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Instituto Ciências Sociais da Universidad de Lisboa

Portugal na periferia do centro: mudança social, 1960 a 1995


Author(s): António Barreto
Source: Análise Social, Quarta Série, Vol. 30, No. 134 (1995), pp. 841-855
Published by: Instituto Ciências Sociais da Universidad de Lisboa
Stable URL: http://www.jstor.org/stable/41011178
Accessed: 14-02-2016 12:54 UTC

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Antonio
Barreto* AnáliseSocial, vol. xxx (134), 1995 (5.°), 841-855

na periferia
Portugal do centro:
mudançasocial,1960a 1995

A melhormaneirade olharparaa sociedadeportuguesa contemporânea


e de tentar algumashipóteses sobreos próximos cincoanos,na esperançade
cumprir as indicaçõesdos organizadores destaconferência, consistetalvez
em vercomoevoluiudurante as últimasdécadas1.No movimento, detecta-
-se bemo caminhopercorrido e, com algumaincerteza, podemimaginar-se
tendências parao futuro imediato. Que é incerto,repito.A minhaciência,se
posso chamar-lhe assim,é a da experiência, não a das profecias.E, como
acreditoque a liberdadedos homensé superiorao determinismo, quando
olhoparao futuro, recorro à imaginação, maisdo que aos factos.Os factos
ajudam,mas não ordenam.
Numasociedadeaberta,o graude indeterminação é elevado.Ora,Portu-
é
gal hoje uma sociedade aberta,pelo menos caminha nessesentido.Além
disso,integra a União Europeia,cujos fundamentos e organizaçãoestãoem
causa, ou em o
discussão, que aumenta a incerteza. Aconteceque, para
a
Portugal, questãoeuropeia é a mais importante da actualidade.
Vistanos
seusmaisdiversosaspectos, políticos,económicos e sociais, questãoeuro-
a
peia é a mais forte condicionante da evolução portuguesaimediata.A
conflitualidade teráa Europacomopretexto. As hipótesesde prosperidade
económicaterãoa Europacomopanode fundo.As políticassociaise eco-
nómicasterãoa Europacomo referência. E as expectativas individuaise
colectivasterãoa Europacomomodeloe horizonte.
Dito isto,olhemosentãoparaas últimastrêsou quatrodécadas.Há trinta
anos,comodizia Herminio Martins, «Portugal não era uma sociedadeplu-

*
Investigadordo Institutode Ciências Sociais da Universidadede Lisboa e directordo
projecto de investigação«A formaçãode Portugalmoderno:a situação social, 1960/1995».
Este projectofoi financiadopela Fundação Tinker,de Nova Iorque.
1 Versão modificadade uma conferência
proferidano «Club Portugais»de Bruxelase uma
intervençãolida na 9.a Conferênciado Semanário Económico,Lisboa, 1996, cujo tema geral
era «Portugal:os próximoscinco anos». Este artigoretomaalguns resultadosde investigação
e partedas conclusõesmais desenvolvidasno livroA Situação Social em Portugal,1960-1995,
publicado pelo ICS em Abril de 1996. 841

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ral».Repare-se, o sociólogonão dizia«o regimepolítico»,dizia «a socieda-


