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Conselho Editorial da UNICENTRO

Marcos Ventura Faria


Lucélia de Souza
Karina Worm Beckmann
Denise Gabriel Witzel
Augusto Bach
Carlos Eduardo França
Clayton Luiz da Silva
Diogo Lüders Fernandes
Gilberto Bertotti
Gilmar de Carvalho Cruz
João Francisco Morozini
Josiane Lopes
Kátia Cylene Lombardi
Luciene Regina Leineker
Marcos Antonio Quináia
Marcos Roberto Kühl
Maria Cleci Venturini
Níncia Cecília Ribas Borges
Rhuan Trindade
Willson Gerigk

Editora UNICENTRO
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85015-430 - Guarapuava - PR
Fone: (42) 3621-1019
editora@unicentro.br
www.unicentro.br/edunicentro
Flávia Marinho Lisbôa
Ivânia dos Santos Neves
Maria do Rosário Gregolin
(Org.)

O GOVERNO DA LÍNGUA
uma perspectiva discursiva sobre o lugar da língua nas
relações de poder no Brasil
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO-OESTE

Reitor: Fábio Hernandes


Vice-Reitor: Ademir Juracy Fanfa Ribas
Editora UNICENTRO
Direção: Denise Gabriel Witzel
Coordenadora de Apoio à Divisão de Editoração: Renata Daletese
Assessoria Técnica: Beatriz Anselmo Olinto, Suelem Andressa de
Oliveira Lopes
Secretaria: Stefane Katrini Koop
Correção: Ari José de Souza
Diagramação: Renata Daletese
Estagiários: Hellen Ferreira; João Vitor Lobo Lopes; Maria Eduarda Godoi
Capa: João Vitor Lobo Lopes
Imagem da capa: AndSanttos

Catalogação na Publicação
Catalogação
Rede de Bibliotecas na Publicação
da Unicentro
Fabiano de Queiroz Jucá (CRB 9/1249)
Rede de Bibliotecas da UNICENTRO
Fabiano de Queiroz Jucá (CRB 9/1249)

G721 O GOVERNO da língua: uma perspectiva discursiva sobre o lugar da


língua nas relações de poder no Brasil [livro eletrônico]/ Organizado por
Flávia Marinho Lisbôa, Ivânia dos Santos Neves, Maria do Rosário Gregolin.
- - Guarapuava: Unicentro, 2023.
254 p. : il.

ISBN 978-65-5597-059-3

Bibliografia

1. Ciências sociais – Brasil. 2. Letras. 3. Linguística – Aspectos políticos.I.


Título.

CDD 306.08981

Copyright © 2023 Editora UNICENTRO


Nota: O conteúdo desta obra é de exclusiva responsabilidade de seus autores.
APRESENTAÇÃO 9
Ivânia dos Santos Neves
Flávia Marinho Lisbôa
Maria do Rosário Gregolin

AS DUAS ASAS DO PÁSSARO 15


SOBRE LÍNGUAS E SABERES INDÍGENAS NAS
UNIVERSIDADES DA AMAZÔNIA
José de Ribamar Bessa Freire

O DISPOSITIVO ESCOLAR 41
DISCIPLINA E CONTROLE NA PAISAGEM DAS CIDADES
BRASILEIRAS NO INÍCIO DO PERÍODO REPUBLICANO
Maria do Rosário Gregolin

DO GOVERNO DA LÍNGUA 71
ENTRE RAÇAS, ÁTOMOS E BYTES
Ivânia dos Santos Neves

LÍNGUAS, COSMOLOGIAS E CORPOS


RACIALIZADOS: CONVERGÊNCIAS
E GOVERNAMENTALIDADE NO
DISPOSITIVO COLONIAL 99
Flávia Marinho Lisbôa
DISPOSITIVOS, GOVERNO DA
LÍNGUA E NARRATIVAS 123
O KUNHÃKOTY DAS MULHERES INDÍGENAS NAS PRÁTICAS
EDUCACIONAIS DE RESISTÊNCIA DA LÍNGUA KAIOWÁ
Raimundo de Araújo Tocantins

OS POVOS INDÍGENAS E AS
TELENOVELAS BRASILEIRAS 147
O DISCURSO DA “FALA ERRADA” DA LÍNGUA PORTUGUESA
NAS FICÇÕES SERIADAS TELEVISIVAS
Vívian de Nazareth Santos Carvalho

PAJUBÁ, A LÍNGUA (IN)


GOVERNÁVEL 171
REPRESSÃO E RESISTÊNCIAS NA HETEROTOPIA DO
ASFALTO NO ESTADO NOVO (1939-1945)
Diego de Freitas Ungari
Rafael Marcurio da Cól

“PÁTRIA AMADA BRASIL” 197


O GERENCIAMENTO DA NECROPOLÍTICA LINGUISTICA
E A RESISTÊNCIA NAS ALDEIAS TEMBÉ-TENETEHARA
DO GUAMÁ
Cristiane Helena Silva de Oliveira
ENTRE SUSSURROS E
CASTIGOS 219
O GOVERNO DA LÍNGUA E A COSMOLOGIA OMÁGUA/
KAMBEBA
Márcia Kambeba

SOBRE AS / OS AUTORES 247


APRESENTAÇÃO
Quando eu fui estudar, eu já tinha 9 anos para 10 anos. Eu
fui estudar na escola do kupen e lá eu pegava beliscão, porque a
professora dizia que eu falava gíria, que estava errado, que eu
tinha que aprender a falar direito a língua, que o que eu falava
não era língua de cristão. Então, assim, eu pensava até que nós
éramos um ET, uma máquina.
Kátia Akrãtikatêjê

A descrição do arquivo dissipa essa identidade temporal em que


gostamos de nos olhar para conjurar as rupturas da história; ela
rompe os fios das teleologias transcendentais e no lugar onde o
pensamento antropológico interrogava o ser do homem ou a sua
subjetividade, ela faz com que se manifeste o outro, o que está do
lado de fora. O diagnóstico, assim entendido, não estabelece a
autenticação de nossa identidade pelo jogo das distinções. Ele de-
monstra que nós somos diferença, que a nossa razão é a diferença
dos discursos, a nossa história a diferença dos tempos, o nosso eu a
diferença das máscaras. Que a diferença, longe de ser origem es-
quecida e recoberta, é a dispersão do que somos e do que fazemos.
Michel Foucault
Nas áreas de humanidades, a inovação, muitas vezes, apa-
rece de forma tímida, como se fosse algo restrito aos avanços das
tecnologias eletrônicas e digitais. Sem nos prender a essas amarras
e incentivadas sempre pela perspectiva de que a pesquisa séria pode
nos levar a lugares diferentes e a práticas novas dentro das univer-
sidades, nas escolas, nos movimentos, o que propomos aqui é uma
inovação, uma forma diferente de olhar para a história das línguas
e visibilizar suas sujeitas, seus sujeitos e as tramas em que estão
envolvidos, não apenas as estruturas internas de palavras. Mas não
se chega ao novo sem disciplina e indisciplina, tampouco sem um
percurso, marcado por encontros e desencontros, sensível aos mo-
vimentos da história.
Sumário

Várias correntes de estudiosos da área da linguagem,


felizmente, já caminharam nessa direção, a sociolinguística, a
pragmática e mesmo os estudos do discurso. Nossa singularidade,
nesse cenário, reside em cotejar as categorias propostas por Michel
Foucault em suas diferentes fases, com as problematizações do nosso
tempo, do nosso espaço e da nossa história colonial. Tomamos,
precipuamente, a noção de governamentalidade, relacionada às
decisões, ações, procedimentos educacionais e de segurança, entre
outros, que incidem na população e não apenas no indivíduo, para
analisar como essas estratégias operaram e operam sobre as línguas
no Brasil colonial e contemporâneo.
Nosso lugar de enunciação é o Brasil, às vezes, mais
especificamente a Amazônia. Em diferentes níveis, um país ex-colônia
europeia e, nesse sentido, constituimo-nos com os estudos decoloniais,
perspectivas interessadas em verticalizar os desdobramentos iniciais
e atuais da colonização, esse substantivo quase abstrato, por tanta
heterogeneidade, mas que se funda no processo de subalternização
de línguas, de cosmologias, dos corpos colonizados. E nesse sentido,
o governo da língua, necessariamente, coloca-se entre as fluidas
fronteiras do dispositivo colonial, uma outra noção construída
nas pesquisas do Gedai (Grupo de Estudo Mediações, Discursos e
Sociedades Amazônicas/UFPA), bastante discutida no âmbito dos
estudos dos discursos foucaultianos no Brasil.
Quando falamos de dentro da Amazônia, ainda é possível
enxergar, sem dificuldade, um grau ainda mais perverso do
dispositivo colonial: os desdobramentos produzidos também pelo
colonialismo interno, que intensifica o ecocídio das populações
tradicionais da região. De dentro das universidades, não há mais
como não ouvir a pluralidade de vozes que se espraiou em bytes pelas
redes sociais da web. Não há mais como aceitar o monolinguismos
da língua portuguesa, nem tampouco negar as constantes fraturas
culturais e as emergências históricas da contemporaneidade.
No final do século 15, quando os europeus começam a
chegar ao continente americano, inicia-se um novo rumo na história

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Sumário

do continente, um rumo truculento, violento, muito interessado em


apagar as cosmologias locais e, naturalmente e estrategicamente, as
línguas. A imposição das línguas europeias vai se fortalecendo ao
longo dos séculos e apagando as subjetividades tanto dos indígenas
quanto dos africanos trazidos ao Brasil e ao mesmo tempo também
vai fraturando a possibilidade de pureza linguística, discurso que
se estabelece como uma espécie de verdade nas primeiras teorias
linguísticas do início do século XX, a partir de Saussure.
Chegamos, então, sem medo, ao que há de inovador nos
capítulos aqui apresentados: proposições sobre os processos de
governo que envolvem a língua portuguesa no Brasil, tanto em
suas fronteiras com as línguas indígenas, como sua posição no
cenário globalizado. Este livro faz um registro da história das
línguas no Brasil e visibiliza as tecnologias sociais que foram e
continuam a ser usadas em nossas salas de aula, na mídia, nas
igrejas, nas conversas cotidianas. E se podemos iluminar as
estratégias dos jesuítas do final do século XV, também podemos
constatar os interesses econômicos que envolvem sobretudo o
chinês e as línguas europeias em nossos dias.
Este livro é fruto de uma abordagem proposta e
amadurecida em pesquisas no âmbito das ações do Grupo de Estudo
Mediações, Discursos e Sociedades Amazônicas (Gedai) em parceria
com o Grupo de Estudos de Análise do Discurso de Araraquara
(Geada) e de outros companheiros de viagem, como o professor
José de Ribamar Bessa Freira. O conjunto de reflexões construídos
nessa parceria ao longo dos últimos anos fortaleceu as discussões
que aparecem nos capítulos que apresentamos a seguir.
No primeiro capítulo, Bessa Freire nos captura para
a reflexão sobre o papel da universidade para a preservação da
memória e conhecimento sobre a humanidade, considerando que o
conhecimento acadêmico, historicamente, negligenciou os saberes
secularmente produzidos pelos povos originários e suas línguas, o
que se resume no seguinte questionamento feito pelo autor: “qual o

11
Sumário

lugar que reservam para as línguas indígenas, verdadeiros arquivos


dos conhecimentos que nelas circulam?”
Rosário Gregolin, no segundo capítulo, analisa práticas
discursivas inscritas em imagens fotográficas que organizaram a
constituição do dispositivo escolar no Brasil, nos primeiros anos da
República, a partir dos álbuns fotográficos produzidos pela Escola
Normal (Caetano de Campos, São Paulo, SP) nos anos de 1895 e 1908.
A partir do conceito foucaultiano de dispositivo, o capítulo analisa
os jogos de produção de subjetividades investidos na escolarização
dos saberes no Brasil em um certo momento de sua história.
Pensar a relação entre raças, átomos e bytes é o que nos
leva a fazer Ivânia Neves no terceiro capítulo. A autora coloca em
destaque os usos sociais, políticos e econômicos das línguas na
complexidade de nossos dias, atravessados pela globalização do
mercado e da informação. Tais aspectos desenham amplos contornos
para o governo da língua, visado numa perspectiva totalizante sobre
as línguas no mundo, considerando novas tendências imperialistas
antes não visíveis no Ocidente e agora orquestradas também pela
China, que envolvem a indústria cultural e o movimento das redes
sociais na web.
Já no quarto capítulo, Flávia Lisbôa defende a indissociação
entre língua, saberes e corpos no sistema de opressão racial
implantado pela colonização no Brasil e que perdura até a atualidade
nas relações sociais. A autora destaca essa relação, observando que
a governamentalidade dos povos racializados na colonização tem
então o objetivo de eliminar não apenas o corpo, mas também as
línguas, responsáveis por alimentar e carregar o conjunto de
sentidos alinhados às cosmologias, saberes e epistemes dessas
sujeitas e sujeitos.
O quinto capítulo, escrito por Raimundo Tocantins,
apresenta como a ativista Kaiowá Valdelice Veron desafia as
estruturas da colonialidade do poder e do saber, a partir de suas
pesquisas na área de Educação e dos conhecimentos de seu povo,
mostrando que, mesmo num dispositivo como o escolar, é possível

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Sumário

tensionar e reconstruir uma violenta imposição colonial. Raimundo


evidencia o uso dos saberes e narrativas indígenas como maneira de
fissurar o dispositivo escolar, no sentido descolonizá-los.
Viviane Carvalho analisa no sexto capítulo telenovelas para
mostrar a atualização do discurso racista sobre a identidade indígena:
a “fala errada” da língua portuguesa. As regularidades sistematizadas
por Viviane apontam o apagamento da diversidade cultural e
linguística indígenas, reforçando uma incessante “desqualificação”
linguística e cultural dos povos originários, representada na produção
midiática com personagens que oscilam entre selvagens ingênuos ou
agressivos, sempre à margem da civilização.
O sétimo capítulo, de autoria de Diego Ungari e Rafael da
Cól, busca compreender como o Estado Novo de Getúlio Vargas
operacionalizou o governo da língua, através, principalmente, da
adoção de um monolinguismo compulsório e da decretação de um tipo
penal novo, o crime idiomático. Nesse cenário, os autores observam a
resistência do pajubá ao governo linguístico de Vargas, atravessando
heterotopias como a que denominam heterotopia do asfalto.
Cristiane Oliveira toma no oitavo capítulo a experiência
do povo Tembé-Tenetehara para fundamentar e aplicar teórica-
metodologicamente a ideia de Necropolítica Linguística elaborada
no âmbito do Gedai. A autora mostra como o governo da língua atuou
para a morte da língua desse povo e, por outro lado, a resistência
pela adoção de políticas linguísticas que envolvem a valorização da
própria cultura para revitalização e ensino da língua tradicional.
A história de silenciamento da língua Omágua/Kambeba
pelo dispositivo colonial é rememorada no nono capítulo por
Márcia Kambeba, que mergulha nos sussurros dos antepassados
para mostrar as práticas de resistência dessa língua ao perpetuar
até a atualidade cânticos e produções literárias. A autora destaca
que a presença da língua Omágua/Kambeba no hoje foi possível
pelo sussurro e denuncia: “nossos antepassados sussurram em nossa
memória e se ela não está presente, como gostaríamos em nosso
cotidiano, é porque ela nos foi roubada”.

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Sumário

Com esse último capítulo, amarramos as discussões que este


livro promove sobre o governo da língua, recorte epistemológico
que delineia direta ou indiretamente as reflexões aqui propostas.
Nelas, propõe-se pensar a verticalização da língua na história,
entendendo que as sujeitas e os sujeitos existem pela/na língua e
que as medidas governamentais ao longo da constituição da nação
brasileira não deixaram de fora as línguas dos diferentes povos
envolvidos no projeto colonial no território nacional.

Ivânia dos Santos Neves


Flávia Marinho Lisbôa
Maria do Rosário Gregolin

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CAPÍTULO 1

AS DUAS ASAS DO PÁSSARO


SOBRE LÍNGUAS E SABERES INDÍGENAS NAS
UNIVERSIDADES DA AMAZÔNIA

José de Ribamar Bessa Freire

Introdução

O reitor da Universidade de Würzburg, na Alemanha,


Theodor Berchem, abriu o IX Congresso Internacional de
Universidades, na Finlândia, em 1990, afirmando que a universidade,
como instituição, vive uma tensão permanente entre, de um
lado, seu compromisso inarredável com a ciência - que aspira à
universalidade e, de outro, com as culturas nas quais estão imersas
- que são particulares. Segundo ele, o conhecimento universal só
pode ser construído se houver diálogo de saberes gerados nesses
dois campos, o que nem sempre é uma operação fácil de ser lograda.
A importância da universidade para o mundo foi representada
por Berchem com uma espécie de parábola, na qual ele imaginou que se
bombas destruíssem o planeta, mas permanecesse viva integralmente
uma única universidade, a partir dela poderíamos reconstruir o
mundo, porque no cérebro de seus membros e nos livros de suas
bibliotecas residem grande parte do saber que dispõe a humanidade.
Confesso que sinto calafrios ao me perguntar se a instituição
poupada fosse uma universidade amazônica ou brasileira. Os
nossos cursos, currículos, bibliotecas, laboratórios e pesquisas nos
permitiriam reconstruir a Amazônia e recompor suas experiências
milenares? Em que medida as nossas universidades reconhecem o
Sumário

saber denominado de tradicional e promovem sua interlocução com


o saber acadêmico? Elas legitimam ou apagam os procedimentos
usados para a produção e circulação de conhecimentos gerados
pelas culturas amazônicas? Qual o lugar que reservam para as
línguas indígenas, verdadeiros arquivos dos conhecimentos que
nelas circulam?
Dentro da Amazônia funcionam hoje diversas universidades
públicas e algumas privadas, mas até que ponto a Amazônia está
dentro delas?
Debateremos aqui tais questões, inicialmente, com um
breve histórico sobre as origens da instituição em nossa região, sua
relação com as universidades europeias e algumas considerações
sobre o diálogo entre ciências e culturas amazônicas em vários
campos do saber.

Universidade Livre de Manáos

A primeira universidade da região com essa denominação


foi a Universidade Livre de Manáos, criada em janeiro de 1909,
no apogeu da economia da borracha. Ela nasceu por inspiração
do tenente-coronel da Guarda Nacional, Joaquim Eulálio
Chaves, que transformou a recém-criada Escola Militar Prática
do Amazonas em Escola Universitária Livre de Manáos, logo
renomeada como Universidade de Manáos com a abertura de novos
cursos de Odontologia, Farmácia, Obstetrícia, Ciências Jurídicas
e Sociais, Letras, Agronomia e Agrimensura, que começaram a
funcionar em março de 1910. Quando, em 1914, a cidade de Manaus
contava com 50 mil habitantes, o corpo docente já era formado
por 254 professores e nela estavam matriculados 605 alunos de 12
estados do Brasil.
Dessa forma, o Amazonas reivindica ter sido o primeiro
estado com universidade, seguido do Paraná (1912) e Rio de Janeiro
(1920). Este título de mais antiga do Brasil foi incorporado pela

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Sumário

atual Universidade Federal do Amazonas (UFAM) - uma espécie


de Universidade de Bolonha dos Trópicos, com ou sem ironia, de
acordo com o gosto do leitor. E isto porque, quando foi criada, em
1962, com o nome de Universidade do Amazonas, incorporou o
Curso de Direito, o único que sobreviveu. Considerando que entre a
morte de uma e a fundação da outra escoaram quase 40 anos, as más
línguas juram que a universidade é uma espécie de viúva Porcina:
foi, sem nunca ter sido. Ou na linguagem poética de César Vallejo
(2009), que considera orfandade das orfandades “el ser hoja seca, sin
haber sido verde jamás”.
A Universidade de Manáos não chegou à maioridade. Com
a crise da produção da borracha, ela sangrou e agonizou até morrer,
em 1926, aos 17 anos. Mas ressuscitou reencarnada na UFAM, que
se intitula a herdeira da primeira universidade. Resta saber qual o
conteúdo dessa herança, qual o modelo de universidade que herdou,
quais os conhecimentos que fez circular em diferentes áreas como
Química e Botânica, por exemplo, tão vitais para a economia da
borracha responsável pelo sustento da instituição.
No ano de fundação da Universidade de Manáos, o químico
Fritz Hofmann criava a borracha sintética na Alemanha. Anos
antes, 70 mil sementes da seringueira contrabandeadas passaram a
ser cultivadas no Sudeste Asiático. Até então, a Amazônia detinha
o monopólio da produção da espécie nativa, atendendo quase
100% da demanda global. Dez anos depois, as plantações na Ásia
já respondiam por 95% da demanda. A Universidade de Manáos
não teve fôlego para enfrentar nem essa questão de plantar
seringueiras e muito menos de criar a borracha sintética. Era uma
universidade que vivia da borracha, mas não criou saberes para
isso, sequer procurou incorporar as pesquisas realizadas no Pará
pelo botânico suíço-alemão Jacques Huber (1867-1914) contratado
pelo seu compatriota, o zoólogo Emilio Goeldi, então diretor do
Museu Paraense de História Natural e Ethnografia, para organizar
o horto botânico.

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Sumário

“As universidades são sentinelas e faróis da ciência”,


escreveu o filósofo Johann Gottfried Herder (1744-1803), precursor
do romantismo alemão, citado por Berchem, para quem esse farol
serve para “iluminar os caminhos da sociedade”, o que exigia, no
caso, beber o saber em fontes germânicas. Foi o que Herder fez.
Defendeu uma literatura de caráter nacional em seu Ensaio sobre a
origem da linguagem (1772/1987), no qual definiu o papel da língua
não apenas como imprescindível para a comunicação, mas como
forma de articular o pensamento. Registrou por escrito a literatura
oral ameaçada de extinção e recolheu canções populares, baladas
medievais e poesia popular que, segundo ele, conservavam a “alma
do povo”.
Sem pretender avaliar aqui esse hipotético “caráter
nacional”, parece-nos oportuno refletir sobre o tratamento dado
pela primeira universidade amazônica aos saberes populares que
circulavam nas narrativas orais, nos cantos e na poesia, assim como
o lugar que atribuiu às línguas amazônicas e às taxonomias nelas
produzidas, recolhidas por viajantes e naturalistas que percorreram
a região no séc. XIX e no início do séc. XX e que foram enquadrados
no grupo denominado posteriormente de tupinólogos.
Os tupinólogos, entre os quais se destacaram Couto de
Magalhães (1837-1898), o Conde Ermanno Stradelli (1852-1926), o
Geólogo Charles Hartt (1840-1878) e o Botânico Barbosa Rodrigues
(1842-1909) estudaram a Língua Geral ou Nheengatu para recolher
os saberes que nela circulavam. Arautos do conhecimento científico
da época, eles souberam articulá-lo com os saberes tradicionais,
estabelecendo um diálogo que valorizava ambos: o saber acadêmico
e aquele produzido pelas culturas amazônicas. O que aconteceu com
essa produção e qual o tratamento dado a ela pela Universidade
de Manáos? Qual o lugar da Amazônia dentro dessa e de outras
universidades posteriormente criadas na região?
Os Archivos da Universidade de Manaós não registram sequer
rastros dessa literatura sobre a Amazônia. O Regulamento para o
Curso Preparatório da Faculdade de Sciencias e Lettras aprovado

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Sumário

pela Congregação em 1º de junho de 1911, definiu no artigo 1º as


matérias exigidas para a admissão em cada curso, destacando sete
línguas: português e literatura, francês, inglês, italiano, alemão,
latim e grego, o que era absolutamente necessário até para o
diálogo, jamais realizado, com as pesquisas acima referidas sobre
borracha sintética. Ficavam de fora dessa lista o espanhol, que já era
a língua dominante de países amazônicos, assim como o Nheengatu,
que até a metade do século XIX era língua falada pela maioria dos
amazonenses, a tal ponto que em 1861, o poeta Gonçalves Dias, que
avaliou as escolas do Solimões e do Rio Negro, concluiu que não
funcionavam, porque a língua de instrução - o português - não era
compreendida pelos alunos.
A não inclusão dessas duas línguas pela Universidade
indica uma vontade explícita para desvincular a Amazônia brasileira
dos outros oito países da Pan-Amazônia e da Amazônia indígena,
cujos saberes deviam ser apagados. O modelo a ser copiado, embora
de forma capenga, era o modelo monoepistêmico europeu. A
Universidade de Manáos ignorou a existência de línguas indígenas
e a gramática de Nheengatu que, três décadas antes de sua fundação,
já havia sido elaborada por Couto de Magalhães, com narrativas por
ele coletadas, o que refletia uma postura etnocêntrica não apenas
regional, mas nacional.

Línguas e tradição oral

A abordagem de Couto de Magalhães sobre língua,


oralidade e mitos se aproxima muito dos procedimentos adotados
posteriormente pela antropologia e pela linguística e já dialogava
com a produção linguística alemã. Em O Selvagem ele define a
metodologia usada na coleta da tradição oral, assim como seu
conceito de língua, suas fontes e sua visão sobre os povos indígenas
no processo de construção da identidade nacional. Depois de
procurar “as cores do país” em arquivos e bibliotecas, Couto foi
buscá-las nos grotões do Brasil profundo, realizando pelo menos dez

19
Sumário

grandes viagens, com passagem por mais de cem aldeias indígenas


de trinta povos. Dessas viagens surgiram notícias, comunicações,
memórias, artigos apresentados em sessões do Instituto Histórico e
Geográfico do Brasil, do qual ele era membro atuante.
Seu texto mais conhecido - O Selvagem – teve algumas
edições em português (1876,1913, 1975) e traduções ao francês,
inglês, alemão e italiano. Traz o estudo etnográfico sobre as etnias
do Brasil central, um conjunto de narrativas coletadas durante as
viagens e o curso de tupi língua-geral segundo o método de Ollendorf,
método que os modernos filólogos europeus hão inventado para
vulgarização das línguas vivas. Os exercícios que ele propõe na sua
gramática descritiva, na opinião do bispo do Amazonas, estavam tão
de acordo com a língua tupi, que qualquer índio da vasta região do
Rio Negro e Alto Solimões os entendia facilmente. Enfim, Couto de
Magalhães fez aquilo que a universidade devia ter feito.
No entanto, a Universidade de Manáos não se perguntou
sequer se as línguas indígenas podiam contribuir para entender a
Amazônia. E, nesse sentido, comungava com o crítico literário Sílvio
Romero (1851-1914), que não falava o Nheengatu e desconhecia sua
extensão, mas tratou a obra de Couto de Magalhães como sendo de
pequeno alcance científico. “Que o índio nenhuma tradição nos legou
é fato sabido e não carece de prova” - escreveu, contundente, um dos
críticos citado por Sílvio Romero (2011), acionando preconceitos
da sociedade nacional ao negar qualquer contribuição indígena à
cultura brasileira. O discurso colonialista havia desqualificado a
poesia e os mitos indígenas, considerando-os uma manifestação
menor, grosseira e extravagante, fruto da superstição e recusando-
se a enquadrá-los no campo da literatura, por se tratar de uma
elaboração em línguas ágrafas, rudimentares e incompletas, faladas
por povos atrasados.
Couto de Magalhães contra-argumentou. Ele até admitiu
de forma irônica que a falta de refinamento pode existir tanto nas
“crenças selvagens como nas superstições cristãs”, mas sugeriu
que, em ambos os casos, para avaliar as qualidades estéticas de

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Sumário

uma obra, o estudioso deve examiná-la com rigor, o que requer


inapelavelmente o conhecimento da língua em que ela foi produzida.
No caso das narrativas indígenas, ele advertiu que o pesquisador
pode se surpreender ao descobrir “a notável e profunda filosofia e
poesia que elas encerram”. Lembrou que, embora seu trabalho seja
o de um simples colecionador de narrativas indígenas, prestava um
grande serviço à filologia e à antropologia ao publicar os mitos numa
língua tupi. Esse foi um dos primeiros princípios metodológicos que
nortearam seu trabalho de coleta da literatura oral: o conhecimento
da língua, sem o qual qualquer juízo crítico está invalidado.
No entanto, o teatrólogo Joaquim Serra, patrono da
Cadeira 21 da Academia Brasileira de Letras, insistiu na pergunta:
“Como é que um homem prático como Couto de Magalhães se ocupa
de assunto tão insignificante como essas línguas moribundas?”
(FREIRE, 2019).
O discurso dominante na época se ancorava na ideia de que
uma nação tinha de falar uma única língua para reforçar a unidade
nacional, as demais atrapalhavam e deviam ser extintas. Em sua
resposta, Couto esclareceu que qualquer estudo, por mais abstrato
que pareça, cedo ou tarde, traz seus frutos práticos e que “se é
útil estudar, descrever e classificar até a mais miserável planta de
nossos campos, ver o mais rude e pobre mineral de nossos montes,
muito mais nobre e útil é estudar, descrever e classificar o homem
americano”. E completou:

Cada nova língua que se estuda é mais importante para o progresso da


humanidade do que a descoberta de um gênero novo de minerais ou de
plantas. Cada língua que se extingue [...] é uma importante página da
história da humanidade que se apaga e que depois não poderá mais ser
restaurada (FREIRE, 2019).

Ficaram também de fora da Universidade de Manáos, os


saberes acumulados sobre a flora amazônica coletados por João
Barbosa Rodrigues, ex-professor do Colégio Pedro II do Rio, que

21
Sumário

viveu mais de dez anos no Amazonas (1872-1874 e 1883-1890) e


organizou e dirigiu o Museu Botânico de Manaus. Ele navegou
pelos rios da região, conviveu com diferentes etnias e aprendeu o
Nheengatu – a língua geral que lhe permitiu ouvir as histórias e
registrar as ciências indígenas.
A Universidade de Manáos, no entanto, não tomou
conhecimento do livro de Barbosa Rodrigues Mbaé Kaá Tapyyiyetá
Enoyndaua ou A Botânica, nomenclatura indígena publicado em 1905
pela Imprensa Nacional, no qual o autor se mostra fascinado com o
sistema de classificação das plantas de diferentes culturas indígenas,
que designam as espécies por nomes tirados dos caracteres das
folhas, das flores, dos fructos ou de propriedades como o cheiro,
o sabor, a dureza, a duração, a cor, o emprego, etc. etc. Nenhum
carácter essencial lhes escapa. Ele compara a taxonomia indígena
com os sistemas de Tournefort e Linneo e esclarece que “para bem
se entrar n´esse conhecimento é mister não só saber a língua como
também ser botanista (BARBOSA RODRIGUES, 1905, p.19).”
Mas Barbosa Rodrigues, em 2010, colocou um pé dentro
da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), que sediou em
setembro daquele ano o 61ª Congresso Nacional de Botânica,
organizado pela Sociedade Brasileira de Botânica e o Instituto
Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). O Congresso reuniu
em Manaus mais de dois mil pesquisadores do Brasil e do exterior,
e como parte da programação organizou o I Simpósio Barbosa
Rodrigues. Esse importante botânico foi autor também de Poranduba
Amazonense em uma edição bilingue da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, de 1890, que reúne mitos, contos zoológicos, astronômicos,
botânicos, além de cantigas com que as mães embalavam seus filhos
ou animavam as danças e os trabalhos, num total de 130 textos.
Barbosa Rodrigues concluiu que numa sociedade sem
biblioteca, sem livros, sem escrita, mas com forte tradição oral,
as histórias e cantos funcionam como enciclopédias onde estão
contidos os saberes necessários para a sobrevivência e a reprodução
das culturas. São aulas de botânica, zoologia, astronomia, ciências

22
Sumário

sociais e ciências humanas, com seus supremos mistérios que


foram olimpicamente ignorados durante muito tempo pelas
universidades amazônicas.
Processo similar ocorreu em outros cursos como o de
medicina e farmácia. Na justificativa para criar a Faculdade de
Medicina, os Archivos da Universidade de Manáos manifestam
desprezo aos “medicastros que por ahi fervilham em zoogléas”,
referendando os preconceitos contra os pajés e contra a fitoterapia
por eles utilizada. Os cursos de medicina das universidades
amazônicas e brasileiras, como regra geral, desconhecem até hoje a
primeira História da Medicina Brasileira (1648) e a História Natural
e Médica da Índia Ocidental (1658) edição impressa em latim, de
autoria do médico holandês Willem Pies (1611-1678), conhecido
como Guilherme Piso, que viveu oito anos em Pernambuco como
médico particular do príncipe Mauricio de Nassau. Considerado
“o pai da medicina tropical”, ele reconheceu haver aprendido o
saber fitoterápico com os índios, assim como o uso de 114 plantas
adstringentes, afrodisíacas, venenosas e até abortivas. Piso fez
aquilo que as universidades amazônicas por muito tempo deixaram
de fazer: ouviu os sábios indígenas.

Cada qual, sobretudo os velhos, preparam sem dificuldades remédios de


diversos gêneros obtidos por toda parte nas florestas. Usam remédios
simples e se riem dos nossos. Nisso merecem vênia. [...]. Todos os
íncolas das Índias exercem a medicina e pesquisam o conhecimento
das doenças e tendo ambas as Índias mais providas de medicamento
do que de médicos teóricos, ninguém se admire de que até agora
não estejam divulgadas as propriedades de muitíssimos remédios de
notáveis virtudes, ocultos em seu seio e dignos de sair à lume. [...] São
utilíssimos e podem até impressionar os médicos mais eruditos (PISO,
1957, p. 58).

Piso ficou vivamente impressionado com o poder de cura


das culturas indígenas, apesar de denominá-las de bárbaras e
selvagens, como era costume na época:

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Sumário
Lembro-me que os bárbaros, nos acampamentos, por meio de gomas
frescas, sucos e bálsamos, livraram do ferro e do fogo e restabele-
ceram com êxito os membros dos soldados feridos por balas de es-
pingardas, que estavam para ser amputados por cirurgiões europeus,
lusitanos e batavos... Na preparação, prescindem de laboratórios e,
ademais, sempre tem à mão sucos verdes e frescos de ervas (PISO,
1957, p. 58).

Encontro de saberes

Há dez anos, esses conhecimentos começam a penetrar


nas universidades brasileiras, especialmente através do projeto
Encontro de Saberes do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia
de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI), resultado de
parceria com a Universidade de Brasília (UnB), com o aval do CNPq.
O projeto piloto, lançado em 2010 na UnB, foi implementado quatro
anos depois em outras instituições, entre as quais a Universidade
Federal do Pará (UFPA) e a Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), que incluíram as artes e os saberes tradicionais na grade
curricular de seus cursos, ao mesmo tempo que convidaram mestres e
mestras tradicionais como docentes, com o objetivo de descolonizar o
modelo epistêmico dominante e de promover o diálogo, reivindicado
por Theodor Berchem, com os saberes indígenas, afro-brasileiros e
de outras comunidades.
Segundo José Jorge de Carvalho e Juliana Flórez (2014,
p.143):
A aposta política do Encontro de Saberes refere-se, por
um lado, ao propósito de que as ciências sociais reconheçam os
saberes tradicionais e populares não apenas como objetos de es-
tudos, mas também como referentes de conhecimentos tão válidos
quanto os modernos.
Por outro lado, que reconheçam também os sábios
tradicionais como pares, aptos a ocuparem um lugar legítimo no
campo do conhecimento. Foi assim que a Universidade Federal de

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Sumário

Minas Gerais (UFMG) concedeu, em fevereiro de 2022, o título de


doutora por notório saber à Mestra Japira Pataxó, pajé, parteira,
rezadeira e profunda conhecedora de plantas, depois de um processo
demorado e rigoroso, no qual uma banca de cinco doutores avaliou
o Memorial de dez capítulos, acompanhado de vídeos e de seu livro
Saberes das terras Pataxó: da Beira Mar à Mata Atlântica, resultado
de pesquisas de mais de 40 anos, com ilustrações de seu filho
Ararauí e de seu neto Braz. Lá, ela descreve ervas exóticas, animais
com uso terapêutico e 131 plantas medicinais de cinco grandes
biomas: o Quintal, a Capoeira, a Mata Atlântica, a Restinga e o
Brejo, classificando quantidade maior do que a registrada em teses
acadêmicas sobre fitoterapia e farmacopeia em território Pataxó.
Sua classificação cataloga diferentes espécies de
plantas, descreve seus habitats preferenciais, sua relação com o
clima e a ecologia, seu potencial de uso medicinal e alimentar,
especialmente a concepção sobre a natureza do universo vegetal
e seus constituintes. Antes de perguntar a utilidade de uma
planta, Mestra Japira responde de onde ela veio, onde cresceu e
como adquiriu as propriedades medicinais, contextualizando-a em
seu tempo histórico e em seu espaço. As plantas que maneja são
empregadas como um tipo de idioma vegetal. Ela fala e entende a
linguagem das plantas. Na apresentação, Victor Miranda, um dos
organizadores do livro, escreve:

Mestre Japira registra os conhecimentos curativos, ecológicos,


poéticos e históricos dos Pataxó, nunca antes descritos com tamanha
profundidade desde uma perspectiva própria. Está tudo lá: as plantas,
as ervas boas e as venenosas, o modo de colher as folhas e seus usos e
como fazer os preparos (PATAXÒ, 2020, p. 7).

Isso foi confirmado pela Comissão de Avaliação, em seu


parecer conclusivo, ao destacar que o livro oferece “uma diversidade
impressionante de recursos úteis de diferentes ecossistemas, que
possibilitam um horizonte amplo de saberes sobre o relevo, os
solos, a água, a fauna e a flora. E é essa compreensão que confere à

25
Sumário

mestra Japira sua força e seu papel social como guardiã de saberes,
educadora, formadora, líder política, xamã, curadora, condutora de
cantos e danças e contadora de histórias de seu povo”.
Herdeira de ancestralidades multiétnicas afro-indígenas,
Mestre Japira teve, como em todo doutorado, uma orientadora – a
avó parteira Maria Rosa, de origem negra - e um coorientador, o
tio Pataxó Karuncha Dendê. A avó, possuidora de conhecimento
fitoterápico e dos cuidados pré e pós-parto pegou mais de mil
crianças. O tio pajé, profundo conhecedor do poder das plantas,
percebia as espécies vegetais e outras formas de vida como partes
da ação milenar da “natureza humanizada”. Ambos repassaram
oralmente uma teia refinada de saberes, na qual plantas são
portadoras de qualidades humanas e sociais.
Segundo Mestra Japira “As plantas me chamam, é como um
imã, elas mostram seus saberes e força para mim. O que eu aprendi
sobre elas veio dos espíritos dos antepassados e das conversas com
os mais velhos (PATAXÒ, 2020, p. 7)”. Sua biografia é relatada no
memorial descritivo, com informações sobre a história dos Pataxó no
sul da Bahia, especialmente sua participação na luta pela demarcação
das terras.
A vontade de fazer um livro cresceu – segundo Mestre
Japira – quando ela deu aulas na universidade, pois ela percebeu
que a palavra falada não era suficiente para mostrar para o povo
os saberes sobre os remédios e a medicina de seu povo. Daí nasceu
também a metodologia transdisciplinar e intercultural por ela
empregada, que envolve narrativas históricas imemoriais, aulas de
educação ambiental, cura a partir das plantas e a tecitura de uma
rede de saberes coletivos que a torna uma biblioteca viva.
A forma como ela ensina, a maneira como conversa com
os estudantes e os professores em suas palestras, rodas de conversa
e andanças, leva os alunos para fora do espaço da sala de aula,
criando uma pedagogia diferenciada. Ela vai andando e mostrando
as plantas, suas raízes, o tipo de solo que cresce, a cor do caule, das
folhas, as flores, os frutos cada espécie e o traçado das plantas. O

26
Sumário

diálogo com ela já orientou muitas monografias de conclusão de


cursos e pesquisas de pós-graduação e contribuiu para a produção
de uma proposta curricular para as escolas indígenas.
Surpreendente é como essa sabedoria milenar, sempre
banida do conhecimento dominante no Brasil, somente agora
entra pela porta da frente da academia, num novo momento para
as universidades brasileiras na luta por ampliar os direitos das
políticas afirmativas. Outra porta é aberta pela pesquisa realizada
em programas de pós-graduação por mestrandos e doutorados
indígenas e não-indígenas, que procuram dar visibilidade a esses
conhecimentos, mostrando sua relevância.

Memória nativa

Ainda hoje, a maioria dos cursos de odontologia das


universidades amazônicas desconhecem o trabalho pioneiro
realizado pelo cirurgião dentista Bruno Miranda da Rocha,
diplomado pela Universidade Federal de Sergipe, em 2003, quando
de lá saiu para trabalhar no Distrito Sanitário Indígena de Roraima.
Ele conviveu com os Makuxi da região Surumu, com quem aprendeu
outros modos de cuidar dos dentes. Constatou que sua formação
profissional adequada para o meio urbano, não lhe servia para avaliar
o kurawá (sisal), planta que cresce às margens dos igarapés e de onde
é retirado um fio fino e resistente usado para a higiene dentária,
nem o arbusto byrsonima crassi-folia – o popular mirixi ou murici,
de cuja casca os índios extraem o carvão para limpeza dentária, da
mesma forma que usam cascas de outras espécies vegetais como a
darora (leptolobium nitens), o angico (anadenanthera peregrina) e o
pau-rainha – uma leguminosa de cor laranja, que só existe na savana
roraimense. Para evitar cárie, fazem bochecho com chá de dente da
capivara ou do porco e de mangarataia (gengibre). Mastigam raiz de
timbó, usam talo da folha de buriti e do coco.
Com curiosidade etnográfica, o dentista potiguar se
dedicou a observações etnobotânicas e etnofarmacológicas no

27
Sumário

campo da medicina tradicional. Só não esfregou lesma no dente para


endurecê-lo e nem lavou a boca com fel de boi e pimenta malagueta
- como fazem alguns índios, mas o resto, fez de tudo. Experimentou
pessoalmente o fio do kurawá e ficou satisfeito com os resultados.
Sua maneira de trabalhar e de viver foi mudando desde o primeiro
caso que tratou. Ele relata o caso de um colega europeu que, ao
visitar as aldeias de Roraima, ficou tão entusiasmado com o que
viu, que pensou em realizar um projeto para incluir os saberes, as
técnicas e os recursos usados pelos índios nas sociedades urbanas.

No entanto, o preconceito determina que a via da interculturalidade


só tenha uma direção: daqui pra lá. As práticas tradicionais de
higiene em muitas comunidades vêm sendo substituídas pela escova
e creme dental, nem sempre com igual eficácia, porque tais produtos
industrializados não crescem em árvores, não sendo, portanto, de
fácil acesso (ROCHA, 2018, p. 35).

Bruno Miranda da Rocha defendeu tese de doutorado no


Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Biociências da
UNIRIO, em 2018, sobre o cuidado em saúde bucal dos Makuxi
de Roraima. Usou metodologia transdisciplinar, que atravessa
os campos das biociências, antropologia, pedagogia e história,
particularmente da nova história cultural, registrando orações em
língua Makuxi e narrativas míticas que ensinam sobre as doenças e as
formas de curá-las. Um dos capítulos mais interessantes é justamente
o intitulado “Medicina Indígena e Biomedicina: concorrentes ou
parceiras?” no qual o autor esclarece que as categorias de doenças
não são universais, mas social e etnicamente classificadas e que a
etnomedicina pode ajudar o cientista a compreender as doenças, seus
sintomas e o valor de tratamentos diferenciais em áreas específicas.

Na minha posição de aprendiz, foi uma descoberta atrás da outra.


Deparei-me com uma cosmovisão encantadora e, ao mesmo tempo,
assustadora para a perspectiva do modelo biomédico dominante. A cárie
não tinha mais relação com a bactéria. A escova, a pasta e o fio dental

28
Sumário
não eram mais imprescindíveis para a higiene bucal. O conhecimento
tradicional explicava um novo modo de entender, que passou a fazer
parte das minhas palestras de educação em saúde e despertou atenção
de outros profissionais (ROCHA, 2018, p. 36).

Aprovado no concurso para professor da Universidade


Estadual de Roraima (UERR), ele assumiu as disciplinas Saúde
Indígena e Saúde coletiva, que incorporou esses conhecimentos em
seus programas.
Entre os saberes que estão entrando ainda num ritmo
lento nas universidades brasileiras, incluindo as amazônicas, estão
ainda os procedimentos usados para a produção e transmissão de
conhecimentos, como fica claro no relato feito por Célia Xakirabá
Mindã Nynthé em sua dissertação de mestrado defendida na
Universidade de Brasília (UnB), em 2018. Ela pesquisou as
experiências de educação Xakriabá, um povo que vive em 35 aldeias,
com população estimada em torno de 11 mil pessoas, cuja língua
original pertence ao tronco Macro Gê. Para isso, ela trabalhou o
conceito de memória nativa, que é antiga, ancestral e o de memória
ativa, reativada a partir de matrizes do passado, que estão sendo
permanentemente atualizadas.
A experiência narrada por Célia Xacriabá aborda o
convite feito pela Faculdade de Arquitetura da UFMG a duas
mestras Xakriabá que trabalham com barro – Libertina Ferro
e Lurdes Evaristo – para ministrarem a disciplina Arquitetura
e Cosmociência. Elas moram na terra indígena de São João das
Missões, norte de Minas, e viajaram pela primeira vez a Belo
Horizonte. Encerraram o Programa Saberes Tradicionais com
aulas práticas, construindo no campus Pampulha da Universidade
Federal uma casa tradicional de pau-a-pique com pinturas artísticas
de pigmentos de toá e telhas de barro. Nessa ocasião, um aluno,
com calculadora à mão fez a seguinte pergunta e deu início a uma
conversa elucidadora:

29
Sumário
- Como é que se mede o espaçamento da madeira? Qual a quantidade de
barro?
- São três mãos cheias de barro para cada quadrado – foi a resposta de
uma das mestras, que encheu a mão e mostrou na hora como se fazia.
Os futuros arquitetos indagaram quanto tempo durava uma casa
xakriabá e foram informados que entre quatro a seis anos, dependendo
da fase da lua no momento da retirada do barro. Um deles, então,
ofereceu uma técnica capaz de manter em pé, durante a vida toda, casas
tão bonitas como aquela.
- Não, meu filho. Obrigado, mas isso é perigoso. Se aceito sua oferta,
como é que vou ensinar meus filhos e netos a construir? Não é a casa que
tem que durar, mas o conhecimento. A casa usada se desfaz justamente
para que eles observem como se faz uma nova. A casa cai, mas se fica a
forma de aprender, a gente levanta outra e é assim que o conhecimento
permanece, circula e se renova (XACRIABÁ, 2018, p. 55).

O arquiteto carioca Severiano Porto, que viveu e trabalhou


muitos anos na Amazônia e ganhou prêmio internacional com o
projeto do campus da UFAM, depois de observar como os Tukano,
os Tuyuka e os Waimiri-Atroari construíam suas malocas. Ele
declarou em uma entrevista que havia, com eles, aprendido as
soluções para habitar modernamente o espaço amazônico:

Aprendi meu ofício na Faculdade de Arquitetura da UFRJ, mas aqui


no Amazonas, foram os índios que me ensinaram muita coisa. Observei
como suas malocas utilizam material invisível: vento, luminosidade,
relação com o sol, a chuva, o rio e a floresta. Aprendi arquitetura
também com os índios (FREIRE, 2018).

Oñombotavy

As universidades começam a trocar saberes com os


indígenas e aprender com eles nos cursos universitários. O Censo
do INEP, atualizado em 2018, registra 56.750 alunos indígenas
matriculados em cursos de educação superior, alguns em mestrado
ou doutorado. Foi o caso do Tukano João Paulo Lima Barreto, do

30
Sumário

povo Yepamahsã (Tukano), o primeiro a obter, finalmente, doutorado


em Antropologia Social pela UFAM com tese sobre o corpo e o
conhecimento prático dos especialistas indígenas.

A ciência trata o corpo como algo meramente biológico, os povos


indígenas não, para nós o corpo é síntese de todos esses elementos
que estão em nosso entorno, água, luz, ar, vegetal, animal, terra
e a qualidade, dimensão essa que qualifica um corpo, pessoa, gente,
humano. [...] Nós estamos propondo que os povos indígenas têm
uma epistemologia que é diferente dessa epistemologia da ciência”
– ele diz, salientando que a Universidade continua sendo um bom
caminho para reproduzir o conhecimento científico indígena, embora
ainda muito deve ser feito. A Universidade do Amazonas, por estar no
estado de maior diversidade de povos e línguas indígenas, dever estar
aberta à multiculturalidade. Ele observa ainda que lamentavelmente as
epistemologias indígenas não ocupam lugar devido, é só ver a UFAM,
que se diz presente em mais de 100 anos dentro dessa região, mas não
tem uma disciplina voltada às questões indígenas. Então daí refletimos
o quanto a universidade ainda é muito fechada (TUKANO, 2021, p. 15).

Outras dissertações e teses defendidas por indígenas fora da


Amazônia tratam do lugar das crianças e das pedagogias e processos
próprios de aprendizagem dos povos originários. Valentim Pires
descreve como seu povo Guarani-Kaiowá observou durante séculos
o comportamento das crianças, categorizando-as em quatro tipos.
Sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD) é resultado de um trabalho de campo na
aldeia Pirajuy em Paranhos (MS) e em entrevistas com parteiras e
rezadores, além de dialogar com a produção acadêmica.
Esses saberes foram conservados ao longo de todo o
período colonial graças ao procedimento denominado de Oñombotavy
– fazer-se de bobo, para que os missionários e os chefes de posto
acreditassem que os Guarani estavam virando brancos. “Todas
essas formas de dissimulação são modos de proteger os nossos
conhecimentos” (GUARANI NHANDEVA, 2022, p. 7).
Cabe mencionar aqui a dissertação de mestrado de Sandra
Benites (Ara Reté) Viver na língua guarani: mulher falando, defendida

31
Sumário

em 2018, no Museu Nacional (UFRJ), que discute o nascimento, a


infância, o parto e o corpo da mulher como lugar de conhecimento e
como território, com um pé na aldeia e o outro na academia.
Outras etnias buscaram o diálogo entre ciência e cultura
como os Kaingang e os Terena. Enquanto os adultos brincam:
introdução aos processos próprios de ensino-aprendizagem da criança
kaingang – essa foi a tese de doutorado de Josué Carvalho na UFMG,
defendida em 2016. Ele usa criança no título, porque escreveu a tese
em português, mas diz que o termo é inadequado para dar conta da
realidade que descreve, na qual a infância é vista com outros olhos,
sem conotação depreciativa.
Durante quatro anos, o autor ficou dividido entre a
universidade - onde leu e discutiu textos teóricos de antropologia
da criança, e as aldeias da Terra Indígena Nonoai (RS) – onde
fez sua etnografia, conversando com sábios locais, kujás (líderes
espirituais), conselheiros, parteiras, jovens e crianças de ambos os
sexos. Observou, filmou, gravou e anotou no caderno as conversas
com anciãos facilitadas pela presença em todas elas da avó, dona Fia,
de 107 anos. A tese busca responder algumas questões: como é que
as crianças kaingang aprendem hoje, num contexto de contato com
a sociedade regional? Como vivem e pensam? Como interagem com
a sociedade envolvente? Quais as formas de circulação dos saberes
tradicionais? Qual o papel da escola? Afinal, como os kaingang
veem suas crias?
Maria de Lourdes Elias Sobrinho, da aldeia Cachoeirinha,
em Miranda (MS), abordou a alfabetização em língua terena na
dissertação de mestrado na Universidade Católica Dom Bosco
(UCDB), defendida em 2010, na sua língua, dentro da sua própria
aldeia para onde a banca se deslocou. Ela identificou os mecanismos
de glotocídios engatilhados contra a língua Terena, propondo um
escudo para protegê-la com seus cantos, narrativas, poesias, músicas
e saberes. O Terena Celinho Belizário seguiu pelo mesmo caminho
com dissertação intitulada O projeto político-pedagógico – A Experiência
na Escola Indígena Terena na Aldeia Cachoerinha, defendida também
no mesmo dia, diante de toda a comunidade.

