privações impostas pela pobreza:

Silvio Santos. Por causa de tudo que ele conseguiu, de tudo que ele é.
Eu vi uma entrevista dele, (...) que ele tem um dinheiro fora do que a
gente imagina, que ele é muito rico (...) E ele, apesar de ter muito
dinheiro, não é de ter muito luxo. Acho o modo de vida dele muito legal,
tipo assim, não esbanja, ele não gasta à toa, sabe? Ele é muito bem-
sucedido, ele começou lá naquela barraca vendendo bugiganga e hoje
ele é um dos maiores empresários do Brasil (Daniel, 37 anos,
representante comercial)

Ele [Silvio Santos] não tinha ninguém rico [na família] e ele fez o
dinheiro dele. Agora as filhas dele, até a quinta geração dele, vai ser
bem-sucedida, porque foi ele que era camelô. Então eu imagino que ele
sim seja uma pessoa bem-sucedida. Começou de baixo, não tinha
estrutura nenhuma, mas tinha determinação e conseguiu (Clara, 30
anos, dona de casa)

Eu admiro o Silvio Santos porque ele começou de baixo. Ele era


paraquedista, não sei se é verdade, camelô, então um cara que subiu,
cresceu e fez a vida dele (...) [Hoje] ele tem bastante patrimônio, se
veste bem, tem uma boa dicção, é alguém bem conhecido e eu acredito
que [isso] seja [ser] bem-sucedido. (Afonso, 39 anos, taxista)

Assim eu vejo pelo Silvio Santos que começou como? Quando ele
começou ele era carroceiro, ele tá onde ele tá, por que ele se esforçou
(Laura, 41 anos, diarista)

72
Alguns mais entusiasmados chegam, inclusive, a sugerir Silvio Santos à presidência da
República, um gesto que (consciente ou inconscientemente, é difícil saber) remonta à sua
lendária (e precoce) campanha presidencial de 198934:

[Uma pessoa que eu gostaria de ver presidente do Brasil] seria o Silvio


Santos. Pra ele dar o dinheiro do Baú todinho para o Brasil. O Brasil ia
ficar bem, [porque] ele não ia precisar roubar (Maria, 44 anos, dona de
casa)

[Eu queria como presidente] Silvio Santos. Porque o cara não ia roubar
ninguém, porque ele ia continuar gerando emprego (...) Porque ele não
precisa [roubar], velho. Ele dá dinheiro pros outro pra não pagar
imposto. Eu acho que o Silvio Santos, o Roberto Justus, são exemplos
de honestidade (Tássia, 36 anos, operadora de telemarketing)

O que torna a imagem do “Homem do Baú” tão emblemática no imaginário social


das classes populares paulistanas? As falas dos entrevistados sugerem, ao menos, três
explicações possíveis:
Quadro 1 – o “Efeito Silvio Santos”
1) Silvio Santos começou “de baixo”: o argumento mais lembrado pelos
entrevistados é o fato de que o apresentador veio de origem humilde, como
camelô. Um fato curioso é que embora alguns tenham se equivocado acerca da
sua profissão original – seja na figura do “paraquedista” ou “carroceiro”– essas
figuras de linguagem lançadas pelos entrevistados confirmam o ideário do seu
início de vida simples, como pobre e trabalhador, alimentando o imaginário do
esforço como motor propulsor da ascensão social;
2) Silvio Santos é uma pessoa “do povo”: o segundo argumento diz respeito ao
que é imaginado ser o caráter do apresentador. Por sua origem humilde, a ideia
de que Silvio Santos conserva hábitos de classe diferentes da sua atual posição
social reforçam a ideia de que o sucesso do dono do SBT está relacionado ao
seu suposto um modo de vida simples – o que o coloca, inclusive, em posição
de tornar-se o candidato ideal a político, pois mesmo tendo muito dinheiro, não
foi consumido pela ganância, “não precisando roubar”.

34
No dia 4 de novembro de 1989, Silvio Santos oficializava a sua candidatura à Presidência da República,
sob a sigla do extinto Partido Municipalista Brasileiro (PMB) – criador pelo pastor evangélico Armando
Corrêa. Logo após o anúncio da candidatura, o apresentador liderava as intenções de voto com 29,0%,
seguido por Collor, que tinha 18,6% e Lula, em terceiro lugar com 10,6%. Cinco dias depois, em 9 de
novembro, o TSE caçou a candidatura de Silvio Santos, por entender que o PMB não havia feito convenções
estaduais suficientes e pelo fato de Silvio ser dono de uma concessão pública de TV, tipificando conflito
de interesses.

73
3) Silvio Santos “ajuda os outros”: por fim, além da imagem de uma pessoa de
origem pobre que conseguiu vencer na vida com simplicidade, o que chama
atenção dos entrevistados é a atitude de Silvio Santos dar prêmios em dinheiro
para as pessoas em seu programa. Ou seja, não apenas Silvio “chegou lá” como
ainda ajuda outros a chegarem também, reiterando assim o grande sonho das
camadas populares de não apenas vencer na vida como ajuda para que os seus
pares possam ter oportunidades também.

Obviamente, seria necessária uma investigação mais aprofundada para confirmar


tais impressões. Contudo, o “efeito Silvio Santos” nos ajuda a lançar luz sobre uma
impressão geral encontrada em outras falas acerca de outros famosos admirados pelos
entrevistados, à exemplo de Xuxa e Rodrigo Faro, ou nos políticos como então prefeito
eleito João Doria ou até mesmo na figura do ex-presidente Lula. Nessas citações, denota-
se ao menos uma das características mencionadas acima:

Rodrigo Faro, eu gosto (...) porque eu gosto do programa dele, eu gosto


da solidariedade que ele faz, né? Ele ajuda muitas pessoas (Maria, 44
anos, dona de casa).

[O Doria] ganhou meu voto foi porque ele já é uma pessoa bem-
sucedida e eu acho que ele não precisa estar roubando pra ganhar mais
dinheiro, porque ele já tem dinheiro e é uma pessoa que pensa diferente,
o modo dele pensar, de governar é diferente dos outros (...) Ele foi uma
pessoa esforçada e teve objetivo na vida dele (Laura, 41 anos, diarista)

No começo eu admirava muito o Lula, admirei mesmo, falava até:


Nossa, olha, o cara era metalúrgico e conseguiu. Caso do Silvio Santos
que eu falei: Nossa, olha o cara. Tanto que eu votei no partido dele, eu
falei: Nossa o partido conseguiu. Eu admirei o Lula no começo, agora
o que eu menos admiro é ele (...) Por causa da corrupção, entendeu que
é o mesmo cara na mesma situação? (Afonso, 39 anos, taxista)

Doria é rico, tudo bem, ele é gravata, roupa de marca, mas ele conseguiu
pelo que eu vi com o esforço dele, com o trabalho dele, não foi de
política, não veio de política, não veio tirando o dinheiro do povo. Qual
o problema se ele é rico? Eu queria ser rica também com os meus
esforços, não sendo política e roubando do povo (...) Ele conseguiu por
meio próprios (Rita, 48 anos, dona de casa)

Observa-se, então, que o discurso ideal de esforço mencionado acima relaciona-


se diretamente aos exemplos dos famosos citados, tidos como pessoas bem-sucedidas
por causa da sua força de vontade. Buscando demonstrar como esses indivíduos tiveram
um passado próximo à sua condição social e a superaram com trabalho e dedicação, os

74
entrevistados argumentam de que é possível ascender socialmente pelo esforço
individual e demonstram exemplos disso.
Porém, é preciso ter em conta de que o sucesso não foi resumido pelos
entrevistados no simples fato de se realizar economicamente, existindo também um
entendimento de que há regras morais a serem respeitadas nesse jogo. Neste sentido, as
falas apontam que tão importante quanto se dedicar a um projeto de “vida melhor” é não
se deixar levar pelos impulsos da soberba e da ambição, lembrando sempre de sua origem
social e sem esquecer de ajudar aqueles que enfrentam uma situação de necessidade.
O contrário disso é o “cidadão corrupto”, isto é, aquele que desrespeitou as regras
do jogo social a fim de se beneficiar injustamente do esforço alheio. Geralmente
associada à figura do político, os entrevistados reproduzem a noção de que a classe
política é tendencialmente corrupta e principal causa dos problemas sociais brasileiros,
porque atrapalham a vida das pessoas que estão “correndo atrás”. Enquanto isso, a
iniciativa privada é vista como o lugar ideal para se vencer na vida, porque ali estão os
que venceram por “mérito próprio”.
Por outro lado, as entrevistas apontam a percepção de que o esforço, por si só,
nem sempre resulta em sucesso. Na verdade, conforme alguns entrevistados relataram, o
esforço individual corre sério risco de desaguar em frustração à medida que suas
condições de vida não conseguem propiciar as oportunidades necessárias para a sua
ascensão. A seguir, veremos o que significam essas oportunidades segundo a fala dos
entrevistados.

3.1.2. “FALTA DE SUCESSO É FALTA DE OPORTUNIDADES”

Embora a pesquisa da Fundação Perseu Abramo (2017) tenha elegido a


“ideologia do mérito” como ponto privilegiado de análise – destacando as percepções
dos entrevistados em relação ao esforço individual e seus desdobramentos nas mais
diferentes esferas da vida como consumo, religião e sociabilidade –, ao se fazer uma
leitura mais acurada das transcrições, nota-se que as entrevistas também apontam que o
esforço pode ser motivo de sofrimento.
Isso porque nem sempre as pessoas estão em condições suficientes para que o
seu esforço individual seja valorizado, o que torna o empenho desses indivíduos algo
indiferente às suas possibilidades de ascensão.

75
Tem muita gente se esforçando a vida inteira e não consegue. Tem
muita gente esforçada que passa por muita dificuldade. É até injusto
falar que a pessoa não é nada porque não se esforçou, mentira, tem
muita gente que se esforça sim (Clara, 30 anos, dona de casa)

É complicado, sabe por quê? Porque eu sei que tem pessoas bem
esforçadas, mas que as oportunidades não surgem, não ajudam. Muita
gente fala que oportunidade a gente que faz, mas não é bem assim (Rita,
48 anos, dona de casa)

Eu posso ser muito esforçado na plantação de café, sendo cortador de


cana. Eu acho que você pode ser o melhor lá, mas você não vai ser uma
pessoa bem-sucedida na vida. Eu acho que você [tem que] correr atrás,
mas talvez eu possa estar me contradizendo, mas eu acho que o esforço
é muito importante pra você ser bem-sucedido. Buscar ter metas, você
não pode ter esforço parado: Eu quero fazer isso, quero chegar nisso,
traçar. Vão acontecer percalços, vão acontecer tudo, fazer o que você
queria fazer, mas vale o esforço, mas eu acho que caminha junto com a
oportunidade. Você ter oportunidade de (...) você fazer uma faculdade,
ter oportunidade de estar lá na hora certa. Você trabalha? Trabalha.
Surgiu uma vaga? Você vai se esforçar pra fazer. Depende do seu
esforço, mas tem que a oportunidade surgir pra você fazer. Acho
que caminham juntos, a oportunidade e o esforço (Felipe, 34 anos,
auxiliar de escritório)

A fala supostamente “contraditória” de Felipe parece revelar uma fórmula que se


repete em muitas entrevistas: “depende do seu esforço, mas tem que a oportunidade
surgir pra você fazer”. Esse é o diagnóstico, aliás, que muitos entrevistados fazem sobre
a sua própria vida:

Ainda não [sou bem-sucedida], mas vou ser (...) Falta eu ter mais
oportunidades, tendo oportunidade eu vou pra cima (Laura, 41 anos,
diarista)

Eu gostaria de ter meu próprio apartamento, ter meu carro (...), mas
assim, conquistar mesmo que seja aos poucos. [Queria] ter mais
facilidade e oportunidade pra conquistar, não ser tão difícil, tão judiado
como é, queria fosse um pouquinho mais fácil (Clara, 30 anos, dona de
casa)

Mas quais oportunidades devem acontecer para que alguém se torne bem-
sucedido na vida? Que condições mínimas essa pessoa precisa ter para que o esforço
individual seja recompensado pelo tão desejado sucesso? E qual o papel do governo para
que essas oportunidades possam ser estendidas para o maior número de pessoas?
Inspirado por essas questões, reunimos os depoimentos dos entrevistados em
grupos de respostas que continham alguma noção parecida referente às oportunidades.
Nelas, podemos destacar três tipos de oportunidades consideradas importantes: 1)
trabalho e renda; 2) estudo e formação; e 3) governo e políticas públicas.

76
Nas oportunidades relacionadas à trabalho e renda, observamos qual a percepção
dos entrevistados sobre a relevância dos postos de ocupação profissional para conseguir
melhores condições de vida. Como essa seção mostrará a seguir, o sonho empreendedor
contrasta a realidade exaustiva de trabalho, que oscila em todo tempo entre os “bicos” e
o emprego formal precarizado, cujo único horizonte possível para melhorar a sua
condição de vida muitas vezes está na possibilidade de abrir um negócio próprio.
Em seguida, são analisadas a importância das oportunidades de estudos e
formação e como a presença (e ausência) de uma formação escolar e acadêmica podem
refletir na percepção dos entrevistados sobre uma dada situação econômica. Nesse
sentido, pode-se notar pela fala dos entrevistados um reconhecimento sobre a
importância formal do diploma (sobretudo universitário) para alcançar os melhores
postos de trabalho, ao mesmo tempo em que se observa que a falta de sucesso é entendida
pela maioria deles como um efeito direto da falta de estudos.
Por fim, em governo e políticas públicas, discute-se sobre a opinião dos
entrevistados sobre quais as possíveis linhas de atuação do Estado no que se refere às
oportunidades de vida da população mais carente e que tipos de políticas públicas podem
ser mais efetivas em relação a outras. Para isso, foram analisadas as opiniões dos
entrevistados sobre o Bolsa Família e as cotas raciais nas universidades.

3.1.2.1. OPORTUNIDADES DE TRABALHO:

Segundo a nossa pesquisa constatou, muitos entrevistados entendem o sucesso


como um estado de realização profissional. Entendendo o trabalho como um potencial
propulsor para a melhora de vida, os relatos revelam ao menos dois tipos de ideários de
trabalhadores.
De um lado estão os entrevistados “empreendedores”, aqueles que tem um
negócio próprio ou almejam ser dono de um empreendimento no futuro; de outro estão
os entrevistados que são ou que querem ser “empregados”, isto é, aqueles que preferem
manter-se funcionários no mercado formal e irem crescendo junto a alguma empresa até
a aposentadoria. Dos 21 entrevistados analisados, 10 desejam abrir um negócio próprio,
enquanto 9 preferem ser trabalhadores, e 2 não responderam (Gráfico 18).

Gráfico 18 – Você prefere abrir um negócio ou trabalhar registrado em uma empresa?

77
12

10
10
9

2
2

0
Ter um negócio próprio Ser CLT NR

Fonte: Elaboração própria

Antes de entrarmos nos pormenores que levam os entrevistados a ter preferência


sobre um ou outro destino profissional, é preciso levar em consideração o histórico
profissional desses indivíduos. Nesse sentido, é possível perceber pelas transcrições que
a maioria dos pesquisados apresenta uma longa trajetória de descontinuidades de carreira
profissional e uma inserção quase sempre irregular no mercado de trabalho.

Eu já trabalhei em bingo, já trabalhei na banquinha do bicho. Não sendo


nada que ofenda, machuque ou que lese alguém eu tô fazendo (Tássia,
36 anos, operadora de telemarketing)

Com treze, quatorze anos comecei a trabalhar. Fui trabalhar na feira,


carregava bolsa para madame, lavava carro na feira. Dava de tomar
conta de carro na feira (...) vendia fruta, eu tinha que trabalhar (Jônatas,
47 anos, encanador)

Eu trabalhava às vezes no farol (...) Eu ficava entregando panfletos,


ficava às vezes nas bandeiras, ganhava 25 reais o dia (...) Era puxado.
E se tivesse sol você tinha que ficar naquele sol, você não podia ir para
a sombra (Fernanda, 26 anos, recepcionista)

Entre os que desejam abrir um negócio, observa-se que esses estão entre os mais
jovens e com menor experiência profissional com carteira assinada35. Foi o caso de
Adilson, 27 anos, morador do Grajaú. Antes de ser auxiliar de produção em uma indústria
farmacêutica, a trajetória profissional de Adilson passou por muitos caminhos aleatórios.

35
A média de idade dos entrevistados que pretendem abrir um negócio foi de 30 anos, enquanto os que
preferem ser funcionários de uma empresa foi de 34 anos.

78
Durante a adolescência, seu maior sonho era, assim como grande parte dos jovens
de periferia, ser jogador profissional de futebol. Sua primeira chance surgiu logo na
época do colégio, quando um empresário o contratou para trabalhar em alguns times. A
experiência, contudo, não foi positiva:

Eu caí na mão de empresários errados né? Daí foi que atrasou minha
progressão (...) Ele não me ajudava financeiramente e me impedia de
viajar (...) Com 17 anos eu larguei o clube e voltei a trabalhar para
ajudar minha mãe (Adilson, 27 anos, auxiliar de produção)

Na ocasião a mãe de Adilson tinha um mercadinho de bairro, mas não demorou


muito para que ele arranjasse um novo emprego, agora como porteiro em uma
metalúrgica. Em pouco tempo, a chegada na empresa lhe rendeu uma promoção de
conferente de produção – uma promoção, aliás, que não chegou a ser registrada em
carteira. Anos mais tarde, Adilson é mais uma vez chamado para trabalhar com futebol
de várzea, o que o fez entrar em uma jornada dupla com outros serviços:

Fiquei dois anos jogando (...) daí eu comecei a trabalhar numa indústria
farmacêutica. Fiquei um ano e meio, daí depois fui pra uma metalúrgica
onde fiquei mais dois anos e meio e agora eu tô quase um ano [em outra]
indústria farmacêutica (Adilson, 27 anos, auxiliar de produção)

Há sete anos longe dos gramados, Adilson confessa que sua profissão de auxiliar
de produção é “muito desgastante”, uma vez que trabalha seis dias por semana, e que
gostaria de trabalhar em um serviço “mais legal” – e, se possível, abrir um negócio
próprio.

Agora mesmo, tipo, eu não tenho nada em mente, mas eu gostaria, tipo,
de trabalhar pra mim mesmo assim, montar uma coisa pra mim (...) É
mais a questão de ser independente, trabalhar por mim próprio mesmo
né? (Adilson, 27 anos, auxiliar de produção)

Se a fala de Adilson parece pouco precisa em um primeiro momento, por outro


lado, ela revela uma trajetória profissional marcada pelo subemprego, frustrada por
quebras constantes de carreira e com registros em carteira abaixo dos cargos que ocupara.
Olhando para todo esse cenário, não é difícil imaginar por que Adilson prefere trabalhar
em um negócio próprio do que trabalhar para alguém: o ex-jogador jamais foi inserido
de forma adequada ao mercado formal de trabalho, o que o leva a crer que a melhor
possibilidade de ascensão social virá através do empreendedorismo.

79
É um diagnóstico semelhante ao de Clara, 30 anos, dona de casa e moradora de
Heliópolis. Uma vez que o esforço individual é inevitável, ter um negócio próprio
tornaria possível esse esforço valer a pena ao assumir o ônus e o bônus do patrão:

Já que você tem que se matar, se dedicar, passar horas pra ficar
enriquecendo outras pessoas, você tem que fazer por você, porque aí
depende só de você (Clara, 30 anos, dona de casa)

Motivados menos pelas oportunidades que encontraram e mais pela necessidade


de ter alguma renda combinada a uma expectativa de patrimônio futuro, os entrevistados
“empreendedores” parecem confirmar aquilo que Colbari (2007) descreveu como
“movimento de ressignificação da noção de empreendedorismo”, no qual a ideia de abrir
um negócio próprio “deve-se menos ao resgate do sonho de ser patrão e muito mais às
dificuldades de realizar o sonho da carteira assinada” (COLBARI, 2007, p.84).
Em outra direção estão os entrevistados que querem ou já são “empregados”, ou
seja, aqueles que preferem trabalhar com carteira assinada dentro de uma empresa do
que abrir um negócio próprio. Nesses casos, é possível notar que tal preferência é
motivada, principalmente, pelos benefícios e mecanismos de seguridade social
garantidos pela CLT. As transcrições abaixo descrevem as posições dos entrevistados
neste sentido:

Primeiro que dá uma segurança melhor para a família em casa, não é?


Uma suposição: acontece um acidente com você, o que você tem se
você não for empregado? O que o Governo vai te dar? Nada, não é? Se
você estiver registrado, você tem aqueles períodos que você faz de
contribuições, você passa a ter direito, acidente, ficou imóvel aí, sua
esposa, quem for vai ter algum benefício para cuidar de você (...) Uma
segurança maior, porque é triste não é? Eu tenho um colega que mora
aqui perto, que ele se acidentou, saiu da empresa, ele tinha dois anos e
poucos sem trabalhar, fazendo bico, acidente, caiu, aí problema nas
pernas, não anda, tá lá imóvel lá, não tem um retorno, aí está lá o pai
cuidando, dá trabalho para a mãe. Gastando porque os velhos são
aposentados, gastando o que os velhos ganham para ele. Se tivesse
ajudaria a família, não é? (Jônatas, 47 anos, encanador)

Acho que eu preferiria mesmo [ser CLT]. É muita dor de cabeça você
montar alguma coisa. A minha sobrinha tentou montar o restaurante lá
em cima, se endividou até a ponta do cabelo, se ferrou totalmente (...)
É muito comércio, é muito (...) Já trabalhando você tem o salário fixo e
fica tranquilo e os patrões que se virem (Edileusa, 49 anos, autônoma)

Eu estou no meu terceiro trabalho, todas preenchidas [com carteira


assinada]. Eu nunca precisei ficar recolhida do INSS (...) mas eu acho
importante, porque se uma pessoa não tem uma carteira registrada, se
ela sofrer um acidente ou acontecer qualquer coisa com ela acabou, ela
vai recorrer a quem? (Valéria, 42 anos, agente de saúde)

80
Com a carteira assinada você tem fundo de garantia, você tem
estabilidade, assim, não estabilidade eternamente, mas se você sai você
tem o fundo de garantia, você tem um seguro desemprego, você tem um
PIS, eu acho que é muito necessário (Maria, 44 anos, dona de casa)

Entretanto, embora os entrevistados tenham sido estimulados a preferir uma entre


as duas opções (negócio próprio versus carteira assinada), durante a pesquisa percebemos
que muitos acabaram respondendo as duas ao mesmo tempo. Ou seja, almejam ter um
negócio próprio no futuro, mas reconhecem a importância no presente de estarem
empregados em uma empresa.

Eu prefiro ir crescendo dentro [de uma empresa] (...) Ser uma líder de
callcenter, porque eu gosto muito de ensinar as pessoas, de ajudar quem
tem dificuldade (...) Só quando eu ficar velhinha, aí eu monto um
mercadinho, alguma coisa (Tássia, 36 anos, operadora de
telemarketing)

Tenho [vontade] de criar o meu salão de cabeleireiro (...) Mas, tipo, isso
daí ia depender do que? Ia depender muito de mim, de fazer o curso e
correr atrás. Mas pra isso eu preciso arrumar um emprego para poder
arcar com os custos de ter um salão, de uma máquina para cabelo, essas
coisas (José, 19 anos, ajudante geral)

Em outros termos, é possível afirmar que ainda que a maioria dos entrevistados
apresente o desejo de abrir um negócio próprio, o sonho empreendedor ainda é visto
como um projeto distante da realidade, um horizonte cultural talhado no imaginário de
homens e mulheres que, por falta de boas oportunidades de vida como assalariados,
precisam acreditar que o poder de iniciativa do seu esforço individual é mais eficaz para
melhorar a sua condição de vida do que as possibilidades que lhe são negadas pelo
mercado de trabalho formal36.

3.1.2.2. OPORTUNIDADES DE ESTUDO:

A falta de oportunidades também aparece do ponto de vista da falta de estudo.


