Você está na página 1de 3

https://mindelinsite.

com/opiniao/os-silencios-na-lusofonia/

Os silêncios na Lusofonia

Cídio Lopes de Almeida

Faculdade Unida de Vitória


Doutorando em Ciências das Religiões
Bolsista FAPES

A Lusofonia esconde em seu seio uma barreira invisível que atua no impedimento de
relações sociais mais alargadas e intensas no contexto da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa – CPLP. São temas silenciados nas interações socioculturais. Tais
silêncios, presentes não só nas relações culturais entre as múltiplas comunidades e nações,
mostram-se também nas relações interpessoais e familiares e geram desencontros que
fragilizam a comunicação e a construção de laços humanos balizados por uma ideia de
justiça, equidade e respeito às várias diversidades, de gênero, cultural, econômica, entre
outras.

São temas considerados tabus, constrangedores ou delicados, evitados na comunicação


por medo de julgamento, constrangimento ou conflito. Na Lusofonia, esses pontos variam
de acordo com a cultura local, mas podemos começar por um principal ou o que mais
opera este bloqueio e depois verificar como em outros domínios as interdições deixam
sintomas. A brutalidade do processo econômico baseado na “plantation”, à base do
extrativismo e do trabalho de pessoas subjugadas à escravidão, é o grande tema para todos
podermos fazer memória, além de nos empenharmos no presente para que sejam
superados. Para que traços desta barbaridade sejam não só reparados, mas de uma vez por
todas, interrompidos, e que as suas formas renovadas, ainda persistentes em nossos dias,
sejam denunciadas e cessadas de uma vez por todas. Este processo não só degradou a
condição da dignidade humana, mas também os sistemas da fauna e flora de onde foram
praticados. O tema corrente da decolonialidade passa não só pela desconstrução destas
estruturas de poder imperial no âmbito da cultura humana, mas também nos temas da
preservação dos demais sistemas vivos a nossa volta.

Posto em pauta o grande silêncio a nos perpassar, podemos adentrar no vasto universo
dos silenciamentos da nossa Lusofonia. No âmbito da religião e política, o exame precisa
trazer à consciência nossos pontos em comum, inicialmente a tratar de como o
cristianismo associado ao poder político prestou o serviço de justificar a barbárie.
Distanciando-se dos seus louváveis propósitos de defesa da dignidade humana. Em que
medida não falar de política e religião, como é mantra na cultura brasileira, não seja para
contribuir com este silenciamento. Sem deixar de também indagar qual foi o efetivo papel
do Reino do Congo (Dom João I – Nizinga a Nkuwu, 1491), convertido ao Catolicismo
Apostólico Romano, na manutenção deste processo que hoje desejamos rememorar para
superar qualquer de seus traços que podem se fazer persistente.

Na esfera da religião afro-brasileira, temos ao menos duas perguntas silenciadas. A


primeira, apesar de haver muitos escritos sobre como a reinvenção da religiosidade a
partir de tradições “africanas” contribuiu para o surgimento do Brasil e das religiões afro-
brasileiras, pouco temos nos perguntado sobre se esta reinvenção foi capaz de elaborar
efetivamente os traumas da barbaridade, e se as novas narrativas não estariam
dialetizando-se apenas com o “eu” do colonizador. Pelo que para concluir os processos
de secessão colonial, estas religiosidades precisam ir além, e estabelecer outras
https://mindelinsite.com/opiniao/os-silencios-na-lusofonia/

referências, outros “outros”, aqui já referindo-nos aos temas da Filosofia sobre o que seja
o eu e da sua relação estruturantes com o outro (Vicente Ferreira da Silva, 1950). Teriam
sido estas narrativas libertadoras da opressão? Como segunda indagação, como as demais
religiosidades das regiões do continente africano em contato com a lusofonia foram
utilizadas para a manutenção das estruturas de poder colonial escravista? Teriam elas
colaborado de alguma forma para processos longevos de exercício de poder, como os que
se praticaram ao longo de duzentos anos na localidade próxima à hoje Cabinda?
(CONCONE, 1987). Ademais, lembrando a história de Zacimbra, a princesa de Cabinda,
vendida como escrava para um proprietário de terras no atual Espírito Santo, caberia
investigar mais sobre as dinâmicas das guerras e a punição, convenientes, com a
escravidão e como estas dinâmicas, dado os longos períodos de duração, marcaram as
religiosidades dos dois lados do Atlântico.

Não menos importante, na esfera psicoafetiva, sexualidade e relações interpessoais, quais


seriam os efeitos decorrentes dos longos anos de barbárie escravista, mas em silenciado
em nossos dias? No caso do Brasil e Cabo Verde - a que temos mais acesso por meio da
comunicação social, poderia ser um vetor a estruturar a cultura da violência de gênero?
No caso do Brasil, quais implicações de um longo processo de violência escravista podem
ter sido transpostas para a violência contra mulheres? Ou ainda, não é exagero afirmar
que no Brasil ainda prevalece o mais grotesco índice de violência, a média de idade de
uma transexual é de 35 anos. De onde e como esta barbaridade tem estreita relação com
o assassinato de jovens negros? Desenterrar estes silenciamentos é poder falar que a
violência sexual contra mulheres era a regra do regime escravista.

Em regime de violência não há diálogo, mas silenciamentos. Esta interdição parece ser
replicada e mantida ao longo da nossa história comum. Os vários regimes ditatoriais ao
longo da Lusofonia têm de modos variados cassado o lugar da fala, a praça, aquele lugar
onde real e simbólico que Sócrates abordava os atenienses na Grécia do século V a.C, não
tem muito espaço entre nós. Pelo que nos leva à escassez de recursos para resolução dos
conflitos mais prosaicos em nossas tecituras sociais.

O silenciamento nos gera a falta de intimidade e conexão com os nossos mais próximos,
de modo dissimulado, e mais agudo com os Outros da grande pátria cultural. Temos uma
narração em comum, mas ela é de silenciamentos, e por este silêncio aflora a angústia e
a desconfiança. Gerando o paradoxo de nos atrairmos, pois temos traços comuns que nos
permitem querer conhecer os elementos não-comuns, mas este projeto nunca se
consolida, não consegue ultrapassar as desconfianças e avançar para uma criatividade
cultural coletiva mais alargada. O medo de falar abertamente impede a criação de laços
mais profundos. Sendo ilustrado pelo que Mia Couto (2009) denominou de “meia voz”
ou em “diafonia”, como forma de expressividade da Lusofonia.

Estes não ditos perpetuam estereótipos e tabus. Romper os pontos silenciados na


Lusofonia é essencial para construir relações mais saudáveis e fortalecer a comunidade.
Através do diálogo aberto e da escuta ativa, podemos superar barreiras invisíveis e
construir uma comunicação mais autêntica e profunda. As mídias sociais têm sido uma
importante ferramenta para este nosso conhecimento mútuo, ainda que às vezes pode ser
lugar de propagar justamente estereótipos. Jovens engajados na produção de conteúdos
digitais têm sido um farol neste sentido. Especialmente conteúdos dedicados à arte do
entretenimento. Mais tímido tem sido o uso das Tecnologias de Informação e
Comunicação aplicadas à Educação, em especial em projetos públicos/estatais com a
https://mindelinsite.com/opiniao/os-silencios-na-lusofonia/

finalidade de promover esta aproximação da vida universitária. Hoje, esta é a via mais
factível e salutar de sermos uma comunidade efetiva.

Você também pode gostar