32
Sumário

Não foi fácil para ambos e para Eliane Lima com a


dissertação A pedagogia Terena e a criança do PIN Nioaque: as
relações entre família, comunidade e escola se apropriarem de teorias
e conceitos de autores nacionais e estrangeiros indicados por seus
orientadores. No início, “o Homi Bhabha não queria conversar
comigo” – disse Lourdes com humor, referindo-se ao teórico indo-
britânico que lhe foi útil para analisar o confronto de sistemas
culturais e cuja noção de entrelugar como espaço de cultura acabou
se tornando familiar a ela.

Brilho da ciência e da cultura

A relação ciência e cultura e os desafios de cientistas e artistas


em desbravar novos mundos foram abordados recentemente pelo ex-
ministro da Cultura e membro da Academia Brasileira de Letras,
Gilberto Gil (2022), em artigo publicado na Folha de São Paulo.

A ciência é parte da cultura, se por cultura entendemos não um conjunto


de obras canonizadas segundo uma régua histórica de desigualdade,
mas como uma constelação dinâmica na qual se inscrevem os atos
criativos de um povo. E a tecnologia é o encontro da ciência com
o terreno das práticas culturais as mais diversas, propiciando a
transformação de como organizamos nossa rotina individual e nossa
vida coletiva. A história da ciência no Brasil ultrapassa as fronteiras
das disciplinas e das instituições —ela se origina na etnociência dos
povos indígenas, passa pelas observações astronômicas dos jesuítas, se
difunde entre médicos e boticários, sangradores e curandeiros do Rio
de Janeiro machadiano.

Ainda segundo ele:

Imaginar o futuro para o Brasil, e a partir do Brasil, é promover a


urdidura entre as ciências mais avançadas e os saberes populares,
entre a sensibilidade dos povos das florestas e a dos quilombos, entre
os métodos dos cientistas sociais e a sabedoria das periferias, entre a
ciência biomédica e o conhecimento que brota dos encontros no asfalto,

33
Sumário
na terra e na mata. Nossas tradições indígenas, ribeirinhas, quilombolas
e dos demais povos da floresta demonstram, na prática, a potência dos
saberes populares em premeditar e complementar, no tecido de suas
vidas, as descobertas das ciências que nos últimos anos mostraram a
calamidade da emergência climática. No ativismo de indígenas e jovens
periféricos hoje, a grande inteligência do povo brasileiro se encontra
com a ciência mais avançada e com a urgente política climática global.

Ao identificar os compromissos da Universidade sinalizados


por Theodor Berchem, Gil reforça a proposta de que “precisamos
superar essa tensão e pôr a cultura e a ciência no coração de um
projeto de país. E isso não é apenas uma missão de políticas públicas:
é um dos vetores urgentes de reinvenção do Brasil frente aos desafios
climáticos, econômicos, sociais e humanos”. Essa proposta havia sido
defendida pelo ex-ministro da Educação Darcy Ribeiro, no leito de
morte, com a metáfora do “pássaro da sabedoria”, ao se dirigir a um
estudante, filho de uma amiga que o visitava no Hospital:

Fui um fazedor de universidades. Criei museus, bibliotecas, escolas,


centros culturais. Nada disso teria o menor valor, se eu não tivesse
criado também o sambódromo. Sei que é perigoso dividir a cultura
em erudita e popular, mas às vezes é útil, como agora. Quem tem um
olho na universidade, na cultura erudita, tem de ter o outro olho no
sambódromo, na cultura popular, porque a cultura é como um pássaro,
tem duas asas. Uma não é pior nem melhor que a outra, acontece
simplesmente que uma não funciona sem a outra. Se faltar uma delas, o
homem não pode voar, não decola (FREIRE, 2005).

A forma de produzir e fazer circular os conhecimentos


ditos tradicionais pode ser também exemplificada pelo livro Brilhos
na floresta, escrito em quatro línguas – Nheengatu, português, inglês
e japonês. São quatro os seus autores: dois biólogos - Noêmia Kazue
(INPA) e Takehide Ikeda (Universidade de Kyoto), uma linguista
- Ana Carla (INPA) e um jovem sábio indígena Aldevan Baniwa
(Fundação de Vigilância em Saúde). O livro, baseado em fatos reais,
relata a entrada noturna na floresta, numa noite sem lua, dos quatro

34
Sumário

autores com o objetivo de pesquisar fungos bioluminescentes,


liderados por Aldevan, que carregava milênios de experiência de
quem nasceu na Cabeça do Cachorro (AM) e aprendeu ouvindo as
histórias do pai Baniwa e da mãe Tukano.
Depois de uma boa caminhada, o Baniwa pede que todos
apaguem suas lanternas. Durante dez minutos, mergulhados
em intensa escuridão, os olhos se acostumaram com o breu.
Primeiramente, a mancha esverdeada de uma folha brilha bem
no pé de Noêmia. Ela levanta a cabeça. Os cogumelos, então,
deslumbrantes, resplandecem em toda sua majestade. Parece até
uma cintilante árvore de Natal. Eles nunca mais esquecerão aquele
espetáculo de pirilampo pisca-piscando, que pode ser observado na
floresta amazônica, mas também na mata atlântica, no cerrado e em
biomas de outros países.
“Já andei muito por florestas. Por que será que nunca vi
isso antes?” pergunta Ikeda, intrigado. “Porque você nunca apagou
a lanterna. Os cientistas deviam saber que nem tudo que a gente
procura, pode ser encontrado iluminando. Às vezes, para ver, é
preciso desiluminar” – responde Aldevan.
Se conhecesse o livro Brilhos na Floresta (2019), talvez
Theodor Berchem, que iniciou esse artigo, pudesse apresentar uma das
formas de reduzir a tensão entre ciência e cultura nas universidades,
apostando num modelo pluriepistêmico, capaz de desiluminar os
preconceitos e abrir esperanças. Foi assim que o químico Cassius
V. Stevani, pesquisador da USP, que escreve o posfácio do livro,
encontrou em 2005 a primeira espécie de cogumelo que emite luz. Ele
coordenou o projeto “Bioluminescência em fungos: levantamento de
espécies, estudo mecanístico e ensaios toxicológicos”, onde descreve
sua intensa emoção num cenário de ficção científica, quando estudou
exemplares de um fungo que economizava energia durante o dia para
brilhar intensamente de noite.
“O brilho da ciência e da cultura vai nos tirar da escuridão”,
escreveu o ex-ministro da Cultura Gilberto Gil. Ou como cantaram
os poetas Manu da Cuica e Luiz Carlos Máximo no samba-enredo

35
Sumário

da Mangueira, em 2020: “A esperança brilha mais na escuridão” se o


pássaro bater suas duas asas dentro das universidades.

Referências

Autores indígenas

GUARANI-KAIOWÁ, Valentim Pires (Hu´y Ryapu). Ore Mbo’e


ypy omboheko mitã – aproximações aos conhecimentos e práticas
para a construção da criança guarani na aldeia Pirajuy, Paranhos
(MS). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em
Educação e Territorialidade da Universidade Federal da Grande
Dourados. UFGD. 2022.
GUARANI NHANDEVA, Sandra Benites (Ara Reté). Viver
na língua guarani: mulher falando. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) –
Museu Nacional. UFRJ, Rio de Janeiro, 2018.
KAINGANG, Josué Carvalho. Enquanto os adultos brincam:
introdução aos processos próprios de ensino-aprendizagem da
criança Kaingang. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação
em Educação. UFMG, 2016.
PATAXÓ, Mestra Japira (Antônia Braz Santana). Doutorado por
notório saber. Os Saberes das terras Pataxó: da Beira Mar à Mata
Atlântica. Porto Seguro. 2020. Memorial descritivo: vida e obra
da mestra Antônia Braz Santana (Mestra Japira). MIRANDA, V.;
TUGNY, R.; TOMAZ, V. (Org.). Belo Horizonte, UFMG, 2022.
TERENA, Celinho Belizário. Projeto Político Pedagógico - A
Experiência na Escola Indígena Terena “Escola Municipal Indígena
Pólo Coronel Nicolau Horta Barbosa”, na Aldeia Cachoeirinha,
Município de Miranda, Mato Grosso do Sul. 2010. Dissertação
de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação. UCDB
Campo Grande (MS), 2010.

36
Sumário

TERENA, Eliane Gonçalves de Lima. A pedagogia Terena e a


criança do PIN Nioaque: as relações entre família, comunidade e
escola. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em
Educação. UCDB Campo Grande (MS), 2008.
TERENA, Maria de Lourdes Elias Sobrinho. Alfabetização na
língua Terena: uma construção de sentido e significado da identidade
Terena da Aldeia Cachoeirinha Miranda (MS). Dissertação de
Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação. UCDB.
Campo Grande (MS), 2010.
TUKANO, João Paulo Lima Barreto: Kumuã na kahtiroti-
ukuse: uma “teoria” sobre o corpo e o conhecimento-prático dos
especialistas indígenas do Alto Rio Negro. Tese de Doutorado em
Antropologia Social. Manaus. UFAM, 2021.
XACRIABÁ, Célia Nunes Correa (Mindã Nynthé) O barro,
o “genipapo” e o giz no fazer epistemológico de autoria
Xakriabá: reativação da memória por uma educação territorializada.
Dissertação. Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto
a Povos e Terras Tradicionais. Universidade de Brasília -UnB.
Brasília, 2018.

Outros autores

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III, nº 2 – junho a outubro de 1913. Manáos. Amazonas. Estados
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BARBOSA RODRIGUES, João. Poranduba Amazonense. Edição
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37
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38
Sumário

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39
CAPÍTULO 2

O DISPOSITIVO ESCOLAR
DISCIPLINA E CONTROLE NA PAISAGEM DAS
CIDADES BRASILEIRAS NO INÍCIO DO PERÍODO
REPUBLICANO1

Maria do Rosário Gregolin

Introdução

Há décadas, a obra de Michel Foucault vem sendo objeto


de investigação em muitos domínios do saber, sob diversas
perspectivas. A abrangência de suas temáticas e a perspicácia de
suas problematizações desafiam os limites disciplinares e instigam
uma pluralidade de leituras sob diferentes regimes de apropriação.
A perspectiva que temos adotado nos leva a ler Foucault pela
via da linguagem, tomando o discurso como categoria central
do seu pensamento. Apesar dessa centralidade da problemática
discursiva, Foucault nunca pretendeu elaborar uma teoria do
discurso mesmo que, em certos momentos de sua obra, tenha
afirmado isso explicitamente:

Eu me dei como objeto uma análise do discurso [...] O que me interessa


no problema do discurso é o fato de que alguém disse alguma coisa em
um dado momento. Isto é o que eu chamo de acontecimento. Para mim,
trata-se de considerar o discurso como uma série de acontecimentos,
de estabelecer e descrever as relações que esses acontecimentos – que
podemos chamar de acontecimentos discursivos – mantêm com outros

1 Este capítulo é uma releitura de artigo publicado pela autora na edição 43 da revista
Moara, periódico da Universidade Federal do Pará (UFPA), referente ao período de
janeiro a junho de 2015 (Estudos Linguísticos).
Sumário
acontecimentos que pertencem ao sistema econômico, ou ao campo
político, ou às instituições (FOUCAULT, 2003, p. 255-256)

Se ele não pretendeu produzir uma teoria discursiva,


podemos, então, pensar uma análise de discurso com Foucault?
As pesquisas que vimos desenvolvendo há cerca de vinte anos
tem-nos indicado que sim, porque as problemáticas foucaultianas
estão, sempre, articuladas a uma reflexão sobre os discursos:
pressupondo que as coisas não preexistem às práticas discursivas,
Foucault entende que estas constituem e determinam os objetos.
É, pois, a partir da reflexão sobre as transformações históricas
do fazer e do dizer na sociedade ocidental – práticas discursivas
que provocam fraturas, brechas e rearranjos nas configurações do
saber-poder – que se edifica o pensamento foucaultiano. Essa busca
pelos discursos ele não a faz em um lugar disciplinar estabelecido:
não está centralmente na Filosofia, na Antropologia, na História
– apesar de questionar os métodos e as concepções fundamentais
desses campos – e, muito menos, na Linguística, apesar de pensar
sobre a linguagem, dialogar conflituosamente com Saussure e nunca
ter deixado de considerar como central a ideia de que são os dizeres
que constituem os objetos de que falam.
A teoria do discurso subjacente às propostas foucaultianas
deriva do seu objetivo fundamental de compreender como se
articulam os processos de subjetivação e as verdades no âmbito da
produção discursiva. É importante ressaltar que subjetividade, para
Foucault, não significa que o sujeito seja pensado como categoria
ontologicamente invariável; ao contrário, ele a entende de maneira
complexa, como processos de subjetivação modificáveis e plurais.
Assim, uma análise de discursos com Michel Foucault convida
à construção de objetos discursivos numa tríplice tensão entre
a sistematicidade da linguagem, a descontinuidade da história e
instabilidade da produção de subjetividades.
Ao entrelaçar o discurso, a verdade e a subjetividade, os
estudos de Foucault são profundamente históricos, entranhados na

42
Sumário

busca por responder a uma questão candente: quem somos nós, hoje? O
que interessa a Foucault “é o que se passa, o que somos e fazemos hoje:
próxima ou longínqua, uma formação histórica só é analisada pela
sua diferença conosco, e para delimitar essa diferença” (DELEUZE,
1992a, p. 142). Sua intenção não é realizar um retorno ao passado,
mas antes diagnosticar sua própria atualidade. Esse diagnóstico do
presente, entretanto, não se contenta em caracterizar o que somos
hoje, mas também tem por função apontar como o que é poderia não
mais ser o que é.
Foucault ocupa-se da verdade na medida em que pensa
sobre a vontade de verdade que anima os valores de uma sociedade
em um certo momento histórico. Ao mesmo tempo, ao examinar
os mecanismos sociais que controlam a produção e a circulação dos
discursos, Foucault nos mostra que a vontade de verdade se apoia
em uma base institucional, sendo “ao mesmo tempo reforçada e
reconduzida por toda uma espessura de práticas como a pedagogia, o
sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, as sociedades de sábios
outrora, os laboratórios hoje” (FOUCAULT, 1971, p. 20). Por isso,
aponta Foucault, o modo mais profundo do exercício da vontade de
verdade é a maneira como o saber é disposto numa sociedade, como
é valorizado, distribuído, repartido e, de certa forma, atribuído.
É particularmente essa ideia central de Foucault sobre
a espessura de práticas históricas que enlaçam o saber e o poder que
sustenta o propósito desse capítulo, ao analisar práticas discursivas
inscritas em imagens fotográficas que organizaram a constituição
do dispositivo escolar no Brasil, nos primeiros anos da República.
Nossa hipótese é que essas práticas discursivas produziram
subjetividades na medida em que materializaram sentidos do
ideário republicano, a fim de promover o progresso e a correção
da incivilidade do sujeito brasileiro. Assim, o objetivo deste
artigo é analisar algumas dessas práticas discursivas fixadas em
fotografias que organizaram a constituição da rede escolar. Nosso
objeto de análise são álbuns fotográficos produzidos pela Escola
Normal (Caetano de Campos, São Paulo, SP) nos anos de 1895 e
1908 e que constituíram uma “escrita da história” dessa instituição

43
Sumário

a partir dos retratos de sua arquitetura, de seus espaços e de suas


práticas escolares. Por meio delas, produziu-se uma memória das
técnicas de normalização e disciplina dos corpos investidas no
espaço e no tempo das atividades escolares. Este artigo analisa,
portanto, a partir do conceito foucaultiano de dispositivo, as curvas
de visibilidade e de enunciação, as linhas de força e os jogos de
produção de subjetividades investidos na escolarização dos saberes
no Brasil em um certo momento de sua história.

A arqueogenealogia foucaultiana

No início de seu texto “O sujeito e o poder” (1995),


Foucault sintetiza os objetivos de sua investigação desde os anos
1960 e afirma que o seu grande tema sempre foi a produção de uma
história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano na
cultura ocidental. Essa história, que envolve o poder e a produção de
saberes, é percorrida, na obra foucaultiana, a partir de três modos de
produção histórica das subjetividades. Em um primeiro momento,
que foi denominado como arqueologia do saber, Foucault pesquisou
diferentes campos de investigação que buscam constituir-se como
ciência e que produzem, como efeito, a objetivação do sujeito; dessa
perspectiva, voltou-se para a história da loucura, da medicina e de
campos do saber que trataram dos temas da vida, da linguagem e
do trabalho (História da Loucura na Idade Clássica; O Nascimento da
Clínica; As Palavras e as Coisas). Nesse momento, que se desenvolve
ao longo dos anos 1960, investigou os saberes que embasam a cultura
ocidental e por meio do método arqueológico buscou revolver a história
desses saberes (A Arqueologia do Saber; A ordem do discurso). Em um
segundo momento, que abrange a década de 1970, Foucault estudou
práticas (discursivas e não discursivas) que produziram a objetivação
do sujeito por meio de técnicas disciplinares como a classificação e
a segregação. Ele empreende, então, a análise das articulações entre
os saberes e os poderes, a partir de uma genealogia do poder (Vigiar
e Punir); deriva dessas análises a ideia de que nossa sociedade se
organiza em uma microfísica do poder (FOUCAULT, 1979). Enfim,

44
Sumário

em um terceiro momento, nos anos 1980, investigou processos de


subjetivação a partir de técnicas de si e da governamentalidade, isto é,
do governo de si e dos outros, orientando suas pesquisas na direção
da sexualidade, da constituição histórica de uma genealogia da ética
(História da Sexualidade, em três volumes).
Esse percurso abrangente, que envolveu a problematização
das relações entre saberes e poderes na história da sociedade
ocidental, abriu-se em várias direções, a fim de compreender a
construção histórica das subjetividades. Apesar dessa amplitude
temática, há uma profunda organicidade na obra foucaultiana,
pois a articulação entre discurso, verdade e sujeito é uma temática
constante em todo o seu trajeto. Assim sendo, não há o abandono
de temas fortemente arqueológicos, como as noções de enunciado,
formação discursiva e arquivo, a partir do momento em que se
dedica à genealogia (do poder; da ética): vemos com nitidez, por
exemplo, em seus últimos escritos na História da sexualidade,
a correlação entre os discursos, as práticas de poder e os jogos
de verdade que embasam os procedimentos de subjetivação. Da
mesma forma, a questão do poder sempre esteve presente apesar
de aparecer explicitamente teorizado a partir de 1970, em A ordem
do discurso, e se tornar central nos trabalhos da genealogia.
Pensando nessa organicidade dos temas e reflexões,
podemos, então, compreendê-lo em termos de uma arqueogenealogia,
sendo o primeiro momento aquele em que, procurando estabelecer
a constituição dos saberes em articulação com as práticas sociais,
busca responder à questão: como os saberes aparecem e se
transformam? A genealogia complementa o exercício arqueológico,
sendo então um momento em que Foucault busca o porquê
dos saberes, entendendo-os como elementos de um dispositivo
cuja natureza é estratégica. Assim, se a arqueologia tem como
objetivo descrever as regras que regem as práticas discursivas
que produzem sujeitos por meio dos saberes, a genealogia do poder
propõe diagnosticar e compreender a racionalidade das práticas
sociais que nos subjetivaram pelos seus efeitos e nos objetivaram
pelas suas tecnologias, e a genealogia da ética busca problematizar

45
Sumário

as práticas de si e os processos de subjetivação que ligam o sujeito


à verdade. Esses três momentos do percurso arqueogenealógico
de Michel Foucault – situado entre os anos de 1960 a 1984 – são
atravessados e sustentados por uma teoria do discurso.

Michel Foucault e os dispositivos de poder e


saber

Analisar as práticas discursivas para além de sua capacidade


de designação e de referenciação significa, na proposta foucaultiana,
reconhecer as articulações que os discursos estabelecem com os
poderes na produção de verdades, historicamente, delimitadas.
Significa, portanto, que o laço entre discurso e poder é inextricável
e que a análise arqueogenealógica deve enxergar as articulações que
se estabelecem entre eles:

Meu objetivo é examinar as diferentes maneiras pelas quais o discurso


cumpre uma função dentro de um sistema estratégico onde o poder
está implicado e pelo qual funciona. O poder não está, pois, fora do
discurso. O poder é algo que funciona através do discurso, porque o
discurso é, ele mesmo, um elemento em um dispositivo estratégico de
relações de poder. (FOUCAULT, 2003, p. 253, grifos meus)

Por ter-se ocupado das relações entre discursos, saberes e


poderes, Foucault revolucionou as teorias clássicas do Estado, na
medida em que introduziu, nas análises históricas, a ideia de que o
poder pode ser considerado como instrumento analítico capaz de
explicar a produção dos saberes, sua existência e suas transformações
como peças de relações de poder em dispositivos políticos
(MACHADO, 1999, p. X). Um importante aspecto dessa inovação
teórica foi a historicização do poder, isto é, Foucault mostrou que
o poder se modifica sob o impacto das transformações históricas.
Assim pensando, aponta-nos a possibilidade de observarmos três
diferentes economias de poder que se superpõem nas sociedades
ocidentais: a) uma contemporânea da emergência dos Estados

46
Sumário

monárquicos europeus no final do período medieval, voltada


para o problema da soberania e da lei; b) outra, correspondente
ao desenvolvimento de técnicas de biopoder que incidem sobre a
vida das populações, ao longo dos séculos XVII e XVIII; e c) outra,
ainda, propriamente moderna – a partir do século XIX – quando a
tecnologia biopolítica já está consolidada e se centra no exercício
regulador da normalização social.
Em síntese, subjaz à arquegenealogia foucaultiana o
objetivo de diagnosticar e compreender a racionalidade de práticas
sociais do saber e do poder que produziram o que somos nós, no
nosso presente. Nesse contexto, principalmente pela necessidade
de incorporar às análises a dimensão heterogênea das práticas
discursivas e não discursivas que produzem subjetividades,
Foucault elaborou o conceito de dispositivo. Se ele já estava latente
nas análises arqueológicas, a partir dos anos 1970, Foucault
insistirá, cada vez mais, na importância dos dispositivos. É
interessante notar que não há, em seus livros, sistematização
ou definição desse termo. As intervenções sobre esse conceito
aparecem com regularidade em entrevistas e falas de Foucault. O
desenvolvimento desse conceito imprimiu novidades ao mesmo
tempo teóricas, metodológicas e políticas às discussões clássicas
sobre o poder: isso se deve, principalmente, pelo fato de que na
base da ação dos dispositivos não se encontram a repressão ou
a ideologia – como propõe a teoria marxista althusseriana, por
exemplo – mas a normalização e a disciplina.
Um dos principais momentos em que Foucault se refere ao
conceito encontra-se na entrevista “Sobre a história da sexualidade”
(1999, p. 243-276) quando, interpelado sobre o sentido e a função
metodológica dos dispositivos, aponta três facetas que ele imprime
à noção. Em primeiro lugar, afirma que, com esse termo, tentou
demarcar um conjunto heterogêneo “que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares,
leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas”. Resumindo, essa heterogeneidade
demonstra que o dito e o não dito são elementos do dispositivo e

47
Sumário

ele próprio é “a rede que se pode estabelecer entre estes elementos”


(FOUCAULT, 1999, p. 244). Em segundo lugar, Foucault demarca
a natureza da relação que pode existir entre esses elementos
heterogêneos, enfatizando que há sempre um certo tipo de jogo
entre eles, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções etc.
Finalmente, em terceiro lugar, Foucault mostra que o dispositivo é
um tipo de formação que, em um determinado momento histórico,
teve como função principal responder a uma urgência. Por isso, ele
tem uma função estratégica dominante que é determinada por um
imperativo histórico.
Mais adiante, nessa mesma entrevista Foucault (1999, p.
146) acrescenta:

O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder,


estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de
saber que dele nascem, mas que igualmente o condicionam. É isto, o
dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber
e sendo sustentadas por eles.

A emergência do conceito de dispositivo deriva do seu


estudo sobre a história da sexualidade. Para Foucault, a sexualidade
não é um dado da natureza, mas o nome de um dispositivo histórico,
datado da metade do século XVIII: o dispositivo da sexualidade.
Trata-se de uma rede composta por um conjunto de práticas,
discursos e técnicas de estimulação dos corpos e de formação de
conhecimentos. Quanto ao aspecto estratégico desse dispositivo, ele
respondeu a uma urgência política da burguesia, de sua necessidade de
afirmação que a levou a instituir seu corpo como fonte de inquietação
e cuidado. Se anteriormente a nobreza se distinguia pelo “sangue”, a
burguesia marcou sua diferença e hegemonia atribuindo-se um corpo
específico com saúde e higiene. A valorização de seus prazeres e a
proteção de seu corpo contra perigos e contatos, além de garantirem
seu vigor, descendência e longevidade, serviam como emblema de
respeito e poder social. Afinal, diz Foucault, sua supremacia, além
de depender da exploração econômica, requeria uma dominação

48
Sumário

física, já que “uma das formas primordiais da consciência de classe é


a afirmação do corpo” e, por isso, a burguesia “converteu o sangue
azul dos nobres em um organismo são e uma sexualidade sadia”
(FOUCAULT, 1985, p. 119). Vemos, portanto, um exemplo de que
um dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se
inscreve sempre em uma relação de poder.
Devido à sua força heurística e seu potencial para as análises
históricas, Deleuze (1996) considera que a noção de dispositivo pode
funcionar como um conceito operatório multilinear, alicerçado em
três grandes eixos que se referem às três dimensões que Foucault
distingue sucessivamente ao longo de sua obra: saber, poder e
(produção de) subjetividades, entendidas como cadeias de variáveis
relacionadas entre si:

Os objetos visíveis, os enunciados formuláveis, as forças em exercício, os


sujeitos numa determinada posição, são como que vectores ou tensores.
Por isso, as três grandes instâncias que Foucault vai sucessivamente
distinguir, Saber, Poder e Subjectividade, não possuem contornos
definidos de uma vez por todas; são antes cadeias de variáveis que se
destacam uma das outras. (DELEUZE, 1996, p. 85)

Para Deleuze (op. cit, p. 87), o conceito foucaultiano de


dispositivo se compõe de quatro dimensões articuladas: as curvas de
visibilidade, as curvas de enunciação, as linhas de força e as linhas
de subjetivação.
As primeiras duas dimensões dizem respeito às formas de
funcionamento da enunciabilidade e da visibilidade que regem os
elementos de um dispositivo. Trata-se, portanto, da forma como,
em um determinado dispositivo, funcionam os seus “regimes de
luz” e “regimes de enunciados”, a maneira como se estabelecem
jogos entre o visível e o invisível, a eloquência e o silêncio, com
suas derivações, suas transformações, suas mutações. Já as linhas de
força atuam como “flechas que não cessam de penetrar as coisas e as
palavras”. Elas estão intimamente relacionadas com a dimensão do
poder e, por isso, atingem todos os espaços do dispositivo, naquilo

49
Sumário

que o poder tem de “onipresente” – não no sentido de agrupar tudo


numa (equivocada) unidade, mas em sua característica primeira
de se produzir a cada momento, a partir da complexa e estratégica
relação entre todos os pontos de um dispositivo. Quanto às linhas de
subjetivação, são um processo, uma produção de subjetividade derivada
das outras dimensões do dispositivo. Sendo um efeito que deriva das
relações entre as outras dimensões, Deleuze considera a subjetivação
como uma linha de fuga, produto de processos sempre mutáveis de
acordo com as mudanças históricas.
Entrelaçando o saber, o poder e a subjetividade, o conceito
de dispositivo sintetiza e reúne as grandes categorias que sustentam
a analítica foucaultiana. Considerando esse poder de síntese,
Courtine (2013, p. 79) propõe que se reinterprete o conceito de
“formação discursiva”, fundamental na arqueologia foucaultiana, a
partir da complexidade da heterogeneidade histórica do conceito de
dispositivo. Dessa maneira, segundo o autor, passa-se a entendê-la
não somente como palavras, mas igualmente coisas, e os olhares que
as captam, ou como o diz Deleuze, ‘páginas de visibilidade’ e ‘campos
de legibilidade’. Assim entendida, a formação discursiva pode
aproximar-se do conceito de dispositivo, englobando linguagem
(verbal e não verbal) e práticas. A análise de discursos teria como
objetivo, então, o de reconstruir,

[...] a partir de rastros de linguagens, os dispositivos dos quais os


textos não são senão uma das formas de existência material [...] trata-
se também de reconstruir práticas, de devolver vida aos gestos e carne
aos corpos” (COURTINE, 2013, p. 57).

Acatando essa proposta de Courtine, propomos pensar


a rede escolar instalada no Brasil no final do século XIX e início
do século XX como um dispositivo constituído em um momento
histórico determinado e que expressa, em seus enunciados, suas
visibilidades, suas linhas de força e nas subjetividades dele derivadas,
a urgência política de constituição da identidade brasileira logo

50
Sumário

após a proclamação da República. Para entender o funcionamento


desse dispositivo, analisaremos fotografias coligidas em dois álbuns
fotográficos da Escola Normal Caetano de Campos (São Paulo, SP)
produzidos respectivamente em 1895 e em 1908. Nosso objetivo é
evidenciar o funcionamento dos elementos desse dispositivo como
estratégia para a produção e reprodução do ideário republicano.

A instalação do dispositivo escolar e a memória


fotográfica

O cenário brasileiro no final do século XIX e meados do


século XX estava convulsionado por grandes transformações que
abrangiam um largo escopo: o campo da política (fim da monarquia
e implantação da República); o da reorganização do trabalho
(abolição dos escravos e chegada de trabalhadores europeus); o do
reordenamento dos espaços urbano / rural e a remodelação das
cidades; e o da economia (auge da cultura do café no sul e sudeste e
o ciclo da borracha no norte). Era, portanto, um movimento amplo
de transformações que atingiu profundamente as relações sociais e
o cotidiano dos brasileiros:

Foram mudanças impactantes estimuladas, principalmente, por um novo


dinamismo no contexto da economia internacional, as quais alteraram
a ordem e as hierarquias sociais, as noções de espaço e tempo dos
indivíduos e os modos de percepção do cotidiano. Nos planos culturais
e econômicos, as transformações foram significativas: rupturas com
alguns costumes coloniais, adoção de discursos científicos, abolição da
escravatura, queda da monarquia, início de uma economia urbana e
industrial, além da organização de um sistema educacional de âmbito
nacional e incorporação de tecnologias (vacinas, soros, entre outras),
com impacto nas ações de saúde desenvolvidas em território brasileiro.
(SEVCENKO, 1998, p. 15)

51
Sumário

Essa amplitude das transformações foi impulsionada pelo


apoio que a Proclamação da República obteve tanto da intelectualidade
progressista quanto da simpatia popular. Assim, apesar de não ter
sido um movimento de massa, a República encontrou, em seus
primeiros anos, ambiente propício para implantar mudanças que
afetaram todos os estratos da nação. Essas mudanças eram guiadas
pelo ideário republicano e tinham em sua base a plataforma política
de que o progresso e a constituição da nação brasileira deveriam
estar assentados estratégias a serem fortemente consolidadas: a
higienização e a educação. As reformas políticas e sociais deveriam
estar articuladas à reforma da educação.
A educação era colocada, assim, no centro do movimento de
renovação das estruturas sociais do Brasil, com um modelo de escola
elementar pensado para a escolarização em massa. Evidentemente,
não se tratava de incorporar todas as classes e grupos sociais já que
a estrutura escolar e seus conteúdos seguiam o modelo das elites
econômicas. Mais do que oferecer educação para todos, o objetivo
da reforma republicana era oferecer ensino a alguns segmentos
que vinham reivindicando instrução pública. Assim, o projeto
educacional republicano era sustentado pela ideia de que esse tipo
de educação seria o esteio para o desenvolvimento nacional:

A educação pelo voto e pela escola foi instituída por eles como a grande
arma da transformação evolutiva da sociedade brasileira, e assim
oferecendo em caução do progresso prometido pelo regime republicano:
a prática do voto pelos alfabetizados e, portanto, a frequência à escola
que formaria o homem progressista adequado aos tempos modernos,
é que tornaria os súditos em cidadão ativo (HILSDORF, 2005, p. 60).

Trata-se, portanto, de um momento histórico em


que se apresentava como necessário ultrapassar as estruturas
arcaicas estabelecidas pela monarquia e a via mais rápida seria
o desenvolvimento e nacionalização da educação, com vistas à
diminuição do analfabetismo. Um dos pilares da implantação do

52
Sumário

dispositivo escolar fundamentou-se na elaboração de enunciados que


ligaram as práticas de linguagem à nossa nacionalidade. Nesse sentido,
promoveu-se o reordenamento das práticas pedagógicas, incluindo
a preocupação com a escrita e, consequentemente, o surgimento de
cartilhas que buscavam introduzir e ampliar o ensino de uma escrita
mais homogênea e regular em todo o país. A República nacionalizou
o ensino da língua materna (e de geografia e história) e, para isso,
houve necessidade de nacionalizar o livro didático. Com o passar dos
anos, eles foram incorporados de forma tão sólida à memória escolar
coletiva brasileira que acabaram por constituírem-se em importantes
instrumentos para a consolidação da ideologia republicana. Várias
gerações se imbuíram, por meio dessas leituras escolares, das
representações do Brasil como pátria moderna e civilizada, a exemplo
das Poesias Infantis (Olavo Bilac, 1904) e os Contos Pátrios (Coelho
Netto e Olavo Bilac, 1911).
Ademais dessas enunciabilidades, os ideais republicanos
foram materializados na implantação do dispositivo escolar sob a
forma de uma rede de prédios como objetos visíveis que abrigaram
enunciados formuláveis, expressando forças em disputa para a
produção de subjetividades. Visibilidade, enunciabilidade, linhas de
força e processos de subjetivação: eis os vetores ou tensores desse
dispositivo que expressava os valores do progresso e da modernidade
de um “novo Brasil”.
Com relação às curvas de visibilidade e de enunciabilidade
– que são, para Foucault, os primeiros elementos de um dispositivo
– o ensino público foi dotado, primeiramente, de uma estrutura ar-
quitetônica escolar específica, que seguia os preceitos do estilo “mo-
derno”, cujos padrões arquiteturais, em São Paulo, era ditado por
mestres, operários e artistas geralmente imigrantes, das oficinas-es-
colas do Liceu de Artes e Ofícios. Essa estrutura arquitetônica esco-
lar tinha como característica principal a racionalização dos espaços,
seus usos e funções, bem como a normatização de plantas e fachadas.
Dotada dessa visibilidade específica, a escola passava a ser reconhe-
cida na paisagem urbana como um espaço arquitetônico definido.

53
Sumário

A implantação do dispositivo escolar foi um esforço


nacional para a construção de uma identidade republicana para
o nosso país. Como resultado desse esforço, nas duas primeiras
décadas do regime republicano, edifícios escolares obedecendo às
regras dessa estrutura arquitetônica moderna foram instalados
em muitas capitais do Brasil: nos estados de São Paulo (1894); Rio
de Janeiro (1897); Pará (1901); Maranhão e Paraná (1903); Minas
Gerais (1906); Bahia, Rio Grande do Norte, Espírito Santo e Santa
Catarina (1908); Mato Grosso (1910); Sergipe (1911); Paraíba (1916)
e Piauí (1922). (VIDAL, 2006, p. 7). A regularidade das fachadas e
dos lugares da paisagem urbana em que foram implantados denota
a face mais concreta das curvas de visibilidade desse dispositivo,
conforme podemos visualizar nas figuras 1 e 2.
A suntuosidade dos prédios, a localização em vias de
grande movimento, geralmente de topografia elevada são alguns
dos predicados que constituíram o lugar da escola na remodelação
urbana e produziram, pela excessiva visibilidade, a marca indelével
do progresso em curso pelas mãos republicanas.
Entretanto essa visibilidade teria ainda um aliado
fortíssimo que deveria garantir-lhe perenidade. Por isso, uma
outra forma de visibilidade foi produzida, a fim de assegurar a
permanência, a remanência dessa Escola na memória coletiva:
a imagem fotográfica. Esse gesto de inscrever a escola em uma
materialidade fotográfica deriva do fato de que a implantação do
dispositivo escolar republicano coincidiu com um momento em que
a fotografia começava a se popularizar devido aos avanços técnicos
que ampliavam o seu uso social: a invenção da câmera portátil
(1881) e, principalmente, o desenvolvimento de um novo sistema
de reprodução fotomecânica que permitia a impressão de fotos em
publicações e cartões postais, superando a litografia e dando origem
ao fotojornalismo (VIDAL, 1998).

54
Sumário

Figura 1: Escola Normal Caetano de Campos (São Paulo,


1894)

Fonte: Album Photographico da Escola Normal – 1895

Figura 2: Grupo Escolar José Veríssimo (Belém, PA, 1901)

Fonte: A Educação no Pará, documentário. Belém-PA: Ed. Bel-


Graff, 1987

A figura 3 exemplifica o uso da fotografia em cartão postal.


Trata-se de imagem que pertence à série de postais Lembrança de São
Paulo, do fotógrafo Guilherme Gaensly, realizada entre os anos de
1900 a 1910:

55
Sumário

Figura 3: Cartão postal com vista da Praça da República e


a Escola Normal (Caetano de Campos)

Postal n. 12 da Série Lembrança de São Paulo, de Guilherme


Gaensly, 1900-1910

O fotógrafo G. Gaensly (1843-1928) é considerado um dos


maiores responsáveis pela memória iconográfica da belle époque de
São Paulo do início do século XX. Sua lente captou e fixou casarões,
edifícios, espaços públicos e deu materialidade, principalmente, à
remodelação da cidade que lhe imprimia ares europeus de grande
metrópole. O postal apresentado na Figura 3 mostra que entre
os signos de modernidade captados pela lente de Gaensly figura
a imagem imponente da Escola Normal (Caetano de Campos), na
Praça da República, atestando o valor que ela representa como
símbolo do progresso do país.
Essa relevância da Escola Normal, depois denominada
Escola Caetano de Campos (e popularmente conhecida como
“Escola da Praça”) tem vários motivos históricos. Inaugurada em
1894, foi o primeiro prédio da rede escolar republicana e, portanto,
inaugurou a visibilidade do dispositivo escolar a ser implantado no
Brasil. Sua arquitetura monumental serviu de parâmetro para a
arquitetura escolar a ser imprimida em outras escolas construídas
no período, reforçando em suas linhas o sentido de que havia

56
Sumário

naquele governo uma vontade de verdade: a do desenvolvimento


da educação brasileira. Originalmente, o prédio abrigava a Escola
Normal destinada à formação de professores primários e uma Escola
Modelo Anexa para as séries iniciais e objetivava desenvolver
métodos a serem padronizados e aplicados nos Grupos Escolares
que estavam sendo instalados no interior do estado de São Paulo.
Em 1896, ela sofreu sua primeira ampliação, com a inauguração do
Jardim da Infância.
Os sentidos de modernidade, progresso, democracia,
qualidade etc. atribuídos à Escola Caetano de Campos foram
produzidos não só pela lente de fotógrafos, como Gaensly,
interessados em mostrar as paisagens da cidade em mutação,
na marcha para o progresso. Ela própria, enquanto instituição,
produziu uma espécie de “escrita de sua história” fixando
uma memória fotográfica em álbuns e fotografias avulsas que
atualmente constituem o seu acervo iconográfico. Interessam-nos,
neste artigo, dois desses álbuns, produzidos nos primeiros anos da
Escola Normal:
a) Álbum Photographico da Escola Normal – 1895 (36
páginas, caixa 1 AECC) que registra a arquitetura do
prédio escolar e suas instalações, em imagens nas quais não
aparecem os sujeitos que os ocupam. Professores e alunos
figuram no álbum em fotografias separadas dos espaços da
escola:
b) Album de Photographias da Escola Normal e Annexas de
São Paulo -1908 (83 páginas, caixa 2 AECC), registra
práticas escolares e situações de ensino nas quais estão
inseridos professores e alunos. Não há, assim, separação
entre espaços, seus usos e os sujeitos que os habitam:
Esses dois álbuns, como os demais do AECC, têm
como temática o prédio escolar e as atividades neles realizadas.
Caracteriza esses dois álbuns o fato de que as imagens foram
feitas por fotógrafos profissionais. São fotografias posadas que
impõem uma certa ordem do olhar, dispondo os elementos em uma

57
Sumário

regularidade que busca controlar os sentidos (como veremos mais


à frente, na imagem da saída das meninas); mas sempre algo do
sentido escapa ao controle (por exemplo, as diferenças entre as
aulas de ginástica de meninos e de meninas). São fotografias que
guardam vestígios e representações de práticas que habitaram a
instituição escolar (FABRIS, 1991). Certamente, os álbuns foram
encomendados para produzir memória por meio da visibilidade e da
enunciabilidade; o que se mostra diz muito sobre a representação
que se quer produzir por meio da série fotográfica: um modelo de
excelência a ser seguido pela escola republicana.

Corpos e espaços
linhas de força e processos de subjetivação

As imagens dos espaços da Escola Caetano de Campos, que


predominam no Álbum de 1895, detalham aspectos de sua fachada e
do seu interior e produzem, pela perspectiva e simetria dos elementos,
os sentidos de ordem, organização, amplitude, funcionalidade:
Figura 4: Vista dos corredores internos da Escola
Album Photographico da Escola Normal – 1895

Fonte: Acervo da Escola Caetano de Campos/CRE Mario Covas.

58
Sumário

A vista dos corredores, apresentada na Figura 6, exemplifica


a materialidade desses sentidos. Nosso olhar é levado a percorrer a
extensão do corredor, a perscrutá-lo e perceber que nele é possível
controlar os corpos, por meio do controle do espaço. É, portanto, a
imagem do interior de um desses edifícios de que nos fala Foucault
em Vigiar e Punir (1991): prédios sólidos (prisões, fábricas, hospitais,
escolas ...) em cujos interiores o saber é produzido pela vigilância. A
reflexão de Foucault sobre as articulações entre corpos e espaços se dá
no âmbito da discussão sobre o funcionamento do poder disciplinar,
característico da sociedade biopolítica que se desenvolveu a partir do
século XIX. Essa sociedade da disciplina construiu uma maquinaria
de poder através do controle dos corpos (anatomia política), que
se desenha aos poucos até alcançar um método geral e espalhar-se
numa microfísica do poder que vem evoluindo em técnicas cada vez
mais sutis, mais sofisticadas, tomando o corpo social em sua quase
totalidade. A disciplina funciona por meio de procedimentos muito
específicos, dentre os quais Foucault (1991) destaca:

a) o controle dos espaços por meio de regulamentos


minuciosos, do olhar das inspeções e do controle sobre o
corpo que tomam forma nas escolas, prisões, quartéis etc.
Nessa microfísica do poder, a disposição dos corpos permite
o olhar, isto é, a vigilância;
b) a organização do tempo, com o consequente controle e
regulamentação sobre os ciclos da repetição;
c) a vigilância contínua, ininterrupta e, acima de tudo, vista
pelos indivíduos que a ela estão expostos como perpétua e
permanente;
d) a produção do saber e seu registro contínuo: o caderno
de anotação, a ficha secreta, a prova, a correção etc.
são materialidades que mostram o acúmulo do saber
produzindo poder.

59
Sumário

Segundo essas teses de Foucault, o poder está fundamen-


talmente ligado ao corpo, em todas as sociedades modernas, uma
vez que é sobre ele que se impõem as obrigações, as limitações e as
proibições. Ele mostra que, nos séculos XVII e XVIII, junto com a
aparição da arte do corpo humano, houve a descoberta do corpo como
objeto transformável em eficiência e alvo do controle. É o que ele
denomina de “momento das disciplinas”. Desde então, os mecanis-
mos disciplinares que organizam os corpos nas prisões, nos hos-
pícios, nos quartéis, nas empresas, nas escolas etc. tomam a forma
social mais ampla de uma sofisticada e sutil tecnologia de submissão
em movimentos, gestos e silêncios que orientam o cotidiano:

Figura 5: Vista da saída das alunas, na ala feminina


Album de Photographias da Escola Normal e Annexas de
São Paulo 1908

Fonte: Acervo da Escola Caetano de Campos/ CRE Mário Covas.

A vista da saída das alunas, na figura 7, nos apresenta ao


olhar a regularidade da disposição dos corpos infantis em duas filas
simétricas que descem a escadaria da saída do prédio. Nessa imagem
extremamente organizada, a pose materializa o olhar vigilante que,
do interior das instituições ganha prolongamento social nas ações

60
Sumário

da vida cotidiana. Esse controle do olhar se funde com a disciplina


organizadora do tempo e do espaço, criando o império da regularidade,
do ritmo. Assim como na distribuição dos espaços, o controle sobre o
tempo permanece introjetado na realização social da vida cotidiana e
em todos os setores, inclusive na vida “pessoal e íntima”. Entranhada
no cotidiano, a vigilância aparece como algo que deve ser contínua,
ininterrupta e que, acima de tudo, precisa ser vista, pelos indivíduos
que a ela estão expostos, como perpétua, permanente; do mesmo
modo, é preciso que ela não tenha limites, que esteja presente em
toda a extensão do espaço. A vigilância é, pois, um olhar invisível,
que deve impregnar quem é vigiado de tal modo que este adquira
de si mesmo a visão de quem o olha. O poder sobre os corpos, dessa
forma, atinge o ápice da submissão, pois o corpo não distingue entre
si mesmo e o olho do poder.
Funcionando junto com outras formas sutis de controle
dos corpos, essas técnicas disciplinares (sobre o espaço, o tempo, a
vigilância e o saber) se desenvolvem em quase todas as instituições,
a partir do século XIX, e seu propósito é produzir “o sujeito
individual obediente aos hábitos, regras, ordens; uma autoridade
que é exercida continuamente em volta e acima dele e que ele deve
internalizar para funcionar automaticamente nele” (FOUCAULT,
1991, p. 227).
Essas práticas disciplinares são concretizadas, nas imagens
fotográficas da Escola Caetano de Campos, em várias outras
situações como, por exemplo, no grande número de vistas das
aulas de educação física. Conforme já afirmamos, as duas âncoras
da renovação do país impressas pelos republicanos eram a saúde
e a educação. Nas salas de aula, carteiras importadas da Europa e
Estados Unidos mantinham o corpo dos alunos na posição correta,
prevenindo a escoliose, como era recomendado nos discursos médicos
da época. Os cuidados com a saúde levaram à inclusão da ginástica
e dos esportes nos currículos escolares. Dentro desse espírito, era
preciso cultivar a educação física, a fim de obter, pelo controle do
corpo, o controle intelectual e moral. Dentre as várias imagens do
Album de 1908, destacamos as duas apresentadas a seguir:

61
Sumário

Figura 6: Aula de ginástica da ala feminina.


Album de Photographias da Escola Normal e Annexas de
São Paulo – 1908

Fonte: Acervo da Escola Caetano de Campos/CRE Mário Covas.

Figura 07: Aula de exercícios militares da ala masculina.


Álbum de Photographias da Escola Normal e Annexas de
São Paulo – 1908

Fonte: Acervo da Escola Caetano de Campos/CRE Mário Covas.

62
Sumário

A separação do espaço da escola em duas alas independentes


e com entradas próprias inscreve no espaço a divisão de gênero e seus
lugares sociais. Assim, apesar de, pela primeira vez a escola ter incluído
as mulheres como alunas e, portanto, iniciar-se o seu processo escolar de
educação, a divisão de tarefas e atividades masculinas e femininas reproduz
e reafirma a “fragilidade” e a “domesticalidade” das meninas e, ao mesmo
tempo, a “militarização” dos meninos. Essa divisão era expressa também
nas matérias escolares direcionadas diferentemente para homens e
mulheres. Segundo o artigo 269, de 1892, das diretrizes pedagógicas,
haveria um conjunto de disciplinas comuns a ambos os sexos, “exceto o de
Agrimensura, Economia Política e Exercícios militares que é destinado
exclusivamente aos homens e Economia doméstica às mulheres.”
Essa divisão de papéis expressa bem o que afirma Foucault sobre a
função da educação na sociedade moderna:

A educação pode muito bem ser, de direito, o instrumento graças ao


qual todo o indivíduo, numa sociedade como a nossa, pode ter acesso a
qualquer tipo de discurso; sabemos no entanto que, na sua distribuição,
naquilo que permite e naquilo que impede, ela segue as linhas que são
marcadas pelas distâncias, pelas oposições e pelas lutas sociais. Todo o
sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar
a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que estes
trazem consigo (FOUCAULT, 2004, p. 12).

As imagens fotográficas das figuras 8 e 9 evidenciam o


funcionamento das linhas de força e a produção de subjetividades
no interior do dispositivo escolar republicano.

O atual não é o que somos, mas aquilo em que


nos vamos tornando

Segundo Deleuze (1996), as diferentes linhas de um dispositivo


repartem-se em dois grupos: linhas de estratificação ou de sedimentação e
linhas de atualização ou de criatividade. As primeiras constituem elementos
que se consolidaram e que caracterizam os dispositivos em um certo

63
Sumário

momento; os segundos são elementos em transformação, são processos


em curso. Para Deleuze, Michel Foucault tratou obstinadamente, com
rigor, os elementos de estratificação de vários dispositivos como o
hospital no século XVII, a clínica no século XVIII, a prisão no século
XIX, a subjetividade na Grécia Antiga e no cristianismo. A figura 10,
apresentada a seguir retrata vários elementos que podemos considerar
com estratificações do dispositivo escolar e que incidem sobre a forma
como os corpos ocupam o espaço da sala de aula. São práticas que
se desenvolveram a partir do ideário republicano e que atravessam a
história da Escola brasileira até nossos dias, nas atividades escolares:

Figura 8: Aula de leitura da ala masculina


Álbum de Photographias da Escola Normal e Annexas de
São Paulo – 1908

Fonte: Acervo da Escola Caetano de Campos/CRE Mário Covas.