Entendendo a formação escolar como uma efetiva possibilidade de um futuro melhor,
alguns entrevistados argumentam que mesmo os postos de trabalho menos valorizados
têm exigido um grau mínimo de estudo.

[Estudo] é bom pra ter futuro. Se você vai procurar um serviço tem que
ter o superior ou completo ou cursando (...) Às vezes [obrigam] o ensino

36
Sobre a retórica da necessidade de acreditar que o desemprego é uma oportunidade para o
empreendedorismo, ver Campos e Soeiro (2016).

81
médio completo para telemarketing (...) Que nem, a minha mãe que
estudou até a segunda série, se ela for procurar um serviço hoje em dia,
até para faxineira tem que ter o segundo ou o primeiro [ano] do ensino
médio. Então é muito difícil para quem não tem estudo... (Fernanda, 26
anos, recepcionista, superior completo)

Além disso, existem aqueles que enxergam a ausência de formação (universitária,


sobretudo) a impossibilidade tanto no acesso a uma “profissão mais digna” como até
mesmo ser visto como “um ser humano mais digno”:

Eu só queria o ensino superior para eu ser um ser humano mais digno,


pra eu ter uma profissão mais digna, só isso que eu queria (...) Mas
assim, é tanta dificuldade, tanta dificuldade que eu acabo desistindo no
meio do caminho, entendeu? (Rosa, 39 anos, manicure, médio
completo)

Ao observar as falas acima, nota-se que a vida escolar e acadêmica é encarada


com alta estima, tendo em vista que o seu bom desempenho tende a ser visto como uma
possibilidade de futuro melhor e uma vida mais digna. Mas que tipo de futuro os
entrevistados esperam que uma formação acadêmica pode proporcionar? Que dignidade
é essa que a educação formal propicia?
Em nossa análise, há pelo menos dois caminhos apontados pelos entrevistados.
O primeiro deles diz respeito ao elemento subjetivo da educação como meio de
autonomia e discernimento. Neste sentido, a ideia de que a educação “liberta” das
“manipulações” vem acompanhada de uma espécie de lógica imbuída de uma resiliência
de que quanto mais se estuda, mais se é “capaz de ir e conquistar”:

Eu acho que é aquilo, a informação te liberta, então se a gente aqui já é


manipulado de certa forma pela política, pelos governos, por uma série
de coisa (...) eu acho que seria mais forte ainda a situação de
manipulação se a gente não busca conhecimento, não busca sair dessa
jaula que tentam colocar diante da gente (...) [Com educação] você se
sente mais livre de ir buscar, capaz de ir e conquistar. Eu sei que não
está dando certo no momento, mas eu sei fazer isso e pode ser que lá na
frente eu consiga resolver essa situação, acabou (Clara, 30 anos, dona
de casa)

Por outro lado, há aqueles mais pragmáticos, que enxergam um curso ou


faculdade menos com qualificação profissional e mais ao status do diploma, visto como
uma espécie de ingresso para as melhores vagas de emprego.

Eu gosto da empresa em si e acho que eu tenho que melhorar. Eu tô na


produção, mas não desmerecendo quem tá lá, mas quem tá lá com curso
é uma coisa e quem tá lá sendo peão, que é o meu caso, [é outra] (...)
Quem tá lá com curso, tem o engenheiro de produção que tá lá, tem
operador de empilhadeira, tem torneiro mecânico (...) eles têm um

82
salário mais alto [que o meu] por [causa da] formação... (Rodrigo, 34
anos, auxiliar de escritório)

Ou seja, se no plano ideal a educação formal é vista como a possibilidade de


liberdade e autonomia, na prática, o diploma também é encarado como a chance objetiva
de posições mais qualificadas de trabalho e, consequentemente, uma melhor
remuneração.
Ao considerar as trajetórias escolares dos entrevistados, elas nos ajudam a
compreender por que a sua percepção acerca da sua formação escolar justifica a atual
condição socioeconômica. Laura começou a trabalhar aos 12 anos. Para fugir de casa, foi
arrematadeira, babá e trabalhou limpando chão em lojas. Todos os salários iam
integralmente para a mãe. Parou de estudar aos 17, no primeiro ano do colegial, para casar
e cuidar da casa. “Pior besteira que eu fiz”. Na época, não gostava de estudar e preferia a
bagunça. “Não gostava muito de estudar não, porque tinha que fazer lição e eu não
gostava. Eu era mais pra turma da bagunça, sabe? E hoje eu me arrependo”. Perguntada
se alguma coisa a dificultou a gostar da escola, ela respondeu:

Sim, eu não tinha material, tinha que pegar dos outros, aí eu fui
desgostando, não gostava... Não tinha nem lápis de cor pra pintar
(Laura, 41 anos, diarista, médio incompleto)

O casamento foi uma fuga para tentar liberdade e autonomia longe da mãe. “Uma
fuga errada", nas palavras de Laura. O marido não a deixava trabalhar e era muito
possessivo. Ela aceitava para não criar brigas. O que falta para ser bem-sucedida? "Falta
eu ter mais oportunidades. Tendo oportunidade eu vou pra cima". A falta de oportunidade
é entendida neste caso na carência de um “emprego fixo” cada vez mais difícil de achar
pela falta de “escolaridade completa”.
O desânimo com a escola também aparece na fala de Afonso, 39 anos. Taxista do
Jardim Ricão, na Zona Oeste paulistana, sua carreira começou como atendente de um
mercado do bairro, aos treze anos de idade.

Eu tive que trabalhar num mercado, trabalhei nos meus treze anos. Na
época podia, hoje não pode. [Trabalhei] até os vinte anos [no mercado]
e era muito cansativo, eu não estava aguentando (...) Pensei: “vou
trabalhar”. Na época eu pensava que trabalhar era tudo e estudar não
dava dinheiro, como eu ia ter dinheiro? Eu saí dos estudos, “para que
estudar?” Olha a ideia, e continuei trabalhando (Afonso, 39 anos,
taxista, superior incompleto)

A descrição de como pensava Afonso na época merece atenção. Em primeiro


lugar, ele teve que trabalhar, ou seja, a opção pelo trabalho foi menos uma escolha

83
individual e mais uma imposição das circunstâncias familiares. Em seguida, ele pensava
que estudar não dava dinheiro, demonstrando certa desconfiança em relação ao retorno
profissional dos estudos e chega a uma pergunta interessante – para que estudar?37 A
resposta viria anos mais tarde: Afonso foi trabalhar em um escritório de advocacia, e
assim conheceu o dia-a-dia de uma profissão que desde então passou a ter um interesse
especial para ele. Com o sonho de se tornar advogado, Afonso correu para concluir os
estudos do Ensino Médio e deu início ao curso de Direito – que teve de ser interrompido
devido à “crise”, resultando na falência do escritório que era funcionário. Foi a perda
desse emprego que o fez recorrer ao táxi, adiando assim o seu projeto profissional na
carreira jurídica. Por fim, os anos de estudo interrompidos por Afonso parecem ser vistos
por ele agora como um absurdo – olha a ideia – muito embora ele mesmo reconheça que
pouca coisa a ser feita a respeito, afinal ele continuou trabalhando.
Outro caso emblemático é o de Clarissa, 48 anos, dona de casa e moradora de São
Miguel Paulista. Ao contrário da experiência de Laura e Afonso, Clarissa afirma que
“amava estudar”, mas também teve os estudos interrompidos na sétima série por
necessidade de trabalho:

Primeiro que eu amava estudar. Não tive muitas oportunidades de


continuar, de dar sequência, mas sempre gostei de estudar, sempre
gostei de ler. Eu sempre gostei da escola. Eu gostava de tudo, dos meus
amigos, dos meus professores (...) Eu tive que parar mesmo porque eu
arrumei um emprego (Clarissa, 48 anos, dona de casa, médio
incompleto)

O emprego na época era para balconista, mas o desejo de voltar a estudar


permanecia. Seu maior sonho profissional era ser assistente social. Anos mais tarde,
conseguiu pagar um supletivo no centro da cidade, que lhe garantiu o diploma no Ensino
Fundamental. Contudo, antes que terminasse o primeiro ano do Ensino Médio, Clarissa
teve novamente de parar os estudos, dessa vez por ocasião do nascimento da filha.
Nascida com um tipo de autismo que a torna dependente de terceiros, a chegada da filha
mais nova representou mais uma reviravolta em sua vida. Ainda assim, ela tentou estudar
mais uma vez:

Tava com 45 anos mais ou menos, eu até tentei voltar a estudar, mas a
[minha filha] precisava muito de mim, ainda precisa, então eu parei.

37
Um estudo interessante sobre a questão do desinteresse dos alunos em relação à escola pode ser visto em
Torres, Teixeira e França (2014).

84
Falei que não ia dar pra dar continuidade não, não tem como (Clarissa,
48 anos, dona de casa, médio incompleto)

No momento da entrevista, tanto Clarissa quanto o marido estavam


desempregados e dependiam do Benefício Assistencial à Pessoa com Deficiência38,
concedido à filha mais nova, que garantia o sustento do casal e dos outros dois filhos.
Perguntada se ela se considerava uma pessoa bem-sucedida, Clarissa respondeu:

Eu me consideraria bem-sucedida se eu tivesse uma profissão, se eu


fosse formada, como eu quero ajudar meus filhos a se formarem (...) O
que eu pretendo fazer hoje é ajudá-los a ter uma boa profissão pra eles
conseguirem porque eu não vou ter condição de deixar (Clarissa, 48
anos, dona de casa, médio incompleto)

À despeito das particularidades individuais, os casos de Laura, Afonso e Clarissa


ilustram como a falta de estudos está muitas vezes relacionada a necessidade de trabalhar
para ajudar no sustento da família, o que invariavelmente também significou para eles
um grande custo pessoal e profissional no longo prazo. Não é sem razão, afinal, que
alguns entrevistados comparam a sua condição de estudo com as oportunidades que
pessoas de famílias mais ricas tendem a ter, ocasionadas não apenas pela condição
financeira para pagar uma faculdade, mas também pela percepção de que a qualidade do
ensino particular é superior ao do ensino público, possibilitando assim um melhor
preparo para a vida universitária desde a infância.

[Se] uma pessoa bem-sucedida tem um filho, o moleque já começa


estudar numa escola particular desde criança (...) e ele paga a faculdade.
Agora, se uma pessoa que estuda na escola pública quer fazer faculdade
é bem mais difícil, [porque] a criança que tem ensinamento na escola
particular é bem diferente na pública: é mais rígido, tem ensinamento
melhor para deixar a pessoa mais bem preparada. Já [deixa] a pessoa
encaminhada praticamente (Marcos, 19 anos, desempregado)

Cumpre destacar, no entanto, de que embora as escolas públicas sejam vistas


como instituições de má qualidade, há em contrapartida uma ideia recorrente de que “o
aluno faz a escola”.

É igual falar de escola: Ah, escola é ruim. Não. Quem faz a escola é o
aluno, né? (Afonso, 39 anos, taxista)

38
O Benefício Assistencial (ou Benefício de Prestação Continuada – BPC) é a prestação paga pela
previdência social garantida pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) que visa garantir um salário
mínimo mensal para pessoas que não possuam meios de prover à própria subsistência. No caso do Benefício
Assistencial à Pessoa com Deficiência, ele é destinado às pessoas com deficiência que estão
impossibilitadas de participar e se inserir em paridade de condições com o restante da sociedade.

85
Ou seja, além de reiterar a ideologia do esforço, o argumento acaba por trazer a
culpa do déficit de estudo mais uma vez sobre os ombros do aluno, colocando novamente
o problema social do ensino público restrito à lógica individualizante do comportamento
“bagunceiro” do estudante ou da presença (ou falta) de “disciplina”. Por essa razão, não
são poucos os que acabam internalizando os prejuízos de uma formação deficitária,
interpretando-o como um problema individual (seja por “desânimo” ou “preguiça”),
justificando assim a situação social de falta de oportunidades por meio do seu eventual
desempenho escolar ruim.

Eu sou muito preguiçoso, não de trabalhar, mas de estudar. Eu falo pra


você, eu chegava da escola, colocava minha mochila no canto e já era.
O que eu aprendi na sala eu aprendi. Hoje se eu tivesse a oportunidade,
tenho vontade, talvez eu tenha que ter tempo de me dedicar mais...
(Felipe, 34 anos, auxiliar de escritório, médio completo)

Eu comecei a estudar, fiz até o segundo período, fui até Técnico de


Edificações (...) Eu não fiz mais porque [era] caro, aí fui casar, cismei
de casar, [hoje] sou viúvo (...) Aí parei tudo, aí desanimei. Mas aí tem
arrependimento (...) Hoje trabalho na área de Construção Civil, se eu
tivesse terminado a Faculdade hoje estaria bem melhor. Não é verdade?
Aí poderia ser Técnico de Edificações, entrar numa faculdade, fazer
engenharia, porque a empresa até dava condição para você... (Jônatas,
47 anos, encanador)

Como podemos observar, a ideia de que ter uma faculdade daria condições de uma
“profissão mais digna” parece permear quase todas as entrevistas – seja pela noção de
que o conhecimento torna alguém mais “esperto”, seja porque o “diploma” mostra para
os outros que alguém é “capaz”.
Ao considerar a experiência vivida desses entrevistados, entretanto, é possível
considerar que a dedicação aos estudos teve de ocupar um segundo plano, afinal, as
urgências materiais que envolvem “ajudar a família” acabaram por fazer com que
qualquer outro projeto de vida ficasse de escanteio. Na dimensão da experiência
percebida, porém, muitos tributam o seu mal desempenho escolar a “preguiça” e ao
“desânimo”, internalizando o drama econômico-familiar ao seu próprio comportamento
individual, o que inevitavelmente é encarado como motivo de frustração e
arrependimento, afinal, não são raras as colocações dos entrevistados que afirmam que se
tivessem a oportunidade de voltar ao passado, não perderiam a chance de se empenhar
melhor nos estudos.

86
3.1.2.3. OPORTUNIDADES DO GOVERNO:

Por outro lado, os entrevistados também consideram que o insucesso das pessoas
no país está relacionado com a má atuação do governo em determinadas áreas. Ou seja,
ara além do esforço de cada pessoa, há uma clara percepção que as condições de vida dos
brasileiros são prejudicadas, em primeiro lugar, pelo mau desempenho dos agentes
públicos, vistos como corruptos. Conforme bem sintetizou um dos entrevistados:

A corrupção e os nossos impostos, duas coisas que destroem o Brasil


(Daniel, 37 anos, representante comercial)

Elegendo o problema político como o principal obstáculo para o crescimento


econômico do país, os entrevistados associam repetidas vezes uma possível relação de
causalidade entre o comportamento corrupto dos políticos e a alta carga dos impostos.

Olha, pra resolver [o problema da] corrupção só se tirasse todo mundo,


e renovar o quadro dos políticos, que eu não sei ainda seria impossível
(...) Tirar o pessoal que fica no governo, vamos usar esse termo?
Mamando nas tetas do governo (...) Porque você vê aquele
impostômetro que tem no centro, e você fica vendo aqueles milhões.
Caraca! Aí você pensa: Nossa, já gastei tudo isso! (Adilson, 27 anos,
auxiliar de produção)

O pessoal estava comentando comigo, que se você coloca cinquenta


reais de gasolina, quase quinze reais é só de imposto. Então você chega
e pensa: Mano, mas aí eu coloquei só trinta e cinco reais de
combustível. Então é isso o que influencia [o governo na vida das
pessoas] (Afonso, 39 anos, taxista)

Um entrevistado, aliás, chega a explicar com detalhes de que modo as condições


econômicas da cidade melhorariam caso os impostos fossem diminuídos, reforçando o
imaginário de que o político é o entrave do crescimento, ao passo que a iniciativa privada
é elevada como a sua solução:

Os políticos são o câncer que é a política hoje. Que só pensa em roubar,


a verdade é essa, falando o português claro, politicamente falando, só
pensa em roubar. O que faz a cidade melhorar é o trabalho do povo. A
ajuda que tem um pelo outro, né? (...) Talvez a cidade seria melhor se
tivesse uma política de impostos menor do que tem hoje (...) Se você
reduzir impostos você vai abrir vaga para empresas virem para cá,
certo? Você reduz imposto a empresa vem pra cá, vai empregar mais
gente. E empregando mais gente, vai ter mais gente em situação melhor.
Então vai te dar condição hoje de você ter uma tv por assinatura, de
você ter um wi-fi na sua casa, de você alimentar os seus filhos bem (...)
Então isso melhoraria muito, mas para isso o governo teria que parar de
pensar só no seu próprio bolso e pensar na população (Daniel, 37 anos,
representante comercial)

87
Isso não significa que os entrevistados sejam contra o Estado. Pelo contrário, de
modo geral os entrevistados apresentaram a percepção de que consideram importante a
atuação do governo para promover serviços públicos e garantir condições de vida digna
para a população, principalmente em assuntos de segurança, saúde e educação. Algumas
falas, inclusive, sugerem que uma das funções do governo é garantir a geração de
empregos, vistos como uma questão de “estrutura”:

[O governo tem que] proporcionar a vida das pessoas mais agradável,


uma vida mais segura, principalmente quando vai trabalhar de
madrugada. Ter mais acesso as coisas, ter um salário bom, a estrutura
de emprego boa também (Marcos, 19 anos, ajudante geral)

Acho que ele [o governo] é responsável pela sua segurança e tem que
dar condições de você ter um atendimento de saúde bom (Felipe, 34
anos, auxiliar de escritório)

O principal papel [do governo] é dar estrutura pra vida das pessoas. É
arrumar os hospitais, dar mais emprego, é isso (...) Porque o pobre tem
mania de: “Ah, não quero pagar condução, quero uma casa de graça
do governo, porque eu pago imposto...”. Não é assim, né? Mas eu acho
que eles têm que dar uma estrutura (Tânia, 21 anos, auxiliar de
produção)

Relacionando os eventos políticos da história recente, muitos entrevistados


revelam uma decepção com o Partido dos Trabalhadores (PT), especialmente sobre o
tema da corrupção. Marcadamente influenciados pela conjuntura pós-impeachment39, os
entrevistados citam Dilma com frequência como exemplo de fracasso, entretanto, Lula
ainda é lembrado como um presidente que abriu “oportunidades”, sobretudo no que se
refere à renda e emprego.

O PT era o partido que eu mais preferia, só que eu me decepcionei com


ele. O Lula era um cara que eu admirava pra caramba, sabe? (...) Era
um cara trabalhador, lutador, eu achava que era honesto, achava que o
Brasil ia pra frente (...), e até que numa certa parte foi. Da faculdade,
das oportunidades, teve muito emprego também. A gente não pode só
ver pelo lado negativo né? Ele fez muito pelo Brasil (...) No momento
eu tô desacreditada no PT, pode ser que eu volte a votar neles, mas no
momento, não (Laura, 41 anos, diarista)

No início ele [Lula] foi muito bom porque teve as rendas, renda isso,
renda aquilo, renda aquilo outro (..) o primeiro mandato dele foi uma
maravilha, o segundo mais ou menos. Aí você vê esperança na Dilma e
a Dilma vem e estraga tudo. Então não tem nem o que dizer, né? Aí
você vê a televisão, vê uma cachorrada dessas (Maria, 44 anos, dona de
casa)

39
As entrevistas foram coletadas no segundo semestre de 2016.

88
O povo fala do Lula, fala da Dilma e não sei o que, e eles podem até ter
feito o que talvez não devesse, a gente também não sabe, eu também
não vi, mas foi depois que o Lula mais a Dilma entrou [no governo] que
esse campo [do emprego] cresceu um pouco, então muita gente como
te disse, só vê o lado ruim, eu gosto de ver o lado bom das coisas
(Valéria, 42 anos, agente de saúde)

A fala dos entrevistados, portanto, evidencia a contradição do lulismo para grande


parte dos moradores de periferia: de um lado, porque a lembrança dos governos lulistas
remetem a um passado marcado pela melhora de renda ocasionada tanto pela geração de
empregos e como pela promoção dos programas sociais; de outro, porque em meio a um
cenário de crise, a constatação veiculada pela imprensa de que o PT era o principal
responsável pelos casos de corrupção recentes fazia, de fato, sentido, afinal a piora das
condições de vida acontecia sob a égide do segundo governo Dilma (2015-2016).
Outro tema bastante controverso nas entrevistas foi a percepção dos
interlocutores acerca dos dois programas sociais mais famosos durante as gestões
petistas: o Bolsa Família e as políticas de cotas raciais nas universidades públicas.
Sobre o Bolsa Família, a maior parte dos pesquisados manifestou-se favorável ao
programa (16 das 21 respostas), geralmente encarando-o como uma iniciativa positiva
para pessoas que passam necessidades de sustento (Gráfico 19).

Gráfico 19 – Qual a sua opinião sobre o Bolsa Família

18
16
16

14

12

10

6
4
4

2 1

0
A favor Contra NR

Fonte: Elaboração própria

89
Embora os pesquisados confirmem a importância do programa, isso não quer
dizer, no entanto, que ele seja visto sem críticas. Em alguns casos, os entrevistados
lembram que muita “gente desonesta” acaba se beneficiando, “banalizando” o uso do
programa. Outros acreditam os requisitos do programa acabam por beneficiar as pessoas
que não “correm atrás”. Uma entrevistada inclusive criticou o fato de que o benefício
pago havia se tornado “uma fortuna”40:

O Bolsa Família foi criado por um motivo bacana, a ideia de se fazer o


Bolsa Família não foi ruim, mas tem gente se beneficiando, como em
tudo, tem o certo e o errado. Então eu acho que tem muita gente
desonesta se aproveitando de Bolsa Família, mas tem muita gente que
precisa de Bolsa Família. Que tá tendo, tá conseguindo sobreviver,
porque tem o auxílio do Bolsa Família, então de fato ele é importante
para essas pessoas (Clara, 30 anos, dona de casa)

Eu acho bom, porque ajuda as pessoas, mas aí no caso teria que impor
alguma lei para pessoa não ficar dependendo só do Bolsa Família, de
correr atrás de um emprego para conseguir manter uma vida mais ou
menos, mas tem muita gente que depende muito do Bolsa Família e
acaba não tendo nada (Marcos, 19 anos, desempregado)

Olha, hoje, eu vou ser sincera (..) eu acho que hoje [o Bolsa Família]
banalizou, né? Banalizou porque assim, (...) hoje tem mães que não leva
filho pra escola, hoje tem mães que não estão nem aí (...) Hoje as
pessoas pegam uma fortuna, [antigamente] era muito pouquinho, tá?
Era pouquinho por criança, hoje não. Hoje o pessoal pega muito
dinheiro, muito dinheiro mesmo, então (Maria, 44 anos, dona de casa)

Talvez não seja trivial o fato de que nenhuma das frases mencionadas acima tenha
sido afirmada por algum entrevistado beneficiário do Bolsa Família. Mesmo assim, é
possível observar que mesmo entre aqueles que recebem o benefício, há uma certa
desconfiança quanto à justiça dos critérios de seleção do programa.
Um exemplo disso é a fala de Afonso, taxista de 39 anos e morador de uma
comunidade próxima ao pico do Jaraguá. Pai de uma criança de nove meses e com a
esposa desempregada, Afonso afirma não ter tido nenhuma dificuldade para ter acesso ao
benefício, mas se questiona em relação aos critérios adotados41. Neste caso, ele cita o
exemplo de um casal de vizinhos, ambos desempregados e com quatro filhos, que tiveram
acesso negado ao benefício pelo governo:

40
Em 2016, ano das entrevistas, o valor do Bolsa Família variava de R$ 85 até R$ 372, a depender da
quantidade de filhos morando com a família.
41
“Um exemplo vai, minha esposa fez o Bolsa Família, e foi até rápido para ela fazer o Bolsa Família,
porque ela está parada, e ajudou, por que ela está desempregada (...) e aí começou a receber agora” (Afonso,
39 anos, taxista).

90
Tem um colega meu que mora na rua de trás, ele tem quatro filhos pô,
e não foi aprovado o dele (...) O governo ajuda realmente, mas nesse
termo ele também atrapalha, [porque] tem que ver no geral. Se você
ajuda uma pessoa em condição x, por que não pode ajudar outra que
tem quatro filhos?