de». Um território, um povo,uma nação,uma língua,uma fronteira, uma

religião:forjados séculos, mantidos durante séculos,estasrealidades com-
punhamuma unidaderarae permanente na história.Uma unidadeainda
sublinhada pela pequenezda dimensãoe a periferia da geografia.Há muito
que Portugal conhece um alto grau de homogeneidade o que
etno-cultural,
não deixa de serparadoxalnumpaís com longopassadocolonial.As sete
partidasdo mundo,os descobrimentos marítimos, o impérioe a emigração
constante não tinhamcriado,no continente metropolitano, uma sociedade
plural.A diversidade étnica,culturale religiosanão eravisívelna sociedade
e na populaçãometropolitanas. A ausênciade tradiçõesdemocráticas ou
igualitárias
reforçava o carácterfechadoda sociedade.Um Estadofortee
semprepresente contribuiu paraessa unidade,ajudadoporumaaristocracia
fracae dependente, por uma incipienteburguesia e porumsistemacapitalista
débil.Alémdisso,umarevoluçãoindustrial sempreincompleta, umaagricul-
turafrágil,um persistente analfabetismo e uma religiãocentralizada e de
Estadocontribuíram paraque a sociedadeportuguesa fosseparticularmente
homogénea e unae paraque a chamadasociedadecivilfossepobre,depen-
dentee poucodiversificada. As fantasiasdos Portugueses e as suas capaci-
dadesparaexperimentar a surpresa e vivero diferente elegeram, comoce-
nário,o mundo,forade portas.
Todavia,hoje,graçasàs trêsúltimasdécadasde mudançarápidae pro-
funda,Portugal é umasociedadeplural.Ou, pelomenos,começaa sê-lo.Há,
de modocrescente, sinaisde pluralidade: na população,nos traçosétnicose
nos
culturais, comportamentos na vidapolítica,na organização
religiosos, do
Estado,na competiçãoeconómicae na organizaçãocivil.
Tambémhá trinta anos,umoutrosociólogo,Aderito SedasNunes,falava,
a propósitode Portugal, de «uma sociedadedualistaem evolução».Duas
sociedadesviviamno mesmoterritório, sob o mesmoEstado.Apesardas
mesmasraízese da génesecomum,duassociedadespareciamterritorialmen-
te separadase destinadas a seguircaminhosdiversos.Uma,urbana,concen-
tradano litoral,em cursode modernização lenta,em vias de alfabetização
gradual,quase letrada,em contactocom o mundoexterior, com acesso a
fontesde informação modernas e a modelosde consumopróprios das socie-
dades industrializadas. Nestasociedade,as hierarquias eramformais, mais
baseadasno direitodo que no costume, e as relaçõeshumanaseramfuncio-
nais. Apesardo corporativismo de feiçãoestatale autoritária,a divisãodo
trabalhoera a própriadas sociedadescapitalistas e a produçãoorganizava-
-se em empresas.Comércio,empregoe culturadominavam as relaçõesso-
ciais.Ao lado desta,umasociedaderural, tradicional,dispersapelochamado
estavacomoque cortadadas formas
interior, modernas de acesso ao consu-
842 rnoe à informação. As relaçõeshumanase sociaisrepousavam na famíliae

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Portugalna periferia

no costume,as hierarquias eraminformais e atávicas,a subsistência era o


de organizaçãoda vidaeconómicae a religiãodominavaa cultura.
critério
Na primeira sociedade,o tempoera umaquantidade, na segunda,umacon-
dição.
Haverácontradição entrea homogeneidade e o dualismo?Não creio.Os
dualismosverificavam-se dentroda mesmaunidade,não punhamem causa
o povo,a língua,o Estado,a nação e o território. O dualismoevidenciava
a diferença de ritmosde mudançaque se verificava entãodentrode uma
sociedadeexcepcionalmente coesa. A dualidadeeraa de umasociedadeque
desapareciae a de outraque nasciaao lado. As duas sociedades,apesarde
ligadasumaà outra,seguiamcaminhos diferentes, umacorriana direcçãodo
futuro,outra deixava-se extinguir. As duas sociedades viviamcada vez mais
em territórios diferentes,embora contínuos.
Hoje, passadastrêsou quatrodécadas,estasociedadedualistanão existe
mais.Ou antes,quasenão existemais.A sociedaderuraldo interior, provin-
ciana,patriarcal,de patrocinato local,vivendocomelevadaspercentagens de
autoconsumo, por vezes até com agricultura de subsistência,arredada dos
grandesserviçospúblicos,à margemda protecçãosocial do Estado,sem
serviçosde saúdena comunidade, comreduzidaspossibilidades de frequen-
tara escola,commínimoacessoà comunicação ou à informação, semcor-
reiosnem serviçosbancários,com estreitas vias de consumoe expressão
cultural,porvezesnemsequerinteiramente integrada no mercado, cultivan-
do valorespróximos dos que poderiam vigorar no ancien régime, socie-
essa
dade praticamente não existemais.
Poderádizer-seque estatransformação foiininterrupta, gradual,perma-
nente.Mas só atécertoponto.Na verdade, a sociedadeportuguesa conheceu,
a partirdos anos60, umperíodode notávelaceleração.Comoqualqueroutra
sociedade,nuncaesteveimóvel.Mas as mudanças eramlentas.E em grande
atrasorelativamente às europeias.Quandocomeçaram, as mudançasforam
maisrápidas.A indústria, os serviços,a escolarização, a cobertura nacional
de serviçose empresas e a alteraçãoda estrutura demográfica: emtodosestes
sectores,as modificações processaram-se a ritmomaisveloz. Portugalfez,
em vinteou trinta o
anos, que, noutros países,tinhademorado cinquenta ou
sessenta.Em muitosaspectos,sobretudo os económicos, Portugalnão che-
goua ficara pardos vizinhoseuropeus, nemchegarátãocedo.Mas,noutros,
sobretudo nos sociais,culturais e demográficos, os Portugueses parecem-se
hoje,de mododefinitivo, com eles.
Tentemos passaremrevistaalgumasdessasmudançassociais,comparan-
do, em linhasgerais,o princípio da décadade 90 comos anos 60. Global-
a
mente, população cresceu muito pouco,mas conheceumodificações de
estrutura importantes.A natalidade diminuiu muito, sendo hoje uma das mais
baixasda Europa.A esperança de vidaaumentou, situando-seagoraa níveis 843