Entretanto, afirma Deleuze, Michel Foucault não teve


tempo de formular as linhas de atualidade dos dispositivos, a não ser
em algumas entrevistas, contemporâneas de cada um dos grandes
livros; nelas, encontram-se questões como o que sucede hoje em dia
com a loucura, com a prisão, com a sexualidade? que novos modos de
subjetivação surgem hoje em dia, que nem são gregos nem cristãos?
Ao afirmar isso, Deleuze tem a intenção de mostrar que
a sociedade disciplinar descrita por Michel Foucault já é algo que

64
Sumário

estamos deixando de ser, pois a ela sucedeu uma nova forma de


sociedade, a do controle. A sociedade disciplinar é aquela na qual o
comando social é construído mediante uma rede difusa de dispositivos
que regulam os costumes, os hábitos e as práticas produtivas e a
disciplina é assegurada por meio de instituições instaladas em
edifícios sólidos (prisão, fábrica, asilo, escolas...) que estruturam
o terreno social e fornecem explicações lógicas adequadas para a
“razão” das disciplinas. A escola republicana tratada neste artigo
pode ser considerada como típica dessa sociedade disciplinar.
Já a sociedade do controle, segundo Deleuze (1992, p. 219-
226) desenvolveu-se a partir dos anos 1950, quando os mecanismos de
comando social tornaram-se cada vez mais “democráticos”, cada vez
mais imanentes ao campo social, distribuídos pelos corpos e cérebros
dos cidadãos. O controle adquire a forma de uma vigilância geral
exercitada sob uma variedade de formas, que vão desde as câmeras
colocadas em cada canto dos prédios até as estatísticas e os sistemas
de segurança que são usados para aferir e modelar o cotidiano.
Nessa sociedade, o poder é cada vez mais exercido por máquinas que
organizam diretamente o cérebro (em sistemas de comunicação, redes
de informação etc.) e os corpos (em sistemas de bem-estar, atividades
monitoradas etc.) no objetivo de um estado de alienação independente
do sentido da vida e do desejo de criatividade. Há um sistema de
normalização da disciplinaridade que anima internamente nossas
práticas, capilarizado fora das instituições. Implantam-se novos tipos
de sanção, de educação, de tratamento: hospitais abertos, atendimento
em domicílio, educação a distância, formação continuada baseados no
controle contínuo e na comunicação instantânea possibilitada pelas
tecnologias digitais e pelo desenvolvimento do ambiente virtual. Para
escapar ao controle, há a pirataria, os vírus disseminados pelos hackers.
O marketing é um instrumento do controle social, contínuo e ilimitado.
O animal da disciplina é a toupeira; a do controle é a serpente: “ os
anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de
uma toupeira” (DELEUZE, 1992b, p. 225).
Essa passagem de uma sociedade disciplinar a uma baseada
no controle enseja o surgimento de outras visibilidades, outras

65
Sumário

enunciações, outras formas de poder, outras formas de subjetivação.


A história é o arquivo, é o desenho do que somos e deixamos de ser,
enquanto o atual é o esboço daquilo em que vamos nos tornando.

Pertencemos a dispositivos e neles agimos. À novidade de um


dispositivo em relação aos que o precedem chamamos atualidade do
dispositivo. O novo é o atual. O atual não é o que somos, mas aquilo
em que nos vamos tornando, aquilo que somos em devir, quer dizer, o
Outro, o nosso devir-outro (DELEUZE, 1996, p.94).

Apenas a título de motivação para outras análises, a figura


11 exemplifica a ideia de uma educação atual, proposta a partir de
2019, “de cara nova”.

Figura 9: Página de abertura do Programa Nacional de


Alfabetização do MEC em 2020

Disponível em: <https://alfabetizacao.mec.gov.br/


contapramim>. Acesso em 25/03/2020.

66
Sumário

O novo são os dispositivos tecnológicos aplicados ao


ensino – os portais da web, com seus vídeos e as possibilidades
dos hipertextos. Resta entender as “novas” faces visíveis no alto
da página onde se veem duas abas voltadas à literacia e literacia
familiar, reeditando, nesse novo momento, os ideais republicanos do
início do século XX, que deixa de fora a diversidade. A subjetividade
é processo em curso, por isso, a atualidade é sempre contraditória,
tem sempre uma incompletude constituinte que nos impede de
enxergá-la com inteireza.

Referências

COURTINE, J-J. Decifrar o corpo. Pensar com Foucault.


Petrópolis/RJ: Vozes, 2013.
DELEUZE, G. Um retrato de Foucault. In: Conversações 1972-
1990. São Paulo: Ed. 34, 1992a, p. 127-147.
DELEUZE, G. Post-Scriptum sobre as sociedades de controle. In:
Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992b, p. 219-226.
DELEUZE, G. O que é um dispositivo? In: O mistério de Ariana.
Lisboa: Vega/Passagens, 1996, p. 83-96.
FABRIS, A. (Org). Fotografia: usos e funções no século XIX. São
Paulo: EDUSP, 1991.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Aula Inaugural no Collège
de France, Pronunciada em 2 de Dezembro de 1970. São Paulo:
Loyola, 1971.
FOUCAULT, M. História da loucura na idade clássica. São
Paulo: Perspectiva, 1972.
FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1978.

67
Sumário

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e tradução de


Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FOUCAULT, M. História da sexualidade 1. A vontade de saber.
Rio de Janeiro: Graal, 1985.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1986.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Nascimento da Prisão. Rio de
Janeiro: Vozes, 1991.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
FOUCAULT, M. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
FOUCAULT, M. História da sexualidade 3: O cuidado de si. Rio
de Janeiro: Graal, 1996.
FOUCAULT, M. O Sujeito e o Poder. In: RABINOV, Paul;
DREYFUS, H. Michel Foucault: Uma Trajetória Filosófica - para
além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995, p. 229-249.
FOUCAULT, M. Sobre a História da Sexualidade. In: Microfísica
do poder. Org. e trad. Roberto Machado. 17 ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1999, p. 243-276.
FOUCAULT, M. Diálogo sobre o poder. Ditos e escritos.
Estratégias, Poder-Saber. MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2003. v. 4.
HILSDORF, M. L. S. História da Educação Brasileira. São Paulo:
Thompson, 2005.
MACHADO, R. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, M.
Microfísica do poder. Ed: Graal, 1999.
SEVCENKO, N. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões
do progresso. In: NOVAIS, F. (Org.). História da vida privada no
Brasil República: da belle époque à era do rádio, v. 3, São Paulo: Cia
das Letras, 1998.

68
Sumário

VIDAL, D. G. A fotografia como fonte para a historiografia


educacional sobre o século XIX: uma primeira aproximação.
In: FARIA FILHO, L. M. (Org.). Educação, Modernidade e
Civilização. Fontes e perspectivas de análises para a história da
educação oitocentista. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
FILHO, L. M. (Org.). Tecendo história ( e recriando memória) da
escola primária e da infância no Brasil: os grupos escolares. In: Grupos
escolares: cultura escolar primária e escolarização da infância no
Brasil (1893-1971). Campinas: Mercado de Letras, 2006.

69
CAPÍTULO 3

DO GOVERNO DA LÍNGUA
ENTRE RAÇAS, ÁTOMOS E BYTES

Ivânia dos Santos Neves

Professora, como é que eu escrevo obrigado em inglês? Acho que


se colocar assim no Facebook vai falar com mais gente sobre
nossa cultura!
Professor Bêwãre Tembé

Introdução

A revolução produzida pelas redes sociais na internet,


apesar do predomínio do inglês e do espanhol no mundo ocidental,
visibiliza uma imensa Torre de Babel planetária, isto é, ela exibe
esse incontrolável caldeirão linguístico produzido pela experiência
humana. Os usos sociais, políticos e econômicos das línguas na web,
permeados pelas necessidades e os desejos humanos, associados às
suas condições de emergências históricas e às relações de poder em
que estão envolvidos, consequentemente, são bastante heterogêneos.
Entre os primeiros contatos de uma criança indígena com um
smartphone no interior da Amazônia e a necessidade de grandes
executivos da Faria Lima dominarem o inglês e o mandarim são
apenas algumas nuanças desse caleidoscópio.
Na América Latina e na África, o agenciamento do
dispositivo colonial, com suas tecnologias sociais, atravessa os
séculos e, independente das independências políticas dos países
dessas regiões, continua a impor a colonialidade do poder e do saber,
Sumário

reforçando o discurso da hierarquia de racionalidades, perpetuando


as práticas predadoras do capitalismo transnacional, reforçando as
estruturas do patriarcado. Nesses tantos séculos, desde as Grandes
Navegações, esse dispositivo associado, sobretudo, ao poder pastoral,
aos sistemas judiciários das ex-colônias europeias, aos processos de
globalização da comunicação e do capital e ao dispositivo escolar,
administrou com muito cuidado o governo das línguas nessas
regiões e não por acaso, hoje, em quase todos esses países, as línguas
europeias são estabelecidas como suas línguas oficiais.
No século XVI, a imposição das línguas e das cosmologias
europeias se valeu dos recursos disponíveis das línguas escritas,
especialmente do latim, como livros, pergaminhos, manuscritos e
da invenção de uma “verdade” supostamente inquestionável da
letra, rigorosamente sacralizada pela igreja católica e ao longo
desses séculos, principalmente, o português, o espanhol, o francês
e o inglês foram se impondo, atendendo às emergências históricas
dos colonizadores. Os espaços dessas línguas, na web, reeditam, de
forma atualizada essa condição. Mas a complexidade de nossos dias
e a globalização do mercado e da informação desenham contornos
bem maiores, com novas tendências imperialistas, antes não visíveis
no Ocidente e agora orquestradas também pela China.
Nos estudos da linguagem, no Ocidente, o conceito de
língua como um sistema de valores puros, sem qualquer intervenção
exterior, proposto por Ferdinand de Saussure, no final do século
XIX, ainda representa uma verdade normalizada para muitos
pesquisadores, professores e estudantes da área de Letras. Não resta
dúvida, no entanto, que desde a publicação do “Curso de Linguística
Geral” em 1916, pelos discípulos do mestre genebrino, esse conceito
começou a ser contestado. De alguma forma, no entanto, todos
nós que passamos pelos cursos de Letras, fomos afetados por essa
posição política estabelecida pela suposta neutralidade da língua e
da ciência.
No âmbito dos estudos discursivos, nas mais diferentes
vertentes, não faltam críticas ao método proposto por Saussure,

72
Sumário

principal referência da primeira geração de abordagens teóricas


estruturalistas, que estabeleceu as bases científicas da linguística
como um campo de saber autônomo. Mais especificamente para os
estudos discursivos foucaultianos, como proposto em “Arqueologia
do Saber” (FOUCAULT, 2005), o conceito de discurso é bem mais
abrangente que o de língua e sua análise envolve os enunciados,
os sujeitos e as suas condições de possibilidades históricas. Em “As
Palavras e as Coisas” (1966/2006), assim como em muitos ditos e
escritos de Michel Foucault, há um grande esforço para mostrar
como de diferentes formas o sujeito se constitui pela linguagem
e reiteradas vezes o conceito de língua proposto por Saussure é
refutado. São dois campos epistemológicos opostos que ainda hoje
demarcam as divisões na área dos estudos da linguagem.
De certa forma, é ancorada nas próprias discussões
propostas em “Arqueologia do Saber” (2005), que compreendo
o governo da língua e percorro um caminho diferente. A língua
não é tomada na perspectiva saussuriana, mas sim, em sua
complexidade discursiva, no jogo da história, agenciada, sobretudo,
pelo dispositivo colonial e suas associações. Nessa perspectiva, as
relações de poder e as práticas de linguagens em que as línguas
estão envolvidas, seus aspectos históricos, religiosos, econômicos e
ou políticos devem, necessariamente, ser considerados, da mesma
forma como os processos de subjetivação e de resistência também
precisam ganhar relevo.
Não se trata de compreender a língua como estruturas
linguísticas ou gramaticais, mas sim de mostrá-la com suas
estratégias, que envolvem o corpo e suas formas de vida, num espaço
biopolítico de disputa de poder.

Nosso interesse, ao mostrar como o corpo foi investido de poder


ao longo de nossa colonização, foi verticalizar a história tácita
das políticas linguísticas no Brasil para além de leis ou decretos,
compreendendo-a com suas normalizações insuspeitas, em seus
cotidianos espaços de poder. Da escola jesuítica ao Diretório de
Pombal no período colonial, da criação dos grupos escolares e das

73
Sumário
escolas normais após Independência e sua ampliação na Primeira
República, há uma história que subalterniza saberes e cosmologias,
alimenta a diferença colonial e continua se atualizando de forma
bastante potente. Entendemos essa intensa movimentação como o
governo da língua (NEVES; GREGOLIN, p. 6, 2021)

Há uma série de pesquisas atuais, no âmbito dos estudos


discursivos foucaultianos, voltadas a analisar o governo da
língua, sobretudo as tecnologias sociais que impuseram a língua
portuguesa no Brasil, com destaque para as ações da igreja católica,
de Marques de Pombal e seu Diretório dos Índios, a imposição do
português na Amazônia pós-Cabanagem, a atuação das escolas no
período republicano, no sentido de impor um modelo eurocêntrico
de língua, as determinações de Getúlio Vargas em estabelecer o
monolinguismo no Brasil, as dificuldades de alunos indígenas em
relação à língua portuguesa. São discussões que gradativamente
estão se ampliando e se firmando como um campo de investigação.
Nesse capítulo, na primeira parte há uma discussão sobre
governo da língua como um campo de investigação para os estudos
discursivos foucaultianos e logo na sequência, uma visada numa
perspectiva totalizante sobre as línguas no mundo, considerando,
sobretudo os aspectos políticos e econômicos da atualidade, que
envolvem a indústria cultural e o movimento das redes sociais
na web. Logo depois, são feitas referências mais específicas sobre
o mundo lusófono, seu caráter imperialista de imposição do
português, sua posição no número de usuários de internet. Esses
cenários contribuem bastante a compreender as tecnologias sociais
imbricadas com o governo da língua no planeta e como ele se
construiu historicamente.
Na parte final, como em 2022, não existem dados disponíveis
atualizados sobre as línguas indígenas faladas na Amazônia ou
no Brasil, em função da não realização do Censo de 2020, analiso
uma situação mais específica sobre as línguas indígenas faladas no
estado do Pará. Atualmente, só nesse estado, foram mapeadas 34
línguas indígenas e existem 13 povos isolados, cujas línguas não

74
Sumário

são conhecidas. As análises são baseadas nos resultados do projeto


Retratos do Contemporâneo (NEVES, 2021), que procurou visibilizar
o biopoder a que os corpos dessas sujeitas e sujeitos indígenas foram
submetidos, os processos históricos por que passaram suas línguas
e cosmologias e suas estratégias de resistências às imposições das
línguas imperialistas, para chegarem ao contemporâneo.

De políticas linguísticas ao governo da língua


Um campo de investigação

Quando uma sociedade se organiza e estende as suas relações de contato,


intercâmbio e dominação sobre outras sociedades, cultural e linguisticamente
diferentes, as línguas desempenham função relevante, tanto para organizar a
dominação e a hegemonia, quanto para resistir a elas.

Bessa Freire
Na atualidade, muitas verdades construídas pelo dispositivo
colonial continuam sendo respaldadas pelas pesquisas realizadas
nas universidades brasileiras. Muitas vezes, a pesquisa com línguas
indígenas e africanas atualiza as práticas jesuíticas do século XVI,
pois não visibiliza o lugar de enunciação desses povos. Certamente,
no entanto, a presença de pesquisadores indígenas e africanos, um
processo que se intensificou nos últimos anos, já está fazendo a
diferença e vai contribuir para multiplicar as versões das verdades
sobre as histórias de suas línguas.
Independente das teorias linguísticas ocidentais, desde o
início da colonização, até os nossos dias, as populações colonizadas
se percebem em fronteiras linguísticas e políticas acentuadamente
belicosas. Da mesma forma, nas práticas cotidianas de quem está
no mercado internacional, o plurilinguismo se estabelece como uma
realidade para os grandes executivos. Durante muito tempo e ainda
hoje, uma boa parte dos estudos da linguagem silencia o conflito e a
necropolítica linguística nas regiões de contato e parece ignorar as
exigências do mercado internacional.

75
Sumário

O agenciamento das políticas linguísticas esteve no seio


da colonização e mesmo depois da independência política, ele fez
parte das estratégias governamentais. O dispositivo colonial se
reposicionou todas as vezes em que as emergências históricas assim
demandaram, mas só há pouco tempo, a partir da segunda metade
do século XX, os estudos desses movimentos ganharam mais
visibilidade no Ocidente. Datam da década de 1960, os primeiros
estudos sobre políticas linguísticas e eles se pretendiam fiéis a uma
ciência supostamente técnica e neutra. Aparecem como subárea da
sociolinguística e tomam como corpus de observação o estudo das
situações linguísticas de contato.
Em tese, esses estudos se diziam indiferentes às relações
de poder em que as línguas estavam envolvidas, mas essa posição,
quase sempre, reforçava o dispositivo colonial. Sem considerar
os processos de apagamentos, vários estudiosos europeus e seus
seguidores pelo mundo vão criar definições hierarquizantes como
crioulo e pidgins, que abordam de forma pacífica as “misturas
de idiomas”. O objetivo principal dessas pesquisas, ainda muito
recorrentes nos departamentos de Letras no Brasil, passou a
ser a descrição da fala de indivíduos bilíngues, preocupadas em
identificar como as situações de contato podem ser percebidas
linguisticamente pelo aumento de palavras de empréstimos,
alterações fonológicas e gramaticais, a ampliação do bilinguismo e
os seus diferentes formatos.
Embora supostamente produtiva essas definições, do
ponto de vista técnico, quando confrontadas nas fronteiras das
terras indígenas, ou colocadas diante das exigências linguísticas
dessa nova fase da globalização, elas não podem desconsiderar
as relações de poder e o processo nada pacífico que envolve o
contato entres as línguas, nem tampouco os regimes de governo
a que foram e são submetidas. As pesquisas em sociolinguística
pelo mundo se multiplicaram, não se limitaram a essa perspectiva
restrita, ampliaram seus métodos e introduziram outra perspectiva
epistemológica, que implicou necessariamente numa definição de
língua para além das estruturas linguísticas internas.

76
Sumário

No Brasil, depois da última ditadura civil-militar (1964-


1985), as discussões propostas por Paulo Freire e seu compromisso
com a situação e a transformação das populações oprimidas,
somadas aos avanços consideráveis da antropologia brasileira
no sentido de visibilizar os processos políticos e econômicos nas
fronteiras das terras indígenas, favorecem a emergência de novos
olhares sobre as línguas faladas e interditadas no Brasil. Livros
como O texto na sala de aula: leitura e produção, (1984), organizado
por Wanderley Geraldi, Terra à vista: Discurso do confronto: velho
e novo mundo (1990), de Eni Orlandi e Preconceito linguístico: o
que é, como se faz (1999), de Marcos Bagno se espraiaram por
todas as regiões do país e produziram fissuras no discurso
sobre o monolinguismo da língua portuguesa, visibilizaram
o distanciamento entre as diferentes realidades linguísticas
brasileiras e a sala de aula e por extensão, abriram novas
possibilidades de pesquisa na área da linguagem.
Rio Babel (2003), de José de Ribamar Bessa Freire inaugura
um novo olhar para as línguas indígenas na Amazônia. A história do
Nheengatu é narrada de forma muito vertical, numa espacialidade
pan-amazônica, espraiada por séculos de contato e determinada
por diferentes ditames políticos e econômicos. Pela primeira vez
uma pesquisa apresentava a história social das línguas indígenas,
identificando diferentes acontecimentos de apagamentos e de
resistência dos povos indígenas. Sem dúvida, uma das principais
referências para pensar o governo das línguas no Brasil e no mundo.
O dispositivo colonial, como todo dispositivo de poder e
saber, produz dentro de suas estruturas a sua própria contradição
e cria possibilidades de resistências. Por outro lado, já sabemos
que não existe poder absoluto, mas sim relações de poder, que, a
depender dos sujeitos, podem produzir uma desordem no discurso.
As décadas seguintes à promulgação da Constituição Federal de
1988 não transformaram as estruturas racistas e patriarcais da
sociedade brasileira, mas abriram novas possibilidades no fazer
acadêmico e foram obrigadas a reconhecer como autorizados novos
lugares de enunciação.

77
Sumário

A presença dos negros e depois dos povos indígenas


nas universidades começou a desalojar alguns redutos de poder
instituídos no Estado brasileiro. Ainda que num processo muito
inicial, os próprios negros e indígenas que chegaram à conclusão de
cursos superiores e mesmo na pós-graduação, começam a se autorizar
como enunciadores de sua própria história e podem contestar o lugar
dos pesquisadores neutros. Não se trata, no entanto, de um processo
pacífico, ao contrário, há uma grande resistência de setores ditos
mais tradicionais e conservadores da sociedade brasileira. A eleição
de Jair Bolsonaro também traduz esse descontentamento com a
popularização do Ensino Superior. A redução nos investimentos
em ciência e educação representam uma refração nesse processo de
emancipação racial.
Qualquer governo, para existir, pressupõe uma ordem a
ser obedecida, formas de controle, estratégias de punição a quem
não a cumprir e o mais importante, a produção da normalização
de seus procedimentos (MICHEL FOUCAULT,1999). A imposição
das línguas europeias em suas colônias, ainda que seja um processo
bastante heterogêneo, seguiu alguns protocolos, desde o início,
e ainda hoje mantém algumas regularidades. Chama atenção a
aceitação das línguas europeias como línguas nativas dos povos do
continente americano. A escrita, a escola, a burocracia, a cidades
das letras se impuseram como representantes de uma racionalidade
superior e as línguas indígenas assim como as de matrizes africanas
foram apagadas ou mesmo negadas. Há muitos relatos de que, para
sobreviver, tanto indígenas como africanos foram obrigados a se
calar e falar a língua do colonizador.
Um acontecimento recente, envolvendo uma turma de
licenciatura em Letras da Universidade Federal do Pará e um aluno
angolano, que realizava intercâmbio, traduz os desdobramentos das
estratégias do governo da língua no Brasil. Quando começaram as
aulas, o rapaz perguntou, aos alunos de sua turma, qual era a língua
nativa falada por eles e todos responderam língua portuguesa. Ele
então insistiu mais uma vez em saber qual era a língua nativa e não

78
Sumário

a língua oficial, mas a turma toda não entendeu a pergunta, assim


como boa parte da população brasileira não entenderia.
A pergunta desnaturalizava uma verdade muito bem
construída historicamente. Como a nossa língua nativa não é o
português? A ordem estabelecida entre nós normalizou que a nossa
língua nativa é o português, embora seja nativa de Portugal. O
aluno angolano vem de um país cuja língua oficial é o português,
mas na Angola, diferente do que acontece no Brasil, muitas outras
línguas são reconhecidas pela população e apenas seis por cento dos
angolanos falam português e uma língua nativa do país. Apesar dos
violentos processos a que foram expostos, nos países africanos de
colonização lusitana, as línguas nativas não foram invisibilizadas.
Na percepção de um aluno angolano, que veio fazer um
intercâmbio numa universidade na Amazônia, uma região conhecida
por seus povos indígenas, o normal seria conhecer estudantes
pelo menos bilíngues. Esse acontecimento mostra como nós
normalizamos os discursos coloniais, a tal ponto que a pergunta do
aluno angolano pareceu infundada mesmo para uma turma de Letras.
Ninguém está fora das teias do discurso e mesmo as populações
subalternizadas pelo dispositivo colonial podem tomar a negação da
pluralidade linguística como uma verdade inquestionável.

O mandarim, o espanhol e uma ordem mais


global

Hoje, os usos das línguas e de todas as práticas de linguagem


que as envolvem compõem um universo bastante plural e fraturado,
um espaço de lutas, conquistas e resistências. A partir dos diversos
processos de globalização iniciados com as Grandes Navegações do
século XVI, de forma impositiva, aconteceu a expansão de línguas
e culturas europeias a todos os continentes, como franca estratégia
imperialista. Com outros meandros e com os mais variados
interesses, a expansão linguística permanece em vigor.

79
Sumário

Essa chamada de estágio para falantes de mandarim,


disponibilizada no Portal da Unicamp, no site do Instituto Confúcio,
em 2021, representa um bom exemplo da movimentação política
das línguas em nossos dias.

Figura 1: Vaga de estágio em mandarim

Fonte: Disponível em: <https://www.institutoconfucio.unicamp.


br/category/oportunidades/empregos/>
Acessado em 23/08/2021, às 9h.

Pelo menos nos últimos dez anos, essa exigência passou


a ser recorrente em chamadas de estágios e empregos nas
empresas transnacionais. A ascensão da China como um grande
império econômico, a recusa das empresas chinesas em realizar as
transações na língua inglesa, demonstra os interesses em expandir
as fronteiras da principal língua chinesa, são fatores decisivos para
a emergência histórica desse comportamento do mercado. Não há
como compreender o mandarim apenas como estruturas linguísticas,
da mesma forma como não podemos desconsiderar que essa parte
material da língua existe e se impõe diante da exigência chinesa. O
anúncio da vaga de estágio evidencia as relações de poder e saber em
que essa língua está envolvida.

80
Sumário

A criação de núcleos do Instituto Confúcio, principal


irradiador de língua mandarim e da cultura chinesa, espalhados
pelo mundo ocidental, quase sempre associados às universidades,
é uma significativa estratégia do disposto colonial. Em outro
desdobramento desse governo das línguas administrado pelo
governo chinês, desde os anos de 1990, nas escolas e universidades
chinesas, o espanhol passou a ser a segunda língua estrangeira
mais falada no país. Os negócios da China com a América Latina e
a estratégia de aproximar a importância do espanhol a do inglês, no
país, definem o incentivo a essa língua.
Outra demonstração dessas relações pode ser identificada
nos interesses de mercado da Netflix, uma das maiores companhias
de streaming, (tecnologia que envia informações multimídias por
transferência de dados, pela internet), que desde 2016, embora não
tenha conseguido entrar no mercado chinês, começou a produzir
conteúdo em mandarim, para atender aos falantes dessa língua que
não moram na China.
Empenhado em visibilizar o valor econômico do espanhol,
o Instituto Cervantes investiu numa metodologia de pesquisa capaz
de indicar a receita gerada pelo ensino da língua e da indústria
cultural e criativa (redes sociais, cinema, televisão, rádio, games,
livros didáticos, livros de ficção, exposições de arte, turismo,
traduções, arquivos públicos, bibliotecas) que gira em torno dela. A
pesquisa chegou ao surpreendente indicador de 16,7 % do Produto
Interno Bruto da Espanha em 2010. O gráfico a seguir mostra os
indicadores e os percentuais resultantes da pesquisa.

81
Sumário

Gráfico 1: Porcentagem do Valor Agregado Bruto


relacionado ao espanhol

Fonte: (CAÑADA; JAVIER GIRÓN, 2010).

Educação e indústria editorial são os dois setores com os


maiores percentuais de valores agregados, seguidos pelos serviços
culturais (museus, bibliotecas, turismo e outros) e correios e
telecomunicações (cinema, rádio, televisão, internet e outros). A
partir dessa perspectiva, embora em condições diferentes, também
podemos olhar para o processo de imposição e da atualização do
discurso sobre o monolinguismo da língua portuguesa no Brasil
Essa metodologia, embora seja voltada especificamente
para uma língua globalizada como o espanhol, possibilita a identi-
ficação de várias práticas de linguagem e de circulação das línguas.
Naturalmente, outras realidades vão produzir resultados bem dife-
rentes, mas essa abordagem permite também colocar as práticas de
linguagem e as diferentes cosmologias que elas constituem dentro
do universo da globalização, com seus saberes locais e globais.
O exemplo espanhol nos mostra que como categoria
simbólica e econômica, a língua deve ser compreendida como
um importante mecanismo de poder. Nas mãos do Estado ou de
setores sociais organizados, esse controle pode se tornar uma arma

82
Sumário

silenciosa e excludente, dependendo das emergências históricas a


que esteja associada, mas também pode representar o seu contrário.

Cenários da língua portuguesa e suas fronteiras


linguísticas

Ai, esta terra ainda vai cumprir o seu ideal


Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir o seu ideal
Ainda vai tornar-se o Império Colonial

Chico Buarque
Em 01 de janeiro de 2016, passou a vigorar, no Brasil,
a mais recente reforma ortográfica da língua portuguesa e todos
os dicionários, gramáticas, manuais didáticos, bíblias e livros, de
forma geral, com as normas anteriores, ficaram defasados. A quem
interessa mais essa reforma? A gigantesca indústria brasileira do
livro didático comemorou as novas demandas de edições de livros
revistos e atualizados. Muitos vídeos foram postados no YouTube,
para explicar o fim do trema e as novas regras do hífen, por exemplo.
Mais uma vez, ganhou fôlego o impossível e colonial desejo de
unificar o português em todo o mundo lusófono!
Atualmente, o Instituto Camões e a Comunidade dos Países
de Língua Portuguesa- CPLP são as duas instituições portuguesas
responsáveis por estabelecer redes de colaboração entre os países
atravessados pela lusofonia. As cooperações econômicas e a condição
do português, como língua oficial, são determinantes para definir os
países membros. Segundo a CPLP, uma hipotética unificada língua
portuguesa é falada em nove países, ainda que em alguns ela represente
apenas a língua da administração pública e das universidades. São
realidades históricas e linguísticas muito diferentes.

83
Sumário

Figura 2: Países membros da CPLP

Fonte: https://www.cplp.org/id-2597.aspx.

No Brasil, a migração intensa de africanos escravizados


determinou bastante a imposição do português em todas as
regiões do país, afinal, a condição em que viveram lhes obrigou
a falar a língua do colonizador. O contingente populacional de
africanos foi tão intenso no Brasil colônia que chegou a dar origem
a uma Língua Geral Banto, forjada pelos jesuítas no século XVII,
na Bahia. Em países da América do Sul, onde isso não aconteceu,
como no Paraguai, hoje, há duas línguas oficiais, o espanhol e
o Guarani. Sem a presença africana, essa língua portuguesa, de
tantos sotaques e de tantas dores, padronizada, a princípio pela
escrita e depois pelos veículos de comunicação, dificilmente se
tornaria hegemônica no Brasil e assim como aconteceu nos países
africanos, para além das fronteiras das terras indígenas, onde,
supostamente, concentra-se a pluralidade linguística do país, a
população não falaria apenas o português.
Outros aspectos também determinam as diferenças entre
os países lusófonos: a extensão territorial, o tamanho da população

84
Sumário

e os processos de independência política, que na África datam


do século XX. Em Angola, em meio a muitas crises, apenas em
1975 veio a independência de Portugal. Em termos de política
linguística, esse acontecimento não vai produzir grandes efeitos,
pois no modelo de colonização lusitana, o pouco incentivo à
educação, sem o fortalecimento das Instituições de Ensino Superior,
a obrigatoriedade do português nas escolas e a forte presença das
igrejas deixam pouco espaço para as línguas locais.

Nos dias de hoje, a realidade face à utilização ou não das línguas


africanas no ensino {em Angola] é caracterizada pelos seguintes três
aspectos: monolinguismo de origem europeia; bilinguismo de origem
afro-europeia; monolinguismo de origem africana. As duas primeiras
representam as situações existentes nos sistemas escolares africanos,
sendo o monolinguismo africano uma excepção (ZAU, 2018).

Nesse registro do pesquisador angolano, está descrita uma


realidade semelhante à das escolas indígenas no Brasil. O que seria,
entre nós, um monolinguismo de origem americano? Mesmo antes da
colonização, pela extensão do que hoje se configura como território
brasileiro, não havia como pensar em uma língua, ou mesmo um
único tronco linguístico. Também no continente africano, ou mesmo
em Angola, não existe e nunca existiu o monolinguismo, mas no
comentário de Zau (2018), a perspectiva é nacional, impossível de
ser pensada num país como Brasil, que reconhece o português como
língua nativa.
Na web, esse espaço privilegiado de novas práticas de
linguagem, as relações de poder econômico, associadas sobretudo
à ampliação do número de usuário, determinaram que grandes
plataformas digitais (Orkut, Facebook, WhatsApp, YouTube,
Twitter, Instagram), a princípio disponíveis em inglês, espanhol,
francês e alemão, também criassem versões em português, por ser
a quinta língua mais usada na internet, com mais de 100 milhões
de usuários. O quadro abaixo mostra a distribuição das línguas
majoritárias na internet.

85
Sumário

Pelos índices de inclusão digital dos países cujos usuários


se utilizam da língua portuguesa, há a expectativa desse percentual
crescer e ela passar a ser a quarta língua mais usada na internet,
apenas superada pelo inglês, mandarim e espanhol. O maior contin-
gente de usuários que usa o português está no Brasil e isso altera ou
amplia os lugares de saber e poder.
Quadro 1: Usuários de língua portuguesa na internet

Internet Penetration Users


Population Facebook
COUNTRIES Users (% Popula- %
(2018 Est.) 31-Dec-2017
31-Dec-2017 tion) Table
Angola 30,774,205 5,951,453 19.3 % 3.5 % 3,800,000
Brazil 210,867,954 149,057,635 70.7 % 88.1 % 139,000,000
Cabo Verde 553,335 265,972 48.1 % 0.2 % 240,000
Guinea Bissau 1,907,268 120,000 6.3 % 0.1 % 110,000
Mozambique 30,528,673 5,279,135 17.3 % 3.1 % 1,800,000
Portugal 10,291,196 8,015,519 77.9 % 4.7 % 5,800,000
São Tome &
208,818 57,875 27.7 % 0.0 % 52,000
Principe
Timor Leste 1,324,094 410,000 31.0 % 0.2 % 390,000
100.0
TOTAL 286,455,543 169,157,589 59.1 % 151,192,000
%

Fonte: https://www.internetworldstats.com/stats20.htm.

Nesse quadro, não aparece Guiné Equatorial e há uma


controvérsia se de fato há algum percentual da população que fale
o português, que, embora seja uma das línguas oficiais do país,
para alguns institutos de pesquisa, não deveria ser um país consi-
derado lusófono.
Embora o discurso do monolinguismo esteja fortemente
estabelecido como verdade no mundo lusófono, sabemos que
não falamos a mesma língua. As diferenças são tão grandes que
demandam traduções do português do Brasil, para de Portugal e
vice-versa. Atualmente, as maiores editoras de livros, os maiores
portais de comunicação, as maiores produtoras de audiovisuais e de
conteúdo para streaming, em língua portuguesa, estão no Brasil. As
telenovelas da Rede Globo e a nossa música popular impuseram, de

86
Sumário

certa forma, um padrão linguístico não só no Brasil, mas em todo


o universo lusófono. Esses levantamentos apresentados visibilizam
as estratégias de governo da língua portuguesa, as atualizações do
dispositivo colonial e de como ele se reconfigurou, porque o capital
também muda de território e amplia seu alcance.

Retratos do contemporâneo: as línguas


indígenas no estado do Pará

No último censo realizado pelo IBGE em 2010, a inclusão


de dados sobre os povos indígenas e suas línguas representou um
avanço em termos de visibilidade da situação, mas ainda com alguns
problemas. Em relação ao censo que deveria ser realizado em 2020,
havia uma expectativa sobre o amadurecimento da forma de coleta
desses dados, pois há um desencontro entre os dados revelados pelo
censo de 2010, que registrou 305 povos indígenas e 274 línguas
indígenas e os registros feitos pelos pesquisadores, que falam da
existência de aproximadamente 180 línguas indígenas no Brasil.
Por determinação do Supremo Tribunal Federal, o governo
federal será obrigado a realizar o censo em 2022, mas o orçamento
muito limitado e todas as interdições impostas pelo executivo federal
não são animadoras em relação aos resultados dessa investida. Há
inclusive um retrocesso em relação aos dados que seriam registrados,
animado pela vontade política do grupo ligado a Jair Bolsonaro.
Diante desse jogo político e das indefinições dos dados estatísticos,
nasceu o projeto Retratos do contemporâneo: as línguas indígenas na
Amazônia Paraense, financiado pelo Edital de Patrimônio Imaterial
da Lei Aldir Blanc, com o objetivo de conseguir saber, pelo menos,
quantas línguas indígenas eram faladas no estado. Para isso, fizemos
uma articulação com as universidades federais para envolver os
alunos indígenas universitários.
O estado do Pará, hoje, faz parte de uma região maior,
denominada de Pan-Amazônia, constituída por territórios de nove
países e localizada ao norte da América do Sul. Essa região envolve

87
Sumário

todo o bioma amazônico e a bacia hidrográfica amazônica, com a


exuberância de seus rios, uma espécie de apoteose da água doce
disponível no planeta. A colonização, iniciada no final do século
15, interferiu e continua interferindo na natureza e nas práticas
de seus povos originários. Nesse intenso e duradouro processo de
silenciamento, as estatísticas representam um papel fundamental,
sobretudo no contemporâneo, quando definem em grande medida as
políticas públicas. Muitos desses povos, abrigados no seio da floresta,
frequentemente são ignorados, não constam em dados demográficos
ou ainda, são tomados como uma espécie de população regional
sem ancestralidade, daí enunciados como caboclos e ribeirinhos
comumente serem utilizados para desqualificá-los como indígenas.
Em relação às línguas indígenas, existe um processo ainda
em curso bastante perverso em que o enunciado “perderam sua
língua” representa uma espécie de verdade sacralizada, algumas
vezes inclusive respaldada pelos estudos linguísticos. Tomando a
língua apenas como estruturas linguísticas isoladas, uma parte dos
linguistas pelo Brasil continua ignorando os processos de fraturas
e de silenciamento forçado a que essas línguas foram submetidas.
Quando pensamos a língua como uma prática cultural, como
tradução de uma cosmologia, que envolve narrativas, rituais e a
produção das identidades, sem dificuldade, compreendemos as
estruturas linguísticas apenas como parte desse universo.
A quem interessa uma concepção de língua tão restrita no
âmbito das pesquisas linguísticas? Por que o empenho em decretar
a morte das línguas indígenas? Hoje no Brasil e no continente
americano de uma forma geral, há um movimento intenso entre
diferentes povos indígenas voltado à valorização e à revitalização
de suas línguas. Não se trata de querer inscrever essas línguas em
práticas culturais do passado, ignorando o fluxo da história, mas
sim de retomar outras formas de vida, de fortalecer identidades e de
visibilizar a pluralidade do contemporâneo.
Para chegar à realidade linguística dos povos indígenas, no
projeto Retratos do Contemporâneo, nas primeiras ações, a partir

88
Sumário

do diálogo com eles, organizamos um tutorial com 03 vídeos e


01 Tutorial escrito, em formato PDF para orientar as gravações.
Executado durante o período da pandemia, entre março e setembro
2021, os principais resultados desse projeto, foram materializados no
Mapa Interativo das Línguas Indígenas no estado do Pará (NEVES,
2021) e no documentário “Entre rios e palavras: as línguas indígenas
no estado do Pará” (NEVES, 2021).
A participação dos estudantes indígenas foi fundamental,
bastante comprometidos com o significado político do projeto, eles
realizaram grande parte das gravações com seus próprios celulares,
em suas aldeias. Dessa forma, construímos um grande arquivo de
narrativas de contato, narrativas cosmológicas, histórias de vida,
músicas, exibição de festas ou rituais em português e nas línguas
indígenas. Aqui, vamos fazer o recorte de três momentos da pesquisa.
O projeto nos apresentou a história dessas línguas e dos
processos, muitas vezes, belicosos, a que essas populações foram
expostas. Em suas narrativas, com muita frequência apareceram
os acontecimentos mais recentes. No Pará, vários povos passaram
a ser contactados, sistematicamente, depois da criação da FUNAI,
pelos militares em 1967. São acontecimentos recorrentes entre eles,
que remetem à última ditadura civil-militar. No documentário Entre
rios e palavras: as línguas indígenas no estado do Pará (NEVES, 2021),
a Cacica Kátia Akrãtikatêjê relata o que aconteceu com seu povo:

Quando o meu povo foi colonizado pelas igrejas, por missionários, por
outras pessoas, nós tivemos que deixar de falar nossa língua, porque a
gente falava a nossa língua. Então, nós fomos obrigados, nossos pais,
nossos avós, nossos tios, para falar o português. Eu vi a preocupação do
meu pai, meu pai estava com lamparina. 03 da manhã, meu pai estava
acordado, estudando para aprender a falar o português, escrever.

Esse processo não se limita às estruturas gramaticais de


uma língua, é muito mais complexo e tem como objetivo interferir
nas práticas identitárias, num jogo de biopoder em que os corpos

89
Sumário

indígenas perdem o direito à ancestralidade podem mesmo passar a


se reconhecer como inferiores. Kátia Akrãtikatêjê explica o que viveu:

Quando eu fui estudar, eu já tinha 9 anos para 10 anos. Eu fui estudar


na escola do kupen e lá eu pegava beliscão, porque a professora dizia
que eu falava gíria, que estava errado, que eu tinha que aprender a falar
direito e a língua, que o que eu falava não era língua de cristão. Então
assim, eu pensava até que nós éramos um ET, uma máquina. Sei lá,
meu Deus! O que que nós somos então? Eu me envergonhava, eu tinha
vergonha de mim. Eu dizia “Meu Deus, eu não queria mais ser dessa
família!” Então aquilo foi imposto pra nós.

Há um movimento político de conscientização entre os povos


indígenas do significado de suas línguas ancestrais, dos processos
históricos a que foram submetidos para deixá-las no apagamento e o
grande desejo de tomá-las novamente como suas línguas identitárias.
Para Kátia Akrãtikatêjê:

Hoje nos damos conta: “Poxa, se nós não deixasse de falar nossa
língua, hoje nós era ainda mais forte!” Hoje nós discutimos como que
nós vamos ensinar nossos filhos. Tem que ser praticando e deixando
a vergonha de lado, porque às vezes os nossos próprios filhos têm
vergonha, a gente tem vergonha, até dentro da própria comunidade,
com medo de falar e errar.

Essa narrativa dos povos Gavião é muito semelhante ao


que aconteceu na região do Baixo Tapajós, onde está em curso uma
revolução com a língua Nheengatu Oriental, que faz parte da grande
família linguística Tupi-Guarani e pertence ao trono linguístico
Tupi. Os povos indígenas iniciaram um processo de reafirmação
de suas identidades étnicas no fim do século XX, a partir de uma
metodologia sofisticada, passaram a reinscrever a língua Nheengatu
no seu cotidiano como sua língua indígena ancestral.
No Baixo Tapajós, há 13 povos indígenas, dos quais 12
retomaram o Nheengatu como sua língua. Representados pelo

90
Sumário

Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns – CITA, os povos do


Baixo Tapajós são: Arapium, Apiaká, Arara Vermelha, Borari,
Jaraki, Maytapú, Munduruku, Munduruku Cara Preta, Kumaruara,
Tapajó, Tupaiú, Tupinambá e Tapuia (VAZ FILHO; SILVA, 2019).
Atualmente, muitos professores indígenas, que também são alunos
da Universidade Federal do Oeste do Pará-UFOPA, estão nas
escolas, atuando como professores de línguas. É de Susan Arapiun
uma das cenas mais bonitas registradas no documentário e no mapa,
as crianças Arapiun cantando em Nheengatu na escola.
Outro acontecimento muito especial e surpreendente
das pesquisas realizadas pelos estudantes indígenas foi conhecer
a história da língua Mawayana, que pertence à família Aruak.
Não sabemos ao certo quantos falantes dessa língua vivem entre
os Way Way, na Terra Indígena Trombeta-Mapuera e na Terra
Indígena Nhamundá-Mapuera. O objetivo desse projeto não previa
identificar o número de falantes, mas sim registrar os usos sociais
das línguas indígenas faladas no estado do Pará em 2021. E nesse
sentido, saímos a busca de narrativas, de músicas, de registros de
festas e rituais, colocamos nossos olhos nos usos sociais e políticos
das línguas.
Nas pesquisas desenvolvidas para o projeto, nos chegaram
as histórias contadas por Kayawa Mawayana. Seu neto Iolandino
Xayukuma Wai Wai, estudante da UFOPA, gravou um vídeo com
a história de sua avó. Na região onde vivem, ela é a última falante
da língua Mawayna e sua família desconhece se ainda há outras
pessoas que falem essa língua. Sua avó conta que perdeu todos os
parentes e amigos e que ficou muito triste, porque os mais novos
não aprenderam sua língua. Diante dessa narrativa, pedimos ao
Iolandino para fazer novas gravações com sua avó, mas descobrimos
que ela veio a Santarém para fazer a gravação e retornou para a
Aldeia Mapuera, que fica ao norte de Oriximiná, bem distante de
onde o neto mora.
Ele também nos contou que sua família fez uma coleta para
financiar a vinda de sua avó, pois em nenhum momento ela havia

91
Sumário

sido ouvida pelos não-indígenas. Essa experiência não nos colocou


apenas diante da última falante da língua Mawayna. Ela nos mostrou
que existem sujeitas e sujeitos que vivem suas histórias imersos em
outras formas de vida, mas que são historicamente perseguidos,
expostos ao apagamento de suas culturas e de suas línguas e mesmo
assim resistem e hoje tem bastante consciência dos processos
políticos de resistência impostos por suas línguas ancestrais.
Kayawa Mawayana é uma sujeita e suas palavras não são
apenas estruturas linguísticas. Ela está inserida em uma trama
histórica e sua família não deseja que os saberes de sua língua, de
sua cultura se encerrem nela. Foi seu neto que fez os registros de
suas histórias e foi ele também que as traduziu para o português.
Esse processo, muito antes de nos fazer afirmar que “eles perderam
a sua língua”, ele nos faz acreditar nessa capacidade incrível de
resistência dos povos indígenas e remexe com a nossa condição de
pesquisadora, que poderia se seduzir com a notoriedade de anunciar
a morte de uma língua, mas que prefere não perder a clareza do seu
lugar de enunciação. Eu, assim como Kayawa e Iolandino, falamos
de dentro da Amazônia e sob a ótica do neoliberalismo, falamos
todos nós aqui de um lugar de subalternidade.

Considerações finais

O governo da língua representa um conjunto de políticas


públicas planejadas e executadas por instituições que exercem
o gerenciamento sobre a sociedade e controlam, disciplinam,
normalizam condutas em relação às línguas e a todas as práticas de
linguagem agenciadas por elas. Se no início da colonização os impressos
serviram de suporte e sacralizaram as verdades estabelecidas pelas
línguas europeias, hoje, as definições de corpo e biopoder precisaram
se ampliar, porque os bytes produzem outras formas de racionalidades,
de sentimentos, de emoções, de pertencimento identitário. A web
representa uma grande heterotopia, onde o mapa da Europa deixou

92
Sumário

de ser o centro do planeta e já não são tão mais nítidas as fronteiras


nacionais.
Os institutos de línguas e culturas, espalhados pelo mundo,
materializam seu caráter imperialista. Numa posição contrária, sem
os incentivos das grandes economias, os cursos de Nheengatu, que
ajudaram a promover uma quebra de paradigma no Baixo Tapajós,
continuam a ser ofertados na UFOPA e formando professores
indígenas e agora eles também estão presentes na pós-graduação.
Tomara que inciativas como essas se espalhem por todas as
universidades paraenses e que nossos alunos não tenham como opção
apenas as línguas estrangeiras. Quem sabe um dia, não possa também
haver um instituto de língua e cultura Nheengatu, Munduruku...
No curso da história, a cartografia social e a documentação
das línguas, ou a interdição da visibilidade oferecida por esses estudos,
foram e são decisivas em muitas tomadas de decisão, quer seja para
favorecer projetos de igualdade de direitos linguísticos, quer seja
para lhes retirar o direito à existência. Viver e mostrar ao mundo
o processo de reinscrição do Nheengatu entre os povos indígenas
do Baixo Tapajós ou se anunciar como o linguista responsável pela
descrição de uma língua com uma única falante, são situações que
provocam reações diferentes, entre elas, a desconfiança e muitas
vezes, a admiração pela beleza do morto (CERTEAU, 1995).
Durante a realização da pesquisa do Mapa Interativo
das Línguas Indígenas no Estado do Pará, um dos enunciados
mais frequentes e mais contestados foi o de que os indígenas
haviam perdido sua língua. Quem duvida do jogo político dessa
afirmação? Ela, sem dúvida, traduz a posição de um Estado racista,
com políticas linguísticas que estabeleceram o silenciamento das
línguas indígenas, para, logo em seguida, colocá-las como condição
identitária. Quem não fala uma língua indígena, não deve ser
considerado indígena, um discurso muito recorrente entre os que
defendem o dispositivo colonial. Uma língua não é um pedaço de
papel que cai do bolso, tampouco é apenas uma estrutura linguística.

93
Sumário

Nelas vivem as ancestralidades, formas de vidas diferentes, outros


universos culturais, outras temporalidades, outros possíveis.
Não se perde uma língua. Diante da história das línguas
indígenas e africanas, o mais adequado talvez seja afirmar que é
possível matar uma língua. Pode-se matar uma língua, quando
os sujeitos e as sujeitas que se inserem na linguagem a partir
da cosmologia dessas línguas são considerados inferiores, são
perseguidos, são afetados em suas subjetividades. Mata-se uma
língua, quando as lideranças indígenas que defendem formas de vidas
diferentes são assassinadas. Mata-se uma língua, quando ativistas,
indigenistas e jornalistas, cujo lugar de enunciação é o Ocidente,
são assassinados por defenderem as sociedades indígenas. Enfim, a
forma mais potente de se matar uma língua, na contemporaneidade
é a impunidade em relação a crimes contra os direitos humanos, em
defesa do lucro local, nacional e transnacional.

Referências

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Sumário

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95
Sumário

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96
Sumário

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20/03/2022.

97
CAPÍTULO 4

LÍNGUAS, COSMOLOGIAS E CORPOS


RACIALIZADOS: CONVERGÊNCIAS
E GOVERNAMENTALIDADE NO
DISPOSITIVO COLONIAL1
Flávia Marinho Lisbôa

“Enquanto os índios puderam resistir, não aprenderam nem a


ler nem a escrever. Então seria interessante a gente investigar
se quando os índios estão lendo e escrevendo, se já se renderam
ou se ainda estão resistindo”
(Ailton Krenak)

Ao tempo que a escrita apareceu pela primeira vez; parece


ter favorecido a exploração dos seres humanos, mais que sua
iluminação.
Minha hipótese, se correta, nos obrigaria a reconhecer o fato de
que a função primária da comunicação escrita é a de favorecer
a escravidão... Ainda que a escrita não haja sido suficiente para
consolidar o conhecimento, ela foi talvez indispensável para
fortalecer a dominação...
(Lévi-Strauss)

Introdução

Neste capítulo, proponho o olhar sobre a língua nas


estratégias de dominação dos povos originários, o que também

1 Este texto retoma tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em


Letras da Universidade Federal do Pará e que tem versão em livro.
Sumário

se estende aos povos sequestrados de África e escravizados no


Brasil. Defendo a tríade “língua, cosmologia e corpo” como
uma imbricação indissociável no processo de desumanização
desses povos para, consequentemente, legitimar o roubo de seus
territórios e o assassinato e escravidão de seus corpos. Assim, a
estratégia mais eficaz adotada pelo colonizador para essa separação
do corpo da memória ancestral foi o apagamento linguístico. Foi
por meio da eliminação das línguas que se alcançou de forma
tão efetiva a constituição da colônia portuguesa, seguidamente
sociedade brasileira, ao ponto de hoje essa população não ter
dúvidas sobre sermos um país monolíngue (o que não somos) ou
porque nossa língua nacional se chama “portuguesa”, já que uma
língua estrangeira: de Portugal.
Dessa forma, os povos indígenas e negros que conseguiram
sobreviver à eliminação física foram, e permanecem sendo
sistematicamente afastados de suas cosmologias ancestrais para
que esqueçam também sua história e não guardem memória de
outras possibilidades de “ser” diante da estrutura de desigualdades
na atualidade, naturalizada nas materialidades cotidianas da
colonialidade do ser, do saber e do poder. Sempre esteve no enfoque
da dominação colonial incidir na produção de subjetividades dos
sujeitos para apartá-los de suas histórias e cosmologias vigentes
antes da chegada do colonizador. Logo, proponho pensar o governo
da língua (LISBÔA 2019; 2022; NEVES, GREGOLIN, 2021)
como forma de viabilizar a subalternização e homogeneização dos
corpos na constituição de uma nação colonial, o Brasil, ao molde
da figura do colonizador.