- Mas qual foi o argumento, ele te comentou alguma coisa?

Não, o argumento é o mesmo: “Tem alguma pessoa que trabalha na


sua casa?” Sim, que no caso sou eu. “Você está trabalhando?” Não,
que no caso ela [minha esposa] mostrou a carteira de desempregada
dela. “Você paga aluguel?” Sim. Foi mostrando tudo, essas coisinhas.
E ele também. Pô, ele tem quatro filhos, o cara está desempregado, a
mulher está desempregada. Eu não entendi, então é por isso que eu
estou falando esse aspecto eu acho que é ruim (Afonso, 39 anos, taxista)

Ainda sobre Afonso, um fato digno de atenção é a sua visão sobre o Bolsa Família antes
de receber o benefício e depois. Em suas palavras,

Tem gente que acha, porque acha que o pessoal não quer trabalhar, não
vê como uma ajuda (...) Antigamente eu achava também, eu achava que
era para a pessoa, vamos usar termo certo? Eu achava que era para
vagabundo, esse bando de vagabundo não quer trabalhar, quer receber
o Bolsa Família, e hoje eu utilizo o Bolsa Família, você vê como é que
é? (Afonso, 39 anos, taxista)

A antiga opinião de Afonso sobre o Bolsa Família ser um meio de sustento para
“vagabundos” parece ter mudado quando a sua família precisou se tornar beneficiária do
programa. No entanto, é possível constatar pelas falas de outros entrevistados a mesma
percepção que enxerga o Bolsa Família como um programa que favorece pessoas que não
precisariam (ou mereceriam) o benefício. Ainda que representem uma opinião minoritária
(apenas 4 entrevistados se manifestaram contrários ao programa), elas revelam uma
opinião bastante difundida entre diversos setores da sociedade:

Eu sou contra aquele Bolsa Família (...) Acho que o governo podia fazer
umas cooperativas de trabalho para os caras trabalhar e eles se
manterem. Mas só dando, assim, o dinheiro, não. Porque só dando aí
que eles votam neles. Acho que isso amarra as pessoas (Felipe, 34 anos,
auxiliar de escritório)

Acho que o governo tem que cuidar das pessoas. Das pessoas, por
exemplo, infraestrutura da cidade, sabe? Não você dar Bolsa Família
para ninguém, isso daí não ajuda em nada. O que ajudaria é você forçar
a empresa a gerar emprego para aquela pessoa não depender do Bolsa
Família (Daniel, 37 anos, representante comercial)

Eles disponibilizam muito para as pessoas que não correm atrás. Todas
as minhas amigas que ficam em casa enchendo o cu de droga, que gasta
o Bolsa Família na droga, que fica coçando a periquita, tem Bolsa
Família. E só porque eu trabalho eu não posso ter por quê? Eu tenho
filho igual, eu tenho dificuldade igual, muito pelo contrário. Eu pago

91
água, eu pago luz e as minhas amigas moram em barraco, não pagam
aluguel, não pagam água, não pagam luz e pegam 300 pau de Bolsa
Família pra beber e usar droga. E eu que quero colocar comida aqui
dentro? (Tássia, 36 anos, operadora de telemarketing)

Fica explícita na fala dos entrevistados, portanto, a concepção de que só são dignos
das políticas sociais do governo aqueles indivíduos que apresentaram um “bom
comportamento” moral e algum grau de “esforço individual” que justifiquem moralmente
aquele benefício. Trata-se, em última instância, de uma atualização daquilo que Caldeira
(1984) sublinhou como “particularização do direito” em favor da “generalização do
favor”, uma forma de pensar a cidadania como uma esfera de direitos destinado apenas
as pessoas que “merecem”, separando assim a sociedade entre as pessoas “honestas” e
“desonestas” (CALDEIRA, 1983, p.263-264).
Essa concepção, aliás, atinge em cheio o desenho dos programas sociais.
Sujeitando os benefícios sociais a critérios objetivos de avaliação e eficiência (as
condicionalidades), cristaliza-se no âmbito desses programas uma espécie de visão
moralista da cidadania em detrimento da concepção universalizante dos direitos, cuja
principal consequência não é outra senão criar dispositivos de regramento moral para
esses beneficiários, de modo que eles possam ser ajustados dentro de um comportamento
desejado ao suposto critério do merecimento.
Talvez a ótica do merecimento nos ajude a entender porquê a opinião dos
pesquisados sobre as políticas afirmativas, como as cotas raciais nas universidades
públicas, costumou ser diametralmente oposta a encontrada no Bolsa Família. Das 21
respostas coletadas, apenas 8 foram favoráveis à política, enquanto 12 se manifestaram
contra (Gráfico 20).
Gráfico 20 – Qual a sua opinião sobre cotas raciais

92
14 13

12

10
8
8

0
A favor Contra

Fonte: Elaboração própria

Sustentada pelo imaginário de que a cota racial ameaça privilegiar pessoas pelo
fato exclusivo de sua cor, a política é criticada como um atentado a lógica do “mérito” e
do “esforço”, visto que o critério da raça no ato da seleção poderia se sobrepor ao da
critério da competência individual, tornando-se uma injustiça contra aqueles que estão
“correndo atrás”42.

Sou contra qualquer tipo de cota. Eu acho que tem que ser pelo esforço
e mérito. Não tem que obrigar. Não tem que ter um certo número nem
pra branco, nem pra preto, nem pra índio e nem pra japonês, entendeu?
Então, eu acho que se tem pra negro tinha que ter pra índio, tinha que
ter pra mameluco, tinha que ter pra pobre, entendeu? Porque o negro
ele não é tão diferente das outras pessoas só porque ele é pretinho. Eu
não sou pretinha, mas eu sempre sofri preconceito porque eu sou
magrela. E aí? Vai ter cota para os magrelos? Não! (...) Tem que ser
nota, independente de ser preto, ser branco. A inteligência não tem cor
e quem vai pra faculdade vai e passa por inteligência, não porque “Ah,
separa umas cota pros pretinho porque eles são mais burros”. Não! (...)
Tem que estudar, como o branco estudou, como o índio, entende?
(Tássia, 36 anos, operadora de telemarketing)

Eu acho ridículo isso aí. Ridículo. Porque eu já acho que isso é um


preconceito, se você está querendo fazer isso é porque você já tá com
preconceito, não é racismo? Eu já acho racismo (Laura, 41 anos,
diarista)

Eu acho estranho. É diferente da cota de deficientes físicos nas


empresas, que tem que ter. Eu acho que tem que ter, isso eu concordo.

42
Um fato interessante a se notar é que mesmo entre os negros entrevistados a cota racial é vista
majoritariamente como negativa. Dos 11 negros que participaram da pesquisa, 8 responderam ser contrários
às cotas enquanto 3 se manifestaram a favor. Já entre os 10 brancos, essa proporção foi balanceada entre 5
e 5.

93
Tem que se dar a oportunidade pra eles, mas o negro tá normal como a
gente, tem que concorrer em igualdade (Felipe, 34 anos, auxiliar de
escritório)

O próprio governo cria isso, não é? Acho que o próprio governo


alimenta isso. A partir do momento que o governo dá uma cota por
causa da cor da pele da pessoa, ele está (...) discriminando o negro.
Porque fala que negro é diferente do branco, então o próprio governo
cria isso (...), está dando uma oportunidade de uma pessoa entrar na
faculdade (...) e lá mesmo ela vai ser discriminada: “Você entrou aqui
porque você é negra, se fosse branca você não entrava” (Daniel, 37
anos, representante comercial)

Por outro lado, há também aqueles que veem as cotas de forma positiva. Embora elas
tenham aparecido de forma minoritária na amostra, os argumentos favoráveis vão desde
uma explicação científica (“foi feito um estudo”) à perspectiva justiça social (“a vida
deles é mais difícil”).

Acho que a favor, porque tudo tem um porquê. Foi feito um estudo,
feito um levantamento e realmente os negros tiveram e ainda tem essa
dificuldade a mais que os brancos, hoje em dia não é tanto porque os
brancos aqui no Brasil tá todo mundo lascado, mas não acho desleal
essa cota, não acho errado (...) Dá oportunidade a várias outras pessoas
que talvez nunca teriam (Clara, 30 anos, dona de casa)

Eu sempre ouço falar na televisão que tem aqueles grupos que lutam
contra as cotas porque acham uma prova de racismo, mas como a vida
deles é mais difícil eu não vejo nada demais não, então eu sou a favor.
A vida deles é mais difícil e por que não aproveitar e obter, não uma
vantagem, mas uma facilidade? Tá disponibilizando e não vejo por que
não usar. Não só por ser negro, mas por ser pobre também, acho que até
tem cota pra pobre estudar. O que tem de demais? (Rita, 48 anos, dona
de casa)

Diferenças de opinião à parte, todos os entrevistados concordam quanto a


existência de racismo no Brasil. A diferença de tratamento entre negros e brancos e
decorrente a segregação das oportunidades pela cor da pele estão presentes em inúmeros
exemplos por eles apresentados:

[É mais difícil ser] preto, [porque] você chega num lugar à pessoa já te
olha de maus olhos. Bota um branquinho na rua, dois branquinhos,
assaltante, bem arrumadinho, passa por você, você nem desconfia dele.
Vem dois criolinhos: Ó esse negão aí (...) Você pode ver a abordagem
aí, geralmente o cara não fala: Ô branquelo! Já com o neguinho a
história é outra (Jônatas, 47 anos, encanador)

Por exemplo, eu tenho uma amiga preta. Entra nós duas na loja, eu tô
aqui fuçando na roupa e não tem ninguém atrás de mim, ela tá ali na
outra arara e a vendedora tá atrás dela. A vendedora não quer ajudar,
ela quer ver se a minha amiga não vai roubar, entendeu? (Tássia, 36
anos, operadora de telemarketing)

94
Tem muito racismo né? Ver um branco correndo ninguém faz nada,
agora se você ver um negro correndo já está roubando. É bem assim
(Laura, 41 anos, diarista)

Às vezes as pessoas ficam inseguras só porque eu sou negro e tal, aí


levanta o vidro do carro, para de mexer no celular (Odilon, 21 anos,
desempregado)

Por causa do preconceito, não tenho dúvida. Numa função que tenha
um negro e um branco trabalhando, geralmente, o branco tem mais
vantagens e ganha mais, o salário normalmente é maior (...) Se você tá
andando na rua aqui de noite, por exemplo, e você dá de cara com um
rapaz negro alto, infelizmente, a pessoa fica com medo, tem medo. Se
você ver um rapaz alto, branco do cabelo liso você não vai ter o mesmo
medo (Rita, 48 anos, dona de casa)

É difícil pro negro ser um empresário de sucesso, eu acho que é mais


complicado mesmo, pelas oportunidades. Eu não tenho, mas tem muita
gente que tem [preconceito]. Muita gente com recurso, que tem. Então
tem muita gente que se for um negro e um branco, e tiver o mesmo par,
ele não tenta analisar critérios pra... ele não procura critérios pra julgar
e separar o melhor, ele pega o branco porque não é o negro, entendeu?
Eu acho que é mais difícil [ser negro] (Felipe, 34 anos, auxiliar de
escritório)

Se é possível afirmar que há certo consenso entre as respostas sobre a existência


de racismo no Brasil, o mesmo desaparece quando os entrevistados são perguntados sobre
o que explicaria o fato de os negros terem menos oportunidades de vida.

Porque as pessoas [negras] se veem diferentes. Eu acho que o próprio


negro não se aceita, porque a maioria ao redor é branca e tem uma
aceitação melhor e tal, mas cada um tem que assumir o que é e pronto.
Têm negros muito bem resolvidos e assim vai (Clara, 30 anos, dona de
casa)

Eu acho que não tem muito [o que fazer]. Abrir mais a mente das
pessoas, não tem outro jeito (...) Igual eu te falei, os negros mesmo já
têm um preconceito, sabia? Eu conheço muitos negros que eles mesmo
são meios preconceituosos com eles mesmo (...) “Ah, porque eu sou
negro e eu não vou conseguir”, “Ah, por que eu sou negro estão me
olhando assim, acham que eu vou roubar” (...) Pela forma que eles já
devem ter sofrido né, algum preconceito (Laura, 41 anos, diarista)

Ainda sobre essa questão, um caso interessante é o de Valéria, 42 anos, negra,


agente de saúde, moradora de uma comunidade no Jardim Brasília, na Zona Norte
paulistana. Formada em pedagogia por uma faculdade particular, seu ingresso na
faculdade só foi possível graças ao Bolsa Universidade, um programa estadual de bolsas
vinculado ao Escola da Família43. Na sua visão, a faculdade mudou a sua vida, ainda mais

43
Bolsa Universidade é um benefício concedido pelo Programa Escola da Família, da Secretaria de
Educação do Estado de São Paulo. Em vigor desde 2004, o programa concede bolsas de estudo em

95
por sua condição enquanto mulher negra, e que isso só foi possível pela oportunidade do
programa.

A gente não tinha tantas oportunidades, principalmente, nós, negros. Só


depois que eu tive a condição [de estudar] (...) Eu achei que foi bem
legal, porque estendeu, não ficou só naquele bolo ali das condições
melhores, então eu que não tinha condição nenhuma pude estudar e
quero continuar estudando. Foi uma porta que se abriu pra mim e que
eu, se Deus quiser, não quero deixar fechar (Valéria, 42 anos, agente de
saúde)

Por outro lado, ao ser perguntada sobre as cotas raciais, essa mesma entrevistada
manifestou-se contrária a medida, sob a justificativa de que a falta de um critério racial
objetivo poderia deixar a “coisa muito bagunçada”.

Eu acho que deveria ser mais apurado (...) Eu acho que cota, assim, fica
uma coisa muito bagunçada. Porque as pessoas vão lá e querem por ‘A
mais B’ dizer que elas são negras, por fraude. Hoje em dia todo mundo
é negro (Valéria, 42 anos, agente de saúde)

Ou seja, ainda que os entrevistados reconheçam o racismo enquanto problema


social grave, que afeta as oportunidades de vida da população negra, tem-se a percepção
de que a solução para o problema é exclusivamente individual e não coletiva; uma questão
de “consciência” das pessoas e não motivo para política pública.
Não é estranho, portanto, que as políticas de cotas sejam encaradas de forma tão
negativa pelos pesquisados. Encarada como um “privilégio” dados aos negros, a crítica
às políticas afirmativas são uma prova da resiliência do ideário meritocrático sedimentado
nas camadas populares, mostrando que não há visão de mundo justa que não tenha como
critério primordial o mérito da pessoa.
É daí que se pode lançar luz acerca do que os entrevistados entendem por função
social do Estado. Tendo em vista que o governo é tido como o responsável por
proporcionar as condições sociais mínimas da população (saúde, segurança, educação e
emprego), existe um entendimento de que é compreensível que o poder público
disponibilize programas de auxílio material para os mais pobres por necessidade de
sobrevivência. Porém, é preciso que os beneficiários comprovem que não apenas
dependem desses recursos como são dignos de recebê-lo, demonstrando por meio de atos
e condicionalidades que aquela pessoa não se “acomodou” após o recebimento dos
benefícios.

instituições particulares de ensino superior a alunos que tenham uma maior dificuldade em custear os
estudos no ensino superior.

96
São essas as oportunidades que os entrevistados entendem ser justas para
reivindicar dos seus governantes. O contrário disso é o que eles entendem por “cotas”,
isto é, benefícios sociais concedidos pelo governo que não estejam ligados nem à
necessidade de sobrevivência, nem às aptidões do mérito individual. Ainda que tenham
como pano de fundo uma causa justa – o combate ao racismo, por exemplo – os
entrevistados entendem que esse tipo de oportunidade é uma injustiça, do ponto de vista
abstrato, porque recria novas hierarquias de privilégios na sociedade, comprometendo
assim os horizontes de sucesso dos esforçados.
No plano concreto, contudo, a história é outra. Vivendo na pele a precariedade dos
bens e serviços públicos, os entrevistados conhecem as oportunidades do governo mais
pela via da ausência do que pela presença, mais pela exclusão de direitos do que pela sua
inclusão, o que os leva a concluir que a culpabilidade pela desigualdade social e o
consequente insucesso dos mais pobres no país é prioritariamente do político – esse
personagem que durante quase todas as entrevistas aparece como aquele que se enriquece
indevidamente do trabalho de outros, que encontra na corrupção e no imposto suas
formas preferidas de espoliação.
A falta de oportunidades do governo converge para a falta de oportunidades de
trabalho e estudos, formando um todo coerente na vida dos entrevistados para explicar
por que o esforço individual nem sempre (ou quase nunca) resulta em sucesso na vida –
aqui entendido como um estado de satisfação pessoal e coletiva ativado pela realização
dos sonhos de consumo, e que plasmado a uma noção de estabilidade financeira,
despertam uma sensação de melhora de vida tanto para si como para as próximas
gerações.
É preciso considerar, no entanto, que essas não são as únicas oportunidades que
os entrevistados destacaram para pensar nos tipos de possibilidades que levam as pessoas
a terem melhores condições de vida. Na verdade, para além desses aspectos mais gerais,
os entrevistados consideram que uma vida bem-sucedida é muitas vezes resultado de uma
estrutura social anterior, que antecedem os indivíduos pelo histórico familiar e chegam
desde o “berço”, no âmbito do lar. Por essa razão, cumpre-nos analisar o que os
entrevistados pensam quando o assunto é família.

3.2. “O SUCESSO DEPENDE DA FAMÍLIA”: PERCEPÇÕES FAMILIARES

97
3.2.1. “FAMÍLIA É A BASE DE TUDO”

Para elucidar a percepção dos interlocutores acerca da sua posição na sociedade,


analisamos em primeiro lugar o conceito individual de “sucesso na vida”. Ela nos
apresentou os imaginários sociais dos moradores de periferia referentes aquilo entendem
por um estilo de vida bem-sucedida, e de que maneira esse registro se dá nos termos de
realização em um certo padrão de consumo e numa certa expectativa de estabilidade
financeira.
Uma outra definição de sucesso, no entanto, surgiu no decorrer da investigação.
Relacionando o sucesso pessoal a uma combinação de realizações financeiras e
familiares, alguns entrevistados demonstram que para uma vida bem-sucedida
estabilidade econômica e unidade familiar são fatores primordiais.

Uma pessoa bem sucedida pra mim seria uma pessoa realizada, assim
financeiramente e familiarmente, né? Vamos dizer: que tenha uma
estrutura, assim, com a sua família, que seja bem estruturada, unida.
Que tenha sua casa própria, um emprego bom (...) então isso eu
caracterizo uma pessoa bem sucedida (Adilson, 27 anos, auxiliar de
produção)

Eu acho que uma pessoa bem-sucedida ela tem que ter primeiro uma
família bem estruturada, porque você ter uma família que te apoie, você
tendo uma família estruturada, já é um voo que você tem nas alturas
(Valéria, 42 anos, agente de saúde)

Equacionando a família em figuras como “base”, “esteio” e “porto seguro”, os


entrevistados indicam um imaginário que mostra a noção de família como uma estrutura
que sustenta a existência das pessoas, aquela que oferece subsídios para a sua inserção no
mundo social:

Família é a nossa base, o esteio, porque através da família que a gente


faz tudo (Clarissa, 48 anos, dona de casa)

A família é base de tudo né? (...) É o alicerce pra você ser alguém na
vida (José, 19 anos, ajudante geral)

Acho que a família é a base pra conseguir tudo (...) É o seu porto seguro
pra te apoiar (...) Se você tá bem estruturado familiarmente, você tem
uma boa estrutura. Você tem uma cabeça boa, você vai no mercado,
você se dá bem com as pessoas, você tem um relacionamento bom os
outros, tudo por causa da família (Felipe, 34 anos, auxiliar de escritório)

Mas o que significa essa estrutura familiar na visão dos pesquisados? Em que
consiste esse apoio? E por que ele importa tanto como critério de uma vida bem-

98
sucedida? Em nossa pesquisa, os temas relacionados à família nos conduziram à dois
caminhos de análise. No primeiro deles, observamos a importância do arranjo familiar
enquanto estrutura material de sobrevivência. Essa se manifesta por meio da interação
das redes de parentesco, que atuam desde o auxílio à moradia até a indicações de
emprego, passando pelo amparo no cuidado de filhos e parentes, entre outras ajudas e
compensações. Mas a importância familiar também aparece sob a forma de estrutura
afetiva, presente tanto na transmissão dos valores morais como na promoção dos
estímulos fundamentais para a formação do “cidadão de bem”.

3.2.2. “FAMÍLIA SÃO PESSOAS COM QUEM A GENTE PODE CONTAR”

Ao considerar a família enquanto estrutura material de sobrevivência, os arranjos


familiares são vistos como aquelas redes nas quais as pessoas podem confiar. Como
lembra Sarti (2011), essa delimitação não se restringe a um grupo genealógico, e sua
extensão de parentesco se dá prioritariamente entre os vínculos de convívio, isto é,
pessoas cuja interação se desenvolve dentro de uma rede de obrigações recíprocas e que
acabam por estabelecer, pela via convivência, uma complexa teia de relações que
envolvem laços de afeto, parceria e cooperação.
Essa concepção familiar fica ainda mais evidente quando ocorrem os momentos
de necessidade, situações de carência pela qual enfrentam uma pessoa ou grupo familiar
e que exigem dos parentes mais próximos a obrigatoriedade moral de ajudar o necessitado
sob a promessa de retribuição deste no futuro. É esse vínculo de reciprocidade que faz da
família o ambiente no qual “você pode contar”, “não importa o que estiver passando”,
porque “está sempre ali do seu lado”:

[Família] é estar todo mundo sempre unido independentemente da


situação (...) que você pode contar, se está brigado ou não, você pode
contar (Marcos, 19 anos, ajudante geral)

A importância da família é que você tem uma pessoa do seu lado pra
tudo que você precisar. Se você tiver doente, se você não tiver. Que não
importa o que você tá passando, tá sempre ali do seu lado (Valentina,
16 anos, estudante)

Família é bastante importante. Um puxa o outro, se um cai o outro está


lá para levantar, para ajudar (José, 19 anos, ajudante geral)

A família está ali para tudo. Por exemplo: se meu irmão estiver
passando necessidade, vamos dar uma ligada para a família, vamos se

99
unir para ajudar ele (...) não importa o momento (Afonso, 39 anos,
taxista)

Parceiros nas horas boas e ruins, uma das necessidades mais comuns requerida
dos familiares é a moradia. Esse, aliás, é um ponto ilustrativo para descrever o universo
social dos moradores das periferias de São Paulo, tendo em vista que a opção de
habitação nessas regiões revela ao mesmo tempo a trajetória familiar dessas populações.
Mais uma vez recorrendo à formação histórica das periferias paulistanas, ao
considerar o processo de urbanização da cidade durante o século XX, percebe-se que a
chegada das ondas migratórias internas que povoaram as franjas metropolitanas se deu
pela mobilização de recursos provenientes dos grupos de relações primárias do migrante,
particularmente do grupo doméstico e a família. Assim, o migrante que veio para São
Paulo em busca de emprego e melhores condições de vida não veio tentar a sorte de
maneira solitária, mas recorreu aos parentes e pessoas próximas do seu local de origem
quer seja para dividir as contas44, quer seja para compartilhar o sonho de comprar um
terreno e levantar um cômodo (SARTI, 2011, p.33-51).
Em nossa pesquisa, pudemos constatar que dos 21 entrevistados, ao menos 18
moravam em um cômodo ou residência cedido ou alugado por algum ente da família, a
maior parte deles migrantes do Nordeste. Alguns convivem com os familiares dividindo
o quintal45, outros moram na casa que um pai/mãe ou sogro/sogra começou a construir
há algum tempo, e outros ainda vivem de aluguel em alguma propriedade de um tio/tia
ou avô/avó46, mas fato é que praticamente nenhum entrevistado estava morando em um
local neutro às interferências familiares.
Talvez isso explique por que parte significativa dos entrevistados utilizam o
termo “base” como referência para estimar a importância da família em sua vida pessoal,
afinal, sem essa estrutura material familiar, alguns deles não teriam sequer um teto para
morar.

Meus pais abriram a porta (...) porque a gente mora aqui e não paga
aluguel e já é uma grandessíssima ajuda. Isso também foi facilitando
nossa vida (Clarissa, 48 anos, dona de casa)

44
Neste sentido, a fala de uma das entrevistadas é exemplar: “Eu só não tenho mais sucesso porque eu sou
sozinha pras contas. Se eu arrumasse alguém pra me ajudar a dividir as contas já ia melhorar bastante”
(Tássia, 36 anos, operadora de telemarketing)
45
“Mora eu, minha mãe e meus cinco irmãos, todos moram no quintal” (Maria, 44 anos, dona de casa)
46
“Minha família que aluga [essa casa], meu pai. A minha sorte é essa” (Afonso, 39 anos, taxista)

100
Minha família que aluga [essa casa] pra gente. É do meu pai. A minha
sorte é essa (Afonso, 39 anos, taxista)

O fato de a entrevistada confirmar que vida ficou mais fácil confirma o passado
difícil inscrito nas memórias familiares das periferias paulistanas. Episódios de extrema
pobreza, fome e humilhação permeiam a fala dos entrevistados:

[Minha infância] era difícil. A gente já passou fome (...) comíamos fubá
com leite, quer dizer, nem era com leite, era fubá com água (Fernanda,
26 anos, recepcionista)

Quando eu tinha sete anos, eu acordava bem cedo, estudava de manhã,


tava, acho, que na primeira série, e aí minha mãe mandava eu ia na
padaria todo dia pedir sobra do pão pra gente poder tomar café, porque
às vezes não tinha e aí eu ia [pedir] (...) Eu chegava cinco horas [da
manhã] lá e a padaria abria umas cinco e dez, cinco e quinze (...) Era
melhor pedir do que ficar com fome (Odilon, 21 anos, desempregado)

A gente tinha uma vida muito dura, de ter que ir buscar lenha lá na serra,
não tínhamos luz elétrica, não tínhamos fogão a gás, não tínhamos nada
disso, então era aquela casa bem humilde mesmo, mas extremamente
humilde, então assim nós já nos acostumamos e aprendemos que se
você não trabalhar você não come (Valéria, 42 anos, agente de saúde)

Em um ambiente de extrema necessidade, a importância material da família


solidifica os laços de ajuda mútua e cooperação entre os membros da rede de parentesco.
Entretanto, esses laços não necessariamente se estabelecem de forma harmoniosa,
servindo muitas vezes de pretexto para conflitos, explorações e abusos.
Voltamos ao caso de Laura, 41 anos, diarista e moradora da Casa Verde, na Zona
Norte paulistana. Até os cinco anos de idade, Laura afirma ter tido uma “vida boa”,
vivendo o modelo ideal da família pobre paulistana: o pai, migrante nordestino, era o
“provedor” da família que trabalhava fora de casa e a mãe, “dona de casa”, cuidava dos
cinco filhos. Tudo iria mudar com a repentina morte do pai, vítima de cirrose.
Nessa época, a dinâmica da família se desestrutura completamente: a mãe volta a
trabalhar como costureira e os filhos mais velhos passam a cuidar dos mais novos. Os
rendimentos da mãe, no entanto, eram insuficientes para cobrir as necessidades básicas
dela e dos filhos, o que fez com que a família fosse obrigada a pedir comida na casa dos
vizinhos, uma memória descrita pela entrevistada como “humilhante”:

Faltava as coisas pra gente porque minha mãe ficou viúva com cinco
filhos, tudo pequeno, e a gente não tinha as coisas pra comer. Aí a gente
ia na casa dos outros pedir, aí a gente ganhava muito “não” na cara,
ninguém dava (...) É humilhante você pedir coisas na casa dos outros e
as pessoas falarem “não”, sabendo que a pessoa tem e não te dá (Laura,
41 anos, diarista)

101
Sem condições de manter o aluguel da casa que moravam, e sem conseguir viver
da ajuda “dos outros”, Laura recorda que sua mãe foi pedir socorro para uma de suas
irmãs, e a família passou a morar de favor na residência de uma tia. O favor, em
contrapartida, era obrigatoriamente retribuído com serviços domésticos das crianças:

Me sentia um pouco usada porque a gente era meia empregada na casa


da tia, a gente ia pra casa da minha tia e tinha que limpar casa senão
apanhava. Tinha que encerar o chão com a mão e, assim, isso eu lembro
(...) porque desde pequena eu tive que fazer senão apanhava (Laura, 41
anos, diarista)

Além dos serviços compulsórios, Laura relembra que na casa da tia o tratamento era
diferenciado até mesmo na comida, uma vez que até o refrigerante lhes era negado pela
anfitriã:

Passamos a morar na casa da minha tia e essa minha tia, minha mãe
tinha que fazer comida pra gente e minha tia fazia [para a família dela],
mas era um fogão só, e era tudo dividido. E a gente era pequeno e via
os outros comendo as coisas boas e eles não davam nada pra gente (...)
Tipo refrigerante, a gente via eles tomando e a gente não podia tomar
(Laura, 41 anos, diarista)

Ou seja, embora a irmã da mãe tenha as ajudado abrindo a sua casa em um


momento de necessidade, este se deu por valores que excedem o altruísmo familiar, o que
demonstra que os laços de cooperação na família são operados mais por uma rede de
reciprocidades obrigatórias do que por quaisquer outros sentimentos (SARTI, 2011).
Pelo fato dessa rede ser limitada pelas condições de classe, alguns entrevistados
consideram que o problema da pobreza começa, em primeiro lugar, pela falta de sorte da
família, já que o berço de ouro é, em muitos casos, o principal elemento definidor para
um padrão de vida bem-sucedida:

Eu acho que quem nasce rico, que tem uma família rica, tem mais
chances na vida. Porque às vezes o cara se dedica para caramba, mas
nem sempre ele consegue chegar aonde quer, ou se consegue ele se mata
a vida inteira e chega depois de muito tempo. E tem gente que nasce em
berço de ouro, e nem faz nada da vida, mas está lá. Às vezes nem quer
isso, mas está lá (Leticia, 18 anos, estudante)

Olha, pra ter [sucesso na vida], precisa de muita coisa, depende muito.
Por exemplo: eu não nasci em berço de ouro (...) E aí entra naquilo que
a gente comentou: gente rica conhece gente rica, gente pobre conhece
gente pobre (Rosa, 39 anos, manicure)

De todo mundo que estudou comigo, eu só conheço uma pessoa que é


muito bem sucedida, mas a gente sabe que é porque lutou muito, mas
também por outros motivos (...) [Por causa do] dinheiro da família,
enfim (...) mas se não fosse, as coisas teriam sido bem mais difíceis

102
também (...) Então não é só se esforçar, é também ter sorte e as costas
bem larga pra se proteger caso alguma coisa aconteça (Clara, 30 anos,
dona de casa)

3.2.3. “FAMÍLIA CRIA JUÍZO”

A importância da família, contudo, não se encerra nas redes de reciprocidades


suscitadas pelas necessidades da vida material. Além de ser o núcleo de sobrevivência
para os mais pobres, a família também constitui ela mesma um valor fundamental, sendo
uma referência básica na construção do universo simbólico dos indivíduos e na
subjetivação de suas próprias identidades (SARTI, 1995).
Primeiro elo afetivo que os indivíduos desenvolvem durante a vida, é pelo núcleo
familiar que são transmitidos os estímulos emotivos, capazes de construir elementos de
significado para o amadurecimento existencial e o reconhecimento pessoal, que por sua
vez criam estímulos morais na medida em que se estabelecem os primeiros juízos de
valor referentes ao certo e errado, o justo e injusto, o sucesso e fracasso, etc.
(BOURDIEU, 2016, p.126).

É em torno dela que homens e mulheres constroem uma ordem


plausível de vida: é o espaço que viabiliza a sobrevivência cotidiana
pelo esforço coletivo de todos os seus membros; é o espaço no qual
constroem os sinais de uma respeitabilidade que neutraliza o estigma da
pobreza; é o espaço, ainda, no qual elaboram um sentido de dignidade
que compensa moralmente as adversidades impostas pelos baixos
salários, pelo trabalho instável e pelo desemprego periódico (TELLES,
2001, p.107)

Não à toa, as falas dos entrevistados abaixo indicam uma ideia de família
enquanto estrutura tanto do ponto de vista material quanto moral, capaz em um só tempo
de “estar do seu lado para o que precisar” e “criar juízo”, “se unindo para ajudar o irmão”
mas sem esquecer de “orientar” para o “caminho certo”, lembrando sempre de dar aquele
“apoio emocional” que todos e cada um de nós precisamos:

Eu acho que família é tudo, é a base de tudo, né? Família é estrutura


(...) acho que é tudo na vida da gente, ali é onde você se concentra, é
onde você larga tudo, é onde você cria juízo, eu acho que é por aí
(Maria, 44 anos, dona de casa)

Família é pra quando a gente precisa de apoio, nem digo apoio


financeiro, mas apoio emocional mesmo. A gente aqui é muito unido,
tudo que a gente faz é junto (Clarissa, 48 anos, dona de casa)

103
A família, na verdade, é onde você começa tudo. Se você tem uma
família bem estruturada, se você tem uma família talvez bem orientada,
filhos bem orientados, já diziam lá atrás: Eduquem os seus filhos para
não ter que punir os adultos. Então se a sua família é bem estruturada,
você orienta bem os seus filhos (Daniel, 37 anos, representante
comercial)

3.2.4. “FAMÍLIA TEM QUE ESTAR LIGADA COM DEUS”

Embora estas sejam figuras ideais de uma família estruturada, a realidade que
esses entrevistados enfrentam parece oferecer, em contrapartida, um quadro bem mais
desestruturado do que o anunciado pelo discurso. São frequentes, aliás, os relatos de
familiares envolvidos com negócios ilegais e o mundo do crime, inclusive com histórico
de vícios em drogas e alcoolismo, o que não raras vezes também implicou em prisões ou
mortes precoces, obrigando a família a um constante refazer de suas estratégias e projetos
de vida, completando aquilo que Telles (2006) chamou por “impactos disruptivos das
sociabilidades cotidianas” (TELLES, 2006, p.45).
Neste sentido, um caso exemplar é o de Edileusa, 49 anos, autônoma e moradora
da COHAB 4, na Zona Leste. Filha de migrantes nordestinos e com quatro irmãos,
Edileusa conta que perdeu o pai cedo, aos sete anos de idade, morto por atropelamento.
Sua mãe na época trabalhava em uma fábrica de papelão – “um serviço horrível pra
sustentar a gente” – cujo salário era insuficiente para o mantimento dela e da família.

Assim, arroz e feijão nunca faltou. Minha mãe era muito responsável,
mas até um leite, uma mistura, até uma manteiga para passar no pão
[faltava]. Até um sabonete para tomar banho, porque às vezes ela
comprava dois sabonetes por mês, acabou tinha que tomar banho
mesmo de sabão em pedra, tomar banho de canequinho. Eu fui ter
chuveiro quando eu tinha uns quatorze anos (...) Era aquela dificuldade,
não é? Depois tive que trabalhar humilhada na casa dos outros, pra ter
onde morar mesmo, pra ter uma paz (Edileusa, 49 anos, autônoma)

Pouco tempo mais tarde, a mãe de Edileusa se ajunta com o padrasto,


transformando a vida da família uma “bagunça”. O padrasto era alcoólatra e viciado em
remédios e, nos seus momentos de “loucura”, “quebrava todas as coisas dentro de casa”.
“Muitas vezes Deus nos livrou da morte, muitas vezes”, recorda. Para fugir dos
problemas de casa, ela conta que chegava inclusive a limpar a casa das vizinhas “a troco
de nada”, só para estar em uma casa melhor que a dela.

Eu tinha um padrasto que era muito ruim (...) Ele bebia, tomava
remédio, calmante e ficava transtornado. Parecia, Deus que me perdoe,
um monstro. Ele quebrava todas as coisas dentro de casa (...) destruía
tudo em casa e a gente não tinha paz (...) Muitas vezes eu ajudava as

104
vizinhas a limpar a casa a troco de nada, só para estar numa casa melhor
que a minha, ter um chuveiro para tomar um banho (Edileusa, 49 anos,
autônoma)

Durante a adolescência, Edileusa trabalhou como doméstica em algumas “casas


de família”. O trabalho era humilhante, mas foi motivado sobretudo “para ter onde
morar” longe do padrasto e, assim, “ter uma paz”. Nessa mesma época, Edileusa conhece
o seu marido e logo decide se casar. Dessa união, nasceram três filhos. A vida parecia
correr bem quando, de repente, sua família tem de enfrentar novamente um dramático
episódio familiar:

Foi assim, o meu filho quando tinha 17 anos (...) ele se misturou lá com
os meus irmãos que aprontavam e ele terminou sendo preso, aí o chão
saiu dos nossos pés (Edileusa, 49 anos, autônoma)

Edileusa evitou contar os motivos que levaram a prisão do filho (aparentemente,


os seus irmãos não foram pegos e seguem foragidos), mas não se esquece de destacar que
foi naquele dia que ela conheceu a sua “salvação em Cristo”:

Aí quando aconteceu isso eu cheguei na delegacia e vi o meu filho


naquela situação eu fui para o banheiro [e orei]: Senhor, só o Senhor na
nossa vida, não tem mais ninguém que possa nos ajudar. Fui para o
banheiro da delegacia, me ajoelhei e fiz um voto para o Senhor: O
Senhor cuida do meu filho porque a partir de hoje eu vou te servir de
todo coração, aconteça o que acontecer, Deus, cuida dele. E Deus é tão
maravilhoso que Ele fala, sabe? (Edileusa, 49 anos, autônoma)

Após essa oração na delegacia, Edileusa relata que foi na casa da mãe e, juntas,
procuraram ajuda em uma igreja evangélica do bairro:

Eu chamei a minha mãe. A minha mãe tinha o meu filho como filho
dela: Mãe. calma (...) eu nunca dei ouvido para a Palavra do Senhor,
mas tem umas igrejas lá em cima, vamos lá conhecer. Aí nós duas
fomos para conhecer, [a igreja] estava fechada, [mas] o pastor veio e
nos deu atenção. Nós desabafamos tudo, daí a gente foi para o culto, e
daí pra frente eu peguei firme (Edileusa, 49 anos, autônoma)

Se a prisão do filho foi a mola propulsora de Edileusa para encontrar a sua


conversão, pelo lado do marido a história é outra. Deprimido com o episódio do filho e
revoltado com a decisão da esposa de se tornar evangélica, o marido se afunda no
alcoolismo, e culpa a esposa pelo fracasso familiar. Resiliente em meio as brigas, Edileusa
buscava manter o equilíbrio entre a união da família e a força da fé.

Meu marido bebia muito. Eu chegava da igreja e ele estava no boteco.


Ele teve tipo uma depressão, porque aconteceu isso com o meu filho,
né? (...) Eu ia buscar ele no boteco, chegava no meio da rua e ele já

105
vinha para brigar comigo na frente dos outros. Eu vinha correndo,
entrava. Aí ele já vinha nervoso para brigar comigo (...) aí ele começava
a falar que eu estava levando dinheiro para pastor, e não sei o que, mas
eu nunca dava ouvido. Eu falava: Todas as promessas do Senhor vão
se cumprir na minha vida (Edileusa, 49 anos, autônoma)

Apesar da serenidade que procura aparentar em todo o seu relato, Edileusa mostra
que os conflitos matrimoniais eram notórios para a família, o que causava desconforto até
para outros familiares. Ainda assim, entre a pressão familiar e a convicção da fé, ela se
mantinha ao lado do marido e “firme nas promessas de Deus”:

Meu marido danou viver na bebida, danou viver no nervosismo, na


depressão. Então tudo ele me acusava, tudo eu que tinha culpa, eu que
não soube cuidar, eu que não soube criar e tal (...) As minhas sobrinhas
se irritavam, porque elas queriam que eu me irritasse e quebrasse o pau
com ele. Porque elas falavam: Não, tia, você faz demais e ele não te
valoriza. Eu falava: Filha, essa é uma luta espiritual. Não é fácil, mas
a gente tem que ter fé em Deus que tudo vai mudar, tudo vai mudar
(Edileusa, 49 anos, autônoma)

Com o passar do tempo, no entanto, a pressão foi cedendo lugar à conversão de


um a um dos familiares, que gradativamente foram assumindo a fé evangélica. Segundo
conta a entrevistada, ao menos vinte pessoas de sua família congregam junto com ela em
sua igreja local. Entre as principais mudanças, ela destaca:

Deus libertou o meu marido das bebidas, do cigarro. A minha filha


também queria ir para o baile funk se perder por aí, o Senhor já trouxe
um marido que apagasse o fogo dela e está uma benção. Toda a família
[está na igreja], você precisa ver que coisa linda (...) Hoje em dia o meu
filho é o braço direito do pastor, muito abençoado. Ele tem duas
casinhas alugadas, ele mora no último andar. Tem um apartamento
alugado. Tem uns três caminhão que ele trabalha na Batavo, (...) e é
muito abençoado, mas através da fidelidade dele e da esposa dele.
Precisa ver que coisa linda. Então todo o testemunho que eles falam eles
falam isso: foi através da minha fé (Edileusa, 49 anos, autônoma)

Foi através da minha fé. O encerramento triunfal do testemunho de Edileusa


revela alguns pontos pertinentes para nossa análise. Em primeiro lugar, que a vida da
entrevistada é um constante desfazer-se de projetos familiar pelo menos desde o final da
infância, quando a morte do pai e a chegada atribulada do padrasto fizeram com que o
trabalho doméstico se tornasse a única saída de emergência em meio ao caos familiar. Já
na fase de casada, a vida de Edileusa parecia seguir um rumo tranquilo até ser
surpreendida com a prisão do filho mais velho, envolvido em um esquema criminoso
junto com seus irmãos.

106
A prisão do filho, no entanto, despertou reações distintas entre a mãe e o pai:
enquanto a mãe se converteu à fé evangélica e passou a ficar cada vez mais firme na
igreja, o pai se perdeu no vício da bebida e colocava a culpa da prisão do filho na esposa.
Mas o que à primeira vista tinha tudo para se tornar o pivô de um potencial divórcio
mostrou-se, na verdade, como a reconstrução do projeto familiar pela via religiosa, uma
vez que a conversão de Edileusa à nova religião fez com que gradativamente os membros
da família fossem atraídos para a igreja, o que fez com que a igreja se tornasse, no
decorrer do tempo, uma extensão do próprio ambiente familiar, da mesma forma em que
a fé evangélica tornou-se a principal forma de expressão moral das percepções e valores
de sua família. Não por acaso, como lembra Edileusa:

A família, assim, tem que estar ligada com Deus, porque quando a gente
está ligada com Deus, que a gente tem uma religião verdadeiramente,
que tem uma religião em fé, amor ao próximo, aí tudo vai bem (...)
Porque graças a Deus toda a minha família é evangélica, então hoje
você consegue ter amor, ter calma, ter paciência, entendeu? Está certo
que ninguém é perfeito, você vai se escorregar, mas daí você já pega na
mão do Senhor e se levanta (...) O casamento tem que ser para sempre,
e assim, os dois, se um está mais agitado, o outro procura acalmar,
porque é a estrutura de tudo, porque. Por isso que está essa bagunça,
muitos casamentos se desfazendo não é? Ninguém tem paciência,
qualquer crise, qualquer desemprego, qualquer problema a pessoa já
perde toda a estrutura, então é por isso que eu falo: você tendo Deus
não, você consegue ir em frente. Você cai, mas você levanta com a mão
de Deus (Edileusa, 49 anos, autônoma)

O testemunho familiar de Edileusa sintetiza uma trajetória e um sentimento


comuns na fala dos entrevistados. Em que pese os sonhos e anseios de uma família
estruturada e bem-sucedida, a realidade apresentada nas entrevistas é a dos projetos de
vida desfeitos e refeitos pelas circunstâncias da privação material, das doenças sem
remédio e das mortes repentinas, das moradias de favor à superexploração do trabalho,
dos trabalhos pauperizados à vida no crime; eventos que não apenas afetam a experiência
cotidiana desses indivíduos como também estendem os seus efeitos a todo o arranjo
familiar envolvido.
É nesse desmanche de expectativas que emerge a igreja evangélica. Agenciando
os dramas familiares em função de um novo projeto existencial, a igreja se torna um
espaço onde uma “nova vida em Cristo” é possível ao ressignificar as dificuldades da vida
dentro de uma cosmologia religiosa, que oferece não apenas um sentido para o sofrimento
bem como caminhos para superá-lo, promovendo assim uma sensação de melhora de
vida. Para entendermos melhor como a esfera religiosa produz esses estímulos em seus
fiéis, o capítulo a seguir se dedica exclusivamente a este tema.

107
3.3. “O SUCESSO DEPENDE DE DEUS”: PERCEPÇÕES RELIGIOSAS

Nas seções anteriores, vimos como o esforço individual é encarado na percepção


dos entrevistados como um pré-requisito para uma vida bem-sucedida. Ainda que as
condições sociais (as oportunidades) possam servir muitas vezes de obstáculos, o esforço
é entendido como uma sinônimo para o sucesso porque é visto como uma virtude dos
que “querem algo na vida” e por isso “não se acomodaram”, sendo portanto dignos de
melhorar de vida. Para isso, vimos como a família é parte central desse projeto, uma vez
que ela é a base pela qual se possibilitam tanto os meios necessários de sobrevivência
quanto os valores morais a serem levados durante a vida.
Embora essas sejam as percepções gerais dos entrevistados acerca do dever-ser
do indivíduo e da família, a experiência vivida dessas pessoas contrasta com a dimensão
ideal desses discursos, mostrando que o projeto de melhorar de vida é constantemente
desafiado pelas condições objetivas de classe, que tornam o esforço inutilizado e as
oportunidades não efetivadas.
O que as leva acreditar, então, no triunfo moral do esforço mesmo em condições
sociais tão adversas? Para entendermos como a fé influencia na vida dessas pessoas é
preciso, no entanto, que olhemos o fenômeno religioso mais de perto. Isso porque a igreja
pentecostal não pode ser resumida a um discurso religioso que tenta convencer os pobres
a se sujeitar a um determinado comportamento econômico, mas é também uma prática
social que busca responder às necessidades de uma população que sofre com graves
carências materiais e simbólicas.
Inspirado nas diferentes articulações possíveis entre as dimensões de
identificação religiosa, e cruzando-as a uma experiência de classe, em nossa pesquisa a
religiosidade pentecostal apareceu sob a forma de dois níveis de existência. No primeiro
nível, encontra-se o discurso pentecostal, isto é, os elementos que constituem a
identificação religiosa pela via da dimensão emocional e a dimensão ética.
Por outro lado, essa mensagem pentecostal só existe em função de um ambiente
religioso capaz de produzir e disseminar as suas ideias, por essa razão, tem-se o segundo
nível de análise, isto é, aquele em que se explicita sob quais práticas comunitárias a igreja
local está envolvida, e qual a sua importância para a vida daqueles que participam dessa
comunidade.

108
Cumpre, portanto, observar como essas dimensões estão articuladas de acordo
com a percepção dos entrevistados.

3.3.1. O DISCURSO PENTECOSTAL: ENTRE A MOTIVAÇÃO E A DISCIPLINA

De modo a entendermos como a religiosidade pentecostal marca o universo moral


das periferias paulistanas, é preciso, antes de mais nada, que se tenha em mente em que
consiste a mensagem desse grupo religioso. Veiculadas dos púlpitos das igrejas até as
conversas informais entre os membros, essa mensagem alcança o mais íntimo do coração
dos crentes, formando o seu juízo de valor sobre si e sobre o mundo, seja para justificar
uma determinada posição de classe como para desenvolver estímulos morais que
atribuam sentido para a participação desses em um jogo social que lhes é excludente.
Para tanto, cumpre-nos destacar a percepção dos entrevistados acerca da
mensagem pregada nas igrejas evangélicas. Afinal, o que essa mensagem tem de
especial? Qual o seu diferencial entre as demais religiosidades? No que ela importa no
dia-a-dia daqueles que nela acreditam?
Com essas perguntas em vista, reunimos aqui as falas dos entrevistados que
delineiam a importância da mensagem evangélica seja do ponto de vista motivacional
como do ponto de vista disciplinar. Veiculadas dos púlpitos das igrejas e chegando até
as conversas informais entre os membros, essa forma de expressão da sabedoria popular
descreve a importância da teologia pentecostal para conferir sentido para a pobreza,
sobretudo quando observada pela lente dos estímulos morais para continuar na luta e
não ceder às tentações.