Ou seja, o que proponho é pensar a colonização como imprescindível para


a compreensão dos sistemas de opressões que perduram na sociedade,
dado que esse sistema reúne (e resume) no padrão de existência as
idealizações que representam a imagem eurocêntrica do colonizador.
Logo, as exclusões sociais se dão a quem nesse padrão não se encaixa:
homem, branco, cristão, detentor de riquezas, heterossexual...etc
[...] Ou seja, esse padrão eurocêntrico é liberal e se fundamenta no

100
Sumário
racismo, no heterossexismo, no machismo, e na exclusão das camadas
mais pobres e de povos que propõem outros projetos de sociedades não
alinhados com o projeto neoliberal. (LISBÔA, 2022, p. 174)

Para essa discussão, logo, é inevitável passar pela


perspectiva decolonial, uma vez que se trata de considerar redes
de saberes, corpos e línguas subjugadas em um projeto hierárquico
de sociedade, em curso desde a colonização desse acampamento
chamado Brasil (Krenak). Nisso, penso o papel preponderante
da língua nos processos de racialização e do epistemicídio como
processos imbricados, uma vez que a língua é o canal, o cursor
que viabiliza a materialização da cosmologia e, num fluxo reverso,
reatroalimenta os sentidos cosmológicos na interação por meio
dela nas mais diversas práticas de sociabilidade entre os sujeitos.
Nesse sentido é que a discussão deste capítulo se desenvolve,
no de desenhar a colonialidade que constitui a língua e a manifestação
imperativa dessa “colonialidade linguística” (LISBÔA, 2019; 2022)
em espaços elitizados (como o é a universidade), evidenciando a
língua como ferramenta de dominação do poder hegemônico nos
territórios colonizados.

Colonização, território e a hierarquização das


raças-saberes-línguas

A experiência da colonização europeia tem sido


problematizada por pensadores localizados nessas ex-colônias,
sobretudo a partir dos anos 1960. Da partir da perspectiva do
colonizado, esses intelectuais retomam a história dos territórios
saqueados e que permanecem envoltos em uma lógica sistêmica de
dominação eurocêntrica, sustentando a colonialidade do poder que
tem como projeto a hierarquização racial no mundo, espraiada com
a globalização e potencializada com os refinamentos estratégicos do
capitalismo.

101
Sumário
Desse ponto de vista, as relações intersubjetivas e culturais entre
a Europa, ou, melhor dizendo, a Europa Ocidental, e o restante do
mundo, foram codificadas num jogo inteiro de novas categorias:
Oriente-Ocidente, primitivo-civilizado, mágico/mítico-científico,
irracional-racional, tradicional-moderno. Em suma, Europa e não-
Europa. Mesmo assim, a única categoria com a devida honra de ser
reconhecida como o Outro da Europa ou ‘Ocidente’, foi ‘Oriente’.
Não os ‘índios’ da América, tampouco os ‘negros’ da África. Estes
eram simplesmente ‘primitivos’. Sob essa codificação das relações
entre europeu/não-europeu, raça é, sem dúvida, a categoria básica
(QUIJANO, 2005, p. 122).

A partir da ideia de “colonialidade” e da noção de


“dispositivo”, tomo o dispositivo colonial2 (LISBÔA, 2019; 2021;
2022; LISBÔA, NEVES, 2019; NEVES, 2015) para analisar a
colonialidade como um sistema normativo eurocêntrico definidor
das estruturas sociais, construído e retroalimentado na aniquilação
de todas as demais formas de existência nos territórios colonizados,
posto que são concorrentes ao projeto de dominação colonial. Pela
premissa colonial de ‘‘civilidade’’, a noção de humano é apartada da
terra e as sociedades que teimam em viver em harmonia com ela
são lidos como “selvagens” sob essa ótica. Essa ideia de humanidade
“suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de
existência e de hábitos” (KRENAK, 2019, p. 12).
Como efeito disso, a exclusão dos povos indígenas, bem
como do povo negro, como cidadãos de direitos perdurou de forma
oficial por toda a nossa história, sendo a constituição de 1988 um
marco em um momento em que outras legislações e acordos também
emergem no cenário internacional. No Art. 231, da constituição,
é onde o Estado brasileiro passa a reconhecer a existência
indígena, bem como seus direitos: “São reconhecidos aos índios
sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos
2 “As materializações do dispositivo colonial se dão nas engrenagens do funcionamento
estrutural da sociedade, tais como: leis, instituições estatais e religiosas, políticas
públicas/ações governamentais, produções midiáticas etc, todas se retroalimentando
com proposições de normalização de um padrão eurocêntrico...” (LISBÔA, 2021, p. 49).

102
Sumário

os seus bens”. Nesse sentido, a Organização Internacional do


Trabalho (1989) também reforça na Convenção n° 169 o direito
dos povos indígenas serem o que são: “... manter e fortalecer
suas identidades, línguas e religiões no âmbito dos Estados nos
quais vivem”. Além desse, podemos citar ainda outros tratados
internacionais nesse mesmo sentido de garantir o direito a existir,
como diferença, pautado em princípios democráticos.

• Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos das


Pessoas Pertencentes a Minorias Étnicas, Religiosas e
Linguísticas (1992);
• Declaração da Conferência Mundial contra o Racis-
mo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intole-
rância Relacionada;
• Declaração Universal da Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO) sobre Diversidade Cultural (2001);
• Convenção Internacional para a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação Racial (1965);
• Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (1966);
• Convenção da UNESCO sobre a Proteção e Promoção
da Diversidade das Expressões Culturais (2005);
• Declaração das Nações Unidas da Segunda Década dos
Povos Indígenas 2005-2015;
• Declaração Universal sobre os Direitos dos Povos
Indígenas (2007).
Tais instrumentos fortalecem as lutas por existir na
diferença, contra homogeneizações eurocêntricas, respeitando as
línguas dos povos indígenas e demais manifestações de sua cultura.
Por outro lado, o dispositivo colonial permanece na atualidade
atualizando formas de invisibilização dessas sociedades. Os efeitos

103
Sumário

do apagamento histórico e as novas formas de violência simbólica


sobre essas sujeitas e sujeitos no hoje são forças desse dispositivo
para dificultar as condições de se estabelecer outras relações
entre essas sociedades e a não-indígena, especialmente quanto ao
aprendizado das suas línguas, seus conhecimentos e suas culturas.
Tal incomunicação se relaciona à exclusão pelos apagamentos
físico e simbólico de todas as diferenças que não se encaixam na
padronização do humano como efeito da colonialidade do ser. As
diferenças não podem ter lugar no projeto colonial e, por isso,
todas elas (diferenças raciais, de gênero, sexualidade, religião, de
saberes) têm sido atacadas.
As ameaças que imperam sobre a existência indígena nesse
sistema de opressão são traduzidas especialmente pelo domínio de
seus territórios. A disputa por domínio territorial e a resistência dos
povos indígenas para proteção de suas terras nesses mais de 500
anos nunca cessou, exemplo disso são as sistemáticas manifestações
de setores políticos e econômicos brasileiros contra a demarcação
dos territórios indígenas e quilombolas, bem como o incentivo a
iniciativas que tem como consequência a invasão dessas terras
demarcadas, como o garimpo ilegal e a desestruturação dos órgãos
de proteção ambiental. No caso dos indígenas, de uma vida livre
em um vasto território ao longo da história, com o “nascimento”
das cidades passam então a ser confinados em TIs, sem contar
os que ainda não tiveram seus territórios resguardados por lei,
vulnerabilizando ainda mais essas populações..
Na atualidade, além de enfrentar o extermínio, tal qual nas
missões coloniais e nas epidemias planejadas (guerras bacteriológicas),
os povos originários precisam ainda lutar contra as armas
institucionais no âmbito governamental e das empresas privadas
que diversificam na burocracia, contratos, convênios, autorizações de
exploração a legitimação das ações de injustiça contra a integridade
física, simbólica e territorial das sociedades originárias.
A compreensão da desigualdade no Brasil de forma geral
já que território colonizado, requer dar centralidade à colonialidade
para entender a hierarquização racial da sociedade, alcançada pela

104
Sumário

inferiorização naturalizada dos povos ‘‘conquistados’’, cuja dominação


se divide em três dimensões: seus corpos, suas cosmologias e línguas.
É primordial a admissão de que essa tríade é sistematicamente
operacionalizada para manutenção da estrutura hierárquica dos
povos envolvidos na colonização. Isso porque a cosmologia de um
povo precisa de um código próprio para existir, fazer e produzir os
sentidos concernentes às diferenças que constituem os sujeitos, que
expresse a forma como se relacionam e se organizam socialmente,
tudo isso materializado em/por sujeitos, onde práticas sociais não
se dissociam da língua.

Importa destacar essa importância vital e simbólica da língua para


os povos indígenas, por meio da qual estabelecem as conexões com
a natureza e com o mundo. Assim sendo, a língua é um fenômeno de
comunicação sóciocósmica, de vital importância na relação recíproca
entre sociedades humanas e estas com os seres não humanos da
natureza. Neste sentido, a perda de uma língua por um povo indígena
afeta diretamente também a relação deste povo com a natureza e com
o cosmo, resultando também em quebra ou redução de conectividade
entre os seres e, consequentemente, afetando o equilíbrio e a harmonia
da vida no mundo (BANIWA, 2019, p. 17).

Bessa Freire (2003, p. 45) também explica essa relação


entre a língua e a cosmovisão dos sujeitos indígenas. Ou seja, a
forma de ver e se relacionar com o mundo:

Essas línguas indígenas haviam codificado experiências milenares


preservadas pela tradição oral, abrangendo tanto o campo das
chamadas etnociências – medicina, farmácia, botânica, zoologia,
astronomia, religião, etc. - como o das manifestações literárias, ou
seja, das diferentes narrativas denominadas pelos cronistas de ‘mitos’,
‘fábulas’, ‘lendas’, ‘palavras ancestrais’, ‘poesia’, ‘cantos’, ‘baladas’.

Nesse sentido, é salutar entender que permitir circular


línguas é permitir circular outros mundos e as instituições de ensino
têm papel fundamental na invisibilização e valorização das línguas

105
Sumário

à forma e medida dos projetos sociopolíticos e econômicos que


desejam fortalecer: “O Estado [...] que inferioriza e subalterniza
os conhecimentos, os valores, as culturas é o principal responsável
pelas mortes e desvalorização das línguas indígenas. A continuidade
das línguas, depende da superação da cultura eurocêntrica e
branqueocêntrica” (BANIWA, 2019, p. 22).
O que quero destacar no que dizem os dois autores acima
é a impossibilidade de considerar os sujeitos deslocados de seus
mundos, fundamentados em saberes/epistemologias/cosmologias
próprias desse modo de existir, materializadas na língua e
fomentadas por ela. No contato entre esses mundos, por meio dos
sujeitos, importa ainda considerar que muitos dos elementos que
compõem os sistemas de valores e filosóficos desses mundos Outros
não terão uma tradução na língua ocidental, uma versão na nossa
forma de pensar, uma vez que de fato há ideias que só podem existir
naquela cosmologia, naquela língua e não há equivalência nessas
diferentes racionalidades.
Nesse conflito pelo contato entre os povos no mundo em
função da busca europeia para colonizar novos territórios, sempre
se efetivou o domínio linguístico do colonizador como consequência
da hegemonia de poder sobre os povos dominados. Além da
morte físico-biológica que eliminou centenas de etnias nativas ao
longo da nossa história desde a colonização, esse aniquilamento,
obviamente, também levou junto os bens culturais materiais e
imateriais cultivados por essas pessoas, como a língua. Segundo
o IBGE (2010), são 274 línguas indígenas no Brasil faladas por
305 povos3, o que evidencia uma lacuna abissal não apenas para
o Brasil, mas para toda a humanidade, conjecturando-se que no
início da colonização (1500) existiam cerca de 1.200 línguas, ou
seja, uma redução para aproximadente 23% desse total, conforme
reforça Gomes (2017: 180): “metade das línguas existentes no
mundo se encontrava nessa região, talvez aproximadamente 5 mil

3 Apesar de oficiais, esses números são problematizados pelos estudiosos na atualidade,


pelos métodos empregados pelo IBGE e até mesmo pelas diversas compreensões de
língua.

106
Sumário

línguas e variações dialetais, de acordo com um cálculo abalizado


[...] teríamos talvez mil ou 1.200 idiomas falados no Brasil.
Atualmente, seriam 170 ou pouco mais”.
O linguista D’Angelis (2014, p 94), por sua vez, estima
que tenhamos menos de 160 línguas indígenas e que extinguimos
no Brasil no mínimo mil línguas. “mais de 40 línguas (isto é, mais
de 25% das línguas indígenas vivas no Brasil) contam com menos
de 100 falantes cada uma e, dessas, quase 30 contam menos de 20
falantes cada”.

Apesar das oscilações e da diversidade dos graus de tolerância ocorridos


ao longo da história, as decisões de política educacional apontaram para
uma tendência generalizada de desconhecer as culturas e os saberes
indígenas, aniquilando-os. Dessa forma, nos últimos cinco séculos,
mais de oitocentas línguas foram extintas – e com isso os saberes
veiculados por elas – devido ao processo de portugalização imposto
primeiramente pelo Estado colonial lusitano e, em seguida, pelo
próprio Estado neobrasileiro. A escola monolíngüe e monocultural,
aliada ao sistema de trabalho colonial, extremamente predatório, foi
responsável pelo extermínio de muitos falantes dessas línguas (BESSA
FREIRE, 2001, p. 2).

No tópico seguinte, reforçamos a ideia de “governo da


língua” a partir da ideia de governamentalidade de Foucault (2008)
direcionada para a colonialidade linguística historicamente em
operação para colaboração com o sistema colonial em nossa sociedade.

A importância do governo da língua para


governamentalidade dos corpos e seus sistemas
de saberes

Tenho proposto desde minha tese de doutorado olhar a


língua como “linha de força” no dispositivo colonial (LISBÔA, 2019;
2022), um papel preponderante, porque os sentidos que possibilitam
práticas sociais da colonialidade só são possíveis por meio da

107
Sumário

linguagem e, também, porque a língua oficializada nas colônias foi


a do colonizador, instituindo-se precisamente como a única forma
de comunicação oficial no país. Dessa forma é que defendo a ideia
da língua como a “linha de força” da colonialidade como dispositivo
(FOUCAULT, 1999), expressando assim a colonialidade linguística
nas relações de poder no seu funcionamento.
Nisso, é possível visibilizar as políticas de “deixar morrer”
e “fazer viver”, como uma relação dual, proposta pelo filósofo
francês, que evidencia os processos de eliminação física e simbólica
dos sujeitos e seus saberes nos mais diversos âmbitos da sociedade,
de onde pretendemos destacar e localizar a língua como objeto de
ação da “governamentalidade” ao longo da nossa história, desde a
colonização. O governo da língua (LISBÔA 2019; 2022; NEVES,
GREGOLIN, 2021) estabelece relações de dominação na e pela
língua e é assim que convido a pensar como podemos localizar as
noções de biopoder e produção de subjetividades, considerando que
o governo da língua instituiu no corpo de toda a população brasileira
a imposição de uma língua como verdade, incidindo sobre nossa
consciência colonial e os saberes que direcionam nossas percepções
de mundo e práticas.
Foucault (2008) define ‘governamentalidade’ como:

o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e


reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma
bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo
principal a população [...] a preeminência desse tipo de poder que
podemos chamar de “governo” sobre todos os outros.

A partir dessa definição e dos interesses dos estudos


discursivos, o debate deste capítulo busca suscitar reflexões que
permitam compreender como a governamentalidade toma forma e
concretude na subjetivação dos sujeitos, especificamente no que toca
a língua, e como o conceito se relaciona nesses processos com outras
noções foucaultianas como biopolítica e dispositivo, por exemplo.

108
Sumário

O “governo” dos povos originários e negros ao longo


dessa história é um continuum do aniquilamento colonial que mira
seus corpos, seus saberes, sistemas políticos e filosóficos e tudo
isso, ressalto, é construído e materializado pela língua. Prova disso
temos o empenho da igreja, braço da colonização, para catequizar
os indígenas, o que significa ensinar a língua portuguesa para
acessar a cultura e forma de pensamento do branco. Ou seja, nunca
se tratou de apenas ensinar um código linguístico, mas de inserir
os povos dominados num processo de assimilação, onde se apaga
tudo o que o torna indígena.

É certo que, sempre que um homem fala, ele utiliza um código que
partilha com outros, mas de onde fala, com quem fala e para quê? [...]
Falar não é somente se servir de uma língua, mas pôr um mundo em
comum, fazê-lo lugar de encontro. A linguagem é a instância em que
emergem mundo e homem ao mesmo tempo. E aprender a falar é
aprender a dizer o mundo, dizê-lo com os outros, a partir da experiência
de habitante da terra, uma experiência acumulada através dos séculos
(MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 30).

Tanto que não bastava aprender a língua portuguesa,


apenas, era preciso abandonar a língua originária, como prova
de efetividade do processo de embraquecimento. Se o ensino
da língua portuguesa para os indígenas foi uma tecnologia de
assimilação empregada desde o período da colonização, à população
negra aprender a ler e escrever era proibido por serem escravos,
ou seja, nem serem considerados humanos. Tal impedimento
perdurou nas práxis institucionais mesmo depois da abolição da
escravidão em 1888, com falta de políticas para integração dos
negras como cidadãos, entre elas as políticas de educação. Mortes,
torturas e prisões tomaram a letra da lei como sanções aos que
ainda teimassem a manifestar suas línguas ancestrais. A proibição
se expressa em diversos documentos, dos quais abaixo trago o
Diretório de 1758, publicado como Alvará de Lei:

estabelecer nas suas respectivas povoações o uso da língua portuguesa,


não consentindo por modo algum que os meninos e meninas que

109
Sumário
pertencem às escolas e todos aqueles índios que forem capazes de
instrução nessas matérias usem a língua própria das suas nações, ou
da chamada geral, mas unicamente a portuguesa, na forma que sua
Majestade tem recomendado em repetidas ordens.

No século passado, até a década de 1970, expandiu-se com


vigor o estudo das línguas indígenas, que passaram por descrição
e, ao serem sistematizadas, possibilitou a implantação de escolas
bilíngues para os povos indígenas como etapa necessária para facilitar
a transição de indígenas para homens e mulheres “civilizados”,
dominados pela cultura do “branco”. A organização estadunidense
Summer Institute of Linguistics é bastante conhecida por operar
esse bilinguismo de transição na América Latina.
Num projeto nacionalista, no período da ditadura militar,
Getúlio Vargas também legislou para proibição de falar outras
línguas em público que não fosse a língua portuguesa e, na Segunda
Guerra Mundial, essas proibições foram intensificadas no Brasil.
Muito se destaca a perseguição aos europeus, especialmente
alemães, como efeito dessas leis e apaga-se o quanto as populações
indígenas também sofreram castigos, torturas e até mortes por
falarem “gírias”, como eram nomeadas as línguas indígenas.

Nós fomos obrigados a deixar de falar nossa língua para falar


português. E quando eu fui estudar na escola do kupen [branco] eu
levava beliscão porque a professora dizia que eu falava gíria, que estava
errado, que eu tinha que aprender a falar direito, que a língua que
eu falava não era língua de cristão (Cacica Kátia Silene Akrãtikatêjê,
entrevista concedida em 2021 na aldeia Akrãtikatêjê, TI Mãe Maria).

A defesa de uma perspectiva monolíngue no Brasil expressa


o racismo e as condições homogeneizantes que minam a presença
indígena na sociedade, como estratégia de controle sobre a (in)
existência indígena na história e a legitimação de conhecimentos
eurocêntricos como verdades que fundamentam e legitimam a
perpetuação de práticas sociais segregantes.

110
Sumário

Por esse viés é que a instituição da língua portuguesa


como a língua nacional e não uma língua indígena ou alguma das
línguas gerais, fruto do contato colonial entre europeus, indígenas
e africanos. Além de ser o português a língua oficializada, o fato
de também ser majoritariamente empregada na forma escrita e no
padrão gramatical vinculado às práticas de linguagem das elites são
circunstâncias que impediram a população de ter o domínio dessa
língua dentro dessas exigências hegemônicas de uso do português.
Isso não foi por acaso, pois tem servido como crivo para cercear
os corpos racializados (negros e indígenas) de adentrar espaços de
poder, cujo funcionamento está alicerçado nessa língua portuguesa,
escrita e na forma padrão.
A adoção da escrita padrão tem funcionado então como
um crivo para os que podem ou não acessar os conhecimentos do
colonizador, posto como exigência para acessar outros bens sociais
na sociedade e fazer parte dela de forma equânime, como destaca
Bourdieu (1983, p. 42): “...a aceitabilidade social não se reduz apenas
à gramaticalidade. Os locutores desprovidos de competência legítima
se encontram de fato excluídos dos universos sociais onde ela é
exigida, ou então, se veem condenados ao silêncio”. As instituições,
como materialização do poder do estado, funcionam por meio do
uso do português padrão, pautadas numa linguagem burocrática e
de prestígio, constituindo-se como verdadeiros sítios das “cidades
letradas”: universidade, fórum, câmaras legislativas, etc. Nessa
imbricação entre língua e conhecimento, está integrada ainda
o terceiro elemento da tríade aqui proposta, que é o corpo, pois é
nessa concretude corporal que o cerceamento ocorre, posto que
vinculados aos povos desprestigiados pela colonialidade, são alijados
dos processos de formação que dão condições de domínio do código
linguístico de prestígio na sociedade brasileira, ao passo que seus
saberes e línguas são descartados da possibilidade de socialização nas
interlocuções sociais.

Ao falar das instituições fundamentais à cidade das letras, Rama (2015:


76) cita que a universidade “sempre foi a joia mais preciosa da cidade
letrada”. Essa afirmação somada às reflexões de Mignolo (2004) e
Foucault sobre a língua em relação com o poder é o que me impulsionou na

111
Sumário
tese à utilização do termo “colonialidade linguística” para nos referir aos
resultados em que o código linguístico normativo é instrumento do poder
hegemônico no dispositivo colonial, sustentando-o e sendo sustentado
por ele por meio de práticas sociais hegemônicas que requerem, tanto
no ato comunicativo entre os falantes como na organização funcional, o
domínio de conhecimentos linguístico elitizados para operacionalizá-las
com eficácia. Desta forma, a “colonialidade linguística” veicula a opressão
na sociedade, operacionalizando as relações de subalternização pelo uso
de uma variação padrão da língua distante das práticas sociolinguísticas
dos oprimidos. Em se tratando de sujeitos indígenas, com os quais
refletimos aqui, tudo isso faz muito mais sentido (LISBÔA, 2022, p. 171).

Nesse sentido é que a governamentalidade da língua está


diretamente ligada ao apagamento das cosmologias/existências
outras do europeu e à governamentalidade dos corpos, destacando
como a língua foi, e continua sendo, historicamente usada como
linha de cerceamento, aparato de guerra, silenciamento e divisão de
classes sociais, pareada às políticas econômicas engendradas.

As estruturas de dominação são múltiplas, mas pode se dizer que sua


expressão privilegiada está aí, nessa frustração que impede ‘falar’, dizer
o próprio mundo e dizer a si mesmo. Ao demonstrar os mecanismos
que obrigam o oprimido a falar a linguagem do opressor, Freire
revela a figura ao mesmo tempo mais profunda e íntima da dominação
(MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 28).
Hoje, no início do século XXI, o português é irreversivelmente
hegemônico, mas ainda convive, em território da Amazônia brasileira,
com mais de cem línguas indígenas, cujos usuários resistiram e foram
capazes de preservá-las, cuidando, zelando e lutando por elas, mesmo em
condições históricas adversas. Muitos deles são bilingues, com diferentes
níveis de competência na língua portuguesa, e outros continuam
monolíngues em língua indígena (BESSA FREIRE, 2003, p. 16).

Ou seja, neste trabalho compreendemos a língua como


uma “linha de força” do dispositivo colonial, condicionando o
acesso aos bens culturais, bem como a circulação dos saberes em
aliança com os poderes hegemônicos perpassando todas as outras
formas de linguagem, como as linguagens digital-tecnológica,
matemática e a empregada em áreas de prestígio como o Direito

112
Sumário

e a Administração Pública. Toda a cerca em torno da linguagem,


a que impede as pessoas de dominá-la para operar bens e espaços
de prestígio, devem ser vista então como estratégia do poder
hegemônico ao longo da história para o cerceamento de saberes e,
consequentemente, de corpos indesejados, os anormais no sentido
foucaultiano, como os que não se encaixam na normalidade padrão
instaurada pelo corpo europeu, que tem o fator racial como
formas diretas de sua outridade: o corpo não-europeu. Esse jogo
não desconsidera o fator econômico, mas, ao contrário, entende
o primeiro como tecnologia que viabiliza as divisões pertinentes
ao campo econômico. Wallerstein (2007, p. 88-89) salienta a
necessidade do fator epistêmico e da estrutura de saber para o
funcionamento da estrutura capitalista:

O princípio fundamental da economia-mundo capitalista é a


acumulação incessante de capital. Essa é a sua razão de ser e todas as
suas instituições se guiam pela necessidade de realizar esse objetivo.
Mas ele também precisa de uma estrutura cultural-intelectual
para funcionar direito. e as estruturas de saber, raramente notadas
mas fundamentais.

A linguagem como construção simbólica entre os sujeitos


é o que permite constituirmo-nos como sociedade e, no Brasil, a
história de dominação desde a colonização nos mostra que as
políticas linguísticas (também manifestas nas políticas pombalinas)
sempre foram no sentido de eliminar as línguas dos nativos.
Por esse caminho reflexivo que destacamos o quanto é
salutar entender que permitir circular as línguas é permitir circular
outros mundos, pois não se imprime apenas aos sujeitos racializados
um lugar de inferioridade, mas também aos saberes e línguas onde
eles fundamentam a sua existência.

Interculturalidade: saberes, línguas e corpos

Um grande desafio que os povos indígenas da América


Latina já compreenderam e têm lutado para consolidação é o da

113
Sumário

Interculturalidade. Não por acaso a Interculturalidade (BANIWA,


2019; WALSH, 2014) é um construto especialmente vinculado aos
movimentos indígenas (CANDAU; RUSSO, 2010), surgindo na América
Latina, demandando cada vez com mais ênfase a equidade epistêmica,
pela garantia da construção de uma sociedade sem a hierarquia entre os
conhecimentos dos diferentes povos, resultante da colonização.
No Brasil, a Educação Escolar Indígena é onde o pensamento
intercultural toma fôlego, propondo a circulação na educação formal
de diferentes línguas e culturas, fundamentando-se no capítulo
voltado para os povos indígenas (pelo qual os povos indígenas lutaram
para que existisse) na Constituição Brasileira, onde é garantida
uma educação específica, diferenciada, bilíngue e intercultural.
Nesse sentido, as instituições de educação são interpeladas sobre
a necessidade de adequação das práticas e fundamentos que
historicamente monopolizou o saber com fundamentos modernos e
eurocêntricos. Sabemos que tal disputa significa colocar em xeque
toda a normalização linguística, cosmológica e corpórea que situamos
até aqui como a hegemônica.

Esse exercício nos permite visualizar e compreender como conceitos


de conhecimento, erudição e ciência estão instrinsecamente ligados
ao poder e à autoridade racial. Qual conhecimento está sendo
reconhedio com tal? E qual conhecimento não o é? [...] De quem é
esse conhecimento? [...] o centro acadêmico [...] é um espaço branco
onde o privilégio de fala tem sido negado para as pessoas negras [e
indígenas] (KILOMBA, 2019, p. 50).

A interculturalidade, como algo a ser alcançado, tem


nas instituições de saber formais (escolas e universidade) como
espaços privilegiados para reconhecimento/valorização x
apagamento/desprestígio de saberes, compreendendo que esses
saberes não são etéreos, mas se concretizam em uma história de
conflitos entre sujeitos. Logo, o saber valorizado pelas instituições
de saber repercutem historicamente a “verdade” que a hegemonia
deseja que seja contada. Nesse plano, tratar de outros saberes é
evidenciar os corpos a que esses saberes estão vinculados, bem

114
Sumário

como as línguas onde esses saberes são codificados e permitem os


sentidos que constroem nas relações entre um povo.
Nesse sentido é que nos últimos vinte anos povos indígenas,
quilombolas e a população negra mais ampla tem concentrado
forças para adentrar a universidade, disputando verdades sobre
o status conferido aos seus saberes, línguas e corpos. Políticas do
PNUD, BID e EUROsocial (aliança que envolve os dois primeiros,
além da Comissão Européia, CEPAL, BM e FMI) incentivaram e,
até mesmo, determinaram novas estratégias de desenvolvimento
para a América Latina (WALSH, 2014, p. 5), desembocando em
renovações de acordos e declarações para inserção de indígenas
e afrodescendentes no ES. O número de matrículas no Ensino
Superior no Brasil, de acordo com o Censo da Educação Superior
(2020), é de 8.680.354, dos quais 47.267 são de pessoas indígenas. O
número de matrículas de quilombolas não é dimensionado no censo,
inserindo-os no total de matrículas de pessoas negras (3.265.347),
destacando ainda a subnotificação quanto às autodeclarações que
não permite a exatidão desses dados, pois 1.532.648 de pessoas não
declararam sua raça\cor. Impossível não destacar ainda o domínio
de instituições privadas no ensino superior, recebendo 77,4%
(6.724.002) das matrículas realizadas no ano de 2020.
Tomando o caso específico das populações indígenas, em
que suas línguas resistem ainda hoje (em muitas dessas sociedades
como primeira língua e em outras, em número muito menor, é a única
língua do povo originário), a entrada desses estudantes no espaço
acadêmica é o flagrante do quanto esse espaço eurocêntrico não foi
pensado para as outras raças (as que foram dominadas pelo europeu
na colonização) e o quanto tem se intensificado a inevitável mudança
nessa estrutura para que se permita a permanência dessas existências
outras, democratizando as instituições de saber para tornar possível
a circulação de saberes de outros mundos, materializados em outras
línguas por meio dos corpos dos estudantes que assentam as salas
de aula da universidade.
No contexto acadêmico, a língua padrão é operada
como força do dispositivo colonial, funciona como linha de força

115
Sumário

desse dispositivo (LISBÔA, 2019; 2022). O uso da língua padrão


é fundamental nas necessidades comunicativas e, nesse sentido, é
inevitável a relação disso, as práticas de linguagem acadêmicas, com
os apagamentos, engessamentos que envolvem sujeitos racializados,
o que se evidencia como uma lacuna nas ações institucionais
acadêmicas e as consequências disso para a permanência discente, o
que venho discutindo desde 2016.
A garantia de acesso desses sujeitos por processos seletivos
especiais não é uma política efetiva, posto que não são acompanhadas
de políticas de permanência que dão continuidade ao reconhecimento
inicial de que se tratam de sujeitos diferenciados. Convidar os povos
indígenas a se candidatarem em um processo específico, torna
imanente a responsabilidade dessas instituições de que sua “diferença”
continuará sendo admitida nas práticas acadêmicas (pedagógicas,
linguísticas, epistemológicas, burocráticas). Não garantir isso, é
se omitir da responsabilidade para que esses discentes concluam a
graduação com sucesso, deixando recair sobre o indivíduo a pecha
do fracasso diante da comunidade acadêmica e ainda de sua própria
comunidade, que investe e aposta na saída dele para estudar para
que retorne com o conhecimento acadêmico de que precisam para
instrumentalizar as lutas do povo.
A recente presença desses sujeitos na universidade, para
quem ela não foi pensada, tem demandado revisões cada vez
mais incontornáveis e que os povos indígenas tem reivindicado:
nas metodologias de ensino, na burocracia do funcionamento
institucional, no currículo, nos auxílios financeiros, nas
abordagens epistemológicas e também no racismo que perpassa
a colonialidade imperante no âmbito acadêmico, inclusive no uso
da língua portuguesa como crivo para existir ou não nesse espaço
de poder, assim como em outros espaços sociais hegemônicos
(LISBÔA, 2022).
A inviabilidade do acesso dos povos racializados no ensino
superior nesses 500 anos de Brasil, bem como o baixo índice de
permanência nos últimos 20 anos, é fundamentalmente uma
perpetuação da governamentalidade sobre os indígenas e negros e o

116
Sumário

governo da língua está imbricado nesse processo. Quando enfocamos


no caso de alunos indígenas esse aspecto se aprofunda severamente,
considerando, pois, que se tratam de estudantes falantes de outras
línguas ou que, mesmo quando não falam uma língua originária,
vivem em nessa outra cosmologia, condição capaz de afetar a
relação desse sujeito com a língua portuguesa. A dificuldade desses
estudantes para circular nas práticas de linguagem acadêmicas é
uma demonstração disso.
A presença indígena e quilombola na universidade evidencia
uma regularidade entre esses sujeitos racializados: “Buscam fortalecer
os seus conhecimentos tradicionais, sua história e língua e, ao mesmo
tempo, o necessário domínio dos assim denominados conhecimentos
universais, considerados necessários para [...] os seus projetos de
autonomia” (URQUIZA, 2016, p. 11). Essa presença Outra no espaço
acadêmico, por si, problematiza as hierarquizações dos sujeitos,
os saberes e as línguas diante do saber moderno, posto que “[a]
modernidade e a racionalidade foram imaginadas como experiências
e produtos exclusivamente europeus” (QUIJANO, 2005, p. 112).
Não há no cenário organizativo da sociedade, em nenhuma
de suas instituições, uma política que dê sustentação à efetividade
para que os povos racializados tenham equidade epistêmica ou
uma relação intercientífica entre os conhecimentos que explicam o
funcionamento desses outros mundos e a “ciência” moderna, o que
perpassa a academia na normalização da racionalidade eurocêntrica
como verdade universal e também na sustentação das práticas e
imaginários de exclusão e violência na sociedade em geral.
Reivindicar a interculturalidade, o que tem feito os
movimentos indígenas, é mirar a ruptura eurocêntrica, reivindicando
nas instituições de saber espaço também para seus conhecimentos/
culturas nos currículos e nas práticas acadêmicas, pluralizando
assim formatos, metodologias educativas e de pesquisa, além de fazer
circular outras línguas4, responsáveis por fomentar e materializar
suas cosmologias.

4 Como exemplo disso, há experiências de trabalhos acadêmicos escritos na língua


ancestral do aluno indígena, cursos de línguas indígenas e africanas nas universidades,

117
Sumário

Considerações finais

A discussão desenvolvida teve o intuito de abordar ideias


em torno da língua com papel central na governamentalidade
racial dos povos no Brasil, funcionando com linha de força do
dispositivo colonial (LISBÔA, 2019; 2022), eliminando as línguas
desses sujeitos, entendendo-as como condição para a existência
dos indígenas e negros em suas cosmologias, como estratégia
para facilitar a dominação dos corpos ao promover a ruptura com
seus mundos e saberes originários. E a língua, para esse fim, é
fundamental, visto que é por ela que se materializam e fomentam a
produção dos sentidos dos diferentes povos.
Nesse âmbito, compreendo a identidade corporificada des-
ses sujeitos como discurso, como materialização de sua “raciona-
lidade” historicamente significada, sistematizada coletivamente ao
longo da história e com sentidos codificados em línguas próprias. As
instituições de saber, onde o letramento linguístico é permanente-
mente reforçado, tem, logo, papel fundamental no dispositivo colo-
nial e a interculturalidade lança a disputa nesse contexto, propondo
a compreensão de que o encontro entre diferentes mundos precisa
se estabelecer em bases equânimes.
O racismo linguístico (LISBÔA, 2022) que impera
nas instituições formais de saber é materializado na negação da
diversidade de línguas originárias, o que deve ser compreendido,
coerentemente ao que foi dito até aqui, como estratégia de
dominação dos povos racializados, possibilitando a perpetuação da
colonialidade como fator estruturante nas nossas relações sociais,
favorável ao status quo onde os herdeiros dos senhores do engenho
tenham garantidas suas posições e privilégios mantidos intactos
desde a colonização.
As reflexões que fiz sobre esse apagamento das línguas
indígenas, permite-nos propor um olhar reverso e bem inquietante
da colonialidade linguística na atualidade para entender que a
e ainda a adesão de língua indígena para atendimento do requisito de fluência em
língua estrangeira nas seleções de pós-graduação.

118
Sumário

história da língua legitimada como nacional no Brasil poderia ser


outra: a língua portuguesa como língua estrangeira e as línguas
nativas, hoje apagadas para a população brasileira, como as línguas
nacionais. Entender o percurso da língua ao longo da história nesse
território chamado Brasil não pode se apartar da história colonial e a
continuação desses preceitos coloniais que nos constitui até hoje, ao
ponto de naturalizar o apagamento das línguas nativas e a língua de
Portugal como nossa ÚNICA língua. Esse mito de país monolíngue
e a resistência das línguas indígenas é parte central nessa discussão.
Nesse sentido, é flagrante que a língua já integrava a política
de dominação do império português e que para a efetivação do Brasil
como colônia portuguesa seria necessário implementar uma política
sobre a língua, como porta para adentrar as mentes e disciplinar
os corpos; pois quando se faz alguém abandonar sua língua em
assimilação à outra, resulta-se em efeitos para além do linguístico,
isoladamente, mas, sim, define-se a forma de essa pessoa existir no
mundo. No caso dos indígenas, pretendia-se o embranquecimento
desses corpos, pois com o deslocamento do corpo da língua, desloca-
se o corpo da cosmologia e do que poderia ter sido desses povos sem
as “normalizações do ser” impostas pela Europa.

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122
CAPÍTULO 5

DISPOSITIVOS, GOVERNO DA LÍNGUA


E NARRATIVAS
O KUNHÃKOTY DAS MULHERES INDÍGENAS NAS
PRÁTICAS EDUCACIONAIS DE RESISTÊNCIA DA
LÍNGUA KAIOWÁ

Raimundo de Araújo Tocantins

Introdução

A partir de uma hierarquização de saberes, os


conhecimentos dos colonizadores se constituíram como uma
forma de colonialidade do poder que se mantém sedimentada em
territórios que outrora foram colonizados por Europeus. Essa
perspectiva eurocêntrica em relação à produção do conhecimento,
atravessou os séculos e, historicamente, desautorizou os saberes
de povos originários e também das populações que vieram do
continente africano. O advento da modernidade europeia trouxe em
sua bagagem colonizadora um complexo dispositivo de controle dos
corpos e das mentes. Nessa direção, ainda nos dias atuais, quando
falamos em epistemologias, logo nos vem a ideia de um conjunto de
conhecimentos empreendidos por determinadas áreas dos saberes,
reproduzidas e legitimadas a partir das universidades, cujas raízes
estão fincadas em matrizes europeias.
Neste texto, observaremos como a ativista Kaiowá
Valdelice Veron, a partir de suas pesquisas na área de Educação e
dos conhecimentos de seu povo, elabora conhecimentos e desafia as
estruturas de uma colonialidade do poder.
Sumário

Na primeira parte do estudo, Do dispositivo ao dispositivo


colonial, a partir das concepções teóricas de Michel Foucault
(2015), compreenderemos os conceitos de dispositivos e
governamentalidade, Foucault (2008). Esses conceitos servirão
de bases teóricas para o entendimento de governo da língua
(LISBÔA 2019; 2022; NEVES, GREGOLIN, 2021) implantado
em território brasileiro
Em O dispositivo escolar eliminando epistemologias indígenas,
abordaremos a compreensão sobre dispositivo escolar, elaborada
por Gregolin (2015). As análises de Gregolin sobre a implantação
da escola no Brasil, pautada em alicerces europeus, desvela e nos
faz compreender a finalidade de hierarquizar, racializar e eliminar
epistemologias dos povos originários, além de oportunizar o
entendimento da língua portuguesa como a linha de força do
dispositivo colonial em território brasileiro.
O acesso dos indígenas às universidades, bastante
facilitado pela política de cotas, permitiu enfrentamentos entre as
epistemologias indígenas e a “escola dos brancos”, como definem
as indígenas. Em Valdelice e as linhas de atualização do dispositivo
escolar torna-se visível o esforço intelectual da ativista pelas causas
indígenas. Professora e pesquisadora Valdelice Veron é mestre em
Sustentabilidade Junto a Povos e Terras Tradicionais promovido
pela Universidade de Brasília. Em sua dissertação de mestrado,
ela empreende um trabalho voltado para a escola Kaiowá. Nesse
percurso, apresentamos a articulação dos saberes tradicionais
do ritual Kunhãkoty, importante na elaboração de gênero para os
Guarani-Kaiowá, aos conhecimentos adquiridos na academia,
compreendidos por Veron como seu Tekoha acadêmico na direção de
descolonizar e atualizar o dispositivo escolar.
O capítulo finaliza com a reflexão embasada nos saberes
indígenas. Nessa direção, as pesquisas de Valdelice Veron são as
bases teórico-reflexivas em Tecendo outras definições de língua. A seção
nos apresenta um outro olhar cosmológico para a compreensão de
língua. Na realização desse empreendimento, servem-nos de suporte

124
Sumário

teórico para a realização de nossas considerações, as definições de


língua realizadas por Michel Foucault (2015).
O percurso descolonizador de epistemologias, questão
central deste texto, acontece tomando como base minhas
observações, durante o período de doutoramento em estudos
linguísticos na UFPA (2017-2020), em produções acadêmicas
realizadas por Valdelice Veron. Compreendo suas pesquisas como
um espaço de produção de conhecimentos em constante diálogo
com as suas narrativas tradicionais baseadas na oralidade. A partir
desses entrecruzamentos, torna-se possível visibilizar as maneiras
como os saberes dos povos originários promovem fissuras no
dispositivo colonial e atualizam o dispositivo escolar.

Do dispositivo ao dispositivo colonial

Michel Foucault não explicitou de maneira detalhada em


sua obra o conceito de dispositivo. Compreendido por Dreyfus &
Rabinow (1995) como “uma interpretação histórica orientada para
a prática”, esses autores nos esclarecem que o dispositivo atua na
constituição e organização dos sujeitos. O dispositivo na definição
de Foucault representa:

Conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,


instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares,
leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os
elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer
entre estes elementos (FOUCAULT, 2015, p. 364).

Sobre sua composição heterogênea, organizada em rede,


Foucault pontua sobre sua natureza e finalidade. O dispositivo se
qualifica como a estrutura de poder que orienta o “programa de
uma instituição” que, em um “determinado momento histórico, teve
como função principal, responder a uma urgência. O dispositivo

125
Sumário

tem, portanto, uma função estratégica dominante” (FOUCAULT,


2015, p. 365). Essa definição articulada à reflexão sobre mulheres
indígenas, permite-nos compreendê-las como sujeitas produzidas
dentro da teia social e histórica dos poderes e saberes dos quais nos
falam os estudos de Foucault.
A partir da história, podemos retomar o “programa de
uma instituição que em um determinado momento histórico,
teve como função principal, responder a uma urgência”, Foucault
(2015). Percebemos, a partir de um olhar para a história com
Foucault, os regimes de verdades que construíram para o mundo
as subjetividades indígenas. Sob essa lente conceitual torna-se
visível a invenção discursiva realizada por enunciadores europeus.
Em outras palavras, os povos originários brasileiros foram
narrativizados pelo foco narrativo de quem estava no poder, os
europeus (NEVES, 2009).
A colonização europeia iniciada com as grandes navegações,
emergência histórica bastante significativa para a história dos povos
que aqui habitavam, precisava de um “programa” para cumprir sua
“função estratégica dominante”. No sentido de organizar o controle do
vasto território e também de elaborar a construção das subjetividades,
a Coroa Portuguesa empreendeu em terras brasileiras “discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares,
leis, medidas administrativas, enunciados científicos” etc. Nesse
sentido, a partir desse conjunto heterogêneo que aqui chamamos de
dispositivo, produziram-se “verdades” sobre os povos originários.

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas


coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade
tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os
tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros, suas
políticas de verdade, quero dizer, discurso que ela incorpora e que
coloca para funcionar como verdadeiros (FOUCAULT, 2015, p.52).

Diversos documentos construíram subjetividades e


memórias de futuro durante o período do contato inicial entre

126
Sumário

europeus e povos indígenas. Esses documentos fizeram circular


discursos que funcionaram como verdades sobre esses povos. Porém
há uma outra história não oficial, narrativizadas por sujeitos e
sujeitas indígenas que expõem outros regimes de verdades. Neves
(2020) propõe deixar vir à tona a “pluralização da verdade”:

Quando Michel Foucault realizou suas pesquisas e análises, ele sempre


tomou cuidado de visibilizar quem eram os seus sujeitos, mas aqui na
América Latina a pluralização da verdade esbarra em outras sujeitas e
sujeitos, a partir de suas emergências históricas. Não dá para ignorar
que há uma grande diferença entre pensar a questão do louco e do
proletariado na Europa e a condição do negro escravizado e do indígena
subalternizado na América Latina (NEVES, 2020, p. 04).

Nessa direção, a autora empreende, em seus estudos


sobre o discurso e sociedades indígenas, embasados na perspectiva
foucaultiana, um diálogo com os estudos decoloniais. Como
resultado dessa articulação, ela propõe a existência de um
dispositivo colonial (LISBÔA, 2019; 2021; 2022; LISBÔA, NEVES,
2019; NEVES, 2015), cujo funcionamento interferiu e interfere na
construção de verdades, de subjetividades, no controle dos corpos
e na produção do conhecimento sobre sociedades indígenas. Por
outro lado, é importante refletir que os dispositivos de poder,
por mais poderosos que sejam, nunca vão conseguir suprimir
totalmente as táticas de resistência.

O dispositivo colonial e o governo da língua

Ele me contou toda a história da minha família. Isso me levou a querer


saber ainda mais. Por exemplo: de onde vinha esse sobrenome Veron?
Quem foram meus antepassados? Descobri que nosso sobrenome veio
de um argentino que escravizava os índios e eles iam sendo registrados
com o sobrenome dele [...]”. (VERON, 2011)

127
Sumário

A epígrafe acima revela o interesse de Valdelice, em uma


conversa com seu pai, em saber sobre as origens de sua família e
do seu sobrenome. Contraditoriamente, um nome herdado de um
não-indígena e que representou, na história de vida dessa mulher
a opressão de seu povo, atualizou-se e se tornou símbolo de luta
e resistência indígena. Além do sobrenome, a língua espanhola e
a portuguesa são atravessamentos que falam para Valdelice sobre
domínio, escravização de corpos e relação hegemônica. O relato de
Veron revela uma das relações de subalternização promovidas pelo
branco de origem europeia: “Descobri que nosso sobrenome veio de
um argentino que escravizava os índios e eles iam sendo registrados
com o sobrenome dele” (VERON, 2011).
A língua espanhola e a língua portuguesa, ambas de
origem europeia, apresentam na vida de Valdelice e de muitas das
sociedades indígenas, detalhes sobre o processo de colonização
em terras brasileiras. O espanhol revelou para ela a relação
de subordinação e a escravização a partir de um senhor que se
apropriava de seus ancestrais e apagava sua história a partir de um
novo nome de registro Veron.
A língua portuguesa, muito presente na vida de Valdelice
Veron e também na vida de muitos indígenas brasileiros, relaciona-
se com outro atravessamento, a escola. Língua e escola elaboram
“estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo
sustentadas por eles” (FOUCAULT, 2015, p. 42). A partir dessa
articulação, percebemos o funcionamento do dispositivo colonial
em sua função de controle dos corpos, subjetividades e saberes
originários com objetivo principal de responder a uma urgência,
como nos fala Michel Foucault.
O dispositivo colonial em território brasileiro instituiu a
língua portuguesa como uma das estratégias de controle das diversas
culturas originárias que aqui habitavam. Compreendemos à luz do
conceito de governamentalidade de Michel Foucault, um governo da
língua, fruto de uma política linguística europeia para o sucesso do
empreendimento colonial.

128
Sumário
Principalmente desde as grandes navegações, quando se intensificou
o contato entre os povos no mundo em função da busca europeia para
colonizar novos territórios, a língua passa a ser um fator fundamental
para a dominação e posterior controle do povo dominado nos processos
de “conquista”. (LISBÔA, 2019, P. 239)

A palavra governar, antes de ser estabelecida o seu sentido


fundamentalmente político a partir do século XVI, relacionava-se
a um conjunto de significações: conduzir alguma coisa ou alguém,
impor algum regime, cuidar da subsistência de uma coletividade.
Para discorrer sobre governamentalidade na obra “Segurança,
Território, População”, Foucault (2008), utiliza a definição do
dispositivo de segurança para mostrar como as tecnologias de
controle da população vão caminhar no sentido de ultrapassar as
rígidas estratégias da disciplina e elaborar um dispositivo de poder
mais sutil e de força de controle ainda maior.

Por esta palavra, ‘governamentalidade’, entendo o conjunto constituído


pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos
e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora
muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por
principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico
essencial os dispositivos de segurança (FOUCAULT, 2008, p. 143).

O sucesso desse imenso empreendimento colonial é


narrativizado pelos grupos que estiveram no poder. “Do início
deste processo até os nossos dias, a história e a produção do
conhecimento oficial viveu e vive sob a ditadura da palavra escrita
ocidental, europeia, branca e suas poderosas verdades” (NEVES,
2015, p. 29). Atualmente, século XXI, ainda compreendemos
as identidades indígenas brasileiras como um resultado da
discursivização dos seus antigos enunciadores, os europeus.
Inseridos na “cosmologia eurocêntrica que passou a delinear uma
ordem hegemônica, que determina inclusive as línguas oficiais da
ciência ocidental, que são todas europeias” (NEVES, 2015, p. 28).

129
Sumário

Em meados do século XVI, início da ação colonizadora do


território hoje chamado de Brasil, a política colonial instituída pelo
europeu necessitava de formas de domínio da diversidade cultural
dos povos que aqui habitavam, com o objetivo de sistematizar um
controle produtivo em direção a esses corpos. Contudo, podemos
compreender o Brasil desse período como um espaço de encontro de
várias culturas heterogêneas e, certamente, nesse momento inicial
de colonização com dificuldade de interação entre essas culturas.
Essa realidade diversa, compreendida a partir do ponto de
vista do europeu, não era interpretada com bons olhos, mas sim
como um enorme caos e, naturalmente, carecia de um reordenamento
visando à conexão das sociedades indígenas à economia mercantil.
Na esteira desse pensamento, observamos que a história dita como
oficial narrada pelos livros de História brasileira, não aborda com
profundidade questões referentes à riqueza linguística do período
de colonização, o que pode produzir nos leitores a ideia de que a
língua portuguesa foi a forma de comunicação utilizada entre os
povos indígenas que aqui habitavam e os colonizadores.
Com o objetivo de viabilizar o empreendimento colonial,
nesse período da história nacional, o país foi dividido em dois grandes
estados: o Brasil e o Grão-Pará. Cada um com sua respectiva língua
geral. A comunicação interétnica na região Norte brasileira, durante
as primeiras décadas do século XIX, foi realizada pela Língua Geral
Amazônica (LGA), também conhecida como Nheengatu. Essa língua,
de comunicação interna da Amazônia, cumpriu o papel, durante um
período da nossa história, de integração entre os indígenas e os
outros povos habitantes da região.