3.3.1.1. “TODA VEZ QUE VOU PARA IGREJA MINHA VIDA MELHORA”

Provocados a pensar sobre o diferencial da igreja pentecostal frente às outras


esferas da vida, a principal percepção destacada pelos entrevistados foi a ideia de que o
ambiente religioso produz um estado particular de bem-estar, cuja mensagem está
intrinsecamente associada a uma dinâmica que exalta um espírito otimista
independentemente das circunstâncias. Por isso a igreja é reconhecida como o lugar onde
se fala de “superação” e “vitória” diante das “lutas”, onde a “alma é lavada” e a “vida
muda por completo”.

109
Toda vez que eu vou pra igreja a [minha] vida melhora de alguma forma
(...) Quando você tem Deus no coração a sua vida muda por completo,
porque só de você ir pra igreja você já volta com a alma lavada (Tássia,
36 anos, operadora de telemarketing)

O pastor fala em superação, fala como a pessoa deve enfrentar as coisas.


Porque problema todo mundo tem (...) o que diferencia uma pessoa da
outra é a forma como ela encara, porque teremos problema pra sempre,
a vida inteira. Todas as pessoas têm. Cada um encara de uma forma e
isso define o que você vai ser lá na frente (Clara, 30 anos, dona de casa)

Assim, a gente tem lutas, mas a vitória é maior, claro e sempre. É como
diz [a Bíblia]: No mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo. E
lógico, não é porque você serve a Deus que você não vai ter problemas,
que você não vai ter lutas, mas estará sempre forte para lutar (Edileusa,
49, autônoma)

Inspirados nas passagens bíblicas que descrevem episódios em que o sofrimento


humano é encarado como um prenúncio da intervenção divina – a exemplo de José, que
foi vendido como escravo por seus irmãos mas foi resgatado por Deus e recompensado
como governador do Egito, ou como pelos primeiros apóstolos, que sofreram inúmeras
perseguições em nome de Cristo e, no final, conquistaram o prêmio da vida eterna – os
crentes pentecostais buscam, assim, equacionar no campo simbólico as aflições da luta
social com o ânimo espiritual da fé, proporcionando assim estímulos religiosos para
suportar o mal estar da vida cotidiana.

Na minha angústia, têm horas que eu tô angustiada, aí eu vou na igreja


e me sinto bem, me sinto leve (...) Eles abrem a Bíblia, leem a Palavra
e parece que é Deus que está falando com você mesmo, sabe? Algumas
coisas que você tá pensando, aí você pensa Ai caramba, aquilo é pra
mim (Laura, 41 anos, dona de casa)

Mais do que uma mensagem motivacional de natureza qualquer, a palavra


transmitida na igreja é percebida pelos entrevistados como um recado de Deus para cada
pessoa, capaz de conferir alívio para as “angústias da alma” e fazer com que as “coisas
deem mais certo”. Dessa forma, funde-se a ideia de que a motivação veiculada pela igreja
não pertence ao ambiente religioso em si, mas representa na verdade a própria força de
Deus no mundo, cuja acessibilidade está disponível para todo aquele que crê (no Deus
cristão, em primeiro lugar, e na autoridade da igreja evangélica, por consequência).
Essa disponibilidade, contudo, está sujeita a exigências. Isso porque embora Deus
“fale” através de histórias encorajadoras, de superação e força, a mensagem pentecostal
também acredita, em contrapartida, que para Deus agir na vida de alguém é preciso que
essa pessoa responda ao chamado divino por meio de atitudes individuais de fé.

110
Você está chateado, você vai [à igreja], escuta uma palavra, escuta um
louvor, sai de lá mais leve, entendeu? Mas isso vem de você com Deus,
né? Que eu acho que só a igreja não salva ninguém não (Jônatas, 47
anos, encanador)

Eu vejo ele [o pastor] ali como pra ajudar as pessoas, porque, de certa
forma, ele está falando pra dar garra, pra dar entusiasmo, força de
vontade, esperança de que tudo vai melhorar, de que é possível. Mas
acho que o principal responsável por isso é você ter fé e acreditar em
você mesmo, porque depende da forma como você enxerga as coisas
(Clara, 30 anos, dona de casa)

Explicitando a noção de fé como uma atitude que vem de você, a visão dos
entrevistados evidencia como o discurso pentecostal está entrecruzado com uma ética
meritocrática, na medida em que as bençãos da vida religiosa estão correlacionadas a
diligência de cada pessoa na sua luta diária contra as forças malignas do “mundo” e do
diabo. Ancorados sob o preceito bíblico de que a salvação é individual47, a mensagem
pentecostal procura, portanto, reforçar a ideia de que há esperança em meio ao
sofrimento, mas sem desconsiderar que essa esperança está condicionada ao esforço
individual de cada pessoa em favor de sua própria salvação.
Por essa razão, tão importante quanto conhecer o discurso evangélico em sua face
motivacional – que faz suportar as dores do presente em nome de uma vitória que se inicia
na conversão e termina na eternidade – é descobrir como é construído o outro lado dessa
mesma narrativa, isto é, aqueles argumentos pelos quais o estilo de vida religioso passam
a exigir do fiel algum grau de comprometimento em uma vida afastada do pecado, e
passam a disciplinar o corpo e a mente dos crentes por meio de um comportamento moral
específico com a esperança de salvação.

3.3.1.2. “AOS OLHOS DE DEUS, TUDO É PECADO”

Se é certo afirmar que o discurso pentecostal traz consigo uma mensagem


motivadora para seus fiéis, não é menos verdade que sua teologia implica grandes
mudanças no modo de vida daqueles que pretendem seguir sua doutrina. Pelo fato de se
tratar de uma religiosidade fundamentalmente ascética, no qual a salvação da alma é
resultado de um processo constante e gradual de negação do mundo, a conversão para a
fé pentecostal é geralmente marcada por uma série de renúncias aos prazeres mundanos
como provas concretas de sua regeneração.

47
Extraído do versículo bíblico Romanos 14:12.

111
Segundo Weber (1979b), uma operação religiosa desse tipo exige do fiel algum
grau de comprometimento pessoal no intuito de direcionar o seu modo de vida na busca
de um valor sagrado. No terreno das práticas, esse esforço irá se traduzir num processo
de domínio do mundo pela via da racionalização como “forma de domesticar o que é da
criatura e do maligno por meio da vocação religiosa”. Ou seja, se por um lado o religioso
está preocupado em organizar a sua vida em torno de um ideal de salvação, esse mesmo
processo acabará por produzir um outro efeito prático na vida do crente, uma vez que o
modelo ideal de vida religioso está fortemente associado a um controle racional
sistemático das pulsões e das vontades.
Nos termos do cristianismo, a figura do descontrole das pulsões e da indisciplina
é o pecado. Entendido como o ato humano responsável por romper a comunhão divina
com o mundo desde o início dos tempos, o pecado é considerado toda a prática que
contraria os anseios da vontade divina descrita nas Escrituras Sagradas.
Em sentido laico, pode-se dizer que aquilo que o religioso considera pecado pode
ser lido como a percepção de um ato de falha moral, ou um descontrole que se
transformou em um mau hábito, e cuja prática recorrente é vista pelo crente como uma
expressão de uma vida sem Deus. Assim, o ideal religioso é convertido ao universo das
práticas, e a decisão de renunciar o mundo em favor da fé ganha um estatuto de sentido
de vida, bem como manter-se afastado desses costumes mundanos são entendidos pelos
crentes como garantias de salvação.
Para que as pessoas conheçam a vontade divina e vivam de acordo com ela,
portanto, é que existe a Igreja. Reconhecida como a emissária da Palavra de Deus para o
mundo, a Igreja é o espaço litúrgico onde os pecados dos fiéis podem ser redimidos, no
sentido de uma purificação da alma, e o perdão divino se torna motivo para um novo
começo.

Quando você para de ir [à igreja] a vida embola, velho, tudo dá errado


(...) Porque coisa errada todo mundo faz. Aos olhos de Deus tudo é
pecado. Namorar é pecado, fumar é pecado, beber é pecado, guloseima
é pecado, tudo é pecado (...) Então você acaba fazendo as coisas, vai lá
[no culto] e pede perdão, e aí dá um jeito na vida (...) saio de lá pronta
pro caminho certo (Tássia, 36 anos, operadora de telemarketing)

Se a vida “embola” fora da igreja, é justamente dentro dela que se oferece os


passos para o caminho certo. Nesse raciocínio, ao refletir sobre a importância da religião
em suas vidas, algumas falas dos entrevistados sugerem que o comportamento ensinado

112
pelas igrejas incide sobre um conjunto de valores e práticas elaborados em negativo pela
realidade do mundo secular.

Porque depois da igreja a gente começa a ver as coisas do mundo lá fora


de um jeito diferente. Então que nem, em termo de bebida, se você tá
na religião você não vai ficar bebendo (Laura, 41 anos, dona de casa)

Tipo, tem muitas coisas que a religião fala para não fazer. Falar
palavrão, essas coisas, que são erradas assim perante Deus. Eu nunca
bebi, por exemplo, porque a Bíblia fala para não beber (...) Eu acho que,
tipo, se aquilo está errado para Deus, também vai ser errado para mim
(José, 19 anos, ajudante geral)

Eu não bebo nada que tenha álcool (...) Está ligado a religião, mas
assim, não é só isso (...) Eu decidi, conversei com Deus e falei que
nunca mais colocaria uma gota de álcool na boca e não vou colocar
nunca mais (Daniel, 37 anos, representante comercial)

Traduzindo o comportamento religioso por meio de restrições de usos e costumes


tidos como profanos, os entrevistados mostram a percepção de que uma vida de fé está
intrinsecamente associada a algum grau de renúncia do mundo externo à esfera do
sagrado. Evidentemente, é natural que essas doutrinas tendam a variar conforme a
situação de cada denominação, o que certamente denota as tensões e divergências próprias
da diversidade do movimento pentecostal48. Ainda assim, é possível encontrar traços em
comum.
Entre os principais deles, como vimos, está a questão do uso proibitivo de drogas
e bebidas alcoólicas. Inscrito no relato de alguns entrevistados como um símbolo maior
de conversão e regeneração espiritual, a negação de um hábito dessa natureza parece
sugerir algo mais do que o simples retrato de uma religião ascética e está associada a uma
percepção de classe.
Para entendermos o valor disciplinar dessa doutrina, é preciso que realizemos o
exercício inverso, e imaginar o impacto do alcoolismo na vida das pessoas em situação
de pobreza. Em sua pesquisa sobre os efeitos do alcoolismo “no corpo, na alma e na
cultura” nas classes populares, Oliveira (1990) oferece uma análise de relatos que
demonstram como o alcoolismo se traduz em um problema familiar complexo,

48
“Eu fui criada em uma igreja que você não podia usar calça, você tinha que usar uma saiona, que não usa
maquiagem (...) que não faz nada. Minha filha vai numa igreja dessas, aí às vezes ela vira pra mim e fala
assim: ‘A sua igreja vai para o inferno, a sua igreja é mundana’. Só porque eu uso short, uso saia, a nossa
igreja é aberta” (Maria, 44, dona de casa) / “É que é complicado assim, têm muitos pregadores que falam
muita besteira, coisas inverídicas. Querem proibir algumas coisas, pegando doutrina fora de contexto na
Bíblia” (Daniel, 37 anos, representante comercial) / “Minha esposa mesmo, usa maquiagem normal, mas
tem igreja que proíbe isso, por exemplo. É aquilo que eu falei: você pode fazer tudo, mas nem tudo te
convém” (Afonso, 39, taxista)

113
geralmente relacionados às questões de classe. No âmbito individual, essa figura
representa o fracasso da pessoa que perdeu o respeito próprio por não conseguir se
controlar mediante às dificuldades da vida; cujo vício o tornou dependente da ajuda de
outros; e aquele cuja imagem se torna o símbolo maior do indivíduo que não se esforça
para superar os seus desafios pessoais na conquista de uma vida mais digna.
Ampliado para a esfera doméstica, o alcoólatra é visto como aquele capaz de
desestruturar a família, uma vez que o seu vício muitas vezes está associado a outros
problemas – como desemprego, depressão, etc. – o que faz com que o alcoolismo ofereça
uma ameaça a unidade familiar como um todo, seja do ponto de vista material (no
contexto da pobreza, o dinheiro da cachaça rouba o leite das crianças), bem como do
ponto de vista psicoafetivo, uma vez que não são raros os casos de alcoolismo que
desaguam em episódios de desavenças familiares, com históricos de agressões e
violências, incluindo abandonos e divórcios (OLIVEIRA, 1990).
Por essas razões, evitar o consumo de álcool e outras drogas no contexto social da
periferia não apenas atende a uma demanda religiosa particular como é também um
imperativo de sobrevivência, na medida em que o autocontrole emocional e psíquico
provocado pela fé ultrapassa os limites da igreja e passam a influenciar as demais esferas
do comportamento individual e interpessoal dos crentes, oferecendo mecanismos de
disciplina racional das pulsões e dos prazeres dentro de uma ordem moral tida como
“honesta”.
Isso não significa que a vida se tornará mais fácil. Nesse sentido, o relato de
Fernanda, 26 anos, moradora do Jardim Ângela, mostra o quão esse caminho pode ser
estressante e o caminho do pecado, tentador. Evangélica convertida há pouco tempo, a
entrevistada descreve uma situação delicada. Desconfiada da fidelidade do marido, certo
dia Fernanda resolveu espioná-lo no trajeto até o trabalho. No caminho, descobriu o que
tanto temia: ela estava sendo traída. Irada com a situação, Fernanda confessa que chegou
a pensar em matar a amante, porém, ao invés disso, decidiu ir à igreja e recorrer a
intervenção divina.

Eu passei por uma separação agora que se eu não tivesse ido pra igreja
ia dar merda. Eu ia fazer merda mesmo, eu ia tá na cadeia. Eu ia matar
a desgraçada que deu pro meu marido. Eu cheguei a ir na casa dela e
peguei ele lá e pensei: Meu, eu vou matar essa mina. Aí ao invés de
matar ela, eu fui pra igreja. Aí eu falei: [Deus], tira do meu coração
esse ódio, se não é pra mim, então tira ele da minha vida. E foi o que
ele fez. (...) Senão eu ia ficar presa e ia me ausentar da vida dos meus
filhos (...) e também não é justo eu estragar a vida por causa de homem,
porque homem é o que mais tem (Fernanda, 26 anos, recepcionista)

114
Após ser surpreendida pela traição do marido, o impulso descrito por Fernanda foi
convertido em uma prova de autocontrole importante. Motivada pela fé em Deus, a
entrevistada demonstrou como o movimento da fé é capaz de racionalizar mesmo as
pulsões mais agressivas da existência, revelando assim o duplo caráter da disciplina do
crente em torno da santificação.
Se por um lado o autocontrole e a disciplina “agradam a Deus” e atendem ao
interesse ideal da salvação eterna, por outro, a internalização do controle do corpo e de
suas pulsões emula nos fiéis uma noção particular de dignidade, que faz o fiel afastar-se
das tentações mundanas para se aproximar ao modelo ideal da pessoa honesta, aquela que
conquistou o respeito próprio suficiente para suportar as aflições da vida e não se deixar
abater por elas49.
Dessa forma, ao refletir sobre as proibições e advertências que a mensagem
pentecostal carrega em sua doutrina de salvação, é possível detectar em sua narrativa
mecanismos de racionalidade que, à sua maneira, tornam os indivíduos dispostos a
enfrentar os problemas diários mediante a uma conduta de vida sóbria e honesta, que
plasmada por uma teologia motivacional de que é possível vencer com a força de Deus,
formam um todo coerente na conduta de vida do crente, conferindo portanto um sentido
espiritual que racionalize os seus mais diferentes dilemas cotidianos.
No contexto periférico, esses dilemas são muitas vezes traduções das privações de
classe, que cristalizam as desvantagens da população mais pobre em um processo
constante de desmanche dos projetos de vida: desfeitos e refeitos pelas rendas
intermitentes e dos benefícios descontinuados; do desemprego ao trabalho precarizado;
da moradia inadequada a vizinhança perigosa; das tentações da vida criminosa ao
descontrole nos vícios, entre muitos outros.
Diante de todas essas aflições, a igreja pentecostal surge como uma afirmação,
um discurso religioso que oferece um conjunto de recursos simbólicos (cultos, versículos,
orações, jejuns, etc) como alternativas para racionalizar as aleatoriedades da vida em um
impulso para permanecer na fé independentemente das circunstâncias.

A gente não deixa que a crise abata a nossa fé, não. Quando algum
irmão fala assim: Vocês viram o que está acontecendo no país, nossa,
quanto desemprego, que crise.... A outra já corrige: Irmão, não tem

49
Como destaca Souza (2009), o sujeito “digno” é aquele que incorporou a concentração e o autocontrole
suficientes para vencer as tentações dos prazeres imediatos em nome de uma recompensa futura. Os
indivíduos que não se enquadram nesses princípios são desvalorizados perante os olhos de toda a sociedade,
marginalizados e condenados a uma posição de cidadão de segunda classe, “ralé”, inúteis aos objetivos da
sociedade (SOUZA, 2009, p.288)

115
crise, só tem Cristo. Nós estamos em Cristo, não em crise (Maria, 44
anos, dona de casa)

Adaptando o famoso jargão evangélico que afirma que o crente “quem está em
Cristo não está em crise”, a entrevistada procura sintetizar o sentimento de resiliência
presente na teologia pentecostal, que encoraja o fiel a manter-se engajado no jogo social
mesmo que não este lhe apresenta condições favoráveis, sem desanimar frente às
constantes frustrações e humilhações diárias, firmados na certeza da fé que o Deus dos
oprimidos dará à vitória para aqueles que se esforçam.
Mas a igreja evangélica não é só uma mensagem. Na verdade, se essa religiosidade
tem ganhado cada vez mais adeptos entre as camadas populares, isso se deve em boa
medida ao trabalho comunitário que as igrejas locais oferecem nos bairros periféricos,
gerando benefícios que excedem às fronteiras do mundo espiritual e atendem a demandas
muito sensíveis dessa população; necessidades que vão desde as urgências materiais até
a carência de redes de sociabilidade mais amplas, que incluam equipamentos lazer e
cultura.
A fim de compreendermos a importância da igreja pentecostal em seu sentido
comunitário nas periferias, portanto, a próxima seção se dedica exclusivamente a esse
tema.

3.3.2. A PRÁTICA PENTECOSTAL: DO PRONTO SOCORRO AO CLUBE


SOCIAL

Durante a seção anterior, vimos como o discurso pentecostal penetra nos dramas
existenciais da população periférica, oferecendo justificativas por meio da fé que ao
mesmo tempo estimulam e disciplinam aqueles que identificam com a sua mensagem de
salvação.
Cumpre lembrar, no entanto, que essa mensagem parte de um lugar específico.
Isto é, ao contrário de outros discursos, o próprio ambiente da igreja é parte integrante do
discurso pentecostal, à medida em que a comunidade assume serviços práticos que
materializam a fé por meio de cultos, programações e atividades. Levando em
consideração de que o pentecostalismo é uma religiosidade majoritária de pobres, negros
e periféricos – em que a falta de oportunidades, como vimos, é vista como um fator
determinante para a sua condição social – é de se supor que suas comunidades religiosas

116
busquem ofertar algo além de sua teologia, oferecendo assim instrumentos de
compensação que atendam às suas necessidades econômicas e simbólicas de classe.
Tendo esses pontos em vista, nossa investigação se volta para os aspectos que
envolvem a igreja pentecostal em sua dimensão comunitária. Para entender como os
entrevistados articularam suas percepção em torno desses temas, destacamos os relatos
que descrevem os vínculos de solidariedade da comunidade religiosa, no qual as falas
dos entrevistados sugerem que a igreja local acaba por produzir no interior da membresia
redes informais de assistência, cuja base de apoio serve de pronto-socorro aos irmãos
de fé tanto para questões de auxílio material (cestas básicas, roupas, enxovais) como para
o acolhimento espiritual (exorcismos, curas, milagres, etc.).
Ao fortalecer os vínculos de apoio mútuo entre os irmãos da comunidade, a igreja
acaba por produzir a segunda esfera de sociabilidade – que aqui chamamos de igreja
como clube – na qual as atividades do espaço religioso passam a desenvolver redes de
interação e convívio entre os seus membros e a comunidade e da comunidade com a sua
denominação, seja por meio dos eventos (cultos, retiros, congressos) seja pelos
ministérios (grupo de jovens e de mulheres, banda do louvor, coral, etc.).
Essas redes de apoio e sociabilidade operam, em um primeiro nível, dentro da
comunidade religiosa – obedecendo ao princípio religioso de “ajudar primeiro os irmãos
da fé”50 – mas tendem a se estender eventualmente a familiares e pessoas próximas aos
membros – vistos pela igreja como “crentes em potencial” – ampliando assim o raio de
influência dos evangélicos para além dos muros da religiosidade, tornando-se uma peça
central para o entendimento dos modos de vida na periferia e suas experiências de classe.

3.3.2.1. “O PESSOAL DA IGREJA VEM VER SE A GENTE PRECISA DE ALGO”

A imagem da igreja enquanto um pronto-socorro aparece nas falas dos


entrevistados como a representação da comunidade religiosa como aquela capaz de ser a
última linha de defesa dos fiéis frente as adversidades da vida material e espiritual. Essas
falas revelam o poder de cura da igreja, tomando esse termo do seu ponto de vista mais
geral, assim como de cuidado, no sentido positivo de recuperação, restabelecimento e
regeneração da situação financeira, dos vícios e da saúde.

50
Extraído do versículo bíblico Gálatas 6:10.

117
“Quem tem fome, tem pressa”, essa famosa frase de Betinho ilustra o senso de
urgência que as necessidades materiais inferem sobre as pessoas em situação de pobreza
extrema. As periferias conhecem muito bem esse sentimento, seja por uma triste
lembrança em suas próprias trajetórias, seja pela constatação próxima em alguém da
família, amigos ou vizinhança.
Por essa razão, o socorro desempenhado pelas igrejas evangélicas na doação de
roupas e alimentos é conhecido como um importante motor da assistência social nas
periferias, além de um forte elemento de atração dos membros em torno da comunidade
religiosa51. Analisando o papel assistencial das igrejas evangélicas nas periferias
paulistanas, Ronaldo de Almeida (2004) demonstra que essa ajuda opera com outros
aspectos da dinâmica religiosa, descrevendo-as da seguinte forma:

Os evangélicos não só atuam do ponto de vista individual, buscando a


regeneração da pessoa, mas como uma rede de proteção social. Trata-
se de ajudas, sobretudo no auxílio dos mais carentes na organização de
sua vida econômica, dos pontos de vista prático (racionalização dos
ganhos e dos gastos), moral (estímulo para o trabalho e disciplina para
o consumo) e espiritual (proteção contra as forças malignas). As redes
evangélicas têm esse efeito no indivíduo (...) o que decorre na melhoria
(ou equilíbrio) da vida (ALMEIDA, 2004, p. 39)

Sobre este aspecto, a fala dos entrevistados sugere que a assistência material
prestada pela igreja foi decisiva em certos momentos de grave necessidade. Nesse sentido,
o relato de Valéria, 42 anos, agente de saúde e moradora do Jardim Brasília, parece ser
um bom exemplo disso:

A Congregação tem uma parte que chama Obra da Piedade. Eu já fui


suprida, a minha casa já foi suprida pela Obra da Piedade. A Obra da
Piedade é assim: eu estava passando por uma fase bastante difícil e ela
veio e supriu todas as minhas necessidades, supriu o meu armário,
minha geladeira. As contas que estavam em atraso queriam me ajudar
a pagar, minha máquina que estava quebrada elas mandaram arrumar,
sem eu contribuir com nada, sem eu pedir nada (Valéria, 42 anos, agente
de saúde)

O testemunho acima demonstra, portanto, que a assistência não é um caso isolado


ou fruto de uma atitude individual por parte de algum membro da igreja, mas um

51
A forma como essas práticas se organiza dentro da igreja ficam evidentes no relato etnográfico de
Vinícius do Valle em uma Assembleia de Deus no Campo Belo: “Outro aspecto que por diversas vezes
presenciei foi a assistência material a membros com dificuldades financeiras ou desempregados. Não é raro
que durante os cultos haja o recolhimento de alimentos e ofertas para tais ações. Tal atitude tem grande
aprovação entre os fiéis, que inclusive reafirmam seu apego a essa denominação, comparando-a com outras
que não possuem tal prática. O efeito, além do apego e aprovação gerados, é o reforço da percepção de
acolhimento e segurança” (VALLE, 2019, p.111).

118
empreendimento coletivo dos fiéis com o intuito de mitigar os efeitos mais agudos da
pobreza aos companheiros da comunidade, oferecendo ajudas que vão desde a doação de
alimentos e roupas até o pagamento de contas atrasadas, dentre outras.
Institucionalizado em ações como a “Obra de Piedade” da Congregação Cristã no
Brasil, muitas denominações pentecostais adotam posturas parecidas (como a “Mão
Amiga” da Assembleia de Deus, o “Quilo do Amor” das igrejas pentecostais de células
ou etc.), o que mostra que em que pesem as diferenças eclesiológicas e doutrinárias
internas do pentecostalismo, a preocupação com as necessidades emergenciais dos menos
favorecidos da comunidade parece ser um elemento comum entre as igrejas evangélicas
locais52.
Outro relato que denota a importância assistencial da igreja é o de Odilon, 21 anos,
desempregado e morador do Sacomã, Zona Sul. Filho de pai pintor e mãe diarista, o
jovem revela que as rendas intermitentes dos pais já causaram privações materiais graves,
conforme descreve a seguir:

A gente estava sem gás e meu pai foi trabalhar e tal, a gente estava sem
gás, não tinha nada, assim, pra gente comer, nada mesmo. Minha mãe
estava desempregada e a gente estava em casa. A gente orou bastante,
de manhã, aí a gente não almoçou, porque não tinha. Minha mãe não
pediu pra minha tia, porque ela sempre ajuda a gente e a gente não
pediu, mas minha mãe falou que até a hora do almoço ia acontecer
alguma coisa (Odilon, 21, desempregado)

Foi em meio a este momento de extrema vulnerabilidade que a igreja, personificada pelo
pastor, veio ao socorro da família:

Aí chegou o pastor lá da igreja. Do nada, ninguém falou nada pra ele,


aí ele chegou e falou: Olha, fiz uma compra pra vocês no mercado, e
ele comprou muita coisa, mano (Odilon, 21 anos, desempregado)

A fala de Odilon certamente ilustra como a assistência material da igreja é


traduzida pelos fiéis como um milagre. O drama da geladeira vazia, a falta do botijão de
gás, a vergonha diante da pobreza: todos esses elementos configuram uma paisagem
comum no cotidiano das periferias. A salvação aparece na figura solidária do pastor,
representando a igreja não apenas enquanto instituição, mas como próprio operária de
Deus no mundo.

52
Cumpre destacar que essa ajuda também se estende para além das fronteiras comunitárias, e chega até as
regiões mais marginalizadas da cidade, conforme mostra o relato a seguir: “Tem uma igreja, essa que eu
frequento, hoje eles vão sair na madrugada [na Cracolândia] pra dar sopa, sabe? Sopa, comida, agasalho e
convidar, tem parceria com casa de recuperação e quem quiser ir vai, entendeu?” (Felipe, 34 anos, auxiliar
de escritório)

119
Vale destacar, portanto, que o milagre não é mero fruto do acaso – afinal, ele é
acontece em decorrência de uma resposta de oração. Isso não é nada trivial, uma vez que
mesmo quando um evento sobrenatural acontece, esse não ocorreu apenas por vontade
divina ou iniciativa da igreja/pastor, mas é fruto de um esforço individual empreendido
nos atos de “crer, orar e esperar”. Ou seja, mesmo em uma situação de socorro material,
em que ação comunitária foi a grande responsável pela ajuda no momento difícil, é
possível encontrar os resquícios de uma lógica meritocrática implícita, em que o esforço
justifica o mérito.
Por esse motivo, para além do efeito objetivo da ação social, é preciso levar em
consideração os impactos que ela gera na subjetividade daqueles que foram abençoados.
Afinal, do ponto de vista religioso, a ajuda material desempenhada pela igreja é mais do
que o braço de caridade da comunidade. Ela abrange também aspectos profundos de fé,
uma vez que, para o crente, a ajuda não é outra coisa senão a materialização da
providência divina, uma espécie de evidência física do cuidado de Deus para com todo
aquele que “aceita” ser o seu filho.
A assistência social da igreja, assim, não se limita ao auxílio material – e como
vimos em seções anteriores, ela também se cristaliza no acolhimento espiritual de pessoas
e famílias em situação de vulnerabilidade ocasionados pelo vício em drogas,
envolvimento com o crime, doenças, entre outros.

O pessoal da igreja vem ver se a gente precisa de alguma coisa, que a


igreja já disponibiliza cesta básica, tem um trabalho de auxiliação, pra
pessoas que precisam realmente. Eles fazem uma visita, conversa, lê a
bíblia junto, ora, esse tipo de coisa (Felipe, 34 anos, auxiliar de
produção)

Graças a Deus o evangelho está se transbordando. A igreja que nós


estamos é mais ou menos perto de uma favela. Então vários jovens que
foram libertos das drogas, traficante, vários que eram viciados, e graças
a Deus, primeiro lugar Deus, depois o amor que nós demos a eles, eles
foram libertos (Edileusa, 49 anos, autônoma)

Nesse sentido, um caso emblemático encontra-se no relato de Tássia, 36 anos,


moradora do Capão Redondo e fiel da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Após
diversos desentendimentos com o marido, Tássia afirma que procurou a igreja pela
primeira vez quando entendeu que as brigas eram resultado de um “trabalho” realizado
pela vizinha, que a entrevistada afirmava ser “macumbeira”.

Eu fui na igreja e falei: Olha, pastor, jogaram um trabalho lá no meu


quintal, eu sei que foi mulher que fez, eu e meu marido estamos nos

120
agredindo, se batendo, do nada ele volta ao normal e esquece tudo que
aconteceu (...) Ele baixou o santo em uma mulher falando que a vizinha
fez macumba pra ela e tal e eu perguntei: Por que o santo que fez pra
mim não aparece aí pra falar? E eu na igreja. O pastor falou: Você quer
ouvir? Eu falei: Quero, só vou acreditar vendo. Não deu outra, desceu
lá na mulher e veio pra cima de mim igual o marido vinha pra cima de
mim (...) Eu comecei a chorar e meu filho ficou assustado, porque meu
filho já tinha visto aqui também, aí meu filho ficou assustado, aí a
mulher lá falou que tinha feito trabalho e o pastor queimou, queimou e
amarrou. Aí eu me separei e meu marido foi pra Bahia (Tássia, 36,
operadora de telemarketing)

Evidentemente, o relato acima descrito em muito se difere dos testemunhos


pentecostais tradicionais. Da perspectiva cristã, o fato de o pastor expulsar à distância o
demônio do marido não é menos surpreendente que a evidência de que ele “baixou o
santo” em uma pessoa aleatória como prova de seu poder entre as forças espirituais – e
embora o sincretismo da IURD com as religiosidades de matriz africana já tenha sido
objeto de uma vasta literatura53, não nos interessa, por ora, recuperá-lo aqui.
O mais interessante, porém, é que observada a possessão demoníaca mais de perto,
os contornos se parecem bem mais humanos que sobrenaturais. Perguntada em outro
momento sobre o real motivo do divórcio, ela afirmou:

Aí ele começou a falar que ele tinha vício, que ele tava usando muita
droga, com as criança perto, daí eu não deixei (...) [Ele passou a fumar]
maconha com pedra [de crack], foi por isso que eu separei. Eu falei:
quer fumar um baseadinho fuma, mas pedra não (Tássia, 36, operadora
de telemarketing)

Ou seja, embora o divórcio seja justificado nos termos da narrativa religiosa de


demônios e feitiços de vizinhos, a realidade apresentada é que o uso abusivo de drogas
do marido, concomitante à violência doméstica, motivaram a separação do casal. Isso não
diminui o papel da igreja neste processo, muito pelo contrário, afinal foi a partir do
exorcismo do pastor que Tássia conquistou a coragem necessária para terminar o
relacionamento com o marido.
Outro relato de exorcismo foi apresentado por Maria, 44 anos, moradora da Zona
Leste paulistana. Evangélica desde os 6 anos de idade, a primeira conversão na família
veio através da irmã mais velha. Católica de batismo, a mudança de religião não foi bem
vista pelo restante da casa, especialmente pelo pai, que chegou certa vez a entrar na igreja,
bêbado, para agredir a filha.

53
Sobre a apropriação cultural da IURD sobre as religiosidades de matriz africana, ver Freston (1994),
Mariano (2005) e Almeida (2009).

121
A minha irmã ficou evangélica primeiro, meu pai entrou dentro da
igreja pra dar uma surra nela, meu pai entrou bêbado, caindo, chegou
lá, fizeram uma oração. Ele saiu bom e nunca mais quis sair de dentro
da igreja. Então meus pais são evangélicos desde que eu tinha 6 anos
de idade. (Maria, 44, dona de casa)

A tentativa de agressão contra a filha, porém, converteu o pai de Maria de um


alcóolatra revoltado a um evangélico fervoroso. A oração da igreja, portanto, expulsou o
“demônio da bebida” do pai e, por conseguinte, de toda a família. Anos mais tarde, porém,
foi a vez da própria entrevistada procurar o socorro espiritual da igreja:

Eu estava doente, na verdade eu estava com depressão e quando eu


cheguei no hospital o médico falou: Olha, ela precisa de uma igreja, a
primeira igreja que você achar aberta leva a sua esposa, porque ela não
precisa de remédio, ela precisa de uma igreja, não importa a igreja que
seja. Aí nós estávamos vindo e quando a gente chegou a igreja ali estava
aberta, e a gente entrou. Aí foi assim que me converti (Maria, 44, dona
de casa)

Embora não haja uma atuação demoníaca explícita na fala de Maria, todo o seu
testemunho sugere que a depressão sofrida fosse resultado de uma opressão maligna –
atestada, inclusive, pela própria fala do médico (“ela não precisa de remédio, ela precisa
de uma igreja”). Ao chegar na “igreja aberta”, Maria afirma que encontrou o socorro que
os médicos não foram capazes de lhe dar.
Um processo semelhante ao que ocorreu com Afonso, taxista de 39 anos, que
encontrou a igreja em um momento delicado de sofrimento familiar, expresso na
depressão da mãe:

É uma história muito longa, para falar a verdade, meus pais eram de um
centro espírita e minha mãe foi dada como morta, tinha uma vizinha
nossa, isso lá no [M’ Boi] Mirim e ela dizia que o caso da minha mãe
era espiritual. A gente foi numa igreja, ela estava em estado de
calamidade, não comia faz dias, bem magrinha, o médico já tinha
falado: Leva pra casa pra morrer em casa. Ela tinha coisa espiritual
mesmo, fizeram exame e não acharam. Passado o tempo, essa vizinha
nossa, que está falecida, foi uma irmã, fez umas orações e veio em casa,
começou a falar com a gente, fez uma campanha de oração e minha mãe
foi restaurando a saúde (Afonso, 39 anos, taxista)

O impacto espiritual foi tão grande na família de Afonso que, após a recuperação
da mãe, ele afirma que o pai – na ocasião, um espírita praticante – abandonou a antiga
religião para abraçar a igreja: “Ele parou de ir ao centro [espírita], porque mudou a vida
dele. Tanto que hoje meu pai é pastor”.
Os relatos reunidos acima são elucidativos para explicar como a igreja pentecostal
é reconhecida na realidade das periferias como um importante aparelho de socorro, seja

122
no amparo em questões materiais (comida, dinheiro e roupas) como em aspectos
espirituais, como a libertação dos vícios, problemas emocionais e até em casos de doenças
psíquicas como a depressão.
Ainda que sejam tratados nos termos da religião, esses dramas traduzem muito do
mal estar comum de grande parte dos moradores de periferia, cujas severas condições de
vida – plasmadas pela instabilidade econômica, ausência de direitos e rarefação nos
serviços públicos – colocam a dimensão comunitária da igreja como uma das únicas
alternativas dessas pessoas acalentarem os seus sofrimentos cotidianos. Como bem
destacaram Silva e Costa (2007):

A igreja torna-se o local onde é permitido e legítimo expor as emoções


na maioria das vezes reprimidas no dia-a-dia (...) e torna-se o espaço
(físico e institucional) no qual os indivíduos podem expressar suas
angústias, seus sentimentos de medo e de raiva, de impotência e
passividade diante das dificuldades emocionais, financeiras, de saúde,
expurgando todo o mal, isto é, o “maligno”. Alguém ouvirá seus gritos
e clamores, seja o pastor ou Jesus Cristo (SILVA; COSTA, 2007, p. 47)

Ao encontrar a igreja como local de refúgio, o poder da fé – que expulsa demônios


e transforma pessoas – mistura-se com a ética solidária do amor ao próximo54, cujo
cuidado e apoio mútuo se materializam nas formas de cestas básicas, ajudas financeiras,
entre outros. Não por acaso, é em meio a este “socorro bem presente na hora da
angústia”55que se manifestou a experiência de conversão de alguns de nossos
entrevistados, o que indica que essas práticas são fundamentais para explicar a expansão
dessas igrejas nas periferias das grandes metrópoles. Quanto a este último aspecto, aliás,
Mariano (2008) afirma:

A vulnerabilidade e o desespero de grandes contingentes populacionais,


em especial das mulheres pobres e mais ainda das negras pobres,
vítimas de discriminações de gênero e raça, sem dúvida facilitam
trabalho [dos pentecostais] e ampliam sua probabilidade de êxito. Mas
seu sucesso proselitista não depende da existência de tais problemas em
si mesmos, e, sim, justamente de sua elevada capacidade de explorá-
los, oferecendo recursos simbólicos e comunitários para seus fiéis e
potenciais adeptos lidarem com eles (MARIANO, 2008, p.71)

Carentes de uma rede de proteção que possibilite a obtenção de socorro material


em situações de extrema vulnerabilidade, e necessitados de um lugar de acolhimento para

54
A religiosidade da congregação transferiu essa ética econômica da vizinhança para as relações entre os
irmãos de fé. O que fora anteriormente a obrigação do nobre e do rico se tornou o imperativo fundamental
de todas as religiões eticamente racionalizadas do mundo: ajudar as viúvas em dificuldades, cuidar dos
doentes e irmãos de fé empobrecidos e dar esmolas (WEBER, 1979b, p.378)
55
Do versículo bíblico Salmo 46:1

123
as suas dores e angústias, a igreja evangélica acaba por se tornar o espaço onde homens
e mulheres procuram socorro quando não há mais saída nos serviços públicos ou nas redes
sociais privadas, não apenas trazendo um sentido para os seus problemas cotidianos como
também ajudando a enfrentá-los na prática.
Mas nem só de socorro vivem os homens (ou as igrejas). No universo social das
periferias, as igrejas também são uma importante rede de sociabilidade, cuja programação
muitas vezes acaba por se tornar a principal atividade de lazer e cultura de grande parte
das famílias de periferia, criando assim os característicos vínculos sociais fortes dos
evangélicos que formam o cotidiano dos moradores das periferias de São Paulo.

3.3.2.2. “CHURRASCO, FUTEBOL E TAL”

Para além da assistência social e acolhimento espiritual, a igreja local também é


um ambiente de socialização. Como falamos anteriormente, embora pareça óbvio supor
que os crentes não se reúnam todas as semanas exclusivamente para cultuar a Deus – mas
também por motivações mais “terrenas” como conhecer pessoas, fazer amizades e entrar
para uma turma – fato é que muitas imagens no senso comum procuram reduzir o fiel
evangélico à figura da pessoa (pobre), sentada no banco de uma igreja, obedecendo aos
comandos de um pastor estridente.
A fim de demonstrar como o espaço religioso dos evangélicos também atua como
uma importante rede de sociabilidade nas periferias, destacamos nesta seção a percepção
dos entrevistados acerca da dimensão da igreja como clube. Nessa perspectiva, buscamos
reunir as falas dos entrevistados que evidenciam o lugar da igreja como um espaço de
interatividade, expressos na participação dos fiéis nas atividades comunitárias da igreja
como a banda de música, os grupos de adolescentes e mulheres, etc.
À primeira vista, essas atividades têm como única função a realização e
manutenção dos serviços religiosos, porém, quando observados pela lente da experiência
de classe, essas revelam contornos mais complexos. Isso porque quando temos em mente
a falta de equipamentos públicos de lazer e cultura nas periferias de São Paulo, muitas
vezes não se nota de que é na esteira dessas ausências que as atividades da igreja
pentecostal transformam-se em seus substitutos naturais ao promoverem encontros
(gratuitos, em sua maioria) que incluem programações de música, dança, esportes, entre
tantos outros. Consequentemente, essas atividades da igreja são um forte atrativo para

124
muitos jovens e famílias, criando assim laços pessoais entre os fiéis e a comunidade, e da
comunidade para com a sua denominação religiosa.
Para entendermos como a dinâmica comunitária da igreja se manifesta no
cotidiano dos fiéis, antes de mais nada é preciso que se tenha clareza sobre como acontece
o acolhimento das pessoas desde a primeira visita. Nesse sentido, o relato etnográfico de
Vinicius do Valle (2019) em uma igreja pentecostal da Zona Leste paulistana é bem
ilustrativo:

Com relação ao acolhimento, as práticas são extensas e envolvem toda


a dinâmica de sociabilidade do grupo religioso, a partir do momento em
que um indivíduo entra na igreja pela primeira vez. Desde a abertura
dos portões (...) há um obreiro na porta do templo. Sua função é receber
os membros que chegam, dando-lhe boas-vindas. No caso de alguma
pessoa nova, cabe a ele iniciar o primeiro contato, perguntando-lhe o
nome, se é membro de alguma igreja, acompanhando-o até um assento
vago. Ao iniciar o culto, o pastor pede para que os novos membros se
levantem e pede para que todos os fiéis presentes digam em uníssono:
“seja bem-vindo em nome de Jesus”. No final, é comum que essas
pessoas novas sejam abordadas por alguns dos fiéis, que iniciam uma
primeira conversa e convidam para algumas atividades da igreja
(VALLE, 2019, p.110)

Trazendo o fiel para dentro da comunidade, a dinâmica de organização das


atividades da igreja também conta com diversos aspectos que envolvem a criação de
vínculos entre os fiéis. Do ponto de vista institucional, os fiéis se dividem em grupos que
realizam diversas atividades religiosas. Esses grupos são geralmente formados conforme
as diferentes fases da vida – grupo de crianças, de adolescentes e jovens, grupos de
homens e mulheres casados – mas também são separados por grupos de ministério, isto
é, quando os fiéis escolhem participar de atividades específicas como grupo da banda,
da dança e do teatro, grupo de intercessão e capelania, entre outros.
Cada um desses grupos tem suas reuniões religiosas, podem acumular tarefas
relativas a atividades da igreja, além de tratar de questões próprias desses momentos de
vida, tendo sempre como base os preceitos religiosos. No grupo de mulheres, por
exemplo, temas como a educação dos filhos, o casamento e o aborto são discutidos de
acordo com os preceitos da igreja. Com relação aos jovens e às crianças, há uma
supervisão da igreja, geralmente a pedido da família, em casos em que ocorrem conflitos
ou problemas, sejam escolares ou com relação a algum comportamento específico.
Além dessas atividades, outros grupos fazem com que os fiéis tenham que se
reunir e assumir funções (os chamados ministérios), cujos encontros ensejam o ensaio
de uma música, ou a organização de alguma festividade ou evento. Essa dinâmica faz

125
com que haja uma aproximação entre os membros do grupo, gerando ainda uma
ocupação dos espaços da igreja para além dos momentos de culto (VALLE, 2019, p.111).
Toda essa efervescência de interações cria no ambiente da comunidade redes de
relacionamento importantes para a vida das periferias. Nesse aspecto, Almeida e
D’Andrea (2004), por meio de um estudo etnográfico realizado em Paraisópolis, já
destacavam a existência e importância das redes entre os evangélicos. Os autores
ressaltam que elas “trabalham em favor da pessoa e das relações pessoais, gerando
aumento de autoestima e espírito empreendedor no indivíduo, mas também fomentam a
ajuda mútua por laços de confiança e fidelidade” (ALMEIDA; D’ANDREA, 2004, p.
103). Almeida (2011), aliás, ressalta que tais redes criam circuitos de trocas que
envolvem desde dinheiro até recomendações de trabalho. O funcionamento dessas
relações se dá na base da reciprocidade entre os fiéis – que, como já dissemos, se pautam
pela lógica bíblica de “ajudar primeiro os irmãos de fé”. Essas redes têm como
consequência a aproximação entre os fiéis e o forte sentimento de comunidade. Sua
importância é ampliada na medida em que, na grande maioria de vezes, a igreja é a única
forma de associação experimentada pela população mais pobre.
Em nossa pesquisa, para entendermos a importância da igreja em sua dimensão
associativa foi observado, em primeiro lugar, a frequência dos entrevistados em suas
comunidades religiosas. Nesse sentido, foi possível observar uma alta assiduidade dos
crentes analisados, uma vez que a maior parte da amostra (13 dos 21 entrevistados)
frequenta a igreja entre 2 a 4 vezes por semana. Em relação aos dias da semana, nota-se
que o dia de domingo concentra a maior incidência (16 respostas), seguido pelo sábado
(7 respostas) e a quarta-feira (5 respostas).

Gráfico 21 – Frequência dos entrevistados na igreja (Resposta espontânea)

126
6

3 3 3

Menos de uma 1 vez por 2 vezes por 3 vezes por 4 vezes por Não frequenta
vez por semana semana semana semana semana

Gráfico 22 – Dias da semana que os fiéis frequentam (Resposta espontânea)

16

3 3
2
1

Domingo Segunda-feira Terça-feira Quarta-feira Quinta-feira Sexta-feira Sábado

Em síntese, o que os dados acima apresentam é que a amostra analisada confirma


tendência de outras pesquisas que mostram os evangélicos como um público de alta
frequência nos cultos e eventos religiosos56, principalmente durante os fins de semana.
Mas o que motiva a essas pessoas a dedicar tanto tempo de sua semana nesses
espaços? Para responder essa questão, o relato dos entrevistados de como chegaram à
igreja parece oferecer algumas pistas a respeito. Um desses casos é o de Daniel, 37 anos,

56
A Pesquisa Datafolha (2016), ao observar uma amostra com 820 evangélicos, observou que 65% deles
costumam ir à igreja mais de uma vez por semana, enquanto 22% vão pelo menos uma vez por semana. Em
nossa pesquisa, esses números seriam de 61% e 10%, respectivamente.