A Amazônia - onde milhares de cidadãos, indígenas e não-indígenas,


apesar de desconhecerem a língua portuguesa, estavam sintonizados
com a vida econômica, social e política do país e identificados com
os valores nacionais, de tal forma que produziam riquezas, pagavam
impostos e – na expressão de Couto de Magalhães – não hesitavam
em ‘derramar seu sangue pela pátria’, como aconteceu na Guerra do
Paraguai. Mas o fato de não falarem a língua nacional e, ao contrário,
de serem usuários de uma língua indígena, produziu e continua

130
Sumário
produzindo uma reação de estranhamento. É que esta situação
singular contrariava uma suposta unidade linguística, mas sobretudo,
evidenciava até que ponto tinha se expandido uma língua indígena,
denominada, ao longo da história, de Língua Geral, Nheengatu e Tupi,
entre outras nomenclaturas. Por isso, se tornou objeto de observação
e curiosidade dos viajantes e estudiosos, nacionais e estrangeiros.
(BESSA FREIRE, 2003, p. 40)

A viabilização do projeto colonial, sob o conceito


de governamentalidade, visava gerir a conduta dos homens
(FOUCAULT, 2008). Nesse cenário, aconteceu a gestão da língua
como estratégia de controle da população. Com o apoio da Coroa
Portuguesa e da Igreja, a língua Tupinambá, utilizada na região
da foz do rio Amazonas, foi escolhida, para a função de construir
uma coesão linguística na região amazônica, província do Grão-
Pará. Nesse sentido, o Tupinambá como língua geral facilitava
a comunicação entre etnias, que utilizavam diferentes línguas
particulares e, como consequência, prevista pelo colonizador, tornou
viável, futuramente, a portugalização da província do Grão-Pará
(BESSA FREIRE, 2004).

O dispositivo escolar eliminando epistemologias


indígenas

Aos onze anos de idade, a ida para a escola não-indígena causou-me


estranhamento, devido aos gritos da professora, ao modo diferente
de ensinar e aos barulhos da cidade. A cidade me causava sofrimento,
choro, desânimo, porém o apoio de minha mãe e de meu pai me auxiliou
a enfrentar os desafios da escola colonizadora.

Valdelice Veron
Iniciamos esta seção com o relato-desabafo de Veron
que nos apresenta a sua realidade de mulher indígena em contato
com uma realidade comprometida com a produção de saberes
eurocêntricos, a escola. A instituição escolar historicamente
implantada pelos europeus em solo brasileiro entra em choque com

131
Sumário

as realidades dos povos indígenas, pois, não há nessa instituição


intenção em dialogar com os saberes dos povos originários. A
escola é implantada no Brasil comprometida com uma forma de
conhecimento de matriz europeia.

As práticas culturais dos povos indígenas que aqui viviam foram


colocadas dentro de uma hierarquia de racionalidades e os usos
sociais que faziam com que o verbal, na maioria das vezes imbricados
com o corpo (música, dança, grafismos, ritos religiosos), fossem
desqualificados diante das línguas europeias e dos processos
institucionais que elas agenciavam. (NEVES, 2018, p. 154)

Para compreendermos como a organização dessa hierarquia


de racionalidades institucionalizou-se em terras brasileiras,
propomos o exame da rede escolar. Nas palavras de Gregolin
(2015, p. 01), a instituição escolar pode ser compreendida como a
rede de um dispositivo de saber e de poder criada para atender às
“exigências históricas de construção da identidade nacional, com
base nos ideais positivistas de ordem, progresso, higiene, civilidade
etc.” Na intenção de “organizar” o Brasil sob essas bases, ele aqui foi
instalado no final do século XIX e início do século XX, logo após a
Proclamação da República.
A instituição escolar articulada ao dispositivo colonial en-
tra em rota de colisão com as diferentes realidades e racionalidades
dos povos indígenas como nos remete Valdelice. Atentemos para as
palavras de Gregolin (2015, p. 12):

O cenário brasileiro no final do século XIX e meados do século XX


estava convulsionado por grandes transformações que abrangiam um
largo escopo: o campo da política (fim da monarquia e implantação da
República); o da reorganização do trabalho (abolição dos escravos e
chegada de trabalhadores europeus); o do reordenamento dos espaços
urbano/ rural e a remodelação das cidades; e o da economia (auge
da cultura do café no sul e sudeste e o ciclo da borracha no Norte).
Era, portanto, um movimento amplo de transformações que atingiu
profundamente as relações sociais e o cotidiano dos brasileiros.

132
Sumário

Torna-se possível perceber um Brasil em fase de intensas


transformações. Nesse sentido, o dispositivo colonial articula-se ao
dispositivo escolar para responder a uma urgência: construir no
território uma identidade urbana próxima dos padrões de cidades
europeias. É bem evidente no delineamento desse cenário a ausência
de espaço para as subjetividades indígenas.
No que diz respeito à população urbana, a escola não
incorporava todas as classes que compunham esse quadro. Seus
conteúdos seguiam o modelo das elites econômicas, seu foco estava
no ensino de disciplinas como: língua portuguesa, geografia,
matemática e história, dentro da perspectiva dos saberes europeus,
sem preocupações com as diversidades cultural e étnica que
formavam o território nacional.
A concepção do prédio escolar, no que se refere à sua
estrutura física, apresenta em sua gênese, uma arquitetura voltada
para o controle dos corpos, por meio do controle do espaço como
enfatiza Gregolin (2015). Esses espaços, onde o saber é produzido
pela vigilância, refletem o que diz Foucault em Vigiar e Punir (1999),
sobre a disciplina funcionando por meio de procedimentos muito
específicos como o controle dos espaços e dos corpos, organização
do tempo, vigilância e a produção registrada de forma contínua em
cadernos, provas etc. Vigilância e disciplina dos corpos constituíam-
se como balizas fundamentais dessa instituição estrategicamente
implantada em todo território nacional.
Ao compreendermos os objetivos desse dispositivo e
compararmos com o relato de Valdelice (2018), que nos fala dos
“gritos da professora, modo diferente de ensinar e os barulhos da
cidade”, entendemos que o dispositivo escolar ao ser implantado
não abarcava em seu projeto pedagógico as sociedades indígenas e
os seus modos de existência. Pelo contrário, os indígenas deveriam
sujeitar-se a esses saberes hegemônicos.
A experiência de Valdelice Veron com a instituição escolar
a submeteu a maneiras de desqualificação dos modos de vida
indígenas. Nessa vivência, ela nos conta como a escola colonizadora

133
Sumário

não reconhecia os saberes inerente ao seu povo e punia as meninas


Kaiowá em um processo importante em seu caminho para tornarem-
se mulheres, o rito de reclusão do Kunhãkoty:

Tendo estudado em escolas tradicionais, observei várias situações


vivenciadas pelos meninos e meninas. As meninas eram muito
prejudicadas no período da sua primeira menstruação, quando precisavam
ficar reclusas por quinze a trinta dias. Notei que o projeto político
pedagógico das escolas não previa nenhum tratamento diferenciado para
a situação. A escola convencional, em geral, não respeita esse período,
causando reprovação, ausências, mostrando o descaso da escola em
relação à cultura Kaiowá. (VALDELICE, 2018, p. 07)

A partir do relato de Valdelice Veron e das análises de


Gregolin (2015), podemos observar que a escola brasileira não
apresentava elos com outras práticas e saberes que não fossem as
eurocêntricas. As disciplinas, o controle dos corpos, a arquitetura
emparedada e o conceito de civilidade das escolas refletiam a
ideologia de uma construção identitária que não dialogava com as
realidades indígenas.
Ao pensarmos o dispositivo escolar a partir da sua
articulação com o dispositivo colonial, conseguimos penetrar nas
redes de poderes e saberes que controlaram a produção de saberes
dos povos indígenas. A instituição escolar, compreendida como uma
“rede de inteligibilidades”, compõe uma complexa e plural maneira
para observarmos o funcionamento do dispositivo colonial. Sobre o
imbricamento em rede de poder e saber elaboradas pelo dispositivo,
Foucault nos alerta:

O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder,


estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de
saber que dele nascem, mas que igualmente o condicionam. É isto,
o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de
saber e sendo sustentadas por eles (FOUCAULT, 1999, p. 146).

134
Sumário

O dispositivo escolar implantado no Brasil no final do


século XIX e início do século XX nasce com o objetivo de controlar
a produção de saberes e os corpos. Ele traz consigo o legado colonial,
impondo as formas de saber daqueles que estavam no poder. A
cultura e os saberes Kaiowá, como nos fala Valdelice Veron, distintos
dessa proposta, não eram reconhecidos como legítimos. Os gritos da
professora, o modo diferente de ensinar, a negligência em relação ao
rito de reclusão do Kunhãkoty, vividos pelas meninas-moças Kaiowá
que, além de desrespeitado, era punido com reprovação por conta de
ausências indevidas, revelam esse dispositivo atuando na direção do
aniquilamento da forma como os Kaiowá compreendem e constroem
sua relação as mulheres indígenas. Essa relação desvelada por
Valdelice revela a violência da escola colonizadora.
A noção de dispositivo elaborada por Michel Foucault
apresenta uma sofisticada tecnologia de poder. Em compreensão aos
dispositivos de Michel Foucault, afirma Deleuze (1996, p. 02): “Se
há uma historicidade dos dispositivos, ela é a dos regimes de luz –
mas é também a dos regimes de enunciados”. Isso nos mostra que
a história de um dispositivo é marcada por linhas, compreendidas
como as linhas ou curvas de visibilidade e enunciabilidade, são
aquelas consideradas como as “máquinas de fazer ver e de fazer
falar”. Deleuze nos orienta na sensibilidade de que não é apenas
pintura, mas arquitetura e outras linguagens também podem ser
compreendidas como linha de visibilidade e enunciabilidade do
dispositivo. Como nos lembra Deleuze: “é que os dispositivos são
como as máquinas de Raymond Roussel, máquinas de fazer ver e de
fazer falar”.
Se por um lado os dispositivos podem ser compreendidos
como tecnologias sofisticadas de poder, por outro, pensar com mu-
lheres indígenas nos dá a oportunidade de conhecermos o papel
das resistências colocadas igualmente como elementos integran-
tes desses dispositivos. Nas palavras de Foucault: “onde há poder
há resistência!”

135
Sumário

Com o objetivo de continuarmos a contemplação das


propostas epistemológicas decoloniais realizadas pelos saberes
indígenas, observaremos a seguir, Valdelice Veron e sua articulação
dos saberes tradicionais do ritual Kunhãkoty, importante na elaboração
de gênero para os Guarani-Kaiowá, aos conhecimentos adquiridos
na academia, compreendidos por ela como seu Tekoha acadêmico na
direção de descolonizar e atualizar o dispositivo escolar

Valdelice e as linhas de atualização do


dispositivo escolar

Deixei meu tekoha por um tempo para conviver em outro


“tekoha”, desta vez com um formato acadêmico, para, não
somente, apresentar minhas ideias e conhecimentos, mas para
compartilhá-los e receber outros, vivendo e lutando como mulher
Kaiowá, na tentativa de sensibilizar a sociedade, para que cessem
as agressões violentas que vitimam e dizimam meu povo, em
nossas próprias terras.
Valdelice Veron
Na epígrafe que abre essa seção, observamos por meio
das palavras de Veron, o valor da elaboração de uma educação que
respeite as perspectivas culturais indígenas. Valdelice Veron é uma
intensa guerreira pelas causas de seu povo, os Guarani Kaiowá, que
historicamente passam por diversas formas de violação de seus corpos
e territórios. Além das ações ativistas corporificadas em marchas e
diversos outros tipos de manifestações que, muitas vezes, utilizam
as redes sociais para suas reinvindicações, Valdelice Veron elabora, a
partir dos saberes adquiridos academicamente articulados aos saberes
tradicionais, um ativismo que compreende a educação de crianças e
jovens indígenas como forma de fortalecimento dessas identidades.
Com a finalidade de compreendermos a proposta de
desconstrução da escola colonizadora empreendida por Valdelice
Veron, vamos conhecer a partir de sua pesquisa de mestrado, os

136
Sumário

procedimentos de construção social elaborado para formar as


mulheres Guarani-Kaiowá. Esse modo de elaboração relaciona-se
à construção de gênero nas perspectivas desse povo que tem sua
culminância no ritual do Kunhãkoty, elemento chave na concepção
descolonizada de educação indígena concebida pela pesquisadora.

“Sabemos que não nascemos prontas, mas


somos feitas!” O kunhãkoty e a importância da
mulher na educação Guarani-Kaiowá

Veron nasceu à beira de uma estrada no município de


Caarapó (MS), embaixo de uma árvore. O momento do nascimento,
realizado com a ajuda das Nhandesy e das Maxuypy (mulheres mais
antigas detentoras do conhecimento Kaiowá), representa para a
menina Kaiowá o início de uma longa e cuidadosa série de etapas
que vão culminar no Kunhãkoty, momento na puberdade, em que
a menina entra em reclusão para preparar-se para a vida adulta.
Sobre o seu nascimento e o papel das mulheres em sua sociedade,
ela conta:

Minha mãe conta que quando eu nasci, as Nhandesy (guardiãs


espirituais) se assustaram porque meu cabelo era branco, então falaram
que minha bisavó Maxuypy Tomazia tinha voltado (reencarnado).
Fizeram rito de nominação, e meu nome veio Xamiri Nhupoty (Flor do
Campo). (VERON, 2018, p. 13)

As Nhandesy e as Maxuypy são fundamentais no nascimento


da criança Kaiowá, pois, a partir do seu contato com as entidades
espirituais, elas compreenderão aquela nova existência e, a
apresentarão ao mundo de acordo com o papel que desempenham.
Esse ritual é denominado pelas Kaiowá como o rito de nominação.
A construção de homens e mulheres é um processo contínuo
elaborado pelos Kaiowá, inicia no nascimento da criança e tem sua
culminância na puberdade, por volta dos doze anos. Os meninos

137
Sumário

irão viver o Kunumi Pepy, festa de iniciação dos meninos; as meninas


vivenciarão o rito de reclusão chamado Kunhãkoty, como nos assinala
Veron (2018).
Ao vir ao mundo, Valdelice conta que sua avó, dona Tomazia,
profetizou que sua mãe seria uma Nhandesy, uma Maxuypy. Nesse
caso específico, uma série de procedimentos que envolviam banhos,
óleos e chás foram aplicados ao corpo da pequena Julia. A partir
do primeiro ano, até aproximadamente os oito anos de idade, o
corpo da menina era atravessado por procedimentos tradicionais
que envolviam ações como: sentar ao redor do fogo, assar o próprio
alimento e saber como comer, caçar pequenos animais, rezar, limpar
o pátio da aldeia, tomar banho de rio e respeitar a água, andar pelos
brejos com a finalidade de conhecer folhas, raízes, frutos e cascas
que servem de remédio e também, já na infância, aprende-se técnicas
iniciais de plantio.
Quando a mãe de Valdelice Veron completou nove anos de
idade, sua avó levantou cedo e falou para ela:

‘Tapeendy, hoje você está fazendo nove geadas de vida e eu fiz esse
colar pra você’. Colocou-o no pescoço da menina e falou novamente: ‘A
partir de hoje você não irá comer carne, durante seis luas, você só pode
comer pamonha, mandioca assada, batata doce assada, peixes e xíxa’. E
assim, todos os dias, minha mãe tomava banho com folhas de ysy, folhas
de nhandyta’y, folhas de cedro, folhas de ka’aroguene e à noite passava
óleo de mbuku’i no cabelo e no corpo, óleo de jacaré, óleo de sucuri,
óleo de mbore, óleo de jaratita (VERON, 2018, p. 23).

A cultura Kaiowá constrói, a partir da infância da menina,


uma disciplina para esse corpo: restrições alimentares e banhos com
óleos de bases animal e vegetal precedem a chegada da primeira
menstruação. São conhecimentos tradicionais na elaboração da
“pessoa que forma a mulher Kaiowá”. Nesse sentido, a afirmação
“Sabemos que não nascemos prontas, mas somos feitas”, título que
dá nome a esta seção, retirada da pesquisa de Veron, refere-se às
maneiras de como os corpos, mentes e espíritos das mulheres devem

138
Sumário

ser elaborados respeitando “o bom modo de ser Kaiowá”. Essa


ativista desvela que os ensinamentos levam o povo indígena da etnia
Kaiowá a acreditar que viver envolve “amor, humildade, esperança,
solidariedade e coletividade”, sentimentos transmitidos a partir de
uma construção que envolve o esforço das mulheres.
O ritual de construção de gênero Kaiowá funciona como
uma “baliza fundamental nessa educação” (VERON, 2018, p. 30).
Ser Maxuypy na cultura Kaiowá elabora sentidos relacionados
a se compreender como: detentora dos conhecimentos Kaiowá,
responsável pela oralidade e memória para a descrição dos
ensinamentos sobre a mulher Kaiowá, articuladora da família,
aprendiz sobre os tipos de remédios, alimentação, ensinamentos e
saberes tomados para a vida. Além dessas responsabilidades, elas
representam um poder de decisão política atuando como lideranças
religiosas e guias espirituais. Em bases gerais, elas se configuram
como os alicerces da família, imbuídas de autoridade social na vida
da comunidade.
O processo de elaboração do corpo da menina no caminho
de tornar-se mulher chega a um importante marco: a primeira mens-
truação. Nesse momento, realiza-se o ritual de reclusão do Kunhãkoty:

Sua avó, tias, mãe e todas as mais velhas se juntaram e cantaram ao


redor do yvyra’i, altar de reza, e a levaram para o quarto que fora
preparado para ficar de reclusão. No quarto tinha uma rede, um pilão
de socar, fogo, panelas de barros e uma lata grande de banho. Também
havia uma lata média para fazer as necessidades fisiológicas, com terra
dentro e, perto, um saco com folhas de yvyararyakwa, árvore com
cheiro agradável, de hortelã com alecrim, que eram jogadas dentro da
lata depois do uso.
As Maxuypy que cuidaram de Julia, durante trinta dias, foram a avó, a
mãe, a Nhandesy Mbo’y e as tias. O pai trazia os remédios e alimentos
que a menina precisava e passava para a mãe e a avó prepararem. Assim,
nos primeiros dias, todas as noites sua avó Tomazia, sua mãe e Mbo’y
se revezavam para rezar e contar o Conhecimento da Vida Kaiowá. A
avó explicava: “Minha neta Tapendi (Tapeendy), esse conhecimento é
a nossa história, nossa memória, e todas as futuras Maxuypy devem
saber na cabeça’.

139
Sumário
Naqueles trinta dias, minha mãe aprendeu a fazer as roupas e os enfeites
tradicionais, tudo sobre alimentação tradicional da mulher Kaiowá e,
principalmente, a nunca deixar o fogo familiar apagar. Enfim, todas as
mulheres mais velhas lhe ensinaram e repassaram os conhecimentos
necessários para viver a vida com sabedoria (VERON, 2018, p. 24).

Valdelice Veron esclarece que, devido a questões como:


“dificuldades de recursos naturais, expulsão dos territórios,
violência de não-indígenas e por estarem interessadas em outras
formas de viver etc.” (VERON, 2018, p.37), muitas moças de sua
comunidade estão deixando de realizar o ritual do Kunhãkoty. A partir
do diagnóstico do problema, Veron toma a atitude metodológica
de sistematizar, analisar e problematizar a importância central do
Kunhãkoty na formação das mulheres Kaiowá. Nessa empreitada,
a pesquisadora leva essa discussão às escolas e constrói uma
metodologia embasada na rede de transmissão que liga os Kaiowá
a seus antepassados. Valdelice informa que os ensinamentos
tradicionais sobre a construção da mulher no Kunhãkoty
decorrem do conhecimento das criadoras e criadores dos Kaiowá
e do mundo (as divindades). Esse conhecimento foi transmitido
aos antepassados e segue sendo transmitido nos dias de hoje pelas
rezadoras da comunidade.
A metodologia de Veron prevê a apresentação dos
fundamentos do rito do Kunhãkoty em língua Kaiowá. O estímulo
ao uso da língua originária acontece em decorrência de grande
parte de sua comunidade, principalmente os mais jovens, devido
às aproximações com as culturas não-indígenas e com os centros
urbanos, não estarem utilizando essa língua em atividades cotidianas.
Em consequência disso, língua e demais aspectos que acontecem a
partir dela entram em desuso e podem chegar ao desaparecimento.
Podemos, para o conhecimento de sua metodologia, tomar como
exemplo, algumas palavras e expressões na língua de Valdelice que
servem para nortear sua concepção que relaciona língua e cultura
indígena à construção de uma escola descolonizadora:

140
Sumário
1-Teko - É a vida do Kaiowá e de todo ser que respira em cima e
embaixo da terra, no ar, nas águas, as plantas grandes e pequenas, os
animais do mato, do cerrado, do brejo e todas as aves. Cada uma dessas
vidas depende da outra para sobreviver.
2-Tekoha – É o local onde acontece a vida, trata-se do tempo e do
espaço concretizado no território tradicional. É o modo de viver na
terra tradicional, lugar onde se vive com harmonia. Ali é onde vem
ser realizados os rituais que transformam a pessoa em um verdadeiro
Kaiowá, que são os seguintes: kunhãkoty, kunumipepy, avatikyry,
gwahu, kotyhu, jeroky, porahéi .
3- TekoMarane’y - É a vida sem mal, numa terra sem mal. É viver o
bom modo de ser Kaiowá em nossa terra, com óga, jeroky, porahéi,
kokwe, tape,ka’agwy, ysyry,mymba.
Isso acontece quando somos Kaiowá, vivendo sob a orientação de
Nhandes y: -Quando construímos a casa de reza, o lugar de reunião e
encontro entre nós e com os seres imortais (oy casa de ritos). [...]
4- Tekohanhe’e –vida-terra-língua. A vida, o território e a língua são
essências da vida do Kaiowá, que estão relacionadas. Para ter vida
deve haver a terra, local onde a língua Kaiowá, o sopro da vida flui.
Portanto, sem terra não haverá vida e sem vida não haverá a língua,
não haverá o bom modo de ser Kaiowá. Um canto Kaiowá sempre deve
ser repassado na língua Kaiowá e no lugar sagrado apropriado que
deve ser o nosso território. (VERON, 2018, p. 32-33)

Veron visibiliza um total de sete procedimentos, mas


para efeitos de recorte para nossa análise, foram expostos quatro
deles. O quarto exemplo nos fala sobre a relação entre “vida, terra
e língua” e descreve que, “para ter vida deve haver a terra, local
onde a língua Kaiowá, o sopro da vida flui”. Essa definição de língua
entra em diálogo com a compreensão de Michel Foucault para esta
materialidade, pois é possível enxergar na relação entre a existência
do signo, uma significação própria e sua relação com o espaço, no
caso Kaiowá, o território. É possível entrever uma importância e
sentidos particulares do tekoha que são ativados pela língua Kaiowá
na geração do teko, específicas para este povo.
Ou, nas palavras de Foucault (1999, p. 132): “a linguagem
é toda ela discurso, em virtude desse singular poder de uma palavra
que passa por sobre o sistema de signos em direção ao ser daquilo
que é significado”. Ele discorre sobre o valor da linguagem em sua

141
Sumário

composição discursiva, deixando-a envolvida pela língua quando


nos fala de um “sistema de signos”. O filósofo ressalta a importância
central relacionada aos estudos da linguagem: o que permite
determinada significação e não outra.
A história de vida de Veron (2018, p. 06) nos elucida sobre
a presença de quatro línguas em sua constituição: “Sou falante das
línguas Kaiowá, Guarani, Espanhol e Português”. Cada uma dessas
línguas registra no corpo dessa mulher atravessamentos discursivos.
As línguas portuguesa e espanhola são as línguas dos colonizadores.
As línguas Guarani e Kaiowá representam sua história, relacionam-
se aos seus modos de vida e territórios. O Kaiowá, corresponde
ao dialeto Guarani, da família Tupi-Guarani, gerados a partir do
grande tronco Tupi que é a base de outras nove famílias. O Kaiowá
é a língua de seu povo de nascimento e, guarda no seu interior a
riqueza de sua cultura. O Guarani remete ao seu casamento com
um homem Guarani. As línguas Kaiowá e o Guarani marcam sua
história étnica e de vida.
A atitude metodológica empreendida no cruzamento
do seu Tekoha acadêmico, a vivência de Valdelice Veron em sua
comunidade e sua experiência na escola, coloca em movimento a
língua e estabelece para seus signos a relação com o seu espaço,
construindo, dessa maneira, uma rede de significação própria
relacionada à sua formação discursiva. Nessa enredada relação e na
atitude de articulação de saberes, localiza-se a base da concepção de
escola descolonizada empreendida por Valdelice Veron.
A partir dessa concepção de construção de uma escola que
valoriza a cultura e respeita os corpos indígenas, Valdelice Veron
empreende uma escola descolonizada. Nesse espaço, os aspectos
como língua e cultura formam uma rede de saberes que fortalece
as identidades Guarani-Kaiowá. Veron e as narrativas de seu povo,
promovem formas de descolonização do conhecimento a partir de
uma outra perspectiva escolar e de língua.

142
Sumário

Considerações finais

Os estudos linguísticos tradicionais nos ensinam uma


definição de língua vinculada ao “Curso de linguística Geral”, livro
que concede status de ciência à linguística. Nesse livro, Saussure
delineia sua famosa definição de língua como “um produto social da
faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias,
adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade
nos indivíduos” (SAUSSURE, 2006, p. 17).
Apesar de utilizar o “corpo social” para construir sua
definição, sabemos que a relação entre língua e sociedade somente
acontece, de acordo com a lógica de Saussure, por esta última ser
uma espécie de reprodutora passiva da estrutura linguística. Para
o linguista, “língua não constitui, pois, uma função do falante: é o
produto que o indivíduo registra passivamente; não supõe jamais
premeditação, e a reflexão nela intervém somente para a atividade
de classificação” (SAUSSURE, 2006, p. 22).
Compreendemos nesta pesquisa que as línguas produzidas
pelos povos originários do Brasil foram alvo de um planejado
e estratégico apagamento histórico empreendido por políticas
coloniais. Atualmente, as narrativas orais e as memórias têm sido
fios condutores para muitas sociedades indígenas revitalizarem suas
relações com as próprias línguas. Além disso, a partir da utilização
desses elementos, torna-se possível perceber a construção de uma
relação descolonizadora entre indígenas e a instituição escolar.
A metodologia que envolve língua e sociedade em diálogo
com os fundamentos da Kunhãkoty, utilizados no tekoha acadêmico
de Valdelice Veron como forma de construir uma revitalização
desse ritual, estimula o fortalecimento dos regimes de saberes,
práticas e modos de viver Guarani-Kaiowá. Veron produz a partir
dos saberes indígenas intrinsicamente conectados às suas práticas
culturais, uma compreensão de língua que estabeleça relação com
culturas, saberes e histórias de sujeitos e sujeitas. Nessa visada, a
língua é projetada para além do entendimento de sua “estrutura”,

143
Sumário

recorrentemente interpretado na leitura da obra de Saussure como


um mecanismo fechado às interações produzidas por seus usuários.
Nesse empreendimento teórico, torna-se possível visualizarmos as
ideias de Michel Foucault em relação à materialidade linguística.
Apesar de admitir explicitamente que seu objeto de
investigação não é a língua e que o enunciado não se localiza no
mesmo nível desta, como nos assegura Michel Foucault em “A
Arqueologia do Saber”, Foucault assume posição fulcral em sua
observação sobre a língua. Pois, como nos lembra Gama Khalil
(2014, p. 328), “o próprio autor afirma que a materialidade linguística
não é dada ao enunciado como mero suplemento, mas constitutiva
de seus possíveis sentidos”. Essa perspectiva abre as portas para
estabelecermos uma definição sobre língua que abarque interações
de ordens sociais. Para Foucault, “O que permite a um signo ser
signo não é o tempo, mas o espaço” (FOUCAULT, 2000, p. 168).
Esse posicionamento foucaultiano sobre o “signo” nos faz
refletir que signo linguístico, elemento basilar na concepção de
língua, pode estabelecer sentidos outros em sua relação com os
espaços sociais, como articula o autor. O signo pode estabelecer
a partir de lugares que produzem dizeres ‘autorizados’, efeitos de
sentido específicos no interior de uma formação discursiva e não de
outra, como nos adverte Gama Khalil (2014). Em outras palavras,
quando Valdelice Veron problematiza a prática do Kunhãkoty no
interior de sua comunidade, compreendida como um espaço de
produção de um dizer autorizado, ela estabelece com esse signo
elos culturais com seu povo a partir desta prática que enredam
língua e sociedade.
A partir das experiências e conhecimentos que envolvem
metodologias para a construção de uma escola indígena
descolonizada, percebemos que, mesmo um dispositivo como
o escolar em sua complexa estrutura colonizadora, pode vir
a ser reconstruído e utilizado a favor daqueles que antes foram
submetidos a uma dura e violenta disciplina imposta por esse

144
Sumário

dispositivo que dizimou não somente seus corpos, mas, por muito
tempo invisibilizou seus conhecimentos.
O olhar acadêmico elaborado por Valdelice Veron, que
tem por base as narrativas de seu povo, nos impõe a necessidade
de observarmos a produção do conhecimento realizada por
representantes das populações que foram e ainda hoje estão em
condições subalternizadas. A pluralidade dos saberes visíveis nas
realidades de Valdelice e de outras populações indígenas podem nos
conduzir a outros caminhos epistemológicos.

Referências

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Português: para uma história dos usos sociais das Línguas na
Amazônia, 2003.
BESSA FREIRE, J. R. Rio Babel - a história das línguas na
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FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Nascimento da prisão. Petrópolis.
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FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Paz e
Terra. 2015.
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GAMA KHALIL, L. Michel Foucault e os estudos linguísticos:
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145
Sumário

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LISBÔA, F. M. Racismo linguístico e os indígenas gavião na
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SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. Organização Charles
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VALDELICE VERON. Revista do Instituto Humanitas Unisinos.
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VERON, V. Tekombo’e kunhakoty: modo de viver da mulher
Kaiowá. Dissertação de Mestrado. UNB. Brasília: [s.n.], 2018.

146
CAPÍTULO 6

OS POVOS INDÍGENAS E AS TELENOVELAS


BRASILEIRAS
O DISCURSO DA “FALA ERRADA” DA LÍNGUA
PORTUGUESA NAS FICÇÕES SERIADAS TELEVISIVAS

Vívian de Nazareth Santos Carvalho

Introdução

Desde o início da colonização portuguesa, no século XVI,


a ocupação sistemática das terras indígenas, além de promover um
grande genocídio entre os primeiros indígenas contactados, marcou
também o começo dos austeros processos de intervenção nas
práticas culturais desses povos. A imposição da língua portuguesa
representou uma das principais estratégias do sistema colonial
e, ainda hoje, o discurso da uniformidade ajuda a silenciar as
pluralidades linguísticas de nosso país.
No Brasil, estima-se que são faladas mais de 200 línguas
indígenas, um dado que refuta a pretensa unidade linguística
brasileira. Da mesma forma, não devemos acreditar que brasileiros,
moçambicanos, angolanos e todos os habitantes das ex-colônias
portuguesas falam a mesma língua. Também não podemos
desconsiderar como as heterogeneidades históricas e culturais
de nosso país produziram diferenças linguísticas regionais tão
acentuadas, de forma que acreditar em uniformidade linguística é
uma posição colonial ou, no mínimo, ingênua.
Sumário

O objetivo lusitano de integrar suas colônias, a partir da


uniformização linguística, em diferentes momentos da história,
foi atualizado pelo Estado brasileiro. As políticas de comunicação
estabelecidas desde a primeira metade do século XX, afeitas ao
clientelismo político, são estruturadas a partir de concessões
de emissoras de rádio e televisão, num processo bem pouco
comprometido com a democratização da comunicação no Brasil.
Nesse cenário, a preocupação com a diversidade cultural nunca
esteve em condição de igualdade com os interesses mercadológicos
e eleitoreiros, que, em grande medida, determinam as pautas
da programação televisiva. Em linhas gerais, as políticas de
comunicação no Brasil são de desrespeito em relação ao direito de
povos indígenas e afrodescendentes.
Nas produções televisivas, assim como acontece com
os livros didáticos, nos registros oficiais da história do Brasil,
ou ainda em projetos de evangelização realizados por diferentes
igrejas, podemos perceber uma incessante “desqualificação” dos
povos indígenas, cuja diversidade linguística e cultural costuma
ser amalgamada na construção de personagens que oscilam entre
selvagens ingênuos ou agressivos, sempre à margem da civilização.
Sem dúvida, uma das principais estratégias desse processo, residiu
em criar uma “fala errada” para esses personagens, que se opõe à
suposta uniformidade linguística do português no Brasil.
Neste capítulo, propomos analisar como as telenovelas
atualizam o discurso bastante instituído na sociedade brasileira
sobre as identidades indígenas: a “fala errada” da língua portuguesa.
Como objeto de análise, recortamos as cenas de três telenovelas em
que os personagens indígenas são protagonistas: Aritana (1978),
exibida pela TV Tupi, e Uga Uga (2000) e Alma Gêmea (2005),
pela Rede Globo. Trazemos também para a análise, uma cena da
telenovela A Lua me Disse (2005), da TV Globo, em que havia uma
personagem indígena na trama secundária.
Entendemos que as telenovelas representam um
privilegiado espaço de produção de sentidos sobre as identidades

148
Sumário

dos povos indígenas no Brasil. Para analisar a presença desses


personagens indígenas, tomamos como base o método arqueológico,
proposto por Michel Foucault (2008). Procuramos compreender
como as regularidades discursivas e suas dispersões, na construção
da fala dos personagens indígenas, constituíram-se a partir das
condições de possibilidades históricas dos momentos em que essas
telenovelas foram exibidas.

Telenovelas brasileiras: regularidades e


dispersões

A telenovela é o produto de maior rentabilidade da


televisão brasileira (ORTIZ; BORELLI e RAMOS, 1991). Ao longo
de seus mais de 50 anos de existência, a telenovela “conquistou
reconhecimento público como produto artístico-cultural e ganhou
visibilidade como agente central do debate sobre a cultura brasileira
e a identidade do país” (LOPES, 2014, p. 2). A convivência da
população brasileira com a telenovela independe da disponibilidade
dos telespectadores em acompanhar diariamente seus capítulos, já
que ela,

repercute nos jornais, nas revistas semanais, na programação das


emissoras como um todo (rádio, TVs) [...] assumindo uma quase
onipresença. Ela está em todos os outros meios de comunicação e
se impõe como tema das conversas cotidianas, em particular dos
segmentos menos escolarizados para os quais ela representa uma das
poucas opções de lazer e mesmo de saber (MOTTER, 2003, p.22).

Desde o final da década de 1960, houve um processo de


nacionalização das telenovelas. A discussão de problemas reais da
sociedade brasileira e a tendência para uma maior verossimilhança
nas histórias contadas são, hoje, questões reivindicadas pelo próprio
público (LOPES, 2009). E as críticas dos telespectadores são comuns,

149
Sumário

quando as tramas fogem ao que eles consideram como a realidade.


De acordo com Motter (2013), essa estreita relação entre ficção e
realidade faz com que a telenovela assuma um papel educativo e
seja elevada ao status de propagadora de saberes sobre o mundo
(MOTTER, 2013).
Entendemos que os discursos presentes nessas produções
contribuem bastante para estabelecer memórias coletivas da
sociedade brasileira e as temáticas tratadas nestas narrativas são
definidas muito em função de serem legitimadas pelo público. Em
relação às sociedades indígenas é recorrente a presença da “fala
errada da língua portuguesa”, como sendo um aspecto significativo
da identidade do sujeito indígena.
Nossa análise se fundamentou no método arqueológico
proposto por Michel Foucault (2008). Atribuímos, portanto, uma
densidade histórica aos enunciados presentes nessas diferentes te-
lenovelas. De acordo com Foucault (2008, p. 50), é preciso estarmos
atentos às condições,

Para que apareça um objeto de discurso, as condições históricas para


que dele se possa ‘dizer alguma coisa’ e para que dele várias pessoas
possam dizer coisas diferentes, as condições para que ele se inscreva
em um domínio de parentesco com outros objetos, para que se possa
estabelecer com eles relações de semelhança, de vizinhança, de
afastamento, de diferença, de transformação – essas condições, como se
vê, são numerosas e importantes. Isto significa que não se pode falar de
qualquer coisa em qualquer época (FOUCAULT, 2008, p.50).

Entendemos que os discursos estão dispersos no tempo,


mas mantêm algumas regularidades em relação a um mesmo objeto.
Essas regularidades formam enunciados discursivos. Para Foucault
(2008, p.122), o discurso é formado por um “conjunto de enunciados
que se apoia em um mesmo sistema de formação”, ou seja:

150
Sumário
Chamaremos de enunciado a modalidade de existência própria desse
conjunto de signos: modalidade que lhe permite ser algo diferente de
uma série de traços, algo diferente de uma sucessão de marcas em uma
substância, algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser
humano; modalidade que lhe permite estar em relação com um domínio
de objetos, prescrever uma posição definida a qualquer sujeito possível,
estar situado entre outras performances verbais, estar dotado de uma
materialidade repetível (FOUCAULT, 2008, p.121).

O percurso indicado por Foucault (2008) propõe identificar


a regularidade nos enunciados, que estão presentes em diferentes
materialidades, para entender quais redes de memórias eles compõem.
A partir da observação desse processo, foi possível pesquisar quais
os enunciados sobre as sociedades indígenas estão presentes nos
produtos audiovisuais, tomando as telenovelas brasileiras como
materialidades principais da análise.
Nos produtos audiovisuais, as articulações entre imagens
e sons formam diferentes enunciados sobre as sociedades indíge-
nas. Esses enunciados, quando postos em séries, podem ser en-
tendidos como uma rede de memória que produz sentidos sobre
esses povos. Propomo-nos, aqui, analisar como a “fala errada” de
quatro personagens indígenas constituem enunciados que ajudam
a construir uma identidade indígena. Para Foucault, como explica
Gaspar (2007, p.64):

A série enunciativa pode ser constituída por materialidades diferentes,


sujeitos distintos e ‘contextos’ (campos associados) que se assemelham
ou se diferenciam entre si. O que os une é a possibilidade de se
identificar o mesmo enunciado, pois este se repete.

Partindo desse princípio, na análise dos enunciados das


“falas erradas” de personagens indígenas, assinalamos suas regu-
laridades também em algumas animações famosas que apresentam

151
Sumário

personagens indígenas. Relacionar essas outras materialidades nos


ajuda a ampliar o que se “falou” e ainda se “fala” sobre esses povos,
isto é, como se produz os sentidos sobre as sociedades indígenas em
outras instâncias de significação.

Personagens indígenas e a “fala errada” da


língua portuguesa

O discurso de que o sujeito indígena não fala corretamente


a língua portuguesa está bastante instituído entre nós. Enunciados
como “mim quer”, “mim vai”, recorrente em desenhos animados
e filmes em que personagens indígenas aparecem, são atribuídas
como a forma errada, engraçada, com que um indígena se comunica.
Esse discurso nos acompanha desde a infância. Quando as crianças
enunciam falas como “para mim comprar”, podem ser repreendidas
por pessoas com um razoável nível de instrução, com a seguinte
afirmação: “Quem fala ‘mim’ é índio!”.

Também existe uma memória dos sons que nos remete aos indígenas,
aquele produzido ao bater na boca como se fosse um instrumento
percussivo: ‘boo-boo-boo’. Esta onomatopeia é bem recorrente nos
filmes e desenhos animados, que ainda continuam a colorir esses
homens e mulheres com os tons da extravagância. Em 2011, durante as
atividades de um projeto de pesquisa, levei a jovem escritora Aikewára
Murué Suruí e sua família, para conhecer o Parque Ambiental do Utinga
na cidade de Belém e ela estava com o corpo pintado de grafismos, um
garoto se aproximou de nós e quando estava perto dela, retomou esta
memória associada aos indígenas e fez ‘Boo boo-boo’ (TOCANTINS,
2012, p.22).

Sem muita dificuldade, numa rápida busca no site Youtube,


podemos encontrar algumas produções audiovisuais com personagens
indígenas. Analisando esses vídeos, vamos logo constatar que o “falar
errado” a língua portuguesa, ou emitir sons no lugar de palavras,

152
Sumário

são características bem recorrentes entre os personagens indígenas.


Selecionamos dois exemplos envolvendo desenhos animados
produzidos no Brasil e nos Estados Unidos.
No desenho animado Little Hiawatha, que traz o indiozinho
“Hiawatha”, personagem criado pelo estúdio Walt Disney, em 1937,
a criança indígena se expressa verbalmente com a onomatopeia “boo-
boo-boo”. No desenho animado A Ilha Misteriosa, os personagens
criados pelo escritor Maurício de Sousa, Cebolinha e Mônica, ao
avistarem um grupo de pessoas que eles acreditam ser de uma
“tribo” indígena, Cebolinha diz: “mim Cebolinha”, em uma tentativa
de conversar com elas.
Essa mesma formação discursiva está presente em
telenovelas que trazem personagens indígenas. A seguir, vamos
analisar como essa “fala errada” constitui uma característica
marcante na construção de personagens indígenas presentes em
quatro diferentes telenovelas.

Aritana: trama focada em temáticas indígenas,


porém sem deixar de lado o preconceito
linguístico

A telenovela Aritana, escrita por Ivani Ribeiro, foi exibida


de 13 de novembro de 1978 a 30 de abril de 1979, às 20 horas,
pela TV Tupi. A temática central da narrativa era a questão da
demarcação de terras indígenas. Essa telenovela contou a história
do indígena Aritana (Carlos Alberto Riccelli), que vivia no Xingu e
era filho de uma indígena com um homem branco. O tio de Aritana,
o rico fazendeiro Nhonhô Correia (Jayme Barcellos), não queria
dividir com ele as terras onde o indígena e seu povo viviam. Nhonhô
pretendia negociar as terras com um grupo dos Estados Unidos.
Diante desse problema, Aritana sai de sua aldeia e vai para a cidade
em busca de defender os interesses de seu povo.

153
Sumário

Essa foi a única telenovela brasileira que trouxe como


trama central a discussão de uma temática indígena. No entanto,
o elenco principal de Aritana não contava com a participação de
nenhum indígena, que só apareciam como figurantes. Essa é uma
situação recorrente nas telenovelas e minisséries brasileiras que
trazem personagens indígenas em suas tramas.
Aritana também recorreu ao discurso da “fala errada”
indígena. No primeiro capítulo, há uma cena em que Aritana discute
com um personagem não indígena, que foi à aldeia para avisar que
aquela sociedade seria expulsa de suas terras. Na cena, a fala errada
da língua portuguesa fica bem evidente no protagonista indígena:

Aritana: Terra nossa! Num sai daqui! Terra nossa!


Comerciante: Aritana, o cacique já explicou para você o que aconte-
ceu, certo?
Aritana: Errado! Tudo errado! Esse terra nossa, não caraíba! Terra
nossa!
Comerciante: Aritana, vocês têm que sair daqui, porque o governo, o
chefe maior dos caraíbas, descobriu que nesta terra tem minério.
Aritana: Quê isso minério?
Comerciante: Minério é uma coisa rica que tem por baixo da terra,
entende? O minério tem que ser explorado e a tribo tem que sair daqui.
Aritana: Quê explorado esso, minério? Terra nossa! Nós não sai daqui.
E onde, num tem pra onde ir, e onde?
Comerciante: O governo dá outra terra pra vocês.
Aritana: Não, outra terra não! É outra terra, camará. Sempre viveu
aqui, sempre tuda gente viveu aqui, nessa terra toda viveu. Tudo terra
de avô, terra de bisavô, é ‘prantou’ tudo, fez roça de mandioca, é milho
é tudo esso.

Além da fala errada, essa cena evidencia dois outros discur-


sos bastante recorrentes em telenovelas que trazem personagens
indígenas: a maneira boba com que esses personagens se comuni-
cam e a total falta de informação sobre as práticas cotidianas de
uma grande cidade. Em Aritana, o personagem ocidental precisa se

154
Sumário

valer de comparações para que o indígena entenda o que é um go-


verno e o que é um minério. Na fala do personagem, governo seria
o equivalente ao “chefe maior dos caraíbas” e minério “é uma coisa
rica que tem por baixo da terra”. Aritana não sabe o que é governo,
riquezas ou minérios, ou seja, não conhece nada que esteja alheio
às atividades de sua aldeia. O desconhecimento de Aritana sobre as
riquezas de suas terras também não condiz com a realidade, já que
desde a colonização portuguesa, povos indígenas convivem com as
tentativas de exploração, pelos europeus, dos recursos presentes em
seus territórios.
Essa telenovela, exibida em 1978 pela TV Tupi, trouxe
como trama principal a luta do protagonista indígena para conseguir
a posse definitiva das terras em que ele e seu povo viviam. Na cena
descrita acima, Aritana está apreensivo com a notícia de que seu
povo será expulso injustamente. Entretanto mesmo se tratando de
um assunto sério para essa sociedade indígena, já que ela está na
iminência de perder suas terras, o tom bobo com que Aritana se
expressa provoca nos telespectadores a sensação de estar diante de
um personagem cômico. O viés de comédia em que a cena é construída
tira a seriedade do problema enfrentado pelos povos indígenas
desde a colonização, que é de terem seus territórios ameaçados e,
efetivamente, tomados pelo governo e empresas exploradoras de
recursos naturais.
A fala errada do personagem Aritana obedece à mesma lei
de formação discursiva presente no Brasil no século XVI. As cartas
enviadas por navegadores europeus, em 1500, à corte portuguesa,
relatam a difícil tentativa de diálogo entre eles e os indígenas. No
início do século XVI, Pero Vaz de Caminha escreve que a barbaria dos
indígenas era tamanha que “se não entendia nem ouvia ninguém”.
Os discursos presentes nas telenovelas sobre a maneira de falar do
sujeito indígena estão filiados às redes de memória que retomam e
atualizam os discursos presentes desde o período colonial.

155
Sumário

Tatuapu: o índio louro que aprendeu a falar


português para ser “civilizado”

Escrita por Carlos Lombardi, Uga-Uga foi exibida de 08 de


maio de 2000 a 19 de janeiro de 2001, às 19 horas, pela TV Globo.
Essa telenovela teve como protagonista o personagem Tatuapu
(Cláudio Heinrich), um homem branco ocidental que foi criado por
uma sociedade indígena, na floresta amazônica. Somente quando
adulto, Tatuapu encontra seu avô de sangue e vai morar com ele
na cidade do Rio de Janeiro. De natureza cômica, característica
das telenovelas desse horário, Tatuapu, assim como os outros
personagens dessa trama, prestava-se ao risível.
O autor Carlos Lombardi desconsiderou as 274 línguas
indígenas faladas no Brasil e inventou uma língua imaginária, que
seria a língua da sociedade indígena a que Tatuapu pertencia. Para
criar esse idioma fictício, o autor se inspirou no som do idioma
falado no Taiti.
O protagonista de Uga Uga, já na casa do avô, aparecia,
constantemente, pulando por cima dos móveis, semelhante a um
animal. Quando ainda morava na floresta amazônica, andava sempre
com uma lança nas mãos, imagens que em nossa rede de memória
visual nos remetem ao homem das “cavernas”. A “fala errada” que
caracterizava Tatuapu também é uma característica atribuída aos
homens das cavernas. Um famoso personagem dos estúdios Hanna
Barbera, o Capitão Caverna, falava desse jeito.
Ao chegar à cidade, ele teve que mudar seus hábitos,
aprender a se comportar em um ambiente urbano e a falar a língua
portuguesa. Nas palavras dos personagens cariocas, Tatuapu
precisou se civilizar. De forma bastante infantilizada e cômica,
Tatuapu tentava se comunicar com as pessoas da cidade, falando
palavras como “axim”, “sojinu” e “homi”, ao invés de “assim”,
“sozinho” e “homem”, por exemplo.
No capítulo 48, Tatuapu conversa com a personagem
Guínevère Anísio, conhecida como Gui (Nívea Stelmann), na casa

156
Sumário

de seu avô Nikos (Lima Duarte). Na cena, o personagem indígena


alterna entre se expressar na língua de seu povo e na língua
portuguesa.

Gui: Não, não quero água. Hoje eu vim visitar o meu pai, o Anísio.
Tatuapu: Nísio! Nísio! Papai Gui.
Gui: Isso. Puxa, você não esqueceu meu nome!? Você aprende rápido
em Tatu?
Tatuapu: Sons indecifráveis... Gui, fica!
Gui: Não posso, Tatu. Se eu ficar aqui, o seu avô vai ficar muito bravo.
Tatuapu: Fica! Tatu sojinu.
Gui: Não é sujino! É sozinho. Tá bom, eu fico!
Tatuapu: Mais água!
Gui: Esse negócio de água deve ser um ritual muito importante pra
vocês, né? Ritual, coisa muito importante.
Tatuapu: Rituaaaal. Ri-tu-al.
Gui: Deixa Tatu, esquece. Ritual é um conceito muito difícil mesmo.
Vem cá, você disse que tava sujino, sozinho. Por quê? Ninguém vem
ficar com você não?
Tatuapu: Calacalu iaca. Papu naca. Papu não goxa Calacalu. Biga.
Gui: Ah! Eu sei, eu sei. O seu avô é muito ciumento. Ciúme. Ele quer
você só pra ele. Quando Calacalu vem, teu avô te puxa assim ó: “Tatu,
Tatu é de Papu.”
Tatuapu: Gui (língua indígena fictícia) homi?
Gui: Não, eu não sou homem, não. Sou mulher. Mulher!!!
Tatuapu: Gui mulher. Tatu homi.

Para aprender a língua portuguesa, Tatuapu também tenta


compreender as palavras de um livro didático. Nessas cenas, ele
aparece falando os nomes dos objetos que constam no livro, como
“bola” e “bolo”. Gui, ao ver o indígena lendo, o elogia e diz que ele
precisa estudar muito a língua portuguesa para ser alguém na vida.
A construção identitária de Tatuapu gerou descontenta-
mentos por parte das sociedades indígenas brasileiras. Durante a
exibição dessa telenovela, uma Comissão Indígena, da Bahia, enviou
uma carta à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputa-
dos protestando contra a maneira estereotipada do personagem de

157
Sumário

Uga Uga. De acordo com o documento, os personagens indígenas


eram apresentados como “animais de atração em um circo”. Segue
um trecho da carta:

Nós, da Comissão Indígena, encarregados de encaminhar as


reivindicações e exigências da Conferência Indígena, realizada em abril
do corrente ano em Coroa Vermelha (BA), representando diversos
povos indígenas do Brasil, vimos, através desta, protestar contra
a Rede Globo de Televisão, devido à forma com que a sua novela
‘Uga Uga’ vem apresentando a imagem dos índios em nosso país. A
imagem apresentada é de povos sem sentimento e sem capacidade;
somos apresentados como animais de atração em um circo, usados para
chamar a atenção dos telespectadores daquela emissora. Queremos
deixar bem claro que somos povos com memória viva - não nos
esquecemos do que se passou nestes 500 anos de história - temos nossas
culturas e exigimos respeito com relação aos nossos costumes e nossas
tradições, inclusive com relação aos nossos pajés. Entendemos que a
citada novela abre um caminho para os não-índios se relacionarem
de forma preconceituosa com os povos indígenas. Especialmente com
as mulheres índias, estimulando, inclusive, a violência sexual contra
elas (Índios apelam a Direitos Humanos contra novela, Câmara dos
Deputados, Brasília, 2000).

Essa reivindicação não proporcionou mudanças nas ma-


neiras de agir do personagem Tatuapu, que continuou com as
mesmas características cômicas propostas no início da telenovela.

A índia de A Lua me disse

Escrita por Maria Carmem Barbosa e Miguel Falabella, A


Lua me disse foi exibida de 18 de abril de 2005 a 01 de outubro de
2005, às 18 horas, pela TV Globo. Em uma trama secundária, a
personagem Índia era uma empregada doméstica que sofria maus
tratos de suas patroas, Adail Goldoni (Bia Nunnes) e Adalgisa
Goldoni (Stella Miranda). Índia, que pertencia à sociedade
Nambiquara, localizada no Estado do Mato Grosso, era uma

158
Sumário

mulher preguiçosa, que não conseguia se comunicar direito com os


personagens não indígenas e suas atitudes, muitas vezes, giravam
em torno de interesses relacionados às práticas sexuais.
A telenovela A Lua me Disse é mais um exemplo de
como os discursos sobre a “fala errada” indígena são recorrentes
nas produções teledramatúrgicas brasileiras. Na telenovela, a
personagem indígena, uma empregada doméstica que não tinha
nome e era chamada apenas de Índia (interpretada pela atriz indígena
paraense, Bumba), referia-se a si na terceira pessoa. Na cena em
que Índia conversa com suas patroas, Adail e Adalgisa, observamos
como esta telenovela construiu a locução verbal da personagem:

Índia: Índia tá pronta.


Adalgisa: Índia tá pronta pra quê?
Índia: Índia quer ver Soraya entrando na igreja. Índia viu Soraya
crescer.
[...]
Adail: Índiazinha, minha querida, nós não podemos entrar na igreja
com você.
Índia: Não precisa! Índia tem perna. Índia sabe andar.

Mais do que o diálogo cômico entre uma empregada


doméstica indígena, humilhada por suas patroas, brancas e ricas,
essa cena só foi possível de ser produzida e exibida porque, na
memória coletiva brasileira, o sujeito indígena é aquele que se
expressa verbalmente de maneira errada e, por isso, engraçada. Um
discurso historicamente construído que é constantemente evocado
quando se pensa em um indígena. Halbwachs (2006) explica que a
memória nunca é individual, pois como sujeitos inseridos em uma
sociedade, as nossas lembranças:

Permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se


trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos
que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós. Não
é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós,

159
Sumário
porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas
que não se confundem (HALBWACHS, 2006, p. 30).

A telenovela não é uma produção apartada da sociedade. Seus


diálogos não são fruto da lembrança isolada de um roteirista e, sim,
têm uma natureza social. Em uma análise foucaultiana, entendemos
que as telenovelas não são produções isoladas, pois os discursos que
circulam em suas tramas não estão separados da história da sociedade
brasileira. Como explica Foucault (1999), não devemos procurar “o
ponto da criação, a unidade de uma obra, de uma época ou de um
tema, a marca da originalidade individual e o tesouro indefinido das
significações ocultas” (FOUCAULT, 1999, p. 54), mas sim, tratar os
discursos como práticas descontínuas e, a partir da sua aparição e de
sua regularidade, observar as suas condições externas de possibilidade.
Durante a exibição dessa trama, entidades do estado
de Mato Grosso, ligadas à defesa dos direitos das sociedades
indígenas, elaboraram uma nota contra a direção da telenovela A
Lua me Disse. Segue abaixo a transcrição da nota:

Constatamos com tristeza que a criatividade do Sr. Falabella, na


sua mais recente novela (“A lua me disse”), atingiu a imagem do
povo Nambiquara, que merece, pela sua história de resistência e
sofrimento, o mais profundo respeito de cada um de nós, brasileiros.
A índia Nambiquara, na caricatura da novela, está condenada ao
estrato mais subalterno da sociedade, quase como se fosse um
animal exótico, divertido, digno de riso. Uma imagem que não é
totalmente alheia à nossa realidade, onde o preconceito legitima a
exploração, a expropriação e o abandono do poder público. Cabe à
televisão brasileira o importante papel de educar, todos sabemos.
De um autor/ator respeitado pelo seu público esperamos mais do
que a confirmação de ideias e valores que os povos indígenas lutam
tanto para superar, nas suas mais variadas formas de discriminação
das diferenças (Preconceito contra povos indígenas, Observatório da
Imprensa, 2005).

160
Sumário

Essa nota foi entregue ao Congresso Nacional e à TV


Globo. A repercussão em diversos sites na internet motivou uma
ação do Ministério Público do Rio de Janeiro contra a TV Globo.
A ação civil pública, com pedido de liminar, solicitava que:

A Ré [TV Globo] seja impedida de transmitir, no curso da novela ‘A Lua


me disse’, quaisquer cenas que exponham a personagem índia a situações
constrangedoras ou degradantes, ou que alimentem o estereótipo
contra indígenas, sob pena de pagamento de multa cominatória no valor
de R$ 500.000,00, por cena exibida contrariamente à decisão, a qual se
reverterá ao Fundo de que trata a Lei nº 7.347 sem prejuízo das sanções
penais e administrativas pelo descumprimento de ordem judicial.
[...]‘Por determinação da Justiça Federal brasileira, informamos que
deixamos de abordar a personagem Bumba em contexto cuja tônica é
fazer rir porque era reforçador de imagens negativas frequentemente
associadas à população indígena, a qual tem seus costumes, línguas,
crenças e tradições reconhecidas constitucionalmente (art. 231, CF),
portanto são parte e fonte da cultura nacional, que deve ser valorizada,
especialmente por concessionários de serviços públicos, como é o caso
das emissoras de televisão (Agravo de Instrumento, JusBrasil, 2006).

A liminar foi suspensa por decisão do presidente da 8ª


Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, desembarga-
dor Federal Poul Erik Dyrlund. De acordo com o desembargador,
a liminar poderia acarretar o chamado perigo da demora inverso, já
que a Constituição Federal proíbe, no artigo 220, a restrição ao pen-
samento, à criação, à expressão e à informação, sob qualquer forma.
Outra mensagem enviada à Fundação Nacional do Índio
(FUNAI) solicitava que o órgão se pronunciasse contra essa
telenovela. O documento é de autoria do indígena Panderewup
Zoró, que na época da exibição de A Lua me Disse era vereador, e de
dois professores Nambiquara:

Estivemos visitando o site da FUNAI e nos surpreendemos quando


não vimos nenhuma manifestação deste órgão de proteção e defesa do
direito dos povos indígenas, quanto ao desrespeito, preconceito, uso
indevido da ‘imagem’ dos índios, demonstrado claramente na novela de

161
Sumário
Miguel Falabella A Lua Me Disse, quando uma indígena atriz do Pará
que não é da etnia Nambiquara é chamada de Nambiquara, colocando
para todo Brasil uma distorção da imagem da mulher indígena (A
polêmica sobre a Índia de Falabella: líderes Nambikuara protestam
contra novela da Globo, Florêncio Vaz, Belém, 2005).

A repercussão dessas diferentes manifestações propiciou


mudanças na trajetória da personagem Índia que, ao final da
telenovela, torna-se uma mulher rica e se vinga das suas patroas, Adail
e Adalgisa. Mesmo longe de representar uma mudança positiva em
prol das identidades das mulheres Nambiquaras, esse acontecimento
atesta a estreita relação que há entre as telenovelas e o público.
Os telespectadores reivindicam que as suas identidades e práticas
culturais sejam tratadas com veracidade em uma obra de ficção. Essa
relação telenovela/público faz com que as produções precisem, muitas
vezes, mudar os rumos das tramas.

O amor de Serena e Rafael em Alma Gêmea e a


forma de falar da protagonista indígena

Escrita por Walcyr Carrasco, a telenovela foi exibida de 20


de junho de 2005 a 11 de março de 2006, às 18 horas, pela TV Globo.
Alma Gêmea, cuja temática se baseava na doutrina espírita, contou a
história do botânico Rafael (Eduardo Moscovis) que, na década de
1920, perdeu tragicamente a sua esposa, Luna (Liliana Castro). O
espírito de Luna não consegue ir para o céu e ela reencarna como a
indígena Serena (Priscila Fantin).
Desde criança, Serena vê uma rosa branca refletida nas
águas de um lago e, em outros momentos, desenha casas grandes que
não existem na região em que nasceu. O pajé (Francisco Carvalho)
de sua aldeia lhe explica que ela precisa fazer uma viagem grande
para descobrir qual o sentido dessas visões e, assim, encontrar a sua
missão. Já moça, Serena decide ir para São Paulo em busca da rosa
branca – que era o símbolo do amor entre Rafael e Luna. Acreditava
que ao encontrá-la descobriria a explicação para as suas visões de

162
Sumário

infância. Por força do destino, Serena vai trabalhar como empregada


na casa de Rafael.
A jovem sente uma estranha emoção assim que chega ao
casarão, que aumenta quando ela se depara com a rosa branca de
suas visões. Ao ver Rafael, ela tem a sensação de que já o conhece,
mas não consegue explicar seus sentimentos. No decorrer da
trama, Rafael descobre que Serena é a reencarnação de Luna e fica
apaixonado pela indígena.
Alma Gêmea obteve uma das maiores audiências do horário
das 18h em toda a história da teledramaturgia da TV Globo. Em
setembro de 2005, já era o segundo programa mais assistido
do Brasil. Por conta disso, a trama ganhou mais 25 capítulos, e
durante sua exibição, ela teve mais um intervalo comercial, além
dos três tradicionais1.
A telenovela Alma Gêmea, assim como aconteceu em Uga
Uga, trouxe como protagonista uma atriz branca e de olhos claros.
A maneira infantilizada de se expressar e a fala errada também são
características desta personagem. Na cena em que Serena conversa
com o pajé (Francisco Carvalho) sobre as suas dúvidas entre casar
com José Aristides (André Gonçalves) ou ir embora da aldeia, o
diálogo evidencia o jeito infantilizado e excessivamente romântico
da identidade dessa mulher indígena.

Serena: Nijienigi2, José Aristide quer casar mais Serena.


Pajé: Serena quer casar mais José Aristide?
Serena: José é bom, elé. Gosta de Serena.
Pajé: Mas menina não sabe, não é? Se fica, se segue viagem grande.
Serena: Como sabe que coração de Serena fala, Nijienigi? Tem música
‘dento’, não é do nosso povo. Tem vez que o vento chama eu, fala
pra Serena ir buscar coisa longe, não sei onde. Sei que é felicidade de
Serena, chamado forte no coração.
Pajé: Tudo nós tem chamado forte, tudo nós nasce com missão, chega
a hora de escolher se missão é perto, se longe, se com teu povo, outro
povo, teu chamado Serena é tua missão.

1 Fonte: memoriaglobo.globo.com
2 Nijienigi significa curandeiro, na língua Kadiwéu

163
Sumário

Não podemos perder de vista que o caráter melodramático


dessa cena faz parte também das características de produção de uma
telenovela das 18 horas da TV Globo, que geralmente exibe, nessa
faixa horária, tramas de temática histórica ou romântica (LOPES,
2003). Mas, para além das características de produção, esta cena
atualiza o discurso da “pureza” indígena, bastante recorrente nas
imagens que retratam a mulher indígena. Como explica Tocantins
(2013, p. 72):

Nos discursos construídos por enunciadores europeus, por volta do


século XVI [...] há um estereótipo de mulheres indígenas, a jovem
selvagem, bela, sensual, gentil, que oscilava entre a pecadora Eva, ou
a virgem Maria. A partir destes contornos rigidamente estabelecidos,
a mídia brasileira elaborou em suas produções desdobramentos, que
permitiram um reforço desta construção identitária para essas mulheres.

A “pureza” e ingenuidade indígena foram retratadas nos


romances indianistas de José de Alencar, como Iracema e O Guarani, e
são bastante recorrentes em livros didáticos. E, assim como Iracema,
que mudou seus hábitos para agradar o personagem europeu Martim,
por quem se apaixona, “Serena representa uma moça indígena que
deseja ter um relacionamento com o personagem cristão Rafael e faz
de tudo para se tornar o modelo de mulher ocidental que ele deseja”
(CARVALHO e NEVES, 2013, p.12).
Em vários momentos da narrativa, Serena se ressente de
não estar à altura de seu amado. Um dos principais problemas é
justamente sua forma de falar. Suas inimigas, a malvada Cristina
(Flávia Alessandra) e a mãe, frequentemente, ironizam sua forma de
falar. O próprio Rafael se incomoda e procura ensinar a indígena a
falar “corretamente” a língua portuguesa.
A construção dessa personagem coloca em questão, entre
outros aspectos, as diferentes formas de falar de Luna e Serena.
Luna detinha os saberes institucionalizados como verdadeiros, no
grupo social em que Rafael vivia. Serena estava à margem desse
saber. Por essa razão, foi bastante rejeitada no grupo. Foucault

164
Sumário

(1999, p.11) considera saberes sujeitados “toda uma série de saberes


que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como
saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes
hierarquicamente inferiores”.
A língua portuguesa está presente entre os personagens
indígenas desde os primeiros capítulos de Alma Gêmea. A professora
não indígena Cleyde (Júlia Lemmertz) mora na aldeia de Serena e é a
responsável por ensinar o povo da protagonista a falar, ler e escrever
em português. Ela também ensina os preceitos do catolicismo, a
Bíblia Sagrada é um dos livros mais importantes da escola da aldeia.
Há, desde os primeiros capítulos dessa telenovela, um discurso de
que é preciso aprender a língua portuguesa para ser “civilizado”,
além da professora Cleyde materializar enunciados que rememoram
a catequese imposta pelos jesuítas aos povos nativos.
Todos os personagens indígenas que analisamos são
constituídos por esses saberes sujeitados (FOUCAULT, 1999).
Tacitamente, são percebidos como “locais”, “descontínuos”,
“menores”, por isso, não podem ser legitimados pelos discursos
hierarquizantes e universalizantes. Ainda que demonstrem ser
inteligentes, sua “fala errada”, quando confrontada com o mito da
unidade linguística brasileira, acaba por lhes destituir do direito
ao poder.

Considerações finais

A telenovela é o principal produto da televisão aberta


brasileira. Líderes de audiência, as ficções televisivas seriadas são
importantes para que os telespectadores tenham acesso às culturas
de diferentes povos. Ao trazer em suas narrativas personagens
indígenas, as telenovelas atualizam e põem em circulação diferentes
discursos sobre essas sociedades, suas identidades e culturas.
Nas memórias produzidas pelas telenovelas, há uma
recorrência em relação aos personagens indígenas: vivem em

165
Sumário

uma floresta distante, não conhecem um ambiente urbano e nem


as práticas cotidianas de uma cidade, são extremamente ingênuos,
vivem em meio a animais selvagens e seus modos de vida giram em
torno apenas do plantio, da caça e da colheita.
Embora existam 896,9 mil indígenas no Brasil, 36,2% desse
total vivendo em áreas urbanas e 63,8% em áreas rurais, 305 etnias
indígenas e toda uma pluralidade linguística que os envolve, há uma
espécie de memória oficial sobre esses povos, que lhes institui como
uma generalização. É como se houvesse apenas uma língua e uma
sociedade, a Tupi (NEVES, 2009).
Não existe e nunca existiu apenas uma única realidade
indígena, no Brasil, mesmo antes da colonização. A pluralidade
linguística, as diferentes práticas culturais e os diferentes processos
de contato a que foram expostos são apenas alguns indicadores desse
universo heterogêneo dos povos indígenas. Enquanto um expressivo
percentual de indígenas mora nas cidades, ainda há grupos isolados
no interior da Amazônia. Da mesma forma, assim como existem
sociedades que não conhecem e nem se comunicam em língua
portuguesa, há outras bilíngues ou mesmo poliglotas e, existem ainda
alguns povos cuja língua tradicional deixou de ser falada.
A “fala errada” faz do indígena o não civilizado, aquele
que está do lado de fora do Estado brasileiro, um modelo a não ser
seguido. Quando se toma a uniformidade linguística como critério
para definir a integração do Brasil, silenciam-se as diversidades
culturais e, nesse sentido, esses personagens não representam as
diferenças do povo brasileiro. Como não falam a mesma língua,
eles são o outro, que, ainda hoje, deve ficar à margem. Eles são os
que não sabem.
Espraiados nos mais diferentes espaços de produção
de sentidos, como nas escolas, no poder judiciário, nos veículos
midiáticos, constantemente, os discursos sobre o indígena brasileiro
são atualizados. Selvagens e incapazes de “falar direito” são
características que recorrentemente lhes são atribuídas, bastante
associadas à impossibilidade de governarem a si mesmos. Ainda
hoje, é lhes negada uma cidadania plena, pois, salvas algumas

166
Sumário

exceções, permanecem tutelados pelo Estado brasileiro. As redes


de memória que constituem a tessitura dessa história, cujo começo
remonta ao sistema colonial, portanto, permanecem intensamente
institucionalizadas entre nós.
Hoje, a presença dos indígenas nas redes sociais e nas
universidades começa, mais sistematicamente, a deslocar essa
identidade genérica, forjada pelo sistema colonial. Mas, como
nos ensina Foucault (2008), somos todos sujeitos historicamente
construídos, inclusive os indígenas, atravessados pelas redes de
memórias que circulam em nossa sociedade. Embora o Movimento
Indígena Brasileiro, desde as lutas na constituinte de 1988, tenha
assumido a responsabilidade de visibilizar a diversidade cultural
e linguística dos povos indígenas, é certo que muitos indígenas
continuam reféns desse jogo de saber e poder estabelecido pelo
desgoverno de si que subjaz à “fala errada”.

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blog.uol.com.br/arch2005-07-31_2005-08-06.html>. Acesso em
11 dez. 2014.

169
CAPÍTULO 7

PAJUBÁ, A LÍNGUA (IN)GOVERNÁVEL


REPRESSÃO E RESISTÊNCIAS NA HETEROTOPIA DO
ASFALTO NO ESTADO NOVO (1939-1945)

Diego de Freitas Ungari


Rafael Marcurio da Cól

Introdução

Este estudo foi desenvolvido tomando tanto aspectos


historiográficos quanto linguísticos de como o Estado Novo lidou
com diferentes formas de criminalização linguística e espacial.
Infelizmente, não existem muitas pesquisas que discutam a relação
estabelecida entre o Estado Novo e as repressões/resistências
LGBTQIA+, nem ao menos existem estudos que discutam como
e se o emergente crime idiomático foi empregado com relação ao
pajubá. Assim, nós nos propusemos a pensar nas razões desses
possíveis esquecimentos e do desinteresse por essa linguagem, tanto
por parte de pesquisadores quanto pela própria governamentalidade
estadonovista da década de 30 e 40 do século XX no Brasil.
Para nos auxiliar a pensar neste tema, acionamos conceitos
de Michel Foucault, como a governamentalidade (governo) e as
heterotopias, bem como a necropolítica de Achille Mbembe pensada
a partir da noção de biopolítica do filósofo francês, à luz do conjunto
de palavras, dialeto, gírias ou mesmo língua, denominado pajubá
ou bajubá, tendo como marco temporal o Estado Novo de Vargas
(1930-1945). O pajubá, segundo estudos já desenvolvidos sobre esse
saber, foi e continua a ser utilizado por transformistas, travestis e
prostitutas e toda sorte de “anormalizados” (FOUCAULT, 2001) para
Sumário

se comunicarem entre si e em segredo, principalmente nos espaços


que denominamos, nesta investigação, como heterotopia do asfalto.
O pajubá/bajubá foi entendido neste estudo como formas
de resistências ao avanço do governo linguístico e de toda sorte
de condutas promovida por Getúlio Vargas, observado como um
saber marginal e talvez, por isso, tenha passado ileso dos intuitos
normalizadores e de gestão de populações do governo linguístico
de Vargas. Portanto, o pajubá será investigado como um saber
marginal e como formas de resistências a esses intentos autoritários,
principalmente entre essas subjetividades noturnas habitantes da
heterotopia do asfalto.
O pajubá foi e continua sendo uma espécie de “código”,
apenas para “entendidos”, e utilizado principalmente pela comunidade
LGBTQIA+, com especial destaque para as travestis e transsexuais
para se comunicarem de forma secreta, tanto entre as próprias
subjetividades em momentos de trocas de confidências e conversas
corriqueiras, quanto em momentos de apuros, principalmente, frente
ao poder pastoral policial. Vemos o poder pastoral policial, como
aquele que esteve à caça dessas subjetividades durante o governo
higienista de Vargas, permanecendo, assim, até os dias atuais.
Fica patente, quando fazemos uma genealogia do governo
da língua, a importância que Getúlio Vargas assume nesse
entendimento do monolinguismo compulsório, como se no Brasil
possuíssemos apenas, ao longo de toda nossa história nacional, uma
única e importante língua, a língua mater, o português.
A esse respeito, Oliveira (2009) diz “[...] aqui se fala
uma única língua, a língua portuguesa [...] Trata-se [...] de
desconhecimento da realidade ou [...] de projeto político [...]?”
Podemos responder à questão que provocativamente abre o artigo de
Oliveira (2009), ao dizer com base em Foucault, que o observado nos
anos 30 foi um projeto político de uma determinada racionalidade,
uma vez que culminou na criação de leis e normas que tinham como
fim último perseguir e trancafiar todos aqueles que se colocassem

172
Sumário

contra o governo compulsório da língua, do monolinguismo da língua


portuguesa, da primeira era Vargas.
É importante ressaltar que Getúlio Vargas governou o
Brasil em dois momentos distintos: o primeiro deles, quando alça
ao poder através de um golpe de Estado (1930-1945), é denominado
pela historiografia de Estado Novo. O segundo se dá quando é
eleito democraticamente e retorna ao executivo nacional, dessa
vez, pelo voto popular (1951-1954), momentos que são vistos por
historiadores e biógrafos como muito diversos e demonstram as
várias facetas de Vargas (FERREIRA, 2006).

Do crime idiomático e as formas de resistências


ao governo da língua

Durante o Estado Novo, Vargas promoveu muitas


reformas de cunho moralizante, espacial e linguístico em prol de
forjar uma nova nacionalidade brasileira, tendo como uma de suas
balizas o flerte com o fascismo1, que despontava na década de 30
do século XX em diferentes lugares da Europa (CAMPOS, 1998).
Em termos foucaultianos, podemos dizer que Getúlio Vargas se
ocupou da gestão dos espaços (heterotopias), das populações e das
condutas (governo), especialmente no que tange à língua. Todas
essas formas de gerir populações, sejam através das condutas ou
de outras formas de gerência de suas vidas e mortes (biopolítica
e necropolítica), denominamos de governamentalidade (governo)
e mais precisamente, para o caso dessa pesquisa nos ocuparemos
daquilo que vem sendo estudado como governo da língua (LISBÔA

1 A relação de Vargas com o nazi-fascismo é um tema controverso, ainda mais quando


se trata do governo da língua, pois por mais que muitas das medidas do Estado Novo
pudessem ser aparentadas a esses regimes europeus, destacamos aqui o culto ao líder e à
importância dada ao ensino e ao nacionalismo, foram as línguas ligadas ao Eixo durante
a Segunda Guerra (Alemanha, Itália e Japão) as mais duramente perseguidas com a
promulgação do crime idiomático. A esse respeito ver: CAMPOS, Cynthia Machado et
al. A política da língua na era Vargas: proibição do falar alemão e resistências no sul do
Brasil. 1998.

173
Sumário

2019; 2022; NEVES, GREGOLIN, 2021). Foucault ao pensar a


governamentalidade (governo) nos diz o seguinte:

Por ‘governamentalidade’ entendo o conjunto constituído pelas


instituições, procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as
táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora
muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população,
por principal forma de saber a economia política, por instrumento
técnico essencial os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por
‘governamentalidade’ entendo a tendência, a linha de força que, em todo
o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito para a preeminência
desse tipo de poder que podemos chamar de ‘governo’ sobre todos os
outros - soberania, disciplina [...]. Enfim, ao desenvolvimento de toda
uma série de aparelhos específicos de governo [e, de outra parte] ao
desenvolvimento de toda uma série de saberes (FOUCAULT, p 143-
144, 2008 – grifo nosso)

Baseando-nos nesse excerto de Foucault, os tipos de


governo que nos interessam de forma mais detida, neste estudo, são
esses pelos quais o autor francês chamou de aparelhos específicos de
governo e a emergência de saberes, entendidos nesta investigação
como as formas de governo de saberes e poderes de cunho linguístico
e espacial, observáveis no governo Vargas de (1930-1945). No
entanto, por vezes, a critério explicativo, discutiremos algumas das
demais formas de governo pontualmente.
É sabido que com Getúlio, passou-se a adotar políticas para
forjar uma nacionalidade brasileira e, para tal, uma das principais
questões foi à normalização da língua portuguesa como a língua
mater e única língua de toda a “nova” nação. A ideia de “novo”,
“novidade” ou de denominar tudo o que seria feito em termos de
“modernização” no Estado Novo foi uma forma de Vargas demarcar
a sua forma de governar como profundamente diferente de tudo o
que teria vindo antes dele, em termos de república (BORGES, 1998).
Fez também parte desse intento de Vargas a criação de
escolas e de novas formas de condutas para gerir essas instituições,
aprofundando, assim, os intentos de governo já presentes no

174
Sumário

dispositivo republicano, das primeiras eras da república, como


nos explica Gregolin (2016) ao discutir o funcionamento desse
dispositivo na operacionalização e funcionamento das escolas no
período, bem como a promulgação de novas leis educacionais e de
ensino da língua portuguesa como as Reformas Capanema2, que
assim que publicadas passariam a valer em todo o território nacional.
Por isso, Vargas promulga uma série de leis que proibiam
aos brasileiros ou naturalizados brasileiros, fossem eles europeus
(principalmente alemães e italianos) ou japoneses, de se comunicarem
em outras línguas que não o português. Essa legislação incidia
principalmente nos espaços públicos, como os trens, as praças e os
clubes, bem como os falantes de línguas estrangeiras deveriam
utilizar o português quando fossem se dirigir às instituições e órgãos
governamentais (OLIVEIRA, 2009). Assim, passou a ser proibido
o porte de livros didáticos e ensino de língua estrangeira, sem a
anuência do poder público.
A esse respeito, Oliveira (2009) diz que durante o regime
ditatorial do Estado Novo ocorreram processos como a nacionalização
da língua, que diz respeito ao estabelecimento da língua mater por-
tuguesa como a única língua brasileira oficial, bem como a criação
de um tipo penal novo, designado como crime idiomático, que como
o termo sugere, diz respeito ao crime em que incorriam as pessoas
quando se comunicavam em língua diversa da língua nacional, sendo
alvos da repressão varguista. Seja no espaço privado do lar, seja no
espaço público, assim como nas gráficas, jornais e escolas de imigran-
tes, que foram sumariamente fechadas e desapropriadas às centenas,
no período, em razão da promulgação de tal lei. Nesse momento, pas-
sa-se a proibir que estrangeiros sejam professores em escolas, sem a
permissão do Estado, não menos importante, passa a ser obrigatório
afixar em estabelecimentos públicos e locais de grande circulação de
transeuntes, quadros como os que exibimos abaixo:

2 O nome dado às reformas se deveu ao então ministro da Educação de Vargas, Gustavo


Capanema (1900-1985).

175
Sumário

Figura 1: Quadro que expõe o crime idiomático3

Ainda, segundo Oliveira (2009), essas perseguições de


línguas proibidas durante a primeira era Vargas foram seguidas
de tortura e repressão aos falantes dessas línguas tidas como
estrangeiras, instaurando uma atmosfera de medo e terror,
principalmente entre os imigrantes e descendentes destes. Como
se não bastasse, segundo Perazzo (2002), ainda ocorreu em 1942
a criação de espaços assemelhados aos campos de concentração,
denominadas áreas de confinamento, com a diferença que os
reclusos podiam sair para fazer compras ou mesmo participar de

3 Quadro fixado em repartições públicas, clubes e outros locais de grande circulação de


pessoas, após a promulgação do decreto-lei Nº 1545, de 25 de agosto de 1939 do então
presidente da República Getúlio Dornelles Vargas, que fixou o tipo penal conhecido
como crime idiomático. Este quadro, ao que consta, foi produzido pela Delegacia de
Polícia de São Lourenço – RS, em 2 de março de 1942, atendendo à legislação no
concernente à interdição de se falar línguas estrangeiras em locais públicos. Foto de
acervo pessoal: Edilberto Luiz Hammes. Publicado em Folha Pomerana, nº 231, 17 de
março de 2018.

176
Sumário

festas4. Estas foram mais comuns em cidades de massiva colonização


alemã, italiana e japonesa, sendo mais bem documentadas as duas
primeiras, para onde eram levados, sob custódia do Estado, os
“criminosos da língua”.
A perseguição e a repressão, segundo Oliveira (2009),
alcançaram tal patamar a ponto de com o passar do tempo essas
línguas, tidas como estrangeiras, existirem apenas como línguas
faladas e em áreas rurais afastadas, apenas aprendidas oralmente e
no âmbito privado e familiar, sendo inúmeros os casos de famílias
que para manterem sua tradição e cultura, resistiram de toda forma
ao avanço do governo da língua por Vargas. Observamos, com isso,
que não foram poucos os casos de pessoas que chegaram a esconder
livros e outras formas de manuscritos que documentavam sua
língua e sua cultura, em ocos de árvores, no assoalho de madeira das
casas, dentre outras formas de resistências5 à governamentalização
da língua impetrada por Vargas.
Portanto, como nos diz Oliveira (2009), em território
nacional, as línguas alemã e italiana, que são as mais amplamente
estudadas, pouco a pouco, foram sofrendo com os intentos de
homogeneização linguística e cultural, mas que nós chamaremos
aqui de governo necropolítico da língua, ocorrido durante o
Estado Novo varguista (NEVES, 2017). É importante destacar,
que entendemos por necropolítica todo uma tecnologia do fazer
morrer e ligada ao poder governamentalizado do matar que advêm
do ensaio de Mbembe (2016), aqui pensado especificamente para a
questão do governo e da aniquilação linguística, conforme proposto
por Oliveira (2018), ao refletir sobre as línguas indígenas, que

4 Segundo a pesquisadora Priscila F. Perazzo em tese defendida em 2002, esses campos


foram criados a partir de agosto de 1942 no momento em que o Brasil decide apoiar
os Aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda segundo Perazzo só muito
recentemente foram conhecidos pela historiografia, pois esta documentação teria sido
posta sob sigilo de 50 anos o que impediu, inclusive, que pudesse figurar em livros
didáticos.
5 [...] a partir do momento que há uma relação de poder, há uma possibilidade de
resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder. Podemos sempre modificar sua
dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa (FOUCAULT,
p. 241, 2007).

177
Sumário

também foram alvo de tal lei, contribuindo severamente para que


muitos povos abandonassem suas línguas, comumente chamadas de
“gírias” nesse período.
Segundo Rivair Macedo (2016), Mbembe estaria inserido
em uma demanda das Humanidades de (re)ler Foucault à luz do que
se denominou estudos pós-colonias6/decoloniais, estudos estes que
visam dizer sobre si, contar e pensar a própria História e a Filosofia,
tomando como norte as ideias das experiências da diáspora negra
e das epistemologias do sul. Trata-se, pois, de uma maneira de
pensar os mais diversos saberes e epistemologias sem precisar, para
isso, importar, principalmente do eixo estadunidense e europeu,
as teorias, os conceitos e as ideias já pré-concebidas a respeito dos
próprios países e saberes colonizados, e quando as fazem, atribuem-
lhes outros significados e valores, como o observado em Mbembe.
É nesse contexto que Mbembe (2016) (re)visita o conceito
de biopoder7, mas, segundo o historiador camaronês, ainda que seja
uma visada interessante de Foucault pensar como passamos de um
tipo de poder que incidia sobre os corpos para um tipo de poder
que pensa e gere populações e suas condutas. Esse conceito, por si
só, não dava conta de responder às especificidades que as formas

6 “Tais parâmetros de análise de sociedades pós-coloniais subvertem categorias analíticas


tidas como consensuais nas ciências sociais, extraídas da experiência da modernidade
ocidental. O que há de mais impactante em sua leitura das formas de poder vigentes
na pós-colônia é a liberdade no uso de metáforas que expressam a promiscuidade
e obscenidade pelas quais aqueles poderes se manifestam e se imaginam [...]. Na
contramão de uma interpretação objetiva, clara, límpida, transparente, o autor vale-
se em diferentes momentos de imagens que evocam uma “zona escura”, “princípios
noturnos” dominados pela irracionalidade, pela desrazão [...]. A distância conceitual
entre Foucault e Mbembe deve-se a gradual centralidade das categorias explicativas
da condição colonial extraídas de Frantz Fanon. Os deslocamentos de significado e as
subversões conceituais advêm do fato de que os referenciais africanos são lidos a partir
da experiência dos colonizados, e não dos referenciais do colonizador [...]” (RIVAIR
MACEDO, p. 291, 2016).
7 “[...] o estudo de algo que eu havia chamado [...] de biopoder, isto é, essa série de
fenômenos que me parece bastante importante, a saber, o conjunto dos mecanismos
pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas
fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia
geral de poder. Em outras palavras, como a sociedade, as sociedades ocidentais
modernas, a partir do século XVIII, voltaram a levar em conta o fato biológico
fundamental de que o ser humano constitui uma espécie humana. É em linhas gerais
[...] o que chamei, para dar-lhe um nome, de biopoder”. (FOUCAULT, p. 03, 2008).

178
Sumário

de governamentalidade alcançaram em países com um passado


colonial, por isso, acaba por cunhar o termo “necropolítica” e seu
correlato o “necropoder”, pensados a partir das noções que chamou
Foucault de “fazer viver” e “deixar morrer”. O termo do historiador
camaronês hoje já é muito difundido e discutido nas mais diversas
áreas do saber, significando uma novidade, não apenas em razão
de um olhar aplicado à colonialidade, como também por apresentar
uma nova possibilidade para pensarmos outras problemáticas
através dessa chave explicativa foucaultiana de biopoder, como é o
caso da discussão sobre necropolítica linguística8 feita na dissertação
de Oliveira (2018) e a reflexão que aqui se delineia com relação ao
governo necropolítico da língua por Vargas durante o Estado Novo.
Não é um mero acaso que esses intentos de governo da
língua por Vargas tenham se ocupado, inclusive, de outras formas
de aquisição da linguagem como a LIBRAS (Língua Brasileira de
Sinais), que fora criada justamente durante o Estado Novo. Segundo
esses autores, havia “[...] a necessidade de ofertar condições para que
os surdos utilizem uma língua pela qual fosse possível governá-los”
(LOPES; WICHT, 2015). E, ainda, dizem que para se compreender
a emergência e a constituição de uma subjetividade:

[...] é necessário perguntar pela história das práticas, pelos seus


pontos de emergência e pelas suas condições de possibilidade. [...]
Nesse sentido, o conceito de governamentalidade é de grande valia
para este trabalho, pois ele possibilita entender como essas práticas
que operam na constituição de uma subjetividade se organizavam a
partir da racionalidade política do Estado Novo. Isto é, essa noção é
empregada como uma grade de inteligibilidade pela qual olhamos para
fazer uma leitura da constituição da brasilidade surda atravessada pela

8 Neste estudo a pesquisadora discute a necropolítica linguística para analisar as formas


que o necropoder assumiu no apagamento e aniquilação da língua e da cultura indígena
tenetehara principalmente através do SPI e da forçada adoção da língua portuguesa por
parte dessas subjetividades, destacando que a língua além de possuir um componente
cultural para os mais variados povos, também atua como um componente de poder
e de controle social, porém nada disso ocorre sem profunda resistência por parte
das subjetividades indígenas. Sendo estes últimos aspectos aqueles que também nos
interessam nesta pesquisa do governo necropolítico durante o Estado Novo varguista.

179
Sumário
racionalidade política de um determinado tempo. (LOPES; WICHT, p.
09, 2015)

Dito isso, como buscamos demonstrar, esse governo da


língua por Vargas, tinha pretensão de totalidade e, portanto, todos
os brasileiros deveriam aprender segundo o diapasão do governo
da língua portuguesa, fosse essa língua de sinais, falada ou escrita;
fossem essas pessoas urbanas ou rurais; fossem elas originárias
ou imigrantes; fossem os falantes brancos, amarelos, negros ou
indígenas; todos, sem exceção, deveriam adquirir o hábito de se
comunicarem em língua portuguesa. É interessante destacar,
que o governo necropolítico linguístico de Vargas quis ter sob
seu escrutínio todas as línguas, chegando a “criar” algumas que
ainda não estavam regulamentadas apenas e tão somente para
governá-las, como é o caso da LIBRAS (LOPES; WICHT, 2015).
Desse modo, como explicar o Estado Novo que se preocupou em
controlar absolutamente todas as línguas (seja as governando
por meio de proibições, criações, interdições ou tipos penais), ter
deixado de fora esse tipo de linguagem falada nas ruas e ocupadas
por travestis e outros falantes marginais: o pajubá. Como explicar
o pajubá ter passado ileso desse governo linguístico e necropolítico
estadonovista brasileiro?

O asfalto: espaço heterotópico de vivências,


violências e resistências

Primeiramente, para compreendermos por quais motivos


acreditamos que o pajubá passou ileso e resistiu ao avanço do governo
necropolítico linguístico de Vargas, devemos compreender: como esse
tipo de linguagem emergiu no Brasil? Quais outros troncos linguísticos
podemos tomar como responsáveis por sua emergência híbrida? Para
assim compreender, como alguns espaços heterotópicos pelos quais
atravessou e atravessa, auxiliaram ao pajubá passar incólume por
esse período de profundas transformações e aniquilações do governo

180
Sumário

necropolítico linguístico, promovidas por Vargas? Esse último é aquilo


que nos ocuparemos neste momento, e os outros questionamentos
serão retomados oportunamente ao longo da investigação.
Ainda que as discussões historiográficas a respeito do
primeiro governo Vargas (1930-1945) e mais especificamente as
que dizem respeito ao governo da língua9, sejam poucas e esparsas,
tentaremos conectá-las e problematizá-las conjuntamente com o
que tem sido dito e escrito sobre o pajubá.
Segundo Camargo (2019), devemos pensar o pajubá/bajubá
em termos de uma língua, e uma língua cuirlombola10. Com isso, a
autora destaca a impossibilidade de pensarmos no pajubá sem nos
remetermos ao seu passado negro diaspórico e aos seus usos pelas
comunidades LGBTQIA+ ao longo da história. E, assim, estabelece
esta relação no trecho a seguir:

Entendo estas inovações como práticas sociais cuirizadas, ou


seja, as produções discursivas dos bajubás indicam que sentidos
historicamente sedimentados podem ser contestados e ressignificados
em práticas linguísticas não hegemônicas. Somado a isso, assinalo
que o contexto de produção discursiva dos bajubás é o resultado
do encontro de forças [...] como a luta antirracista, alinhada ao
resgate da herança africana da diáspora negra interseccionada às
pautas LGBTIQ+ no contexto brasileiro, tornando-se relevante
contribuição para esta reflexão. No interior destes dois ativismos
(negros e cuir) incide a língua bajubá pela qual as suas agentes
fazem usos estratégicos da língua em processos de ‘legitimidade’ e
resistência. (CAMARGO, 2019)

9 Em 1939 há promulgação do decreto-lei Nº 1545, de 25 de agosto de 1939 que institui


o chamado crime idiomático. Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/
declei/1930-1939/decreto-lei-1545-25-agosto-1939-411654-publicacaooriginal-1-pe.
html acessado em 27/11/2019.
10 Segundo a autora: “a adoção da modificação lexical do termo em língua inglesa queer
para a versão latino-americana cuir possibilitaria não apenas uma inovação linguística
mas uma forma de evocar e invocar os mais diversos significados produzidos pelo
espaço do quilombo e por sua importância cultural e linguística na constituição
dos pajubás/bajubás e principalmente do cuirlombismo das narrativas ancestrais
da diáspora negra, por meio de seu sentido mágico e místico ligado e inserido nas
religiosidades de matrizes afro-brasileiras” (CAMARGO, p. 14, 2019).

181
Sumário

Por isso, partimos do entendimento da autora sobre os


pajubás como uma língua resistente e híbrida, para assim, irmos
um pouco além e desenvolver suas relações de resistências em
determinadas espacialidades. É a partir desse aparente interstício
do pajubá nesse governo necropolítico de Vargas, que se quis
total, que problematizaremos as possíveis razões desses silêncios e
dessa não perseguição a esse tipo de código e linguagem híbrida e
resistente, o pajubá. Ainda que os corpos de seus falantes já fossem
esquadrinhados e estivessem sob égide do necropoder pastoral
policial11 e higienista de Vargas.
Segundo artigo de Green (2003), em que discute o papel de
Madame Satã na década de 30 e sua ressignificação tempos depois
pelo periódico O Pasquim, podemos ter um vislumbre dos espaços
ocupados por travestis e transexuais no Rio de Janeiro12 bem como
a marginalização de seus corpos e de suas condutas, justamente na
época que corresponde ao primeiro governo Vargas. Ao falar sobre a
ainda incipiente historiografia dos homossexuais, Green (2003) diz
o seguinte ao se remeter à Madame Satã e aos espaços ocupados por
ela e outras subjetividades homossexuais do período:

As donas de bordéis, em geral, contratavam jovens homossexuais para


trabalhar como garçons, cozinheiros, camareiros e inclusive como
eventuais prostitutos, caso um cliente assim o desejasse. Já que muitos
desses jovens haviam adquirido certos maneirismos tradicionalmente
femininos, supunha-se que eles podiam desempenhar tarefas
domésticas com facilidade e eficiência e viver entre as prostitutas sem
criar uma tensão sexual. Sua identidade marginalizada, generizada de
forma anômala, coexistia confortavelmente com as francesas, polacas e

11 “[…] há treze domínios de que a polícia deve se ocupar. São a religião, os costumes,
a saúde e os meios de subsistência, a tranqüilidade pública, o cuidado com os edifícios,
as praças e os caminhos, as ciências e as artes liberais, o comércio, as manufaturas
e as artes mecânicas, os empregados domésticos e os operários, o teatro e os jogos,
enfim o cuidado e a disciplina dos pobres, como “parte considerável do bem público”.
(FOUCAULT, p. 450, 2008).
12 Gostaríamos de destacar que o Rio de Janeiro, nessa época, ainda era a capital federal,
por isso a importância de olharmos para a cidade e para as subjetividades que nela
residiam, bem como as heterotopias que faziam parte da vida religiosa e homossocial,
cartografando-as e esquadrinhando-as, a fim de se compreender os espaços pelos quais
o pajubá transitou no período e a importância deles para as resistências.

182
Sumário
mulatas que trabalhavam nos vários bordéis que funcionavam na Lapa.
Nos anos 20 e 30, a topografia homoerótica do Rio de Janeiro estendia-
se num semicírculo que começava na praça Floriano Peixoto e no
Passeio Público, na Cinelândia, passando pelo bairro boêmio e operário
da Lapa, até a praça Tiradentes. [...] ofereciam ambientes públicos
para interações homossociais e homossexuais (GREEN, p. 205, 2003).

Como o exposto por Green (2003), a relação estabelecida


entre os homossexuais, as travestis e as prostitutas poderia ser melhor
observada quando pensada em espaços vistos como marginais, como
os bordéis e as ruas. Como o autor nos diz, podemos pensar que esses
espaços eram utilizados por essas subjetividades para se divertirem,
mas também eram o espaço onde uma gama de culturas e de línguas
se entrelaçavam, fossem as línguas físicas que faziam parte desses
corpos marginais usadas para os beijos e os sexos mais ardentes,
fossem as línguas, entendidas como idiomas e faladas por prostitutas
e toda sorte de subjetividades marginalizadas. Segundo o autor, o
homossexual “coexistia confortavelmente com as francesas, polacas
e mulatas13 que trabalhavam nos vários bordéis que funcionavam na
Lapa” (GREEN, 2003, p. 205).
A partir da citação acima, podemos perceber como esses
espaços marginalizados do Rio de Janeiro, congregavam as mais
diversas culturas e consequentemente as mais diversas línguas.
Sendo que muitas destas, foram importantes na constituição do
pajubá, uma vez que acreditamos que esse tipo de linguagem bebeu
de todas as outras línguas que se encontravam imersas nessa
marginalidade dos bordéis e, consequentemente, da heterotopia do
asfalto. Dessa forma, constituindo-se como uma língua composta
por um emaranhado de palavras, expressões, maneirismos,
hibridismos, advindos tanto das línguas de origem europeia das

13 Importante pontuar que esse termo tem conotacões racistas e cada vez mais tem
caído em desuso. Entretanto, foi o termo utilizado por Green nos idos de 2003 quando
escreveu o artigo, provavelmente por ainda não ser possível naquela época emergirem
debates como os que temos hoje sobre subjetividades pretas ou mesmo sobre o racismo
estrutural da sociedade brasileira. Ver ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. Editora
Jandaíra: São Paulo, 2019.

183
Sumário

polacas e francesas, como também das línguas de origem africana


das mulheres negras citadas por Green.
Por fim, é por essa razão que podemos (re)pensar a citação
de Green (2003) sobre as formas de homossociabilidade da década
de 30 conjuntamente com o debate sobre a heterotopia do asfalto
presentes em Da Cól (2018), bem como as discussões sobre os tipos,
as imbricações e as formas de funcionamento das heterotopias em
diferentes épocas e lugares, discutidas em Ungari (2016).

Pajubá a linguagem da/para a resistência

Foucault (2001) dizia que por muitos séculos a nossa


preocupação se deu com relação ao tempo (história), mas que já era
hora de nos preocuparmos com os espaços e, mais ainda, que seria
necessário e sonhava com um saber denominado heterotopologia,
que se ocuparia exclusivamente dos estudos desses outros espaços
que ele denominou heterotopias (do grego: hetero = diferente e
topos = lugar). Estas heterotopias seriam espaços diferentes, mas
palpáveis e reais que se oporiam e complementariam as utopias,
espaços sabidamente vistos como maravilhosos e idílicos.
Para Foucault (2001), as heterotopias podiam ser
observadas e esquadrinhadas para nos remetermos a espaços
diversos, sendo aqueles que possuem maior recorrência nos estudos
desenvolvidos pelo autor francês: os asilos e casas de repouso, os
bordéis, os cinemas e os teatros, as cadeias e os hospitais, as festas e
as cidades de veraneio, etc.
Essas heterotopias funcionariam e poderiam ser agrupadas,
segundo o autor, em grandes grupos de heterotopias que Foucault
chamou: de desvio, de crônicas, de crise, dentre outras. Esta
última poderia ser mais ricamente observadas em sociedades ditas
“primitivas”, pois, no curso da história a maioria delas passou a ser
lida como a de desvio, ainda que como nos diz Foucault, seja possível
observar, em casos específicos, o funcionamento de heterotopias de
tipo crise na coetaneidade:

184
Sumário
Nas sociedades ditas primitivas há uma certa forma de heterotopias
que eu chamaria de heterotopias de crise, ou seja, que há lugares
privilegiados, ou sagrados, proibidos, reservados aos indivíduos que
se encontram, em relação à sociedade e ao meio humano no interior
do qual eles vivem em estado de crise [...] Em nossa sociedade, essas
heterotopias de crise não param de desaparecer, embora delas se
encontrem ainda alguns restos. Por exemplo, [...] para as moças existia
até meados do século XX uma tradição que se chamava “viagem de
núpcias” [...] A defloração da moça não poderia ocorrer em “nenhum
lugar” e, naquele momento, o trem, o hotel de viagem [...] eram
bem esse lugar de nenhum lugar, essa heterotopia sem referências
geográficas (FOUCAULT, p. 416, 2001).

Além de tipologizar cada uma das heterotopias, Foucault


elenca certas condições de existência para que alguma topografia
possa ser pensada e operacionalizada através desse conceito. Para
tal, precisa estar imersa nestas seis condições de heterotopia que
podemos sistematizar da seguinte forma partindo da obra do autor:

a) todas as sociedades as possuem, são uma constante dos grupos


humanos.
b) têm um funcionamento próprio em cada sociedade a depender da
sincronia da cultura que fazem parte
c) justapõem num mesmo espaço real vários espaços diferentes e por
vezes incompatíveis
d) funcionam conjuntamente com suas correlatas as heterocronias.
e) estão imersas em um sistema de funcionamento de aberturas e
fechamentos, que ora as isola ora as torna penetráveis.
f) possuem com relação ao espaço restante uma importância política
e estratégica.

Dito isso, acreditamos que podemos pensar o asfalto como


uma heterotopia, uma vez que é possível observar rigorosamente
cada uma das condições de heterotopia elencadas por Foucault,
com relação a esse espaço, sendo essa topografia e estudo
heterotopológico de grande valia para a compreensão das práticas
das subjetividades que ocupavam a heterotopia do asfalto no Rio
de Janeiro dos anos 30, bem como as relações estabelecidas entre

185
Sumário

as mais diversas subjetividades que nos ajudaram a pensar os


percursos e os entre-lugares ocupados pelo pajubá.
A heterotopia do asfalto foi pensada originalmente por Da
Cól (2018) ao analisar filmes do cinema brasileiro com temática
homoafetiva, entre eles destaca-se Madame Satã (2001)14, mas aqui
nos propomos a pensar e trazer para a discussão do governo da
língua essa heterotopia, a fim de entender seu funcionamento nos
anos 30 sob a ótica do Estado Novo de Vargas.
No trabalho, chamamos heterotopia do asfalto esse espaço
heterotópico e heterocrônico em que transitam, habitam, festejam
e trabalham as subjetividades homossexuais, transexuais e
prostitutas. É interessante destacar que é um tipo de heterotopia
pode ser observada com maior frequência no período noturno,
compreendendo desde os bordéis até o asfalto propriamente dito,
pois, o mesmo espaço existe em plena luz do dia, mas é ocupado
por atividades comerciais e todo tipo de afazeres da vida de uma
cidade e de seus transeuntes. Dessa maneira, é na penumbra que
a atribulação das cidades cede lugar para outros corpos15, outros
trabalhos e outros transeuntes. Esses outros corpos e transeuntes
que podem se esconder e se esgueirar, a fim de realizarem seus
encontros, desejos, festejos, trambiques e se prostituírem fora dos
olhares de reprovação e de controle para com essa população.
É interessante destacar que um dos filmes analisados por
Da Cól (2018), O Beijo no Asfalto (1980) nos dá um outro olhar
para esta heterotopia do asfalto, pois a mesma heterotopia passa a
funcionar em plena luz do dia em razão de um acontecimento, o
beijo no asfalto e sua publicização. É justamente à exposição dos
corpos das subjetividades presentes no filme ao escrutínio público,
14 “Mais recentemente, o diretor de cinema brasileiro Karim Anöuz, no seu longa-
metragem de estreia, Madame Satã, recuperou Madame Satã como uma personalidade
gay ambígua, uma figura brasileira mítica, merecedora de projeção na tela internacional
em uma nova reencarnação. Um exame de sua vida e das múltiplas imagens de Madame
Satã, bem como das formas pelas quais sua personalidade tem sido abarcada por certos
intelectuais pode esclarecer as múltiplas maneiras pelas quais as noções de gênero e
identidade sexual são desempenhadas e entendidas no Brasil” (GREEN, p. 204, 2003).
15 Sobre a relação estabelecida entre corpos e heterotopias. Ver: FOUCAULT. M. O
corpo utópico, as heterotopias. Posfácio de Daniel Defert. São Paulo: Edições n-1, 2013.