127
fiel da Assembleia de Deus. Morador de Itaquera desde nascença, Daniel conheceu a
igreja evangélica logo na adolescência, a convite dos amigos da rua. Segundo o próprio
entrevistado, suas motivações de início não eram nada religiosas:

Foi o seguinte quando eu estava com os meus 15, 16 anos. [Eu era]
moleque, tinha cabelo comprido, pegava tudo quanto era mulher (...) E
eu comecei ir para a igreja, fui eu e mais três amigos meus. E você sabe
como moleque é, só sai pra transar com mulher bonita. E eu comecei
com esse intuito, mas nós começamos a gostar da igreja e ficamos
(Daniel, 37 anos, representante comercial)

Embora o objetivo inicial de Daniel fosse, em suas palavras, “transar com mulher
bonita”, com o passar do tempo, porém, o gosto pela igreja tomou conta do entrevistado,
conforme deixa explícito na passagem a seguir:

Aquele espaço físico da igreja, você sente realmente que ali Deus fala
com você, então ali você sente, então ali foi onde, e eu orei bastante
para Deus e Deus mostrou que era ali que eu tinha que ficar e ali que eu
vou ficar (Daniel, 37 anos, representante comercial)

Outro caso interessante é o de Felipe, 34 anos, morador da Vila das Belezas, na


Zona Sul de São Paulo. Católico de batismo mas evangélico desde a adolescência, Felipe
conheceu a religião mediante um projeto que a igreja realizava em sua escola aos
domingos. Assim como Daniel, suas motivações iniciais não estavam diretamente
associadas aos motivos religiosos:

Eu fui porque a igreja tinha um sítio, não pela igreja (...) Eles tinham
um sítio que eles iam com a família, pra quem ia pra lá tinha sítio,
churrasco, futebol e tal. E eu fui pra ir para o sítio e não pra igreja, aí
eu gostei [da igreja] (Felipe, 34 anos, auxiliar de escritório)

Ao frisar que a sua ida para a igreja se deu exclusivamente ao sítio e todas as suas
benesses – “churrasco, futebol e tal” – a fala de Felipe, assim como a de Daniel, revelam
algo importante sobre a aproximação das igrejas evangélicas no contexto das periferias.

Não existe diversão na vida de pobre, é só luta, batalha e sofrimento,


entendeu? (Rosa, 39 anos, manicure)

Em um cenário urbano onde os equipamentos de lazer encontram-se


frequentemente prejudicados57, abrindo espaço para que praças e locais públicos se

57
Algumas falas dos entrevistados neste sentido: “Aqui as praças que têm é tudo com bicho, é mato desse
tamanho, brinquedo quebrado. Tudo bem que aqui tem muito maloqueiro, mas faz uma coisa mais
resistente, gasta um pouco mais pra durar um pouco mais. Tem uma enorme duma praça aqui, em frente a
padaria, e nunca teve brinquedo. Você vê casinha de cachorro, você vê casinha de morador de rua. Mas
você não vê um brinquedo, os brinquedos que colocaram foi há uns dez anos atrás, quando na última gestão

128
transformem em ambientes abertos de crime58 e consumo de drogas59, além dos
controversos fluxos de baile funk60, as igrejas nas periferias acabam por se tornar um local
seguro de lazer e cultura em virtude da própria moralidade que se espera desse ambiente
sagrado – e, consequentemente, de seus próprios membros.

Porque a religião aproxima, faz com que tenha aquele respeito, aquela
união de todos em comum acordo, prestar culto de adoração a Deus, ou
a ideologia que a pessoa acredita (Clara, 30 anos, dona de casa)

É questão também de postura. A postura dos meus amigos que estão na


igreja é uma postura mais séria, mais cautelosa no que vai fazer, os
amigos que não estão na igreja, às vezes eles sabem o que é certo e o
que errado, porém não deixa de fazer certas coisas [erradas] né?
(Adilson, 27 anos, auxiliar de produção)

Quem é da igreja vai ter os mesmos costumes que você, os mesmos


pensamentos, o mesmo caminho. Agora quem não é da igreja pensa
diferente, é outro tipo de convívio (Ana, 21 anos, desempregada)

Assim, para além das questões de fé e do auxílio nas necessidades materiais e


espirituais, a igreja evangélica é um lugar de convívio e sociabilidade, de conhecer “gente
do bem” aos finais de semana, fazer amizades e manter seus vínculos com elas.

A gente de sábado foi no apartamento de um amigo, fizemos uns


hambúrguer e a gente vai junto no parque também, vai pra outras
igrejas, vai pra shows juntos (...) Aí outro dia a gente foi jogar boliche
(...) Não porque é da igreja, mas porque juntou a galera e foi (Felipe, 34
anos, auxiliar de escritório)

Não à toa, ao referir-se a importância da igreja em sua vida, o entrevistado Felipe resume
da seguinte forma:

da Dilma, se eu não me engano, e depois não mexeram mais” (Tássia, 36 anos, operadora de telemarketing)/
“O que poderia melhorar aqui na região que é muito precário é questão de lazer, não é? A questão de lazer
é muito precária, tem muito pouco. Assim, tinha que ter uns parques (...) Até para evitar que futuramente
ocorram outros índices de criminalidade não é? Essas coisas” (Daniel, 37 anos, representante comercial).
58
“Aqui tem muito assalto, está tendo muito assalto (...) de madrugada, ou mesmo assim, durante o dia,
quando eles pegam pra atacar eles pegam as pessoas que estão na calçada, passa de moto, arranca celular,
arranca bolsa (...) Precisaria de mais segurança aqui” (Edileusa, 49 anos, autônoma).
59
“Eles ficam lá usando droga, fumando maconha o dia inteiro (...) Talvez se colocasse uns equipamentos
na praça ali, aqueles equipamentos que agora eles colocam ginástica, alguma coisa, uns brinquedos (...)
mas não tem nada, você olha e não tem nada próximo” (Daniel, 37 anos, representante comercial)/ “Aqui
o que estraga aqui é a droga (...) Eu tô cercada de biqueira, então é caminho. Você vê duas horas da manhã
aqui se parece um monte de the walking dead na rua, te juro por Deus (...) Mas a maconha é dos males o
menor, os maconheiros são tudo gente fina, agora os nóia (...) aqui é mais pó, é mais lança-perfume que
agora tá na moda. Tem gente cheirando acetona pura, sei lá né, cada um cada um” (Tássia, 36 anos,
operadora de telemarketing).
60
“O que eu menos gosto no bairro é quando tem fluxos e essas coisas (...) As pessoas colocam som alto,
um monte de pessoas bebendo, sabe? (...) Eles fazem isso e sujam toda a rua, deixa muito papel e nem liga”
(Ana, 21 anos, desempregada).

129
O ambiente ali, não posso falar que é um clube, mas é um lugar gostoso
de frequentar. Tenho amigos lá, são bem respeitadores, é um pessoal
que pra ter amizade é bom. Mas todo lugar tem gente boa e ruim, na
igreja também vai ter. Mas a maioria das pessoas são legais (Felipe, 34
anos, auxiliar de escritório)

3.3.2.3. “A IGREJA É UMA FAMÍLIA”

Ao criar laços pessoais de proximidade, isso naturalmente faz com que a igreja
também se torne um ambiente de relacionamentos. No nível institucional, uma das
principais relações estabelecidas é entre o pastor e o seu rebanho (isto é, os membros da
comunidade). Por seu papel de autoridade, o pastor é aquele responsável por manter vivo
os vínculos associativos da igreja com os seus membros. Na prática, essa vinculação se
estabelece através de visitas domésticas, orações e conversas em particular e até contatos
de cunho mais pessoal, como passeios e atividades fora da igreja:

É uma pastora, minha relação com ela é bem boa (...) Ela já veio aqui
em casa (...) fala o que Deus mandou falar algumas coisas pra mim. Aí
ela vem, ora em casa e passa um pouco essa aflição (Laura, 41 anos,
dona de casa)

Os pastores são bem amigos, eles são muito próximos. Eles não são
aqueles pastor artista. Eles vêm e unge cada um da gente, percebe
quando a gente não vai e pergunta. Eu não fui esse domingo e o pastor
falou pra minha mãe: “Cadê a sua filha?”. É muita gente, eu não sei
como ele lembra (Tássia, 36 anos, operadora de telemarketing)

[Minha relação com o pastor] é muito boa, é o meu amigo hoje. Amigo
de vezes quando a gente sai para comer fora, bate papo, falar de futebol,
igreja, família (...) Por exemplo, está tendo obra na igreja e ele me
manda mensagem. A gente vai lá e fica debatendo alguns assuntos
(Daniel, 37 anos, representante comercial)

Ao se aproximarem da vida comum de suas ovelhas, os pastores acabam por tornar


os membros de suas igrejas pessoas visíveis, cujos dramas da existência cotidiana passam
a ser vistos, ouvidos, lembrados e acolhidos por um líder respeitado na comunidade; uma
experiência única para muitos daqueles a quem a posição social tende a ser invisibilizada
dadas as múltiplas exclusões de nossa sociedade.
Mas existe também o nível de relacionamento do rebanho entre si. Embora já
tenhamos citado como as relações de amizade se constroem a partir das interatividades
da igreja, é importante frisar como esses vínculos são aproveitados pelos evangélicos para
arranjar companheiros e constituir famílias. Como sublinha Almeida (2004), “os
evangélicos têm como orientação religiosa casar-se entre irmãos de fé, o que faz dos

130
membros da comunidade religiosa parentes potenciais” (2004, p.39). Isso também se
evidenciou pela fala dos entrevistados da nossa pesquisa.
Relembrando a fala do entrevistado que ia para a igreja para conhecer “mulher
bonita”, alguns fiéis entrevistados também apontaram que os seus relacionamentos
amorosos (namoro ou casamento) tiveram alguma relação com a igreja local:

Nossa família é muito grande (...) e a maioria deles são da igreja. Da


parte do meu marido, meus irmãos, a minha sogra, os primos são todos
da igreja. Eu conheci meu marido na igreja, inclusive (Clarissa,48 anos,
dona de casa)

Eu conheci o meu marido [na igreja]. A família dele é da Congregação


(...) e Deus mudou tudo na minha vida! Me deu tudo, me deu uma
família, um filho... Deus me mudou bastante também (Tânia, 21 anos,
auxiliar de produção)

Minha namorada frequenta a igreja comigo (...) O que eu levei em


consideração foi o jeito dela, foi o caráter dela. Tipo, essa menina é
diferente, não é como diversas meninas que ficam com um e com outro.
Ficam fazendo coisas erradas, essa menina é diferente, aí fui
conhecendo ela a fundo e fui gostando dela (José, 19 anos, ajudante
geral)

Os casos relatados acima indicam, portanto, alguns aspectos interessantes acerca


das diferentes dinâmicas de relacionamento da igreja. O primeiro deles está,
evidentemente, na força atrativa que a programação da igreja incide sobre os vínculos
pessoais próximos a familiares, amigos e vizinhos; em seguida, está a importância do
líder religioso para a vida dos membros, na elaboração dos seus dilemas e conflitos
diários; por fim, estão os laços comunitários da igreja, que criam um espaço de
sociabilidade por meio das atividades religiosas e grupos ministeriais, estabelecendo
vínculos de amizade e até de parentesco.

3.3.2.4. “A IGREJA É LUGAR DE OPORTUNIDADES”

Outro fator decisivo para compreender o diferencial comunitário das igrejas


evangélicas nas periferias está no seu elemento potencializador de talentos. Para que se
realizem os serviços religiosos dentro de uma igreja, é necessário que toda uma cadeia de
atividades seja desenvolvida (os chamados ministérios), que vão desde a preparação do
sermão até as atividades de música, danças e os serviços de diaconia. À medida que a
igreja cresce, é comum que se aumente também o número de ministérios, incluindo outras
programações como atividades missionárias, programações esportivas, dentre outros.

131
Do ponto de vista religioso, a disposição de algum fiel para desempenhar alguma
desses ministérios é encarada como um chamado divino. Partindo da leitura bíblica da
Parábola dos Talentos61 – da qual Jesus se utiliza de uma alegoria para contar aos seus
discípulos a história de que Deus dedicou ao menos um “talento” para cada ser humano
– os crentes acreditam que toda pessoa é chamada por Deus para exercer alguma função
dentro da igreja. Por essa razão, muitas igrejas oferecem aulas de música, dança e teatro,
além de outros cursos de preparação para pastores e líderes. Dessa forma, portanto, o
talento diz respeito não apenas a uma habilidade ou aptidão pessoal como é, também, a
manifestação do propósito divino para uma pessoa.
Na perspectiva sociológica, a descoberta de um talento excede as fronteiras do
campo religioso e abrange outros aspectos subjetivos da vida dos indivíduos. Como
lembra Sennett (2004), ter um talento é uma das insígnias de prestígio que conferem
direito ao respeito próprio, produzindo assim uma esfera particular na geração de
autoestima. Em uma dimensão pública, esse talento implica a produção de um status –
ou, para usarmos um termo de Honneth (2003), de um reconhecimento social – o que faz
com que alguns desses homens e mulheres, além de serem notados, respeitados e
admirados por outras pessoas, consigam intercambiar esse reconhecimento em benefícios
e vantagens para outras esferas da vida.
Em nossa pesquisa, alguns dos entrevistados confirmam a descoberta desses
talentos na igreja. Um deles, aliás, chega a afirmar que o talento se transformou em fonte
complementar de renda:

Desde criança eu canto na igreja. Eu sou meio tímida, meia fechada,


mas eu gosto de cantar (Ana, 21 anos, desempregada)

Eu tenho um ministério (...) Sou músico, toco baixo, de vez em quando


toco bateria e teclado (Marcos, 19 anos, ajudante geral)

Eu toco na igreja, sou músico da igreja (...) Violão, guitarra, bateria,


contrabaixo, bongô e piano (...) Eu comecei com doze anos de idade,
fiquei tocando na igreja. Comecei a dar aula de música, e
esporadicamente alguém ainda me procura (...) Dá para ser uma fonte
de renda (Afonso, 39 anos, taxista)

Outros, porém, procuram usar esse reconhecimento de outras maneiras. É o caso,


mais uma vez, de Felipe. Embora tenha o emprego regular de auxiliar de escritório, o

61
A parábola encontra-se na passagem bíblica de Mateus 25:14-30.

132
entrevistado costuma aceitar outros trabalhos de construção (na forma de bicos) nas horas
vagas. Segundo ele, essas vagas geralmente são frutos de indicações do pessoal da igreja:

Tenho um grupo de amigos que vai pra igreja sim (...) Às vezes
oportunidades aparecem por ali, indicações de trabalho (Felipe, 34
anos, auxiliar de escritório)

Essas oportunidades lembram aquilo que Almeida (2004) sublinhou acerca dos
“laços religiosos que podem se estender a laços de trabalho e de vizinhança”, próprio de
uma rede de proteção social, mas que também é traduzido pelo fiel no terreno da
espiritualidade, afinal: “Deus é quem está me ajudando!” (ALMEIDA, 2004, p.39).

3.3.2.5. “DEUS DÁ A VITÓRIA”

É dessa forma, portanto, que se entrelaçam o discurso religioso com a prática


comunitária. Por um lado, porque é através da igreja que o crente encontra uma mensagem
de esperança – que lhe motiva a ter fé e autodisciplina para lidar com as adversidades do
dia-a-dia –, assim como encontra socorro e acolhimento nos momentos de maior
vulnerabilidade. Por outro lado, porque a igreja é o local de encontro dos amigos e da
família, um espaço para descobrir e desenvolver talentos, sendo reconhecido pelos pares
de sua comunidade como alguém devidamente digno, um irmão, graças ao estado de sua
posição religiosa.
É justamente a partir dessa experiência religiosa que os crentes encontram na fé a
sensação de uma melhora de vida. Tendo em vista que a religião confere um sentido
positivo para a sua existência e uma comunidade para lidar com as mais diferentes
frustrações e aleatoriedades da vida cotidiana, os entrevistados percebem a vida religiosa
como uma possibilidade de ascensão social, mostrando que o segredo do sucesso consiste,
muitas vezes, em “colocar Deus em primeiro lugar”:

Eu me considero uma pessoa bem sucedida porque nós temos Deus na


nossa vida em primeiro lugar e a fé é a nossa paz interior. Porque assim,
eu já tive uma vida mais estruturada há um tempo atrás, com salário
bom e tudo (...) Mas eu não tinha essa paz que eu tenho hoje. Essa paz
de você deitar na cama e falar: Está na mão do Senhor (Edileusa, 49
anos, autônoma)

As coisas parecem que dá mais certo quando você acredita em Deus.


Não por religião, mas sim por Deus, quando você acredita em Deus,
tem fé, acho que as coisas dá mais certo (Ana, 21 anos, desempregada)

133
Acreditar em Deus, portanto, aparece na fala dos entrevistados como uma
experiência de vida ativada pelo ambiente religioso, capaz de desenvolver uma “paz
interior” nos momentos difíceis, e uma “fé inabalável” em meio às circunstâncias, porque
traz consigo a certeza da “vitória”.

Eu tenho essa fé hoje por causa do meu marido (...) porque ele tem uma
fé tão inabalável, mas tão inabalável que eu acredito até que é através
disso a gente ainda vai vencer, de alguma forma, entendeu? Se Deus
quiser (Rosa, 39 anos, manicure)

Em contrapartida, é justamente em meio a experiência religiosa que os mais


pobres encontram na igreja uma “saída de emergência”: um refúgio, um local de acolhida
e pertencimento, uma rede de proteção e solidariedade que, além de oferecer ajudas
materiais, é capaz de propiciar também um ambiente de fé que se mistura com as
atividades de lazer e cultura, educação e formação política, o que torna o pentecostalismo
uma religião influente para os moradores de periferia, seja pela rede de sociabilidade que
incrementa os laços familiares, seja pela sua ética normativa que dignifica a existência
dos convertidos e confere disposição para enfrentar os desafios cotidianos da vida.
A seguir, veremos como essa dinâmica social explica a relação entre
pentecostalismo e periferia em São Paulo.

134
4. ALINHAVANDO CONCEITOS: AS AFINIDADES ENTRE
PENTECOSTALISMO E PERIFERIA EM SÃO PAULO

Partindo da definição de “sucesso na vida” como uma porta de entrada para a


percepção dos entrevistados acerca dos horizontes de satisfação pessoal em relação a sua
condição de classe, observamos como a visão de mundo dos moradores de periferia em
São Paulo está permeada por um imaginário que classifica a vida bem-sucedida como um
estado de realização pessoal que, confirmado por um certo padrão de consumo estável,
procura estabelecer condições de vida digna tanto para si como para os seus.
Para que se possa alcançar esse estado, os entrevistados exaltam o esforço da
pessoa como a principal justificativa para o sucesso, criando assim uma linha divisória
entre os vitoriosos e os fracassados mediante o grau de dedicação individual empreendido
no projeto de melhorar de vida.
Embora este lhes seja o universo moral desejável, a realidade por eles apresentada
sugere que nem sempre a dedicação da pessoa é suficiente para se chegar em uma vida
bem-sucedida, tendo em vista que sua condição social periférica serve muitas vezes como
um impeditivo para que o esforço faça valer a pena, sendo motivo de inúmeros dissabores
e frustrações, aqui traduzida pelos entrevistados como falta de oportunidades.
Por outro lado, os entrevistados também demonstraram valorizar a experiência
religiosa como uma espécie equivalente de sucesso, mostrando que mesmo em meio às
situações de fracasso e desvantagem a igreja evangélica é uma arma potente tanto para
compensar as contingências da vida cotidiana por meio da fé bem como para estimular
os crentes a refazer seus projetos de vida digna mediante uma racionalidade onde o
esforço individual é sacralizado e o “comodismo” demonizado, configurando assim uma
concepção de mundo na qual se combinam o universo moral desejado às opções de vida
disponíveis.
É desse modo, portanto, que se é possível articular a religiosidade pentecostal e a
experiência de vida periférica. Em nossa pesquisa, essa relação se evidenciou a partir de
um movimento de influência recíproca. De um lado, da religião enquanto experiência de
classe: tendo em vista que o pentecostalismo é dotado de um conjunto de percepções que
busca traduzir a experiência de vida dos crentes pela lente religiosa, foi possível
considerar essa religiosidade como uma forma de expressão lastreada pelos imperativos
da vida material, mas que é ao mesmo tempo sentida e vivenciada dos pontos de vista
moral e afetivo.

135
Em contrapartida, é justamente por essa vivência religiosa que surge o segundo
vetor relacional, o da experiência de classe justificada pela religião. Isto é, uma vez que
a religião pentecostal é encarada uma forma de expressão das camadas populares, a
racionalidade desenvolvida no interior do ambiente religioso acaba por exceder a esfera
do sagrado e desenvolve dispositivos para uma determinada conduta de vida prática, na
qual a ética religiosa se confunde a certos estímulos e justificativas compartilhadas pelo
contexto econômico dominante.
Esses dois movimentos atuam em uma dinâmica de aproximação mútua,
provocando uma afinidade de sentido entre a realidade social e a dimensão religiosa, e
entre a experiência vivida por esses crentes e as crenças por eles desenvolvidas, formando
um todo coerente no universo moral das periferias.
Cumpre-nos, portanto, detalhar cada um desses movimentos.

4.1. A RELIGIÃO ENQUANTO EXPERIÊNCIA DE CLASSE:

Em primeiro lugar, cumpre-nos explicar o que nossa pesquisa encontrou acerca


do fenômeno do pentecostalismo enquanto forma de expressão de uma experiência de
classe. Relembrando Thompson (2001, p. 277), a quem a classe social é vista como “o
modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e segundo a experiência
das suas situações determinadas no interior do conjunto de suas relações sociais com a
cultura”, a experiência de classe também é um sentimento, exteriorizado através de
“normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou na arte
ou nas convicções religiosas” (THOMPSON, 1981, p.189).
Nesse sentido, ao observar o pentecostalismo dentro do contexto social das
periferias, nossa investigação demonstrou características que parecem iluminar algumas
hipóteses acerca da importância dessa religiosidade na construção de valores e práticas,
identidades e pertencimentos da realidade periférica:

4.1.1. O PAPEL DA COMUNIDADE RELIGIOSA COMO ELEMENTO


AGLUTINADOR DE CLASSE:

Considerando que a igreja evangélica pentecostal é, por suas peculiaridades


históricas, uma instituição muito próxima da realidade social dos pobres, nossa

136
investigação concluiu que a comunidade suscitada pelo ambiente religioso é, para além
dos ritos e doutrinas, um lugar de acolhimento, espiritual e material, e um espaço de
sociabilidade em seu bairro ou região de origem.
Como um lugar de acolhimento, a igreja cria uma esfera receptiva para todos
aqueles que querem conhecer a fé pentecostal e, junto com eles, busca ouvir seus
problemas na forma de “pedidos de oração”. Além do efeito terapêutico que um espaço
de escuta como esse tende a oferecer para os crentes, é também por essa via que a
comunidade conhece as necessidades dos membros, podendo eventualmente ajudá-los
seja pela via institucional (a igreja destinar um ministério encarregado para organizar a
doação de comida, grupos de oração etc.), seja pelas próprias redes informais de
relacionamento dos próprios “irmãos”. Essas ajudas se estendem a uma gama diversa de
dificuldades, que envolvem desde as urgências materiais (comida, roupa, trabalho) aos
problemas espirituais (vícios, doenças, possessões demoníacas), o que faz da igreja
evangélica uma espécie de pronto-socorro religioso das periferias.
Outro aspecto comunitário importante presente na igreja está relacionado ao seu
espaço de sociabilidade. Pelo fato de os evangélicos pentecostais apresentarem uma
religiosidade que é simultaneamente inclusiva no acesso à salvação (“Deus dá
oportunidades para todos”), mas exclusiva no relacionamento dos “salvos” (“o povo de
Deus precisa se diferenciar das pessoas do ‘mundo’”), a rede de sociabilidade promovida
pela igreja acaba por limitar os vínculos sociais dos crentes às fronteiras do religioso – de
modo que os faz distinguir os relacionamentos das pessoas entre os que são “da igreja” e
os que são “do mundo”, estabelecendo assim uma hierarquia de confiabilidade de acordo
com a pertença das pessoas entre esses dois grupos.
Essa limitação, em contrapartida, faz com que os laços internos às pessoas da
religião se intensifiquem, estimulando aproximações da liderança com os membros, e
entre os membros e a comunidade. Esses vínculos se sobrepõem aos laços de parentesco
e de amizade, e podem se estender a laços de trabalho e de vizinhança, o que faz com que
a rede evangélica se torne uma rede densa e com relações sociais centrífugas e vínculos
afetivos e sociais de longa duração (ALMEIDA, 2009, p.46).
É isso o que faz da igreja evangélica um clube social, como chegou a afirmar um
entrevistado, embora a imagem mais comum entre os crentes seja atribuir a igreja a figura
de uma família. Embora representem imagens distintas, cada uma delas revela algo sobre
o significado da igreja e, por conseguinte, da própria religiosidade pentecostal no contexto
das periferias.