186
Sumário

quando é noticiado um beijo misericordioso no meio fio, que os faz


adentrar a heterotopia do asfalto, mesmo em um momento do dia
que a mesma nem deveria existir ou ter sido inaugurada, “Arandir
dá o beijo no moribundo em plena luz do dia, mesmo que ele não
seja homossexual, [...] passa a pertencer à heterotopia do asfalto”
(DA CÓL, 2018, p. 38).
A esse respeito, Camargo (2019) também faz menção
à importância dada à rua para o entendimento do pajubá, ainda
que não tome o conceito de heterotopia de Foucault em sua
discussão, é importante perceber como já atribui importância aos
espaços. Segundo a autora, é a rua o espaço-tempo, histórico-
político da pedagogia do pajubá. É o espaço onde as subjetividades
transexuais são vistas e marginalizadas através de seu gênero e
suas sexualidades desviantes.
Foucault ao falar sobre as heterotopias nos alerta para o
fato de as mesmas heterotopias poderem funcionar de forma diversa
em diferentes contextos e momentos históricos, de acordo com o
que cada cultura quer delas, assim como o observado para o caso
da heterotopia do asfalto. Esta tem seu funcionamento ligado ao
período noturno, mas, graças a um acontecimento: o beijo no meio
fio em um moribundo, teve a entrada das subjetividades no espaço
da heterotopia, em plena luz do dia. Nesse sentido, não há nenhum
problema de se pensar tipologias diversas para a mesma função
discursiva do espaço heterotópico (UNGARI, 2016).
Assim, é possível, como no caso da heterotopia do asfalto,
pensar nas espacializações em termos de matizes, em que se cria
ao menos dois outros subespaços, os espaços de dentro e os de
fora, ou seja, os espaços que permitem interdições e convocações
para que sejam ocupados, ou não. E, aos admitidos que sejam
postos para dentro e os alijados dessa participação estejam do
lado de fora, ficando além dos muros, das cercas, das vistas e,
principalmente, além desse corte heterocrônico na paisagem das
cidades (UNGARI, 2016).

187
Sumário

É justamente através desse corte de quem está fora e


quem está dentro e participando, que gostaríamos de pensar em
diferentes formas de exclusões nos espaços heterotópicos, a fim de
compreender porque as subjetividades homossexuais criam não
apenas novos espaços de homossociabilidade e de encontro com
o sagrado, mas também toda uma forma de se expressarem e de
tentarem (re)ocupar os espaços já existentes como o asfalto, tanto
para fins lúdicos, quanto trabalhistas e da ordem do desejo e do
sexual. Para tanto, elencaremos três formas de exclusões espaciais
heterotopológicas que vemos como mais importantes ou principais
para se compreender o papel das resistências por meio do pajubá.
Por exemplo, para interditar a ocupação de determinados
espaços são comuns os usos de tapumes, pequenos cercados, faixas
reflexivas, correntes, cones e outros impeditivos físicos, a fim de
fazer o próprio espaço partilhado dotar de normatizações e passar
um recado imagético, mesmo que saibamos que bastaria empurrar,
passar por baixo ou derrubar qualquer um desses anteparos. Sem
que para isso seja necessário dizer uma única palavra, somos
alertados quanto à contiguidade, onde se inicia e onde se encerra
determinado espaço, pois já sabemos que se existe algum desses
impeditivos físicos é para não avançarmos (UNGARI, 2016).
No entanto, há outros espaços que não necessariamente
há presença de anteparos físicos, de cordas, de correntes, de cones
e faixas reflexivas para que saibamos que “não é para mim” ou
“não devo ir até lá”. Nessa outra forma de exclusão heterotópica, o
poder aquisitivo e as vestimentas são uma forma ainda mais rígida
e forte de dizer quem é ou não é admitido em determinado espaço,
como restaurantes ou até mesmo espaços que deveriam estar a
serviço do público, como os teatros, museus, praças etc.
Desse modo, é a última e mais importante forma de exclusão
espacial que nos interessa, aquela que não é necessário dizer, não
é necessário colocar anteparos físicos para que saibamos que não
somos admitidos naquele espaço, pois a sua participação, ou não,
está mais vinculada a questões históricas, rácicas, de gênero e outros
marcadores sociais, do que verdadeiramente a qualquer impeditivo

188
Sumário

visível e palpável, e é justamente essa a forma mais complicada de


exclusão, pois é velada, interdita, diz mais sobre as subjetividades que
dela são excluídas do que qualquer outra.
No entanto, nem todos os espaços foram de exclusão para
essas subjetividades marginalizadas no interior da heterotopia do
asfalto, existiram espaços que permitiram a essas subjetividades
o acesso ao sagrado e a novas formas de sociabilidade e aceitação,
esses são os terreiros e centros de religiões de matrizes africanas e
afro-brasileiras. É sabido que Vargas não incomodou as religiões
afro-brasileiras, e mais precisamente a umbanda, em seu intento de
governamentalização do Estado e das condutas (OLIVEIRA, 2006).
Provavelmente, isso se deveu à função que cumpriam den-
tro do ufanismo do Estado Novo, pois funcionavam de forma cabal,
para atestarem a mistura harmônica das três raças e dos sincretis-
mos religiosos, bem como era uma forma de Vargas também legi-
timar a miscigenação, dando a mesma uma função de coesão para
a nova pátria estadonovista. Por isso, acreditamos que os centros e
os terreiros seriam espaços de resistências e sobrevivências para as
subjetividades marginalizadas dos anos 30 do século XX no Rio de
Janeiro. Não é de difícil entendimento que estas subjetividades ao
optarem por ambientes sincréticos e beberem nos mesmos hibridis-
mos que observamos para o caso do pajubá com relação às línguas
faladas, pois as mesmas polacas, francesas e negras citadas por Gre-
en (2003) também poderiam professar as mais diversas religiões,
fazendo com que essas subjetividades da heterotopia do asfalto op-
tassem por religiões sincréticas como a umbanda ou mesmo outras
religiões afro-brasileiras.
Este tipo de exclusão, talvez seja uma forma de explicar
porque esses homossexuais e transgêneros, habitantes da heterotopia
do asfalto, não se sintam bem em igrejas e outros espaços religiosos
colonizados, europeizados e vinculados ao cristianismo, uma vez que
suas condutas, suas formas de sociabilidade, formas de amar, estariam
de fora do que é visto como normal e aceitável por essas religiões,
por isso legamos aos terreiros e aos centros serem esses espaços
de resistências, o que talvez explique o pajubá ter ficado de fora

189
Sumário

do governo necropolítico da língua, pois justamente a cultura afro-


brasileira de acolhimento dessas subjetividades, como já buscamos
demonstrar, permitiu a elas se abrigarem e se “esconderem” do
necropoder pastoral policial e higienista de Vargas. Já que, se as
religiões hegemônicas não acolhiam essas subjetividades, o mesmo
não poderia ser dito das religiões de matrizes africanas e afro-
brasileiras da diáspora. Por sua vez, essas não apenas acolheram tais
subjetividades, como conjuntamente com as subjetividades negras
organizaram uma forma de resistir, não por menos várias palavras
do pajubá, advém do ioruba-banto16.

Considerações finais

Pelo que foi trilhado até aqui, acreditamos que o governo


necropolítico da língua do Estado Novo varguista não alcançou o
pajubá, por algumas razões que elencamos a seguir.
A primeira delas diz respeito, simplesmente, a um
desinteresse ou desconhecimento da existência desse tipo de
língua/saber marginal presente na heterotopia do asfalto, por parte
dos responsáveis por promover as leis e as regulamentações
através do governo necropolítico da língua. Isso, porque já havia
uma visada preferencial por outro tipo de línguas, aquelas que
compreendiam na Segunda Guerra, o Eixo, e representavam um
interesse estratégico na aproximação de Vargas dos EUA durante o
conflito. Diferentemente do caso das línguas indígenas, que por sua
mera existência impossibilitavam à implementação da língua mater,
o português, como única língua admitida pelo Estado Novo.
A segunda diz respeito aos espaços heterotópicos
e heterocrônicos profundamente marginalizados que essas

16 Uma das explicações para o parentesco do bajubá com algumas línguas africanas
estaria na afinidade das travestis com o candomblé - religião de origem africana,
muito receptiva a homossexuais – que teria sido, portanto, uma das possíveis fontes de
vocabulário (ANDRADE; GONÇALVES et al., 2018, p. 39).

190
Sumário

subjetividades falantes dessa língua ocupavam, como a heterotopia


do asfalto. Possivelmente, não representava perigo, pois já estava
sendo esquadrinhada e matizada pelas medidas higienistas e de
reestruturação urbana de Vargas, além do que já era patrulhada,
governada, vigiada, observada, monitorada de perto. Por vezes,
essas subjetividades já eram mortas física e discursivamente pelo
poder pastoral policial que, segundo o entendimento desse tipo de
governo, já daria conta de coibir essas subjetividades desviantes em
sua totalidade, seja através da aniquilação de seus corpos seja por
meio do próprio pajubá. No entanto, mesmo que supusermos que o
estadonovismo soubesse da existência do pajubá, ainda assim, como
buscamos demonstrar, não teria porquê se ocupar de coibir essa
língua e de destinar um cuidado especial à ela, pois a polícia e as
formas de exclusão das próprias pessoas em sociedade já coibiriam
os falantes do pajubá, não precisando o Estado intervir mais do que
já fazia, através do governo dos corpos que ocupavam os espaços
públicos, dos dispositivos de segurança e o necropoder.
A terceira, é graças a seu caráter profundamente marginal
e híbrido, como língua, congregando toda sorte de línguas e não
constituindo tronco comum fixo. Ainda que, como é dito por
Camargo (2019), o pajubá seja mais comumente associado às
línguas de matrizes afro-brasileiras, nada impede que em lugares
determinados se crie através de outras formas de hibridismos.
Dependendo mais da relação que as subjetividades estabeleciam
entre si e demonstrando especificidades territorializadas, de
grupos, de formas de identidade e de formas de homossociabilidade e
transsociabilidade, permitindo que uma gama de línguas pudessem
ser faladas em plena era do monolinguismo varguista. Mesmo que
elas apenas pudessem existir na coexistência híbrida do pajubá e
através de poucas palavras ou de expressões mescladas com outras
línguas. Esse tipo de estratégia teria permitido que até mesmo os
falantes de línguas terminantemente proibidas com a promulgação
do crime idiomático, como o alemão, o italiano e o japonês. Assim,
essas línguas poderiam em lugares específicos, de funcionamento
dos pajubás, ter resistido e manifestado sua cultura através da fala

191
Sumário

e da sociabilidade livremente, mas sempre nas imediações do que


representa a heterotopia do asfalto.
A quarta diz respeito às formas de exclusão, aquelas três
que vemos como as que mais incidiriam sob as subjetividades
falantes do pajubá, ou seja, os espaços de fora da heterotopia do
asfalto. Estes já criariam as condições necessárias para a exclusão,
essas subjetividades seriam excluídas tanto fisicamente, através
da ocupação de seus próprios corpos, que por si só já denotariam
quem são, o que fazem e de onde veem. Isso somado aos olhares de
reprovação, que indicariam imediatamente a exclusão interdita, por
fim, mas não menos importante, a própria violência verbal e física
que expulsaria essas subjetividades e interditaria seus discursos
verbais e corporais, dependendo dos espaços pelos quais quisessem
transitar e ocupar.
Em suma, esperamos dos leitores deste capítulo a
compreensão de que não estamos afirmando que a perseguição - ou
não - do pajubá tenha se dado dessa forma, mas estamos através
das possibilidades abertas pelos entendimentos historiográficos
e linguísticos, conjuntamente com os conceitos de Foucault e de
Mbembe de governo, heterotopia e necropoder/necropolítica,
permitindo-nos pensar e lançar um outro olhar possível para
o primeiro governo Vargas, conhecido pela historiografia
como Estado Novo, deixando a cabo de outros pesquisadores
aprofundarem estudos que congreguem as temáticas do pajubá e do
governo estadonovista, a fim de tentar preencher através de análise
documental os indícios e as lacunas deixados de como poderia ter se
dado esse governo da língua para o caso do pajubá no período.
Em suma, se não chegamos a uma resposta cabal, ao
menos conseguimos perceber e identificar que o pajubá pode
ter representado formas de resistências bastantes interessantes
durante esse período, justamente em razão de sua marginalidade
e de sua capacidade mutante de se adaptar a diferentes espaços e
de se hibridizar, permitindo que entendamos a língua pajubá como
uma língua da e para as resistências e as contracondutas, já que ela

192
Sumário

teria emergido na marginalidade da heterocronia e da heterotopia do


asfalto e das religiões afro-brasileiras e africanas como a umbanda
e o candomblé, justamente para resistir ao avanço de formas de
governo de seus corpos e de suas condutas e do necropoder pastoral
policial e higienista durante o Estado Novo de Vargas.

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195
CAPÍTULO 8

“PÁTRIA AMADA BRASIL”


O GERENCIAMENTO DA NECROPOLÍTICA LINGUISTICA
E A RESISTÊNCIA NAS ALDEIAS TEMBÉ-TENETEHARA
DO GUAMÁ

Cristiane Helena Silva de Oliveira

Introdução

Do que a terra mais garrida / Teus risonhos, lindos campos têm


mais flores / Nossos bosques têm mais vida / Nossa vida, no teu
seio, mais amores / Ó Pátria amada / Idolatrada Salve! Salve!
(Hino Nacional Brasileiro)
Quando falamos de Brasil, é unânime se pensar em riqueza
e biodiversidade. A visão nacionalista e romântica brasileira
nos permite atribuir essas riquezas aos recursos naturais que,
historicamente são retratados como os maiores tesouros desta
nação. Tão grande é a exaltação desses tesouros que estão, eles
todos, representados na bandeira que, por sua vez, é o maior símbolo
nacional do país, e são: o verde - das matas, o amarelo – do ouro, e
o azul – dos rios e céu. Mas quando falamos de Brasil, deveríamos
também lembrar do vermelho – sangue, por muito tempo derramado,
de povos que foram arrancados de suas vidas e empurrados para um
destino em que as únicas certezas eram a escravidão e a morte.
Escravizar e matar por ganância foram heranças deixadas
pelos colonizadores europeus que praticavam, ambos os atos,
de maneira exaustiva com negros e indígenas. As peles negras
Sumário

e indígenas sempre foram vistas como objetos, nos quais se


podiam fazer experimentos. A ideia de raça (QUIJANO, 2005),
assumida pelo colonizador, fez com que negros e indígenas fossem
considerados perfeitos para a prática de projetos necropolíticos
(MBEMBE, 2016).
Essa ideia de raça descrita por Aníbal Quijano está em
sua teoria de Colonialidade do Poder, em que o autor descreve a
Colonialidade do Poder como um conceito que abarca o principal
método de distribuição do poder mundial: a raça. Outra Colonialidade
trazida neste texto é a Colonialidade do Saber de Walter Mignolo
que propõe uma reflexão de como os valores epistêmicos de base
europeia são legitimados em detrimento de todas as outras epistemes
existentes fora da Europa.
Além dos conceitos descritos acima, trazemos também,
neste artigo, o conceito de “necropolítica” de Achille Mbembe que
é proposto pelo autor como um sistema de poder, que a partir da
ideia de raça, dita quem deve morrer e quem deve viver. Todavia, no
que tange a imensidão de práticas abarcadas pela necropolítica, foi
possível ainda tangenciar tal conceito, ao ponto que outras formas
de necropolítica puderam ganhar destaque.
Dessa forma, a proposta do conceito de necropolítica
linguística, surgiu a partir da pesquisa de Oliveira (2018), e
buscou evidenciar os processos de necropolítica sofridos pelos
povos indígenas Tembé-Tenetehara, no que se refere às suas
práticas linguísticas. Em resumo, a partir desse conceito abriu-
se a possibilidade de nomear novas necropolíticas, que de “novas”
nada tem.
Este capítulo, portanto, busca reunir alguns desses achados,
assim como demarcar um novo olhar sobre esse mesmo fenômeno,
de forma que faremos essa discussão a partir de um contexto
nacional, em que são poucos os projetos voltados para uma política
linguística de proteção e de co-oficialização das línguas indígenas,
o que não nos surpreende considerando as marcas de desigualdade,

198
Sumário

e os instrumentos ideológicos já utilizados ao longo da história


brasileira como ferramentas delimitadoras de poder.
Trouxemos como parte importante do título deste traba-
lho, o slogan do atual governo federal. A escolha foi pensada, jus-
tamente, para problematizar a posição da atual gestão, que pouco
faz para minimizar os problemas das sociedades indígenas. Sabemos
que o governo de Jair Bolsonaro incentivou, com a falta de punição
sobretudo, táticas de extermínio dos povos indígenas, como aconte-
ceu nas ditaduras militares durante o período republicano brasileiro.
Nesse cenário, a necropolítica linguística vai estrategicamente
avançando e silenciando povos, uma forma de agir que pouco se
assemelha aos moldes da colonização, pois corresponde a métodos
mais sutis, os quais trazem o mesmo efeito de silenciamento/
extermínio linguístico. Por isso, acreditamos que através deste
escrito poderemos dar visibilidade às táticas de silenciamento vividas
pelos Tembé-Tenetehara, além de evidenciar a resistência que tem
se caracterizado pela valorização de sua própria cultura, através da
propagação e ensino de sua língua e por meio das lutas e discussões
por seus direitos, principalmente entre os indígenas presentes nas
Aldeias do Guamá.

Necropolítica e colonialidades: uma introdução

Necropolítica e colonialidade convergem em um Estado


de exclusões, em que as ações permeadas por essas duas categorias
teóricas trazem em si uma demanda intensa de apagamentos de
saberes e mortes dos considerados subalternos1. Ambas as práticas
nascem do pensamento de uma hegemonia racial europeia, que
busca a exclusão física (baseada na raça) e epistemológica de todas
as outras formas de ser ou pensar que não são eurocentradas.

1 O termo subalterno descreve “as camadas mais baixas da sociedade constituídas, pelos
modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, da
possibilidade de se tornarem membros pelos no estrato social dominante”. (Pode o
Subalterno Falar? , SPIVAK, 2010; p. 12)

199
Sumário
O atual padrão de poder mundial consiste na articulação entre: 1) a colo-
nialidade do poder, isto é, a idéia de “raça” como fundamento do padrão
universal de classificação social básica e de dominação social; 2) o capi-
talismo, como padrão universal de exploração social; 3) o Estado como
forma central universal de controle da autoridade coletiva e o moderno
Estado-nação como sua variante hegemônica; 4) o eurocentrismo como
forma hegemônica de controle da subjetividade/ intersubjetividade, em
particular no modo de produzir conhecimento. (QUIJANO, 2002, p. 4)

Segundo Mignollo (2008), dentro de uma perspectiva


de produção de saberes, a visão europeia é hegemônica e a única
autorizada formalmente pelos poderes dominantes em qualquer parte
do mundo “[...] eurocentrismo não dá nome a um local geográfico,
mas à hegemonia de uma forma de pensar fundamentada no grego
e no latim e nas seis línguas europeias e imperiais da modernidade;
ou seja, modernidade/ colonialidade” (MIGNOLO, 2008, p. 301).
Dessa forma, os conceitos de Colonialidade, propostos por Quijano
e Mignolo nos colocam frente a frente a uma vontade de verdade2
baseada somente nos valores eurocêntricos.
O conceito de necropolítica descrito pelo camaronês Achille
Mbembe (2016), apontou a necropolítica como uma forma de decidir
a vida de outrem, baseando-se em questões de raça e status social.
Segundo essa premissa, o extermínio ocorre não apenas a partir do
apagamento e sujeição do corpo, com base no conceito de biopolítica
de Michel Foucault; No caso do necropoder, ele se relaciona mais
especificamente à morte, sobre decisões que levam à morte de
populações, com base nos marcadores sociais que desumanizam tais
pessoas, sejam elas negras, pobres, indígenas.
Segundo Oliveira e Neves (2017, p. 4622), “O domínio
‘habitado’ pelo necropoder é o da política de exceção, em que os
corpos são deslocados de qualquer status político e passam a ser

2 Foucault descreve a “Vontade de Verdade”, como: “Ora, essa vontade de verdade, como
os outros sistemas de exclusão, apoia-se sobre um suporte institucional[...] Enfim,
creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição
institucional, tende a exercer sobre os outros discursos – estou sempre falando de
nossa sociedade – uma espécie de pressão e como um poder de coerção. ” (A Ordem do
Discurso, FOUCAULT, 2014, p. 16 -17)

200
Sumário

contabilizados como meros corpos biológicos. Nesse sentido, a


prática do biopoder se inscreve em um cenário de divisões [...]”.
Além disso, a destituição do status político do sujeito é feita na
mesma rapidez em que a necropolítica cria seus próprios inimigos
e os extermina, e as divisões nada mais são do que a aplicação da
soberania detentora do total controle da sociedade.

A percepção da existência do outro como um atentado contra minha


vida, como uma ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja eliminação
biofísica reforçaria o potencial para minha vida e segurança, eu
sugiro, é um dos muitos imaginários de soberania, característico
tanto da primeira quanto da última modernidade. (MBEMBE, 2016,
p. 128-129).

Temos aí descrito uma soberania baseada no estado de


exceção, em que os direitos são confiscados da população e a violência
é autorizada, já que a decisão de quem deve viver e quem deve morrer
se constitui como o limiar desse poder soberano. Mbembe (2016)
destaca que, para além dos regimes totalitários, mais estudados
nos livros de história como: nazismo e estado palestino, as colônias
também foram espaços predominantemente dominados pelo estado
de exceção e consequentemente pela necropolítica.

Em primeiro lugar, no contexto da colonização, figura-se a natureza


humana do escravo como uma sombra personificada. De fato, a
condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de um “lar”,
perda de direitos sobre seu corpo e perda de status político. Essa perda
tripla equivale a dominação absoluta, alienação ao nascer e morte social
(expulsão da humanidade de modo geral). (MBEMBE, 2016, p. 131)

Para esse autor, o apagamento completo do sujeito ocorreu


nas colônias, local onde os agora escravos foram reduzidos ao
“nada”. Essa prática de necropolítica atravessou continentes e veio
desembocar também em terras americanas, e os povos indígenas
que aqui habitavam foram os maiores prejudicados com a chegada
dessa nova forma de poder trazida pelo colonizador europeu. A

201
Sumário

expansão europeia já era uma realidade e na bagagem colonizadora


estava a matriz da ganância e da busca incessante por poder: o
capitalismo. Para os europeus a expansão territorial era necessária
e a conquista de novos povos crucial para que o novo sistema de
mercado tivesse êxito.
Segundo Quijano (2005, p. 117), “A América constitui-se
como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de voca-
ção mundial e, desse modo e por isso, como a primeira id-entidade
da modernidade.”. Esse novo padrão de poder trouxe a “ideia de
raça” como uma forma de diferenciar e classificar biologicamente as
pessoas, situando uns em uma condição natural de inferioridade em
relação a outros.
Esta proposta ideológica racial, assim como a necropolítica,
assume o papel principal quando se trata de uma discussão baseada
no conceito de “colonialidade do poder”, em que, a “[...] raça
converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição
da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de
poder da nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de
classificação social universal da população mundial” (QUIJANO,
2005, p. 118).
Mais do que um sistema de segregação racial, a partir
das características físicas de uma população, tornou-se urgente e
necessário, para uma conquista completa dos territórios americanos,
a imposição dos valores europeus, através de uma visão eurocêntrica
hegemônica, a partir da qual, todas as outras formas de se pensar
são desmerecidas e negadas. Segundo Mignolo (2008), essa forma
segregadora de se atribuir valor ao pensamento europeu isolando-o
de todos os outros é chamada de “colonialidade do saber”, de forma
que o eurocentrismo, “[...] não dá nome a um local geográfico, mas
à hegemonia de uma forma de pensar fundamentada no grego e no
latim e nas seis línguas europeias e imperiais da modernidade; ou seja,
modernidade/ colonialidade” (MIGNOLO, 2008, p. 301).
Nesse sentido, colonialidade e necropolítica tem como
“pano de fundo” a modernidade, que serviu de pretexto para silenciar
povos através de uma estratégia de poder excludente e perversa que

202
Sumário

dizimou, apagou identidades, e ainda hoje é uma herança cruel para


aqueles que são marcados pelas cicatrizes sociais deixadas pelos
anos de “conquista”, escravidão e apagamento.

O tangenciamento para a necropolítica


linguística

Falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura.

Frantz Fanon
Como já vimos, a necropolítica é um sistema de exclusão e
segregação, em que a política de morte do corpo físico é a principal
metodologia, usada para dominar, exterminar e conquistar povos.
No entanto, ao aprofundar mais o assunto, notamos que a morte
física não seria a única maneira de se utilizar a necropolítica como
forma de extermínio. Vimos que a necropolítica poderia ser aplicada
de forma mais subjetiva, no entanto, com o mesmo poder de exceção
identitárias, assim como o conceito de colonialidade do saber. Dessa
forma, chegamos à necropolítica linguística.
A necropolítica linguística se debruça sobre a questão do
apagamento linguístico ocorrido no meio das sociedades indígenas,
evidenciando e discutindo as práticas discursivas que nortearam o
processo de apagamento das línguas indígenas. Para a formulação
desse conceito, partimos da certeza de que a língua é um elemento
de poder e de identidade, pois “A língua é muito mais do que um
simples instrumento de comunicação. Ela é palco de conflitos sociais,
de disputas políticas, de propagandas ideológicas, de manipulação
de consciências, entre muitas outras coisas [...]” (BAGNO, 2011,
p. 75). A língua, então, é entendida como um instrumento político,
e fator fundamental na construção da identidade dos indivíduos e
coletividades, além de valioso instrumento cultural.
Percebemos, assim, que a imposição da língua portuguesa
aos indígenas não significou somente em uma negação dessa
identidade indígena, pois foi além, considerando que essa política

203
Sumário

de silenciamento pertence a um projeto muito maior de dizimação


da cultura indígena iniciada ainda nos anos de 1500, com a chegada
dos portugueses ao que hoje chamamos de Brasil. Tal processo
se intensificou no Brasil colônia, em 1757, com o lançamento do
Diretório dos Índios por Marquês de Pombal. Antes do lançamento
dos decretos as línguas majoritárias no país eram o Tupi e o
Tupinambá, falados inclusive por descendentes de portugueses.
Esse período ficou conhecido como período pombalino,
momento em que a Coroa portuguesa passou a assumir a gestão
linguística de suas colônias. A partir de então, foi declarado guerra
a qualquer língua que não fosse a portuguesa, principalmente em
relação as Línguas Gerais administradas pela ordem dos jesuítas,
os quais também foram expulsos das colônias portuguesas e espa-
nholas. Em paralelo também foram lançados diretórios, conjunto
de leis que regulamentavam e norteavam as ações de um diretor
indicado pelo rei, e dentre eles um que merece nossa atenção, que é
o diretório dos índios.
O Diretório dos Índios foi elaborado em 1755, mas só se
tornou público em 1757, e trata-se de um documento que expressa
importantes aspectos da política indígena desse período, pois
consistiu em um conjunto de 95 artigos que reuniam as ordens
dadas pelo governo português em relação aos índios, que dentre
outras coisas, proibia o ensino das línguas indígenas nas escolas e de
qualquer expressão que não fosse em língua portuguesa em território
nacional. Foi esse documento que primeiramente estruturou e
oficializou, por parte da coroa portuguesa, o “genocídio linguístico”
dos indígenas que viviam na colônia do Brasil e na colônia do Grão-
Pará e Maranhão.
Para Bagno (2003), esse decreto se constituiu como o
primeiro exemplo dos procedimentos autoritários que viriam a
caracterizar a política linguística no Brasil, definida por esse mesmo
autor como uma política “não explicita” já que claramente não se
posiciona em favor das línguas minoritárias (BAGNO, 2017).

204
Sumário
Quando uma sociedade se organiza e estende as suas relações de
contato, intercâmbio e dominação sobre outras sociedades, cultural e
linguisticamente diferentes, as línguas desempenham função relevante,
tanto para organizar a dominação e a hegemonia, quanto para resistir
a elas. (FREIRE, 2004, p. 81).

Em outra obra, Bagno (2017) define que toda política


de poder encerra em si uma política linguística, por meio do
controle da língua, seja esse controle um controle social ou um
controle do discurso teórico. Pois, “É interessante, sob a ótica do
poder, controlar a língua que as pessoas falam e também o que
os indivíduos pensam sobre a língua que falam” (BAGNO, 2017,
p. 350). Sobre isso, podemos entender a política linguística como
uma política pública planejada e executada pelas instituições que
gerenciam a sociedade, a fim de tecer ordenamentos e supressões
daquilo que lhes for conveniente.
Segundo Neves e Carvalho (2014, p. 71), “Desde o início
da colonização portuguesa, no século XVI, a ocupação sistemática
das terras indígenas, além de promover um grande genocídio entre
os primeiros indígenas contactados, marcou também o começo dos
austeros processos de intervenção nas práticas culturais destes
povos”. De modo, que só foi possível que o português se tornasse
a língua majoritária do território brasileiro após um tortuoso
processo de repressão sistemática e extermínio físico dos falantes
de línguas indígenas em território nacional.
No Brasil, esse processo de repressão colonial se deu
primeiramente pelas mãos da igreja católica, pelos padres Jesuítas
e através da catequese. Foram os religiosos, os primeiros a impor
uma nova forma de viver aos índios, e o fizeram por meio da
utilização das duas Línguas Gerais de base Tupi. Posteriormente,
esses processos se intensificaram na Republica Brasileira, a partir
de novas violências, privações, isolamentos e castigos físicos, em
internatos com o propósito de introduzir nos povos indígenas todos
os costumes e conhecimentos ocidentais, por meio de que é definido
por Smith (2016) como educação colonial.

205
Sumário
La educación colonial fue, para muchos pueblos indígenas, el agente
más importante para imponer esta superioridad posicional sobre el
conocimiento, la lengua y la cultura. [...] En las diferentes comunidades
se oyen hoy en día numerosas versiones que dan fe del papel fundamental
que jugaron la escuela en la asimilación de los pueblos colonizados, y
las formas sistemáticas, frecuentemente brutales, de negar las lenguas,
los saberes y las culturas indígenas. (SMITH, 2016, p. 99)3

A educação colonial, nesse caso, é fundamental para o


predomínio da língua do colonizador, inclusive, entre os próprios
colonizados. Para Smith (2016), essa forma de subjugar, através,
principalmente, da escola, não apenas impactou diversas culturas
e populações pelo mundo, como constitui uma fórmula sistemática
de domínio sutil e brutal que nega idiomas, conhecimentos e
subjetividades. Tudo isso porque, para o colonizador, desde o início,
o indígena é reconhecido como um espécime de “vida selvagem”,
outra forma de “vida animal”, imersa em um modo de vida além da
imaginação ou compreensão (MBEMBE, 2016).
Com os Tembé-Tenetehara, tal processo se deu a partir de
contato desses indígenas com os Karaí – não índios, no momento
da entrada do Sistema de Proteção ao Índio (SPI) nas aldeias. Em
princípio, tal ação se iniciou com a imposição de agentes do SPI
em relação a descaracterização dos nomes em língua Tenetehara e,
posteriormente, envolveu a imposição do português como língua
oficial, assim como o banimento do uso da língua indígena. E após
mais de duas décadas de humilhações e proibições, os Tenetehara
passaram a não utilizar mais a sua língua, adotando massivamente o
português como língua oficial.
Dessa forma, pensar Necropolítica Linguística é conside-
rar todos os caminhos, autorizados pelo Estado, que vão desde a
imposição de uma língua oficial ao extermínio de línguas, enten-

3 Tradução: A educação colonial era, para muitos povos indígenas, o agente mais
importante para impor essa superioridade posicional sobre o conhecimento, a língua
e a cultura. [...] Nas diferentes comunidades, muitas versões são ouvidas hoje em
dia que atestam o papel fundamental desempenhado pela escola na assimilação dos
povos colonizados, e formas sistemáticas, muitas vezes brutais, de negar idiomas,
conhecimento e as culturas indígenas.

206
Sumário

didas pelo Estado, como não-oficiais. Dessa forma, a necropolítica


linguística surgiu como uma categoria teórica, a fim de identificar
e nomear todos os processos envolvidos nas situações de violência
vividas pelos sujeitos subalternizados4, por meio de todo um méto-
do de apagamento e silenciamento não apenas de uma língua, mas
de identidades.

Os Tembé-Tenetehara e a necropolítica
linguística

A questão da língua também levanta outras questões mais radicais sobre


seu papel na formação dos sujeitos humanos. Fanon argumentava que
a colonização requer mais do que a subordinação material de um povo.
Ela também fornece os meios pelos quais as pessoas são capazes de se
expressarem e se entenderem. Ele identifica isso em termos radicais
no cerne da linguagem e até nos métodos pelos quais as ciências são
construídas. Trata-se do colonialismo epistemológico.

Lewis R. Gordon

A etnia Tembé-Tenetehara está localizada nas fronteiras da


Terra Indígena Alto Rio Guamá (TIARG)5 os indígenas estão loca-
lizados às margens esquerda do Rio Guamá e à direita do Rio Gurupi.
O primeiro processo necropolítico imposto à etnia Tembé-
Tenetehara, comum a todos os outros povos indígenas do Brasil,
foi a invasão e tomada de seu território por povos não-indígenas.

4 Ver nota de rodapé [1].


5 A Terra Indígena Alto Rio Guamá – TIARG, morada dos indígenas Tembé-
Tenetehara, começou a ser construída no ano de 1945, com um decreto de doação da
terra feito pelo interventor Magalhães Barata. Ele atendeu uma solicitação do SPI –
Serviço de Proteção ao Índio e doou a terra para os Tembé e outros povos: Timbiras,
Guajá, Kaapor e trabalhadores da região. Está localizada no nordeste do estado do
Pará, entre a margem direita do rio Guamá e a margem esquerda do rio Gurupi, no
limite do estado do Pará com o Maranhão, nos municípios de Santa Luzia do Pará,
Nova Esperança do Piriá e Paragominas. Ao sul, a TIARG faz fronteira com a Terra
Indígena Alto Turiaçu, localizada no estado do Maranhão.

207
Sumário

Afinal, para qualquer regime de governo, o espaço físico significa


soberania e poder. A entrada do SPI nas aldeias Tembé-Tenetehara
do Guamá se deu a partir de 1945, com a criação do posto indígena,
cuja principal metodologia de controle estabelecia a implantação do
plano do governo de civilização, com o objetivo de transformar o
indígena em um trabalhador rural, a serviço do governo.

Só em 1945 foi estabelecido um posto do SPI na região (o Posto


Indígena Guamá), orientado principalmente para a produção
econômica (lavoura, comércio com os brancos, cantinas sob o
controle do posto), o que o levou a tornar-se o centro das atividades
econômicas dos Tembé no Guamá. (IDEFLOR-BIO, 2017, p.49)

O planejamento do governo era transformar as aldeias


Tembé-Tenetehara em colônias agrícolas, onde os indígenas
passariam a ser a principal mão-de-obra a ser explorada em prol da
sustentabilidade da nação. O governo federal sustentava o discurso
de progresso, então, era interessante usar o trabalho indígena
para dar uso a uma terra fértil que estava “ociosa”. Mas a forma
de agricultura comum aos não-indígenas era incomum para os
indígenas, e o trabalho duro na lavoura passou a ser também uma
maneira de extermínio velado dos Tembé-Tenetehara.
Junto com a lavoura veio a introdução de não-índios entre
os indígenas, pois, como os indígenas não tinham prática naquele
método de trabalho, o governo passou a enviar professores que
tinham como principal função “ensinar os indígenas a trabalharem”.
A entrada de pessoas de fora da sociedade Tembé, abriu as portas para
os mais diversos preconceitos e silenciamentos sobre os indígenas
Tembé-Tenetehara. Os indígenas passaram a sofrer com a imposição
de valores ocidentais em detrimento de suas práticas culturais, as
usurpações de valores básicos, como o nome, foram sendo tirados
pouco a pouco, até que se percebesse um declínio da cultura no geral,
inclusive da língua.

208
Sumário

Para as sociedades indígenas, a língua tem o peso da


memória, narrativas de vida que são passadas de geração em geração
e carregam o significado de resistência. No entanto, para o Estado,
esses valores carregados pela língua indígena não se configuram
como verdade, ganham, propositadamente, conotação de símbolos
sem sentido, pronunciados e repetidos por seres sem conhecimento.

Aqui, o Estado colonial deriva sua reivindicação fundamental de


soberania e legitimidade da autoridade de seu próprio relato de história
e identidade. Essa narrativa é sustentada pela ideia de que o Estado
tem o direito divino de existir; e então entra em conflito com outra
narrativa pelo mesmo espaço sagrado. Como ambas são incompatíveis e
suas populações estão entrelaçadas, qualquer demarcação de território
com base na identidade pura é quase impossível. Violência e soberania,
nesse caso, reivindicam um fundamento divino: o povo é forjado pela
adoração de uma divindade, e a identidade nacional é concebida em
oposição a outras divindades (MBEMBE, 2016, p. 136).

As desqualificações empregadas aos saberes e discursos


indígenas se confundem com a forma de como os loucos são
retratados por Michel Foucault (2014, p. 10), “Desde a alta Idade
Média, o louco é aquele cujo discurso que não pode circular como
o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula
e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância”. Dessa
forma, tanto os loucos, quantos os indígenas foram sendo arrastados
por um caminho desconhecido e imposto, sob o comando de uma
soberania que age baseada em um discurso de imposição de uma
única verdade: a do Estado.
Com o poder concentrado nas mãos do Estado, aos indígenas
sobrava obediência e sujeição e a soberania estatal comandava até
as identidades. O Estado brasileiro percebeu que poderia interferir
nas identidades de maneira bem devastadora e rápida, assim como
faziam os jesuítas nos primeiros séculos de colonização, substituindo
seus nomes próprios e então passou a “batizar” os indígenas. Nas
Aldeias Tembé-Tenetehara esse processo de batismo ocorria a cada
mudança de chefe de posto.

209
Sumário

Sobre isso os indígenas Tembé-Tenetehara têm muito o


que contar, exemplo disso é o do cacique Naldo Tembé6 que passou
por um momento da sua vida em que foi detentor de três registros
feitos por chefes de posto diferentes, observemos a fala do cacique
Naldo Tembé:

Cada chefe de posto que passava pelo posto, dizia: “como é o seu nome?”
e na maioria das vezes mudava o nome do indígena ao seu bel prazer.
Aí, cada chefe de posto que passava aqui fazia um registro, tinha pessoa
que tinha 4, 5 registros e a cada registro 1 nome e 1 sobrenome, que
nem eu, que tive 3 registros criado por chefe de posto. No primeiro eu
era Ednaldo Santos dos Reis, no outro eu era Ednaldo Sarmento dos
Reis e no outro Ednaldo Gomes dos Reis, mas hoje meu nome está
como Ednaldo Tembé (OLIVEIRA, 2018).

Apagar os nomes e batizar indígenas era uma forma de


demonstrar domínio. Uma clássica demonstração de “marcação
de território” feita pelo Estado. A língua, os nomes, eram a porta
de entrada para sujeição do indígena à cultura do não-índio. A
ferramenta de dominação, agora, já não era física, mas também
ideológica. Logo, a língua Tenetehara também passou a ser vista
como uma inimiga invisível e que precisava ser silenciada. Acabar
com a língua não era somente capricho ocidental, era uma maneira
de demonstrar poder e sujeitar o indígena, pois língua também
é identidade, ou seja, gerenciar a língua, pode significar também
gerenciar a morte.
O cacique Naldo Tembé relata que foi a partir dessa
aproximação do indígena com o colonizador que as coações em
relação a língua Tenetehara foram mais “calorosas”. Segundo ele:
“Meu avô falou que naquela época eles foram chamados pelo chefe
de posto que disse que não adiantava falar a língua Tenetehara,
pois era uma língua desconhecida para eles, os trabalhadores, que
vinham de fora da aldeia”. Então, os indígenas deveriam falar a
língua portuguesa, que era a “correta” e a insistência foi tanta para

6 Liderança indígena, cacique da Aldeia Sede.

210
Sumário

que os indígenas parassem de se expressar em sua língua que, eles,


passaram a sentir vergonha e foram silenciados.
Dessa forma, a necropolítica linguística avançou dentro das
aldeias Tembé-Tenetehara e a cada geração que nascia, a herança
do silenciamento linguístico foi reproduzida. No entanto, também,
por vezes, ela foi driblada pela astúcia dos indígenas que criaram
algumas táticas de resistência para que a língua Tenetehara não
tivesse um fim permanente.

Guerreiros Tupi: Conhecer a língua Tenetehara


é empregar a resistência

Falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a


morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura,
suportar o peso de uma civilização.

Frantz Fanon
Nenhuma sociedade é totalmente passiva, há sempre
alguma forma de resistir. As etnias de origem Tupi são
historicamente conhecidas pela coragem e valentia de seus
guerreiros que ao se depararem com situações de conflitos não
recuavam, o destemor de homens e mulheres de sangue tupi é muito
lembrado ainda hoje nos altos da história do Brasil: guerreiros
que lutavam pela sobrevivência de seu povo. Ser guerreiro tupi
se tornou sinônimo de ser forte e corajoso e as veias Tembé-
Tenetehara são banhadas pelo sangue Tupi, que ainda hoje cria
guerreiros que estão constantemente enfrentando guerras contra
sistemas de poder que, emergem de fora das aldeias para dentro, e
insistem em querer banir suas práticas culturais.
Um exemplo disso é o indígena Bewari Tembé, que no auge
dos seus quatorze anos pediu aos seus pais para que fosse enviado
da aldeia Sede para a aldeia Tekohaw7, a fim de aprender mais sobre

7 É uma das aldeias que fica próxima ao rio Gurupi e historicamente sofreu menos
contato com o não-índio, por isso, conseguiu manter mais viva suas práticas culturais
e sua língua.

211
Sumário

sua língua. Bewari, à época um garoto, talvez nem tivesse noção,


mas sua atitude traria grandes resultados anos mais tarde. Em sua
estadia na aldeia Tekohaw, teve mais contato, além da língua, com
as práticas culturais que já eram pouco desenvolvidas nas aldeias
do Guamá. Ao retornar para sua aldeia, ele tornou-se professor de
língua indígena e uma referência para os outros indígenas.
Hoje o trabalho de Bewãri se divide em ensinar as práticas
culturais e a língua Tenetehara dentro das escolas da região do
Guamá, organizar as festas tradicionais e exercer seu ativismo digital,
pois desde 2017, quando passou a ter acesso livre a rede mundial de
computadores, o indígena constantemente posta mensagens em sua
língua Tenetehara, além de se disponibilizar a traduzir e explicar
sua cultura via chats online, ele também posta os convites para suas
tradicionais festas, além das fotos que faz dos eventos.
Outra grande influência nas aldeias do Guamá é a também
Professora de língua Tenetehara, Kúza Tembé, que junto com
Bewãri é muito ativa nas práticas culturais de seu povo. Kúza é
neta de Verônica Tembé8e carrega como herança a importância de
se valorizar, praticar e repassar os saberes de seu povo.

Kúza nasceu no Tekohaw e viveu por muitos anos ao lado de sua avó,
mas agora vive na Aldeia Sede, junto com Bewãri ela ministra aulas
de língua indígena e é também conhecida como grande articuladora
cultural do povo Tembé-Tenetehara. É muito comum nos eventos ela
ser escalada para cerimonialista, no entanto, onde Kúza se destaca
bastante é na confecção de artesanatos, adereços, pinturas e objetos
utilizados para enfeitar a ramada nas festas. (OLIVEIRA, 2018, p. 37)

Antes das interferências diretas de Kúza e Bewãri, as


Aldeias do Guamá viviam uma certa apatia em relação às suas
práticas culturais e sua língua, os dois jovens conseguiram, em um
trabalho conjunto, despertar com maestria o interesse de seu povo

8 Foi fundadora da Aldeia Tekohaw e uma das mais importantes lideranças da Amazônia.
Para os Tembé-Tenetehara, Verônica, foi uma mulher guerreira que conseguiu manter
a identidade de seu povo viva.

212
Sumário

para sua própria noção de cultura, e mais que isso conseguiram dar
uma notoriedade tão grande às suas práticas culturais que hoje elas
alcançam bem mais do que as fronteiras da TIARG.
Em 2015, em parceria com os indígenas, o Gedai9 lançou o
livro “Patrimônio Cultural Tembé-Tenetehara”, que reuniu através
de fotos e narrativas a história do povo Tembé-Tenetehara, o livro
foi motivo de muito orgulho para os indígenas que se reconheceram
nas páginas, por imagens ou textos.
Em 2018, essa parceria com o Gedai também rendeu a
animação “A história de Zahy”10 que é baseada na narrativa Tembé-
Tenetehara da origem da lua, e contou com uma participação ativa
dos indígenas. A narrativa contada por Verônica Tembé ganhou
um roteiro fiel à história contada nas aldeias e foi produzido
pelas Professoras Ivânia Neves e Kúza Tembé. Além de Kúza
outro indígena muito participativo na produção da animação foi
Bewari Tembé que “[...] exerceu a função de Concept-Art, ou seja,
auxiliou nos desenhos dos personagens e cenários da animação.”
(OLIVEIRA, 2018, p. 98).
A “História de Zahy” traz como uma de suas grandes
inovações a narração que é feita toda em língua Tenetehara e
legendada em língua portuguesa, a fuga dos padrões retira da
animação um caráter puramente animado e a coloca em um cenário
político também, onde a animação vai poder ser inscrita como um
instrumento de resistência linguística de um povo que por anos
sofre as imposições de um poder colonial que tende a ditar as regras
de suas práticas culturais e sua língua.
9 Grupo de Estudo Mediações, Discursos e Sociedades Amazônicas, é coordenado
pela Prof.ª Dra. Ivânia dos Santos Neves. Desde 2010, as atividades deste grupo de
pesquisa tomam como base as reflexões teóricas da análise do discurso, especialmente
as discussões sobre mídia e identidade, fundamentadas pelas formulações de Michel
Foucault sobre saber e poder. Também, em função do debate frequente entre
questões locais e globais, são recorrentes abordagens que estabeleçam diálogo com as
discussões dos Estudos Culturais. O objetivo deste Grupo, formado por pesquisadores
e estudantes da graduação e da pós-graduação é reunir projetos de pesquisas e de
extensão relacionados à história do presente e aos processos de mediação entre as
sociedades amazônicas. Fonte: http://grupogedai.blogspot.com/
10 O trailer da animação está disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=D2tA6tIWTTI.

213
Sumário

A necropolítica linguística esteve inscrita por muito tempo


dentro da relação de poder da língua Tenetehara como predominante,
imposta e devastadora, no entanto o que não se pode negar é que em
todas as vezes que está relação de poder fosse a predominante, estava
lá presente também uma resistência que se moldava conforme o
contexto de poder estabelecido. Segundo Foucault (2014), para que
o resistir aconteça, a resistência tem de se igualar pragmaticamente
ao poder e ser “tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele.
Que, como ele, venha de ‘baixo’ e se distribua estrategicamente”
(FOUCAULT, 2014, p. 360).
Os Tembé-Tenetehara adotaram a resistência como uma
prática de política linguística e a compreensão de que a língua não
deveria ser afastada das práticas culturais foi crucial para que a
resistência à necropolítica linguística – que se configura como uma
política de gerenciamento de povos, através da morte de sua cultura,
sua língua, ou seja, uma política de morte linguística e de morte do
sujeito – fosse eficaz, foi preciso compreender que a língua e sujeito
se convergem e entender que “falar é existir absolutamente para o
outro.” (FANON. 2008, p. 33).
Para as sociedades indígenas resistir ainda têm sido se
valer das frestas de liberdade que vem em conjunto com o poder,
e estar atento às possibilidades de mobilização de uma contestação
de algo que parece dominante, resistir tem sido estar do outro lado
das relações de poder. Para os Tembé-Tenetehara, resistir tem sido
conhecer sua língua.

Considerações finais

Este capítulo se preocupou em acrescentar um novo


olhar sobre as discussões de Oliveira (2018) acerca dos processos
necropolíticos sofridos pelos povos indígenas Tembé-Tenetehara,
especialmente o de necropolítica linguística. De modo que pudemos
tanto revisitar o conceito de necropolítica e de colonialidade, como

214
Sumário

compreender de que modo tais conceitos sustentam o entendimento


das práticas de silenciamento sofridas pelos Tembé-Tenetehara.
Além disso, procuramos visibilizar os Tembé-Tenetehara
não apenas como indivíduos passivos aos silenciamentos, mas
também como se posicionaram como sujeitas e sujeitos de sua
história e como encontraram formas de resistência. Quando lutam
para a permanência e manutenção de sua língua, lutam também
por si mesmos, já que a língua vai muito além de um simples
instrumento de comunicação, ela adentra o campo da memória,
história, subjetividade e do eu.
Nesses moldes, a língua é entendida como um instrumento
político, e tão poderoso, que precisa ser silenciado, já que engendra
um mecanismo de poder e de controle social. A questão da língua
atravessa as identidades, identidades essas, indígenas, as quais o
necropoder linguístico quer dizimar.
Por fim, com a chegada da extrema direita ao poder no
Brasil em 2018, acreditamos que hoje, o maior gerenciador de
necropolíticas, dentro do Brasil, é o próprio Estado e a cada dia
fornece uma ferramenta nova nas mãos dos que realmente buscam
exercer uma política de exclusão. O Brasil caminha para um estado
de sítio e nesse cenário, mesmo grande parte dos não indígenas,
sobretudo os mais pobres, está sentindo, agora no século XXI,
a condição de exclusão que os indígenas vivem desde a chegada
das caravelas chegaram ao solo brasileiro. E a resistência pode
começar pelo entendimento de que: o poder circula e a resistência
precisa ser móvel.