137
Isso porque a igreja enquanto clube nos remete a um conjunto de situações que
mostram o pentecostalismo como uma opção de lazer e cultura nos bairros periféricos,
por meio das programações e atividades promovidas pela igreja um importante atrativo
para uma população que convive com as distâncias (espaciais e sociais) de equipamentos
culturais públicos e de boa qualidade. Por esse motivo, na carência desses equipamentos,
a igreja pentecostal acaba por se tornar o seu substituto orgânico. À medida que esses
vínculos se solidificam ao longo do tempo, as trajetórias pessoais desses crentes se
misturam no interior da comunidade, o que não raras vezes se torna um ensejo para que
os membros se casem e constituem laços de parentesco entre si. É daí então que surge a
noção da igreja enquanto família, uma vez que os laços religiosos acabam se
intensificando de tal modo que o arranjo familiar acaba sendo perpassado pela experiência
religiosa62.
Por outro lado, a igreja enquanto família também pode significar uma substituição
dos laços familiares pelos vínculos sociais religiosos: afinal, é também pela falta de uma
família nuclear estruturada que muitas pessoas aderem à religião pentecostal, de modo
que o ambiente comunitário da igreja – plasmado pela sua moral religiosa – passa a
virtualizar uma esfera de afetos e reciprocidades do qual se emula uma estrutura familiar
dentro do contexto religioso, recriando desde os laços de autoridade paterna pelas figuras
da liderança até os vínculos fraternais entre os irmãos da igreja.

4.1.2. O DISCURSO MOTIVACIONAL E DISCIPLINADOR DA RELIGIÃO:

Articulando o discurso evangélico de maneira integrada é possível concluir que a


mensagem pentecostal corresponde a uma dinâmica ativa entre motivação e disciplina.
Em nossa pesquisa, esse movimento se manifestou ao menos em dois vetores. O primeiro
surge da mensagem pentecostal enquanto motivação para a autodisciplina, isto é,

62
Para demonstrar como a igreja evangélica propicia um ambiente com vínculos sociais densos, o relato de
um dos entrevistados da Pesquisa FPA parece ser exemplar para mostrar de que modos o ambiente religioso
pentecostal acaba por intensificar a participação dos fiéis dentro da comunidade em detrimento de um
afastamento ou esfriamento dos vínculos de sociabilidade que não estejam diretamente associados à
religião. Segundo o entrevistado (que não é evangélico, mas a esposa é): “Quando você dá muito valor para
a igreja, assim, esquece um pouco da família. Assim, vários domingos ela [esposa] não passa em casa,
muitas vezes eu trabalhei de segunda a sábado (...) Chega no sábado à tarde, vou ali beber uma cervejinha.
Quando volto, ela já foi pra igreja e levou os meus filhos junto (...) Eu passo os domingos sozinho, sendo
que na segunda-feira eu vou ter que trabalhar tudo de novo: doze hora em pé, sem horário para voltar para
casa. Então isso daí é uma traição para mim, traição. E ela nunca vai aprender isso daí. Vai morrer fazendo
o contrário” (Aparecido, 32 anos, segurança particular).

138
momento pelo qual o discurso religioso de que as bençãos de Deus estão disponíveis para
todo aquele que se esforça desenvolve no fiel os primeiros estímulos em direção a
doutrina ascética da igreja.
É o instante que o leva a crer que o caminho certo da igreja é o que faz a vida
honesta valer a pena. Assim, a figura do pobre trabalhador – que aceita docilmente as
agruras diárias da pobreza como evidências concretas da luta no plano espiritual, e que se
esforça para manter a família unida longe dos vícios e da vida dos prazeres imediatos –
assume, ao mesmo tempo, o caráter idealizador de modelo de vida crente, confundindo
mutuamente os imperativos econômicos e morais de sobrevivência a uma ética religiosa
da perspectiva dominada.
Confundindo mutuamente os imperativos econômicos e morais de sobrevivência
a uma ética religiosa da perspectiva dominada, o crente passa a adotar os preceitos
ensinados pela igreja para aspectos fora do âmbito religioso, incorporando a moral
evangélica em suas ações práticas do cotidiano, e inculcando as regras de salvação em
uma estratégia para lidar com as adversidades deste mundo.
Assim como aconteceu na história de Edileusa – que se agarrou à fé pentecostal
após a tragédia familiar ocasionada pela prisão do filho e do alcoolismo do marido – a
conversão evangélica serve, dentre outras coisas, para interiorizar os problemas da vida
como uma luta espiritual, cuja vitória é garantida pelas promessas de Deus,
materializadas pelo milagre da família restaurada. Essa restauração, cumpre lembrar, é
ressaltada por meio de uma série de elementos morais e simbólicos que atestam que a
vida com Deus é, necessariamente, uma libertação da vida mundana. Relembrando as
palavras da entrevistada:

Deus libertou o meu marido das bebidas, do cigarro. A minha filha


também queria ir para o baile funk se perder por aí, o Senhor já trouxe
um marido que apagasse o fogo dela e está uma benção. Toda a família,
você precisa ver que coisa linda (...) Hoje em dia o meu filho é o braço
direito do pastor, muito abençoado. Ele tem duas casinhas alugadas, ele
mora no último andar. Tem um apartamento alugado. Tem uns três
caminhão que ele trabalha na Batavo (...) Precisa ver que coisa linda
(Edileusa, 49 anos, autônoma)

É diante do testemunho pessoal, portanto, que se constrói a motivação para a


disciplina. Dito de outro modo, à medida em que o crente se disciplina a viver pela fé
pregada na igreja, o discurso religioso da “vida abençoada” passa a ser comprovado em
sua própria experiência de vida, transformando-o em uma espécie de testemunho vivo de

139
que o condicionamento religioso vale a pena para suportar os eventos contingentes e dar
sentido espiritual aos mais variados problemas da vida.
Justamente em meio a este movimento que advém o segundo vetor da mensagem
pentecostal, que aqui chamamos de disciplina da automotivação. Nesse momento, o fiel,
já incorporado pelos estímulos espirituais inculcados na elaboração dos seus problemas
diários, passa a encarar a realidade como um “teste”, uma “prova” de Deus para os
escolhidos permanecerem na fé e não desanimarem diante das tentações do “mundo”.
No contexto periférico, essas tentações são muitas vezes traduções das privações
de classe, que cristalizam as desvantagens da população mais pobre em um processo
constante de desmanche dos projetos de vida: desfeitos e refeitos pelas rendas
intermitentes e dos benefícios descontinuados; do desemprego ao trabalho precarizado;
da moradia inadequada a vizinhança perigosa; das tentações da vida criminosa ao
descontrole nos vícios, entre muitos outros.
Diante de todas essas aflições, a igreja pentecostal surge como uma afirmação,
um discurso religioso que oferece um conjunto de recursos simbólicos (cultos, orações,
jejuns, etc.) como alternativas para racionalizar as variáveis potencialmente
desanimadoras na vida em um impulso para permanecer na fé independentemente das
circunstâncias.
Dito em outros termos, é como se a experiência de classe dos mais pobres
encontrasse nos mais variados aspectos da experiência religiosa pentecostal um sentido
de vida, uma resposta para os seus dilemas e um modo de racionalizar o mundo mediante
um dispositivo teológico no qual a privação material é encarada como uma evidência
empírica da provação espiritual.
Em contrapartida, é justamente em meio a experiência religiosa que os mais
pobres encontram na igreja uma “saída de emergência”, um refúgio, um local de acolhida
e pertencimento, uma rede de proteção e solidariedade que, além de oferecer ajudas
materiais, é capaz de propiciar também um ambiente de fé, que se mistura com as
atividades de lazer e cultura, educação e formação política, tornando-se um espaço
influente para a formação cultural moradores de periferia. Dessa forma, tão certo como
afirmar que o discurso pentecostal reinterpreta a privação material em provação
espiritual, é considerar que a prática pentecostal ressignifica a exclusão social das
desigualdades em inclusão no Reino de Deus, tendo em vista que é no ambiente físico e
simbólico da igreja que se constroem essas redes de sociabilidade baseado nos vínculos
religiosos e que são a partir delas que o indivíduo não apenas “sente” como “vê acontecer”

140
a sua melhora de vida, formando um todo coerente entre a percepção da fé que vale a
pena e a realidade vivida dos crentes.

4.1.3. A POSIÇÃO DE CLASSE JUSTIFICADA PELA RELIGIÃO:

Ao internalizar a realidade social por intermédio de uma linguagem religiosa,


nossa pesquisa constatou um segundo movimento de reciprocidade entre o fenômeno
pentecostal e a experiência de classe periférica. Ele diz respeito aos modos pelos quais a
posição social periférica consegue ser justificada pela religião pentecostal, desenvolvendo
estímulos morais e psicológicos que se configuram, para além de uma experiência
religiosa, em uma racionalidade prática.
Como vimos anteriormente, Weber (1979a) é exemplar ao mostrar como as
crenças religiosas – sobretudo as das religiões ascéticas – se transmutam em uma ética
determinante para a vida econômica através de impulsos práticos à ação. Transformando
a fé em controle do comportamento, a conduta de vida prática dos crentes passa a ser
orientada pelos pressupostos religiosos, formando assim uma mentalidade aplicável não
apenas ao espaço de culto como também às diferentes esferas da existência cotidiana.
É sobre esse processo de racionalização da vida cotidiana que nossa investigação
a influência do pentecostalismo se espraia para as demais áreas da vida social, não apenas
atribuindo um sentido espiritual para as mais diferentes situações como também incitando
um conjunto de ações práticas, lastreados por uma ética econômica religiosamente
motivada.
Neste sentido, nossa pesquisa encontrou ao menos dois aspectos que parecem
indicar contornos éticos impulsionados pelo pentecostalismo. Primeiro, pela noção de
dignidade: uma vez que a conversão religiosa confere ao convertido um novo estatuto de
existência, que lhe afeta desde as relações primárias até a sua própria subjetivação, o
pentecostalismo acaba por emprestar uma concepção peculiar de vida digna para os seus
adeptos ao mesmo tempo em que exclui desse registro aquelas pessoas cujas atitudes não
estejam devidamente adequadas aos princípios religiosos. É em decorrência dessa
mentalidade que constatamos entre os evangélicos entrevistados uma noção privatizada
do mundo social, no qual os direitos sociais são vistos como condicionados a um
determinado comportamento moral de fundo religioso, da mesma forma em que sua
racionalidade acaba por gerar disposições empreendedoras de caráter individualista.

141
4.1.4. UMA NOÇÃO DE DIGNIDADE CONDICIONADA PELO ESFORÇO
INDIVIDUAL

Em primeiro lugar, vimos como a racionalidade prática pentecostal acaba por


conferir aos fiéis um estatuto particular de dignidade aos seus fiéis. Observando a
trajetória dos entrevistados, foi possível perceber como a ritualística pentecostal busca
atribuir uma nova identidade para todos aqueles que aceitam essa nova fé, ressignificando
contextos de vida em grande medida moldados pela precariedade das condições
econômicas e pelas múltiplas falta de oportunidades a partir de uma noção da qual “Deus
muda a vida daqueles que o aceitam como o seu Senhor e Salvador”.
Tal identificação, entretanto, está sujeita a uma determinada conduta de vida,
entendida como um “comportamento aceitável aos olhos de Deus”. Isso revela um aspecto
paradoxal do pentecostalismo: do mesmo modo em que essa religiosidade busca
universalizar o acesso à graça divina (mostrando que a salvação de Deus está disponível
a todos os seres humanos que a desejarem, e que os dons do Espírito são distribuídos
independentemente de sua origem ou contexto social), em contrapartida suas bençãos se
tornam exclusivas para aquelas pessoas que se esforçam em favor de sua fé.
Ou seja, para a ética pentecostal “crer no poder de Deus” só se efetiva em uma
“melhora de vida” à medida em que essa crença estiver vinculada a uma disposição
prática para “correr atrás”. Algumas passagens, como vimos, deixam essa concepção
bastante clara:

Deus ajuda quem cedo madruga sim, porque se você acordar 10 horas
da manhã e ficar sentado no sofá Ele não vai fazer nada, [mas] se você
acordar 5 horas da manhã e correr atrás do pão de cada dia Ele vai ajudar
(...) Você está ajudando, mas Ele também está ajudando (Daniel, 37
anos, representante comercial)

Eu vejo que as pessoas que ficam dormindo o dia inteiro não vão
conseguir nada, fica deitado esperando Deus jogar do céu algo. Tipo,
por exemplo, que fica só orando. Se você orar e não tiver uma ação,
você não vai conseguir nada desse jeito, você tem que correr atrás (...)
Deus ajuda a quem se dedica, quem está disposto a querer mudar, quem
está disposto a buscar algo melhor para sua vida (José, 19 anos, ajudante
geral)

Deus olha por todas as pessoas, tenho certeza. Mas você também tem
que tentar, ter interesse em conseguir as coisas, porque deitada ali na
cama nada vai acontecer. Deus não pode me tirar da cama (...) Eu tenho
que tentar pra ele fazer possível, mas se eu não der o passo não tem
como, depende das duas partes (Clara, 30 anos, dona de casa)

142
Além de expressar o estado de atomização social e de autorresponsabilização
pelas suas condições de vida, as falas acima demonstram como os moradores de periferia
se veem motivados pelo discurso do “faça por ti que eu te ajudarei” – dito popular
pretensamente bíblico, mas que certamente sintetiza um pensamento e um sentimento
comum dos evangélicos no que diz respeito à ideia de que são dignos da ajuda de Deus
apenas aqueles que se esforçam.
O contrário disso, evidentemente, está na figura do acomodado: o sujeito
preguiçoso que “fica deitado esperando Deus jogar algo do céu”. Interessante notar que
esse personagem surgiu na fala dos entrevistados de maneira mais enfática nos temas
relacionados aos programas sociais, revelando a indignação dos pesquisados referente às
pessoas que recebem benefícios do governo sem mostrar algum tipo de esforço próprio,
o que reforça o nosso argumento de que os evangélicos analisados valorizam o mérito
decorrente do esforço individual em todas as instâncias da vida, seja no aspecto religioso
como no aspecto econômico.

Eu sou contra aquele Bolsa Família (...) Acho que o governo podia fazer
umas cooperativas de trabalho para os caras trabalhar e eles se
manterem. Mas só dando, assim, o dinheiro, não (Felipe, 34 anos,
auxiliar de escritório)

Eles disponibilizam muito para as pessoas que não correm atrás. Todas
as minhas amigas que ficam em casa enchendo o cu de droga, que gasta
o Bolsa Família na droga, que fica coçando a periquita, tem Bolsa
Família. E só porque eu trabalho eu não posso ter por quê? (Tássia, 36
anos, operadora de telemarketing)

É dessa maneira, portanto, que encontramos o nexo entre a noção religiosa de


dignidade e a ética econômica por ela desenvolvida. De um lado, porque a religião acaba
por desenvolver ritos e discursos que buscam compensar as carências materiais e afetivas
por virtudes espirituais, emulando assim uma esfera simbólica pela qual a falta de
oportunidades é preenchida pelo estado de graça religioso. Essa concepção, no entanto, é
lastreada por um comportamento ético que exige do crente a participação ativa em todas
as áreas da vida, uma vez que só é justo que alguém tenha sucesso na vida mediante o
esforço próprio.
Ainda que no campo pentecostal possam sofrer grandes variações teológicas – a
exemplo do que Ronaldo de Almeida (2009, p.41; 2017, p.14-15) sublinhou como a “ética
da providência”, característica para os pentecostais clássicos, “segundo a qual Deus provê
aqueles que permanecem fiéis a ele nos momentos de necessidades materiais”, em
contraposição a “teologia da prosperidade”, própria do neopentecostalismo, “onde

143
possuir e ascender são sinais de que Deus, e não o diabo, age em sua vida” – o que nossa
investigação constatou é que essas diferentes visões teológicas giram sobre uma mesma
ponta de ferro, o esforço individual como motor da mudança social, o que de certa forma
cria um conjunto variado de estímulos para que o crente enfrente os dilemas do jogo social
desconsiderando os elementos que o excluem como as diferenças de classe, raça ou
gênero.

4.1.5. VISÃO PRIVATIZADA DO MUNDO SOCIAL:

Ao reforçar uma racionalidade eminentemente individualista sobre os fenômenos


sociais, nossa investigação demonstrou de que modos o pentecostalismo, por meio de
seus estímulos discursivos e práticos, acaba por corroborar na formação de uma visão de
mundo que exalta a meritocracia como princípio ético e sacral.
Ideal meritocrático esse que, como vimos, não necessariamente é capaz de ser
traduzido em uma realidade concreta para essas camadas populares. Posto que na maioria
das vezes o esforço ativo não se efetiva na recompensa almejada, as condições vigentes
no mercado (e na sociedade) acabam por desfazer a eficácia possível dos projetos
familiares de melhorar de vida e transformam a insegurança o elemento definidor de suas
formas de vida (TELLES, 2001, p. 109).
É diante dessa constante sensação de insegurança, portanto, que surge a fé. Menos
como crença e mais como uma forma de entender e agir sobre o mundo, os imperativos
éticos da religiosidade pentecostal se misturam aos imperativos da experiência de classe
– onde “a sobrevivência cotidiana depende inteiramente dos recursos materiais, das
energias morais e das solidariedades que cada um é capaz de mobilizar” – organizando
assim uma condução da vida em torno de “princípios inteiramente projetados pela esfera
privada, com suas lealdades e fidelidades pessoais, com seus vínculos afetivos e sua teia
multifacetada de identificações e sociabilidade” (TELLES, 2001, p. 107-108).
Entendendo a igreja local como um dos principais promotores da ordem social
privada das periferias paulistanas, constatamos como os crentes passam a frequentar os
cultos todas as semanas não somente porque creem em Deus ou porque esperam dali um
milagre específico, mas é porque neste lugar que eles encontram uma mensagem de
esperança – que lhe motivam a ter autodisciplina para lidar com as adversidades do dia-
a-dia –, assim como encontram socorro e acolhimento nos momentos de maior

144
vulnerabilidade. É também esse o local de encontro dos amigos e da família, um espaço
para descobrir e desenvolver talentos, sendo reconhecido pelos pares como alguém
devidamente digno graças ao estado de sua posição religiosa, conferindo-lhes uma
identidade e um status particular na comunidade.
É dessa força religiosa que emerge o incentivo concreto do crente para “perseverar
na luta”, não “esmorecer” e nem “desistir” diante das adversidades e improvisações da
vida cotidiana, na crença de que Deus abençoa, no mundo visível, aqueles que se dedicam
a caminhar na direção certa no plano espiritual, no mundo invisível. Entram aqui em cena
os exercícios religiosos do orar, jejuar e frequentar os cultos, mas também os dispositivos
de uma racionalidade necessária para não ceder às tentações do “mundo”, uma disciplina
para que o fiel possa se sentir preparado para fugir das inúmeras “aparências do mal” –
uma generalização, ironicamente muito precisa, para classificar todo tipo de discurso e
atitude que possa ser visto, pela lente religiosa, como um louvor aos “prazeres da carne”,
inscritos no descontrole das pulsões e dos vícios e no afrouxamento moral frente as
ilegalidades e ao crime.
Como resposta a essas tentações do “mundo”, a igreja evangélica parece procurar
costurar, no interior da sua religiosidade, um tecido complexo de discursos, práticas e
dispositivos, cujo objetivo consiste em cobrir de sentido uma vida repleta de desvantagens
em função não apenas de uma recompensa celestial como também de um conjunto de
“oportunidades” derivadas da nova vida em Cristo.
Nesse sentido, as trajetórias relatadas pelos entrevistados demonstram como os
efeitos da conversão religiosa tem o potencial de reorientar a conduta de vida dos
indivíduos e seus projetos familiares, restaurando pela igreja uma ordem moral capaz de
desenvolver disposições normativas e práticas que despertam no crente religioso uma
sensação de vitorioso, dado o leque de novas opções de vida possibilitadas a partir das
formas de existência e regras de sociabilidade desenvolvidas pelo espaço religioso.
No limite, trata-se de observar o pentecostalismo como uma religião que acaba
por desenvolver um jogo de salvação cujas regras tornam os esforçados recompensados
em todas as áreas dessa e da “outra vida”, inscrevendo assim na alma e no corpo dos
crentes um modo de vida no qual as desigualdades são naturalizadas pela óptica teológica,
e as injustiças sociais, internalizadas como parte do testemunho de fé.
Essas concepções acabam por encontrar sentido em uma experiência de classe
dilacerada entre a celebração de um individualismo empreendedor e o fracasso de uma
ética igualitária, que na ausência de direitos e garantias sociais que assegurem condições

145
de vida digna, fazem com que as populações mais pobres se vejam como únicas
responsáveis pelo seu próprio destino. E ainda que essas condições de vida sejam muitas
vezes atenuadas pelas assistências governamentais ou pelas redes familiares ou de
vizinhança, é sobretudo com a experiência religiosa que se encerra uma visão privatizada
do mundo social: onde o reconhecimento da pessoa é lastreado pelo imaginário do mérito
individual, e a cidadania é encarado sobre o prisma arbitrário do “favor de Deus”.
Em termos de Thompson (1981), a experiência vivida carregada de privações
determinadas objetivamente na vivência da realidade social é ressignificada por um
conjunto de práticas vivenciadas em ambientes fortemente influenciados por valores
religiosos pentecostais, os quais constituem uma identidade coletiva unicamente no plano
das atividades ligadas à religião (acolhimento, lazer, cultura, cerimônias etc.) e não nos
planos ligados a outras ações voltadas a enfrentar as privações coletivas. Aliás, as práticas
religiosas fazem com que tais privações se transmutem em uma experiência percebida de
caráter individual, afastando os crentes das associações coletivas ou da constituição de
experiências comunitárias motivada por outros significados dessas privações. Sem entrar
numa discussão conceitual sobre ideologia, fica evidente que esse afastamento dos crentes
da esfera pública não religiosa expressa uma visão de mundo espiritualmente
despolitizada, a qual favorece a reprodução da ordem social dominante.
Dessa forma, a experiência vivida por esses pentecostais, expressão dos dramas
coletivos das privações dos pobres, é ressignificada pela religião numa experiência
percebida como provações espirituais, de natureza eminentemente individual. Desse
modo, sua condição de classe dominada não é tematizada e a ênfase no esforço individual
se coaduna com os apelos ao empreendedorismo típicos da época neoliberal. Mas a
religião, para cativar e manter cativados seus fiéis, precisa produzir um sentido através
do qual seja possível chegar a uma vida digna, mesmo na pobreza. Trata-se de fazer com
que a experiência dos pobres seja percebida como provações espirituais, cujo êxito em
enfrentá-las – dependente dos esforços e dos sacrifícios pessoais – expressa uma noção
de dignidade válida dentro e fora da comunidade religiosa63.
É dessa combinação de fatores, portanto, que a religiosidade pentecostal e a
experiência periférica se aproximam e se misturam: ressignificando os eventos
contingentes em um propósito divino, as privações da vida material são elevadas ao
estatuto das provações espirituais, que acompanhadas pela experiência comunitária da

63
Agradeço a Carlos Alberto Bello pela generosa reflexão acerca da visão thompsoniana sobre as
experiências vividas e percebidas e como elas explicam a dinâmica do fenômeno pentecostal nas periferias.

146
igreja local, edificam laços de solidariedade e reconhecimento que se confundem aos
arranjos familiares, criando assim, na esfera privada, uma ordem moral que ajuda os
indivíduos a organizar a sua existência de acordo com os imperativos da ordem social
vigente, conformando os crentes numa concepção de mundo individualista e
meritocrática, válida assim na terra como no céu.

147
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