Referências

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brasileira. 2. ed. São Paulo Parábola, 2003.
BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São
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215
Sumário

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Paulo: Parábola Editorial, 2015.
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São Carlos: Pedro & João Editora, 2016.p.827-832. Disponível em:
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FOUCAULT, M. Microfísica do poder. In: MACHADO, R. (Org)
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FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução
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FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège
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MBEMBE, A. Necropolítica. Arte & Ensaios, v. 2, n. 32, p. 123-
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MIGNOLO, W. D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial
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UFF: Dossiê: Literatura, língua e identidade, n.34, p. 287-324, 2008.
Traduzido por: Ângela Lopes Norte. Disponível em <www.uff.br/
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216
Sumário

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OLIVEIRA, C. H. S.; NEVES, I. S. Necropolítica e Colonialidade:
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[recurso eletrônico] / Edna Maria Ramos de Castro, Suely
Rodrigues Alves (organizadoras). Belém: NAEA, 2017.p.4619-
4628. Disponível em: https://docplayer.com.br/69213194-Anais-
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OLIVEIRA, C. H. S. Necropolítica linguística: silenciamento e
resistência da língua Tenetehara nas aldeias do Guamá. 2018.
105 f. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em
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Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.
SMITH, L.T. A descolonizar las metodologías: investigación y
pueblos indígenas. Tradução de Kathryn Lehman. Santiago: Lom
Ediciones, 2016.

217
CAPÍTULO 9

ENTRE SUSSURROS E CASTIGOS


O GOVERNO DA LÍNGUA E A COSMOLOGIA
OMÁGUA/KAMBEBA

Márcia Kambeba

TAXIRA KUMIÇA KATU MINHA BOA FALA

Taxira kumuera may-sangara Minha língua ancestral


Ikum luaia -xitá kumiça iquie rupi Hoje pouco falamos por aqui
Ikua maritipa munura tana Saber que roubaram de nós
May – tini iauqui axuka tanu awa Homem branco fez chorar nosso povo
Upaca taxira awa Acorda meu povo
Ynua ritama – tama tana Essa aldeia/cidade é nossa
Maniatipa ruaia ayacaca? Como não lutar?
Iapã icumi apyká supi jenó Vamos agora sentar para ouvir
Tana mama-tua, tanu papa-tua Nossa avó, nosso avô falar.
Kumiça katu imity ta supi Palavra bonita tem para mim
Sapukatara, kanata, tuiuka Felicidade, luz, terra
kuara makatipa paranã jeneúma ipura Lugar onde o rio corre ligeiro
-pani Nossa flecha voa pelo céu
Tana kumuera imimiua ruaia imanu Nossa língua ancestral não morre
Rana usutá iacati Ela vai subir o rio
Peruti tana saxipa, tana aykua Levando nossa dor, nossa ferida.
Supi uipi era kamutuni Para um novo amanhã.
Sumário

Introdução

Antes da invasão europeia, este continente era povoado


por diferentes povos indígenas, com suas diferentes cosmologias
e línguas, com suas histórias singulares e suas formas próprias
de narrar, de se relacionar com os territórios e de produzir
identidade, que nunca foram fixas. Eles transitavam e continuam
transitando pelos rios, pelas florestas, intercambiavam saberes,
afetos, memórias. Uma das primeiras estratégias do dispositivo
colonial (LISBÔA, 2019; 2021; 2022; LISBÔA, NEVES, 2019;
NEVES, 2015) foi inventar um índio genérico, sem história, que
oscilava entre o ingênuo e o selvagem (NEVES, 2009). E desde
então, até hoje, mostrar nossa identidade para fugir dessa invenção
passou a ser um desafio.
A história do Brasil é uma história de colonialidades e
sempre foi governada por vários dispositivos de saber e poder,
entre eles, as igrejas cristãs e o dispositivo escolar, que desde
a escola dos jesuítas se empenharam em apagar a pluralidade
linguística. Por isso, embora esse território seja o berço de grandes
civilizações, temos atualmente mais de 200 línguas indígenas,
no entanto, há um discurso de que somos monolíngues, falando
apenas o português. Esse é um dos resultados efetivos do governo
da língua (LISBÔA 2019; 2022; NEVES, GREGOLIN, 2021).
Nossos corpos indígenas, bem como nossos territórios
foram atravessados pelo dispositivo colonial e pelas relações
de poder estabelecidas entre as coroas portuguesa, espanhola e
demais frentes colonizadoras. Nossas línguas, que traduzem nossa
cosmologia, nossa história não ficou de fora desse processo.
A relevância de se pensar um trabalho sobre à língua
Kambeba e de como ela sofreu com as políticas de governo se dá
pelo fato de fortalecer e visibilizar as resistências e lutas dos povos
indígenas. Esse processo se iniciou com os primeiros textos dos
viajantes, que relataram suas dificuldades com a grande variedade
de línguas indígenas na Amazônia. Mas resistimos, e muitos

220
Sumário

dos nossos saberes foram transmitidos de geração a geração,


embalados pelo desejo de rememorar os conhecimentos deixados
em nós, nesse espaço que a cruz e a espada do “colonizador” não
conseguiram destruir.
Em diversas situações a nossa língua foi interditada e
não podemos negar que prejudicou por demais o povo Omágua/
Kambeba, uma vez que muito se perdeu, inclusive os nomes de
nossos antepassados. O tuxaua Valdomiro Cruz lembra com muita
tristeza esse momento, em que foram obrigados a silenciar devido à
proibição do uso da língua mãe e a negar sua identidade, assumindo
um sobrenome que pertencia à outra pessoa, o “branco” referindo-se
ao “Cruz” de seu nome.

Meus parentes, meus tios, meus avós, viemos de Jurimágua carregando


seu paneirinho até Iquitos, no Peru; aí embarcamos no vapor da linha
até Pará [...]. Naquele tempo, tava acontecendo o recrutamento da
guerra, chamado Guerra do Paraguai, foi aí que o Polungú que era
coronel, dono de seringal, chamou meu pai, meus tios tudo prá ele
registrar pro Reculuto não pegar, aí no Javarí. Eles aceitaram, porque
eram índios direito, trabalhador, freguês bom mesmo, foi aí que nós
pegamos o sobrenome Cruz, mas o nome do meu pai mesmo era
Manuel Tanaquiri Cuelho. Aí foram carimbado, por causa do Polungú
que se chamava João Polungú da Cruz, pra escapar da guerra.

Para supostamente protegê-los de participar da guerra,


uma estratégia local não só apagou seus nomes, determinou
o silenciamento da língua, mas também interferiu quase que
decisivamente nas suas identidades.

Tinha um navio de guerra na boca do Cupeçú, outro na boca do Jutaí.


Aí lá do Mapana foram baixando para o Cupeçú, ficaram no Sardinha,
mas todos com chapéu e canoa carimbado, mas tudo isso pra polícia
não pegarem os Kambeba, assim que escapou os Kambeba. Daí desse
Cupeçú e Sardinha vieram pra ilha do Capote. Eu ainda não existia
nesse tempo. E ao adotar meus pais, eles deixavam de ser índio e
passava a ser caboco. Eu conto bem, porque foi acontecido com minha
família (VALDOMIRO CRUZ, 2011).

221
Sumário

O resultado desse e de tantos outros processos aos que


nossos antepassados foram submetidos, foi muito negativo para a
língua materna dos Omágua/Kambeba. As estruturas linguísticas,
as narrativas, os saberes, as práticas culturais foram muito deixadas
de lado, mas ficaram guardadas na memória dos mais velhos, pois
mesmo proibidos falavam entre eles quando estavam a sós. Podemos
confirmar a informação do tuxaua Valdomiro Cruz através do relato
de Paul Marcoy (2001), quando diz que: “... eles preservavam a língua
dos seus pais, os Umauas de Popayan, mas eles a falavam somente
na intimidade, sendo o tupi a sua língua corrente e um português
confuso, mas inteligível e sua língua oficial e diplomática”.
Neste capítulo, a partir da definição de governo da língua,
quero repensar as experiências do meu povo. Hoje sei que o tempo
todo, desde o início da colonização, fomos submetidos aos mandos e
desmandos de Portugal e depois do Império e da República. Nada foi
por acaso. Foram muitas leis que definiram o silenciamento da nossa
língua, a implementação do Nheengatu e por final do português. A
língua Kambeba, assim como muitas outras, podia não ter chegado
aqui, mas nossos antepassados sussurram em nossa memória e se ela
não está presente, como gostaríamos em nosso cotidiano, é porque
ela nos foi roubada. Mas continuamos fazendo literatura e cantando
em Kambeba, as crianças estão aprendendo.
Para nós, povos tradicionais, a língua não é só as palavras,
ela é feita de narrativas, de músicas, de ensinamentos, de sentimentos.
A língua marca nossa identidade e significa, junto com o nosso
corpo, um território de saber. É preciso falar, mas também é preciso
escutar os mais velhos. Quem tem compromisso em escutar os mais
velhos? Tudo isso e muito mais é língua!
A língua falada pelos Omágua/Kambeba pertence à família
tupi–guarani do tronco Tupi. E assim como aconteceu em todas
as regiões deste país ao longo desses séculos de colonização, em
vários momentos fomos impedidos de falar nossa língua. Nossos
antepassados, no entanto, não se entregaram por completo ao
processo violento impostos, pela colonização e pela colonialidade do
saber e poder, que prossegue até os nossos dias.

222
Sumário

Da samaumeira aos rios: sobre falas, escutas e


identidades

POVO DA GOTA D’ÁGUA

Somos o povo da gota d’água


Filhos que o rio abraçou
Vestiu de coragem o Kambeba
Fortaleceu nossas vidas
Para resistir aos castigos
e violência do invasor.
Entre sussurros e cochichos
Guerras e ambições
Seguimos resilientes
Na contramão do colonizador.

Nas culturas dos povos originários, cada povo tem sua


forma de narrar sua origem que são repassadas de geração
a geração e se faz presente em nossa memória, fortalecendo o
território memorial que carregamos. É preciso saber ouvir e esse
é um dos ensinamentos que aprendemos ainda criança, que se
fortalece com o tempo. Esse seria um dos principais fundamentos
do governo da língua feito pelos Omágua/Kambeba, bem diferente
do que fazem os Estados imperialistas. Não nos interessa apenas
falar ou escrever, é preciso desejar e saber ouvir os mais velhos.
Na cosmologia Omágua/Kambeba contam os anciões,
nossos doutores por excelência, que nascemos de uma gota d’água.
Essas narrativas, muitas vezes, foram sussurradas ao pé do ouvido
repetidamente na calada da noite, ou contadas bem baixinho,
quase cochichando para não serem surpreendidos e punidos.
Esse sussurro vinha de forma individual também, quando a mãe
ou a avó chamava a criança para “catar piolhos” e no ato de catar
pilho, ou pentear o cabelo das meninas os saberes, narrativas, a
própria língua materna ia sendo ensinado. A escuta era atenciosa
e cuidadosa, tudo precisava ser muito bem entendido, posto que
não havia a escrita para registrar. A escrita é algo bem recente

223
Sumário

para os povos indígenas. A oralidade foi e continua sendo sua


principal ferramenta de ensino/aprendizagem.
A narrativa repassada pelos mais velhos diz que um
certo dia o céu se abriu, dele veio uma grande tempestade,
tudo ficou muito escuro e uma forte chuva caiu. As árvores se
balançavam pelo temporal que trazia uma grande gota d’água.
Dentro dessa gota enorme vinham duas gotas menores. A gota
maior se encontrou com a grande árvore sagrada, mãe de todas
as árvores a Samaumeira, ao tocar na Samaumeira, a gota maior
estourou e as duas gotas pequenas, que representavam o homem
e a mulher vieram caindo devagar por entre folhas e galhos até
tocarem as águas escuras do igarapé. E por detrás do tronco da
grande Samaumeira, emergiram o homem e a mulher Omágua/
Kambeba. Nadaram até encontrar terra firme e começaram a se
multiplicar como estrelas no céu, formando uma grande nação.
Por essa razão são considerados como “o povo das águas”.

224
Sumário

Figura 1: Representação da origem da vida do


Omágua/Kambeba

Fonte: Desenho do cacique Uruma Kambeba (2012).

Por nossa cosmologia da água, as aldeias são construídas


sempre próximo de um rio, dele vem toda energia, cura, ensinamentos
necessários para o fortalecimento das lutas e resistências. Os séculos

225
Sumário

XIX e XX foram de silenciamento para os Omágua/Kambeba, mas


os sussurros e cochichos ao pé do ouvido na calada da noite de nossos
ancestrais permitiu que essa história chegasse aos nossos dias. Isso
nos mostra que o processo de resistência perante regimes severos
de proibições e perseguições foram vivenciados estrategicamente
pelos Kambeba.
Segundo Neves (2018) essa é uma narrativa cosmológica,
porque se inscreve na temporalidade e na espacialidade Kambeba,
num universo cultural não ocidental, não cronológico. Foram nossos
antepassados que nos contaram essa história. Nosso tempo visto
de forma circular e não linear obedece à circularidade das rodas de
narrativas e rituais, ao período de luarada, quando a pesca é feita com
respeito à natureza e ao ciclo da água da qual nascemos.
Nos dois primeiros séculos de colonização, uma das formas
de perceber a territorialidade do povo Omágua/Kambeba era a língua
materna fluente entre eles. Na organização social e política, havia a
presença marcante do Aparia maior e dos Aparias menores. O Aparia
maior representava o grande ancestral da cosmologia Kambeba e
todos o tinham como um temido e grande chefe principal. “(...) sua
autoridade era reconhecida rio acima até os confins da província”
(PORRO, 1995). Em língua Kambeba, ele se dedicou à transmissão
de saberes, conhecimentos das ervas medicinais, rituais, narrativas
orais, na dieta alimentar. Aparia maior reafirmava a prática cultural
de vestirem-se produzindo suas próprias roupas (que também
passaram a ser comercializadas) e calçavam-se com as botinas feitas
do leite extraído da seringueira, um saber milenar do meu povo, que
rapidamente foi incorporado pelo colonizador.
O nome original do meu povo é Omágua, “o povo das águas”.
O povo Tupinambá nos apelidou de Kambeba (akanga – pewa), que
significa “cabeça – chata”. Hoje usamos as duas nomenclaturas
para nos identificar no território e na luta por resistências. Antes da
invasão do colonizador, existia um ritual de iniciação da cosmologia
Kambeba em que se colocava a cabeça das crianças, logo que nasciam,

226
Sumário

entre duas pranchas acolchoadas com bambu, para que tomasse uma
forma mais alongada. Nos relatos de José Chantre y Herrera (PORRO,
1992), a nação Omágua/Kambeba tinha por costume achatar a testa
até levantá-la para mais de seis ou oito dedos. No começo apertavam
pouco, mas a cada dois ou três dias, comprimiam mais pela frente e pelo
cangote e dessa maneira alongavam a cabeça conforme a figura que
pretendiam. Era formosura, entre eles, ter um crânio bem achatado
e levantado, riam-se das demais gentes que tinham como eles diziam
cabeça de macaco.
O tempo e o contato com os espanhóis extinguiram dos
Omágua/Kambeba essa prática cultural de remodelar o crânio de
modo particular. Tratava-se de um saber milenar e envolvia uma
tecnologia ainda hoje desconhecida pelo Ocidente. Recorrentemente,
quando os colonizadores se viam diante de saberes que eles não
dominavam, agiam no sentido de fazê-los desaparecer, muitas vezes,
interferindo nas identidades dos povos. Em suas andanças pelos
Amazonas o botânico e naturalista Paul Marcoy (2006), nos diz

Chegou enfim o dia em que as cabeças alongadas ficaram fora de moda,


para grande desgosto daqueles que já as tinham e eram obrigados
a continuar com elas até a morte. Enquanto a nova geração crescia
com suas cabeças naturalmente conformadas, os adultos e os idosos
amaldiçoavam em silêncio a forma piramidal de suas cabeças, da qual
lhes era impossível livrar-se. O último Omágua/Kambeba com cabeça
de mitra morreu em São Paulo de Olivença há sessenta e oito anos atrás.

Praticar o ritual da remodelação do crânio era tido pelos


missionários como uma prática ruim, que evocava os espíritos ruins
ou demônios. Já convertidos ao cristianismo os Omágua/Kambeba
deixaram de praticar esse e outros rituais que apresentassem
evocação espiritual, como por exemplo, os rituais de cura. A igreja
teve grande contribuição nessa violência sofrida relacionada à
territorialidade, modo de vida dos Omágua/Kambeba. Uma vez que

227
Sumário

para nossos antepassados a remodelação do crânio representava


uma estratégia de resistência e sobrevivência visto que não eram
antropófagos e remodelar o crânio era também uma maneira de
demarcar sua identidade.
Meu povo Omágua/Kambeba, desde antes da colonização,
vive no Peru e no Brasil. Mas o dispositivo colonial criou uma divisão
entre nós e aqui no Brasil não temos contatos há muitas décadas
com os que estão no Peru. Lamentavelmente, muitos outros povos
indígenas também viveram essa realidade. No território brasileiro,
vivem aproximadamente 50.000 Kambeba, espraiados pelos rios do
Amazonas (Alto Solimões, Médio Solimões e rio Negro). Estima-
se que 20.000 vivam na capital Manaus. Também há um grupo de
Kambeba que vive no Ceará, em Fortaleza com quem também não
temos contato.

Kumiça Kumuera imimiua – história da nossa


língua e território ancestrais

LÍNGUA MATERNA
Tupi meu tronco sagrado
Feito árvore a se enraizar
Maracás anunciam o ritual
Meu canto é força milenar.
Tana kumuera katú, iapã kumiça.
(Nossa língua boa! Vamos falar).
Canto para resistir
Batendo o pé no chão
Memorizo o que aprendi
Na língua da minha nação
Sussurros de afirmação.

Os primeiros contatos dos Kambeba com os colonizadores


datam do século XVI. Em todos esses séculos, nossa língua, a
princípio representou uma dificuldade para os religiosos, depois foi

228
Sumário

perseguida e em muitos momentos da história republicana do Brasil


foi proibida, assim como as outras línguas indígenas. Fraturada,
muitas vezes, sussurrada ao pé do ouvido e agora reaprendida
nas escolas, no contemporâneo, a língua Kambeba segue como
resistência da cosmologia do nosso povo.
Há controvérsias sobre a localização e extensão territorial
dos Omágua/Kambeba ao longo do rio Solimões entre os séculos
XVI e XVII. Nesse período, os territórios, as cosmologias e as
línguas indígenas dessa região sofreram sua primeira grande
intervenção com a chegada de franciscanos, jesuítas e carmelitas.
O mapa 01 mostra um deslocamento territorial, a parte toda em
amarelo escuro era o território dos Omágua/Kambeba no século
XVI de acordo com a crônica de Carvajal.
O território Omágua/Kambeba, nesses séculos,
compreendia desde o baixo Napo, até a desembocadura do rio Iça.
A outra parte menor, em amarelo escuro, demarca, segundo Betty
Meggers (1987), a existência de Omágua/Kambeba entre o município
de Tefé, Coari chegando próximo do rio Purus. Suas afirmações
baseiam-se em escavações arqueológicas e nas interpretações que
fez das crônicas de Carvajal.
Nesse período, já havia a presença das missões católicas
na região e uma delas, a dos frades franciscanos, teve seu primeiro
contato com os Omágua/Kambeba em outubro de 1647. Segundo
Ugarte (2009) “os franciscanos dedicaram-se não só a conseguir os
aviamentos necessários a viagem, mas a aprender mesmo que de
forma rudimentar a língua Omágua”. Todavia não obtiveram muito
êxito no aprendizado, o que dificultou seu trabalho de “catequização”
e diante da insatisfação sentida pelos Omágua/Kambeba, que
os ameaçavam constantemente, decidiram encerrar a missão em
outubro de1650.
Na Amazônia, as missões religiosas chegaram em épocas
diferentes, a missão dos padres carmelitas chegou em 1627 e as
missões dos jesuítas em 1636. Esses religiosos disputavam entre si

229
Mapa 1: Território Omágua nos séculos XVI e XVII

230
Sumário

Fonte: Maciel, 2003.


Sumário

tanto a dominação de terras, como as relações com os indígenas os


quais serviam de mão-de- obra escrava e também de féis ao projeto
salvífico de Deus. Desde o início da colonização, todas as ordens
religiosas da Igreja Católica que participavam da colonização,
tinham como um de seus principais objetivos interferir nas línguas
indígenas, uma significativa estratégia para poder interferir em suas
cosmologias. Esse trabalho com o governo das línguas indígenas foi
bastante aprimorado pelos Jesuítas.
Para que esse processo de conversão tivesse êxito, logo os
padres jesuítas como notórios intelectuais trataram de aprender as
línguas indígenas. Nesse tempo, tinha-se um complexo linguístico
extraordinário, eram milhares de povos falantes de troncos
linguísticos variados, mas, com o tempo, os jesuítas foram se
aperfeiçoando no uso da língua e foi possível criar um novo dialeto
associado à estrutura da língua portuguesa, chamada de Língua
Geral e aqui na região Norte foi chamada também de Nheengatu”
que passou a ser usado em todo território colonial brasileiro usando
o tronco Tupi como matriz para esse novo dialeto. Ressalta-se que o
tupi era falado pelos Tupinambá em todo litoral brasileiro.
O uso da língua-geral foi uma ferramenta facilitadora
da conversão dos indígenas por parte dessa companhia religiosa
na Amazônia e foi criada para esse fim, pois por não conseguir
dominar fluentemente bem todas as línguas faladas pelos povos
estrategicamente criaram uma que fosse comum para todos. Todavia
a Língua Geral não foi usada apenas no processo de conversão dos
indígenas a “Jesus” pelos Jesuítas. Ela foi nos séculos XVII e XVIII
o principal idioma falado no período do Brasil Colonial.
Muitos outros fizeram uso da Língua Geral, a exemplo dos
bandeirantes paulistas que usam nas suas viagens expedicionárias.
O declínio da Língua Geral aconteceu no século XVIII, com a
interferência do Marquês de Pombal, ministro da coroa portuguesa.
A missão jesuítica deixou a região amazônica em meados de
1759. Expulsar os jesuítas foi uma de suas estratégias para que o

231
Sumário

português se tornasse hegemonicamente a língua falada no Brasil,


um processo difícil, porque os jesuítas usaram da grande influência
que tinham entre os indígenas para implementar a Língua Geral no
Brasil Colônia.
Sobre a proibição não apenas da Língua Geral, mas também
das línguas indígenas, Santos (2002) nos diz que:

O ‘Diretório dos índios’ colocado em prática por Francisco Xavier


de Mendonça Furtado (1751 – 1759) irmão materno do marquês de
Pombal falava da ‘civilização dos índios’ e para isso se fazia proibido
o uso da língua materna de cada nação indígena aldeada, bem como
da língua geral – o Nheengatu e obrigou o uso da língua portuguesa.
Tornava obrigatório por parte dos indígenas o uso dos sobrenomes
semelhantes aos das famílias de Portugal. Tornava-se obrigatório o
uso de vestimentas descentes, desterrando deles a desnudez.

É sabido que esse diretório tinha por objetivo a integração


dos povos indígenas à sociedade portuguesa e muitas estratégias
foram usadas, entre elas, o casamento entre indígenas e portugueses
na maioria das vezes forçadamente. E os filhos gerados dessa união
eram considerados mais capazes e ocupavam cargos importantes nas
vilas dos portugueses outrora aldeias indígenas. Todavia conforme
as aldeias iam sendo dominadas, a precisa do colonizador ia sendo
afirmada na forma de impor seu idioma em detrimento da proibição
do outro idioma falado pelas nações conquistadas. Junto com a língua
os costumes intrínsecos as populações indígenas sofreram impactos
e muitos rituais, práticas do cotidiano do povo foram proibidas.
Conforme o texto do Diretório:

Para desterrar este perniciosíssimo abuso, será um dos principais


cuidados dos diretores, estabelecer nas suas respectivas povoações o
uso da língua portuguesa, não consentindo por modo algum, que os
meninos, e meninas, que pertencem as escolas, e todos aqueles índios,

232
Sumário
que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da língua própria
das suas nações, ou da chamada geral; mas unicamente da portuguesa,
na forma, que Sua Majestade tem recomendado em repetidas ordens,
que até agora se não observaram com total ruína espiritual, e temporal
do Estado. (ALMEIDA, 19977).

No início do século XVIII, uma parte do território


amazônico estava bastante tomado de núcleos coloniais e um
combate estava travado entre “brancos” e indígenas que lutavam
para se manterem em seus territórios. Essas guerras contra os
indígenas tinham o objetivo de punir os indígenas que atacassem
os postos coloniais ou que tentassem impedir o processo de
evangelização. As missões e expedições foram chegando e os
Omágua/Kambeba sentindo cada vez mais forte a violência e a
doença trazida pelo contato.
Depois da expulsão dos jesuítas do Brasil, na Província do
Grão-Pará e Maranhão, o Nheengatu vai ganhar novos contornos e
escrever outras histórias entre os povos indígenas, passando mesmo
a ser a língua de identidade de algumas sociedades. No Brasil, a
expulsão dos jesuítas vai ser acompanhada de uma política mais
ostensiva em relação à Língua Geral Paulista e as determinações do
Marques de Pombal vão começar a estabelecer a língua portuguesa
com a língua hegemônica. Pela imensidão da floresta e pela estrutura
de governo das colônias no final do século XVIII, as determinações
de Pombal não foram totalmente cumpridas. Os jesuítas foram
embora no século XVIII e ainda hoje os Omágua-Kambeba e muitos
outros povos da região falam essa língua.
A nova grande perseguição às línguas indígenas na
Amazônia só vai acontecer depois da segunda metade do século
XIX, com o fim da Cabanagem (1836-1840), quando D. Pedro
II investe num projeto político de tornar a língua portuguesa
hegemônica na região. Trata-se, nesse momento, de uma política
de Estado que vai envolver a criação de escolas.

233
Mapa 2: Aldeias e Localidades Kambeba - século XX

234
Sumário

Fonte: Maciel, 2003.


Sumário

Os Omágua-Kambeba sempre usaram de diferentes


estratégias para continuar repassando os saberes e o ensino da língua
materna às crianças e mais jovens. Podemos encontrar referências
dessa perseguição linguística ao Kambeba em Marcoy (2006), com
relatos do século XIX, momento em que o Nheengatu começa a ser
perseguido nas escolas e a língua portuguesa passa a ser imposta. São
práticas, já nesse momento, administradas pelo Império brasileiro
e não mais pela Coroa Portuguesa. Vemos nesses movimentos um
intenso trabalho de governo da língua, que subordina populações
indígenas inteiras.
A migração dos Omágua/Kambeba dessas últimas três déca-
das até o século XX exigiu dos nosso povo muita habilidade na adap-
tação a nichos ecológicos distintos e diferentes daqueles das várzeas
e ilhas do alto Amazonas, de modo particular para os que migraram
para a capital Manaus pois, o processo de adaptação é completamente
diferente do que se tinha anteriormente nas aldeias. O silenciamento
nesse século foi muito severo, violento ao mesmo tempo que estraté-
gico no sentido de negar a identidade para resistir as leis impostas
pelos governantes. Uma vez que o processo integracionista já estava
declarado e em execução.
Vemos nesses episódios um claro interesse de apagar as
línguas indígenas. Depois, essas mesmas instituições, igreja, Estado
e escolas cobram das populações indígenas que falem suas línguas
para provarem que de fato são indígenas. O processo de retomada
da territorialidade e do território não foi fácil para o povo Omágua/
Kambeba, provar que estavam vivos foi uma árdua missão. Seu
Valdomiro Cruz lembra que, em meados do século XX, foi chamado
para uma reunião e teve que provar que era de fato Omágua/
Kambeba e falante da língua materna.

Eu estava em uma reunião na aldeia do Miratu, onde todos os índios


foram chamado para se reconhecer né, quem era índio e quem não era,
e conforme a etnia eles davam a terra. Tinha cinco padres, a FUNAI

235
Sumário
de Tefé, e 19 tuxaua. Dos 19 tuxaua, só quarto tuxaua falava a lingual
indígena, contando comigo.
Falavam que eu andava mentindo que eu não era índio, que eu me
pareço com o japonês né, aí eu não sei. Só sei que quando fui chamado,
já tinha falado quase todos. Fui chamado por derradeiro, disseram:
‘Agora vamos ver o tuxaua do Jaquiri!’. Aí repararam minha mão, meus
dedos, aí perguntaram: ‘Como seu pai chamava comida?’, eu disse:
‘Chamavam uryneio, saneyo’. Aí perguntaram qual era a religião de
seus pais, eu falei: ‘Católica!’.
Meus parentes sempre foram católicos. Ainda tenho uma imagem de
nossa senhora da Saúde que minha mãe trouxe do Peru. Aí perguntaram
se eu sabia cantar algum hino que cantavam na época dos meus pais,
aí eu cantei. Eles bateram palma. Aí o padre perguntou: e como se
chama aquilo que sobe preto no céu? Aí eu falei: ‘amanatwa suny’ ‘vem
temporal grande’. Aí pararam, que tinha muita gente né, aí bateram
palma e passaram adiante e fui aprovado Kambeba.
Em sua narrativa, Seu Valdomiro mostra ainda o processo inverso, se
durante séculos os indígenas foram perseguidos e proibidos de falar
suas línguas, agora, não falar é que pode render algumas penalizações.
Os outros não falaram a língua. O tuxaua do Miratu não se incomodou
com a língua deles, agora tão aperreado mesmo. Mas eu vi muitos
tuxaua que não falam a língua conseguirem a terra. Os indígenas do
Miratu não se incomodaram em passar a língua adiante, agora estão
aperreados mesmo.
Depois de novo, agora foi o prefeito que chamou pra ver quantas
aldeias tinha né, até meus filhos foram, aí na competição de flechas
eles não sabiam por que eu não ensinei né, mas na parte da aldeia, da
cultura eles ganharam, mostraram a dança, o ritual, a língua, o canto.
Aí chegou a hora de darem a cesta básica, e o pessoal do Miratu queria
e o secretário disse: ‘Não! É dos Kambeba. Vocês não mostraram nada,
como querem ganhar?’ (VALDOMIRO CRUZ, 2012).

Todo esse processo violento de intervenção dos


portugueses e espanhóis na cultura e territorialidade Omágua/
Kambeba se reverbera ainda hoje, pois, tivemos um longo período
de silenciamento, a língua foi sendo impactada gradativamente
e o português ganhou uma força tamanha a ponto de se tornar a
língua mais usada fazendo com que a língua de seus pais caísse no
esquecimento e o tupi antigo fosse esquecido. Os Omágua/Kambeba

236
Sumário

no século XX somente os mais velhos falavam sua língua materna,


os mais jovens falavam português.

As línguas indígenas e a república brasileira

A língua tem não só o poder de nos fazer interagir uns


com os outros, ela também fortalece a identidade de ser um povo.
Esse poder agregador de estabelecer as relações identitárias
e de territorialidades fez com que ao longo da história muitos
governantes vissem nisso um perigo. Então, durante a República
brasileira, muitos políticos passaram a usar da prática do poder para
intervir politicamente e de forma dominante e invasiva em relação
aos povos indígenas, através de leis e decretos regulamentando o uso
da língua. E mais uma vez os povos indígenas se veem violentados
no seu direito de falar e ensinar suas línguas e cosmologias aos seus
jovens e crianças.
Havia por parte dos comandantes do país um movimento
para que os povos indígenas fossem extintos e não somente no
sentido de extermínio, mas, como entidades autônomas. Havia um
projeto integracionista sendo amadurecido e pensado também,
como legado, para os futuros governantes. O discurso e a prática
de extermínio dos povos indígenas do atual governo brasileiro são
recorrentes. Há pelos menos três momentos na República, em que
esse discurso ganhou muita força:
a) 1899-A Proclamação da República, um golpe promovido
pelos generais do exército. Em 1910, em função das pressões
internacionais pelos direitos humanos, o governo brasileiro cria o
Serviço de Proteção ao índio, que vai servir como uma instituição de
integração, procurando silenciar as línguas indígenas e interferir nas
práticas culturais;

237
Sumário

b) O golpe militar do governo Getúlio Vargas - o Estado


Novo. Em 1938, ele criou o decreto/lei nº 406, de 4 de maio,
determinando regras acerca de práticas culturais, educacionais e
linguísticas dos imigrantes em território brasileiro. Nesse período,
também os povos indígenas foram obrigados a falar somente
português. Essa medida se dava como um meio integracionista
dos povos à sociedade e cultura brasileira. Novamente, os povos
indígenas viram-se obrigados a silenciar e, de certa forma,
abandonar a riquíssima bagagem cultural que vinham carregando
por séculos de existência.
O Relatório Figueiredo relata inúmeras atrocidades feitas
aos povos indígenas no período da ditadura que vai do extermínio
de numerosas aldeias, remoções forçadas ao estupro seguido de
morte de mulheres indígenas por militares. Nesse período deu-
se também a ocupação de terras indígenas por colonizadores
que vinham de fora apoiado pelas políticas do regime militar.
E a política integracionista continuava atuando se valendo
da conversão dos indígenas dentro das aldeias. E os grileiros,
garimpeiros e seringueiros já se faziam presentes em terras
indígenas contribuindo com o projeto desenvolvimentista.
c) A ditadura civil-militar entre 1964 – 1985. Em 1967,
o governo militar criou a Fundação Nacional do Índio atual
(FUNAI). Embora o discurso fosse para beneficiar os indígenas, na
prática, as ações funcionavam no sentido contrário e passaram a ser
militarizadas e contagiaram as políticas indigenistas com o discurso
do interacionismo. A língua indígena nesse período continuava
sofrendo processos violentos caminhando para um memoricídio
pela falta de diálogo na língua entre os seus falantes da época.

Veio um padre querer mudar nossa língua, queriam que a gente


falasse nheengatu, aí minha filha Teca que é a Zana daqui dessa aldeia
(Tururucari-Uka) e os outros, bateram o pé e disseram que não. Se eu

238
Sumário
não tivesse doente, tinha ido lá e dito pra ele que eu vi padre só para
celebrar missa, pregar a palavra de Deus, não pra mudar a língua do
índio, mas ele não voltou mais aqui na aldeia. Ele disse que ia no Cuieira,
eu disse pra minha filha que é a Zana de lá, que tomasse cuidado e
falasse na língua Kambeba com ele, e não aceitasse o que ele ia propor,
mas ela disse que ele não foi lá. (VALDOMIRO CRUZ, 2012).

Nesses momentos, acentua-se o discurso sobre a unidade


nacional e o desejo do Estado de que nós, povos indígenas, tornássemos
apenas brasileiros ignorando, invisibilizando a identidade étnica.
A história, no entanto, é descontínua e o discurso da resistência
também é recorrente. Outros governos propuseram discursos e
práticas discursivas diferentes, um pouco mais comprometidas com
os direitos humanos.
Houve muita investida para que a Unidade Nacional
Brasileira e a supremacia “branca” se solidificassem, tornando
o país desenvolvido e sem a presença dos “índios”. Trata-se de
um enunciado, que significou e significa um discurso usado para
nivelar todos os povos existentes, com o objetivo de retirar direitos,
fortalecendo uma enxurrada de violências. Outras construções
também são bastante acionadas para conferir um caráter pejorativo
aos povos indígenas, como: “índios selvagens”, “animais sem alma”,
“povo falante de gírias”, etc. Uma imagem estereotipada, unida a
uma identidade padronizada, que nos colocava e coloca em situação
de entrave para o progresso em todo território brasileiro. Esse
discurso fundamenta a violência aos povos indígenas.
Com a abertura política, no início dos anos de 1980, a
sociedade civil começa a se reorganizar no Brasil. O primeiro
presidente civil, Tancredo Neves, eleito ainda pelo voto indireto,
morre e não chega a assumir. Chega, então ao poder, José Sarney,
com a incumbência outorga uma nova constituição. É dentro desse
espírito de mudanças no país que o movimento indígena começa a
se organizar. Segundo Krenak (2021):

239
Sumário
Nesses últimos 40 anos de movimento indígena, ainda escuto o grito
da liderança indígena Marçal de Souza Tupaim, lá no Mato Grosso do
Sul, quando ainda era proibido fazer encontros e a pastoral indigenista
começou a fazer assembleias regionais. Às vezes tinha umas 20
a 30 pessoas e já era considerado um fórum amplo e eram feitas às
escondidas da FUNAI.

Os movimentos indígenas, nesse período, tiveram


fundamental importância na organização das lutas e movimentos,
que vão influenciar o texto da Constituição de 1988. O emblemático
acontecimento protagonizado por Ailton Krenak, de pintar o rosto
com jenipapo, no palanque do Congresso Nacional Constituinte
colocou em evidência nacional a luta do movimento indígena.
As ditaduras militares foram momentos de muita
perseguição aos povos indígenas, quando a língua portuguesa já
era majoritária em uma boa parte da Amazônia, a estratégia foi
falar a língua Omágua/Kambeba apenas na intimidade, mas a
prática do diálogo permaneceu. Para não sofrer punições por parte
das escolas, das igrejas e mesmo das instituições responsáveis em
proteger os indígenas, o português passou a ser falado no dia-a-dia
como língua principal.
A eleição do capitão reformado do Exército Jair
Bolsonaro para a Presidência da República reacende o discurso
do genocídio indígena e novamente um general volta assumir a
presidência da FUNAI e dá início a uma série de perseguições às
sociedades indígenas. Cumprindo suas promessas de campanha, a
era bolsonarista marca um período de descaso com as fiscalizações
nas fronteiras e estímulos às invasões dos territórios, bem como
a toda sorte de violência: facilitação de entrada de garimpeiros,
madeireiros, grileiros em terras indígenas levou a um alto índice
de mortes por arma de fogo ou arma branca, abusos sexuais,
exploração sexual de menor nas aldeias por parte de garimpeiros
etc. Negligências no atendimento médico nas aldeias, alto índice de

240
Sumário

mortalidade pelo vírus da Covid 19 foram um dos muitos fatores


nessa luta que se enfrenta.
Uma das frases que o Presidente Bolsonaro falou foi:
“em meu governo nenhum centímetro de terra será destinado aos
indígenas”. Isso de fato se viu em seu governo, não foi demarcado
nenhuma terra indígena. A era bolsonarista trouxe muitas dores aos
povos, sem uma aproximação de diálogo, os povos indígenas se veem
com pouco poder de barganha perante o Estado. Recente, foi vetado
pelo presidente a mudança do nome “dia do índio” para “dia dos
povos indígenas”. O que para ele não significa nada, discursivamente,
para os indígenas significa muito pelo fato de se falar de um reparo
cultural, étnico e político.
Os movimentos indígenas no Brasil continuam atuantes
na luta, temos a Associação dos povos indígenas do Brasil (APIB)
que vem fazendo anualmente ações em Brasília, reunindo indígenas
de todos os cantos do Brasil para manifestarem sua indignação
frente ao que o governo vem fazendo contra a vida e presença dos
povos nesse século XXI. O movimento Terra Livre, Luta pela Vida,
Marcha das mulheres indígenas são algumas ações que tem surtido
impactos positivos de apoio a causa indígena no Brasil e no mundo.
Enquanto houver indígenas nesse território brasileiro haverá luta e
resistência. Nesse atual governo, não se tem um projeto que viabilize
a valorização das línguas indígenas faladas no Brasil.
O que vivemos hoje é uma repetição do que já aconteceu
no passado e mais uma vez vamos resistir. Nós, povos indígenas,
estamos nas redes sociais, estamos entrando na universidade,
começamos a ocupar cargos políticos. Hoje já entendemos a questão
política que envolve nossas línguas. Fizeram de tudo para nos
silenciar muitos povos esqueceram sua língua materna e agora nos
cobram que falemos nas línguas indígenas. A diferença de hoje é que
tomamos consciência dessa situação.

241
Sumário

Considerações finais

Falar dos Omágua/Kambeba é trazer novos olhares


sobre nossa existência no século XXI. Vivemos um governo que
aterroriza e se fecha ao diálogo, mas encontramos maneiras de seguir
resistindo, fortalecidos pelas águas que nos dá a vida. Organizados
em associações, buscamos ensinar a língua de nossos pais aos mais
jovens. Os falantes da língua materna repassam seus saberes e a
formação de professores indígenas bilingue se faz necessário.
Sussurrar ao pé do ouvido é preciso. E foi sussurrando que
conseguimos no hoje ter a presença da língua Omágua/Kambeba,
mesmo que de forma fraturada e fragilizada pelo tempo de contato
que se deu e se estendeu até os dias atuais. Hoje, estratégias como
cantar na língua Omágua/Kambeba é uma maneira de fazer com
que crianças e jovens memorizem o que se tem de referência. A
literatura, poesias escritas em tupi traduzidas para português
tornaram-se necessárias na construção de novas ferramentas de
ensino dentro das aldeias.
Registrar nossos saberes, desenhar a memória, escrever
textos bilingue para que sejam pelas novas gerações aprendido
foi a maneira encontrada para que pudéssemos lutar contra o
memoricídio e tomar na mão nossa cultura e segurar forte para que
não escape por entre os dedos essa riqueza deixada como legado
e pela qual muito sangue foi derramado. Em muitas aldeias, são
realizados festivais onde a canção na língua materna é apresentada,
poemas, etc. A arte nos ajuda a manter acesa a chama da identidade,
pertencimento e legado.
Desse modo, nós estamos fazendo o governo da língua
acontecer à nossa maneira quando buscamos reconstruir novas
formas de territorialidades, valorizando os saberes e de modo
particular a língua materna tão rica e importante a nós. Não
permitiremos que o dispositivo colonial presente em nossa sociedade

242
Sumário

atual destrua em nós a força de sermos o povo das águas, o povo


cabeça – chata. Todas as lutas em prol da coletividade voltadas
para as práticas culturais fortalecem a autonomia de sermos falantes
do tronco tupi e novas formas de repassar essa cultura a gerações
futuras são construídas. E assim caminham os Omágua/Kambeba
mantendo uma de suas antigas práticas que é construir suas casas
perto das águas, em lugares que possam dar essa conexão com os
elementos que compõe nosso sagrado.
Finalizo trazendo uma notícia importante para os povos
indígenas. Em 16/11/2021 a Prefeitura de Manaus, capital do
Amazonas, por meio da Secretaria Municipal de Educação (Semed),
aprovou a inclusão das línguas maternas Kambeba e Nheengatu
como matéria no currículo educacional das escolas municipais
indígenas. Essa iniciativa foi uma conquista do movimento indígena
do Amazonas e é vista como um marco histórico na educação
brasileira. Por tempo os Kambeba e demais povos vinham lutando
para que essa conquista fosse possível, pois fortalece a cultura,
identidade e nos faz mais responsáveis como lideranças na luta por
direitos coletivos.
Incluído nessas novas estratégias temos a literatura indí-
gena ferramenta estratégica na luta por direitos e tem um papel
importante na educação escolar dentro e fora das aldeias. A litera-
tura possibilita a nós escritores (as) indígenas uma escrita bilingue
e uma forma de registrar narrativas e memórias fundamentais para
a continuidade de um caminhar. Em meus livros de poesia tenho
poemas escritos em Tupi e português. Na aldeia Kambeba as crian-
ças memorizam os poemas e recitam em sala de aula e também em
momentos festivos na aldeia e na cidade. Estrategicamente entre
outros pontos a poesia que escrevo busca contribuir para uma refle-
xão crítica na forma de ver e sentir a luta dos povos originários. É
plantar a semente e deixar florir em vários corações adubado e re-
gado pela água da interculturalidade, pertencimento e amorosidade
na forma como se chega no outro.

243
Sumário

Referências

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civilização no Brasil do século XVIII. Brasília: Ed. Universidade
de Brasília, 1997.

FOUCAULT, M. Em defesa da Sociedade. São Paulo. Martins


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Universitária, 2005.

GARCIA, E. F. Dossiê. Artigo recebido em abril de 2007 e


aprovado para publicação em maio de 2007.

LISBÔA, F. M. Racismo linguístico e os indígenas gavião na


universidade: língua como linha de força do dispositivo colonial.
Salvador: Edufba, 2022.

LISBÔA, F. M. Língua como linha de força do dispositivo colonial:


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em Letras com ênfase em Linguística) – Programa de Pós-
Graduação em Letras, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.

MACIEL, B. Resistência silenciosa: Estudo da retomada étnica


dos Omágua. Manaus: UFAM/PIBIC/CNPq, 1997 (Relatório
final de pesquisa).

NEVES, I. S.; GREGOLIN, M. R. A arqueogenealogia foucaultiana


como lente para a análise do governo da língua portuguesa no
Brasil: continuidades e disrupções. Moara, 57, Vol. 2, jan -jul 2021.
p. 8 - 32. Disponível em: https://periodicos.ufpa.br/index.php/
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NEVES, I. A Invenção do Índio e as Narrativas Orais Tupi.


Tese de Doutorado. Campinas: Unicamp, 2009.

244
Sumário

PORRO, A. – Os povos indígenas da Amazônia e a chegada dos


europeus. In: O povo das águas: Ensaios de etno-história da
Amazônia. Petrópolis: Vozes, São Paulo, 2017.

PINTO, R. F. (Org.). O Diário do Padre Samuel Fritz. Manaus:


Editora da Universidade Federal do Amazonas/Faculdade Salesiana
Dom Bosco, 2006.

SILVA, M. V. Reterritorialização e Identidade do povo Omágua/


Kambeba na aldeia Tururcari Uka – AM. Dissertação de Mestrado
– UFAM – 2012.

STORTO, L. Línguas indígenas, tradição, universais e


diversidade. FAPESP, 2019. 194 p.

TOCANTINS, R. A. Mulheres indígenas em redes: cosmologias,


singularidades históricas, resistências e conhecimentos em
elaborações ativistas. Tese de Doutorado – UFPA- 2020.

245
SOBRE AS / OS AUTORES
Sumário

José de Ribamar Bessa Freire é


professor aposentado da UERJ e da
Pós-Graduação em Memória Social
da UNIRIO. Doutor em Letras. Ex-
docente de universidades peruanas e
da UFAM. Ministrou cursos em
Licenciaturas Interculturais e em
cursos de formação de professores
indígenas. Escreveu e organizou
vários livros, entre eles Rio Babel - a
história das línguas na Amazônia, Línguas Gerais - Política
Linguística e Catequese na América do Sul, Os índios em Arquivos
do Rio de Janeiro, além de artigos em revistas especializadas.

Maria do Rosário de Fátima Valencise


Gregolin é Livre-docente em Análise do Discurso pela UNESP-A-
raraquara (2008); Doutor em Linguística e Língua Portuguesa
(UNESP, Ar, 1988); Mestre em Teoria e História Literária (UNI-
CAMP, 1983). Docente aposentada, colaboradora do Departamento
de Linguística, da UNESP-Araraquara. Bolsista de PQ-CNPQ, com
projeto na área de Análise do Discurso. Entre as publicações desta-
cam-se os livros Foucault e Pêcheux na análise do discurso - diálogos e
duelos e Discurso e mídia - a cultura do espetáculo.

249
Sumário

Ivânia dos Santos Neves é pro-


fessora do Instituto de Letras e
Comunicação da Universidade
Federal do Pará (UFPA). Tem
pós-doutorado em Linguagens e Governamentalidade pela Unesp/
Araraquara, doutorado em Linguística, na área de Análise do Dis-
curso (Unicamp), mestrado em Antropologia (UFPA) e licenciatura
em Letras (UFPA). Ganhou o Prêmio Jabuti 2000, na categoria di-
dático e acumula experiências na área de Linguística, Comunicação
e Antropologia e é líder do Gedai - Grupo de Estudos Mediações e
Discursos na Amazônia.

Flávia Marinho Lisbôa é professora Ad-


junta C da Universidade Federal do Sul
e Sudeste do Pará (Unifesspa), na Facul-
dade de Educação do Campo. Possui
doutorado em Letras/Estudos Linguís-
ticos (UFPA) e é membro do Grupo de
Estudo Mediações, Discurso e Socieda-
des Amazônicas (Gedai-UFPA). Tem experiência e interesse na
área de Jornalismo, Lingüística/Análise do Discurso, na interface
com temas como (de)colonialidade, relações étnico-raciais e políti-
cas de acesso e permanência para indígenas e quilombolas no en-
sino superior. com tese sobre a língua na interface com a colonia-
lidade e com os estudos discursivos com Foucault.

250
Sumário

Raimundo de Araújo Tocantins é dou-


tor em Letras – Estudos Linguísticos
pela Universidade Federal do Pará
(UFPA), mestre em Comunicação, Lin-
guagens e Cultura pela Universidade da
Amazônia e graduação em Letras com
habilitação em língua inglesa pela
(UFPA). Seus interesses de pesquisa es-
tão voltados para os Estudos Culturais
e para a Análise do Discurso francesa,
ancorada nos estudos de Michel Foucault com o olhar apontado
para as subjetividades e relações de poder. Além disso, o autor tam-
bém tem se interessa na compreensão dos discursos produzidos por
sujeitos sociais em diversos espaços digitais.

Vívian de Nazareth Santos Carvalho é


jornalista, doutoranda em Linguística
pelo Programa de Pós-graduação em
Letras da Universidade Federal do
Pará (PPGL-UFPA) e mestra em
Ciências da Comunicação pelo
Programa de Pós-graduação em
Comunicação, Cultura e Amazônia da
mesma instituição (PPGCOM-
UFPA). É pesquisadora do Grupo de
Estudos Mediações, Discurso e
Sociedades Amazônicas (Gedai-
UFPA), e desenvolve pesquisas sobre as relações entre audiovisual e
sociedades indígenas.

251
Sumário

Rafael Marcurio da Cól é doutor e


mestre pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Linguística e Língua Por-
tuguesa da Unesp Campus de Arara-
quara. E, atualmente, é professor
substituto da Universidade Federal
do Norte do Tocantins (UFNT).
Seus principais temas de atuação são:
estudos discursivos foucaultianos,
análise de discursos audiovisuais, es-
tudos sobre a sexualidade e a ditadu-
ra civil-militar no Brasil. O autor agradece ao CNPq pelo fomento a
sua pesquisa.

Diego de F. Ungari é licenciado e


bacharel em História (UNESP-
Franca) e mestre em História Cul-
tural (PPGH-UFRGS). Atuou
como professor e coordenador do
curso de História em faculdade pri-
vada (2016-2018). Atualmente, é
doutorando do PPGHIS-UFOP na
área de Teoria da História e Histó-
ria da Historiografia. Desenvolve investigações sobre as heteroto-
pias, o neoliberalismo e as governamentalidades, bem como estudos
sobre atualismo e outras temporalidades. O autor agradece à CA-
PES que financia sua bolsa de doutorado.

252
Sumário

Cristiane Oliveira, pesquisadora e pro-


fessora de Língua Portuguesa. Mestra
em Linguística pelo Programa de Pós-
Graduação em Letras (PPGL), da Uni-
versidade Federal do Pará (UFPA).
Membro do Grupo de Estudos Media-
ções, Discursos e Sociedades Amazônicas (Gedai), em que desenvol-
ve pesquisas que envolvem a Análise do Discurso e sociedades Indí-
genas Amazônicas.

Márcia Kambeba nasceu na aldeia in-


dígena Belém do Solimões no AM,
fez Geografia pela Universidade Es-
tadual do Amazonas, especialização
em Educação Ambiental pela Facul-
dade Salesiana Dom Bosco e mestra-
do em Geografia pela Universidade
Federal do Amazonas. Atualmente
faz doutorado em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal
do Pará. Márcia Wayna Kambeba é escritora, poeta, fotógrafa, locu-
tora, compositora, ativista, educadora, atriz, roteirista, apresentado-
ra, cantora, faz recitais, contadora de histórias, palestrante de as-
suntos indígenas e ambientais no Brasil e exterior.

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Formato: 160mmx230mm
Tipologia: Bell MT, Courier New, Impact.

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