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europeus.A mortalidadeinfantilreduziudrasticamente, passando de mais de


80%o para 7%o. O envelhecimentodemográficofoi rápido e, actualmente,o
grupode idade de mais de 65 anos está em vias de ultrapassaro de menos
de 15. Diminuiuconsideravelmente a fecundidadedas mulheres,assim como
a dimensãomédia da família:a população portuguesaencontra-seabaixo do
nível de reposiçãodas gerações.Aumentaram de modo muitosignificativo as
uniões de facto,os divórcios,os casamentosnão católicos e os filhosnasci-
dos forado casamento.A concentraçãoda residênciaem aglomeradosurba-
nos foi constante,em ritmo cada vez mais acelerado. O esvaziamento
demográficodo interiorfoi permanente.Do pontode vista demográfico,os
indicadoresportuguesesparecem-secom as médias europeias. Em alguns
aspectos,como a redução da natalidadee o ritmode envelhecimento, ultra-
passaram mesmo os níveis A
europeus. evolução foi geralmentemais rápida
do que a registadanestespaíses. Dentrode dez ou quinze anos, a população
portuguesaserá talvez a mais envelhecidada União Europeia. E, desde ago-
ra,não haverámais reposiçãode geraçõessem uma largamisturacom povos
de outrasetnias e outrasnacionalidades.
Um outrofactordemográficomereceespecial atenção. A emigraçãoco-
nheceuvariaçõesimportantes, umas de conjuntura, mas outrasfundamentais.
Nos anos 60, o emigranteportuguêsabandonou a América do Sul como
principaldestinoe passou a dirigir-separa a Europa. A emigraçãoatingiu
então níveis jamais conhecidos, muito superioresaos saldos fisiológicos
anuais. Por razões internase externas,estancouem 1974. No ano seguinte,
por via da descolonização, conheceu-seo fenómenoinverso:a chegada de
600 000 a 700 000 pessoas, factoque, aliás, contribuiupara uma espécie de
rejuvenescimento conjunturalda população. A partirdos anos 80, a emigra-
ção retomou,mas a mais baixo nível.Ao mesmotempopassou a registar-se,
de modo inédito,uma permanenteimigração,sobretudode africanos,mas
tambémde algunsbrasileirose europeus.Por outrolado, estabilizou-seuma
correntede emigraçãotemporária, alcançandovaloresde duas ou trêsdeze-
nas de milharesde trabalhadorespor ano. Actualmente,se não contarmosa
emigraçãosazonal ou temporária, talvez pela primeiravez na
verificar-se-á,
história,um saldo migratório positivo:são mais os estrangeirosque chegam
do que os portuguesesque partem.
Quanto às actividades,deixando de lado as modificaçõesconjunturais,
que muitasforam,há a sublinhara factode a população portuguesanunca
ter sido maioritariamente industrial.Na verdade,o sector terciarioou de
serviços passou directamente do terceiropara o primeirolugar. Quanto ao
sectorprimário,desceu de mais de 40% para menos de 10% em menos de
trintaanos. Só na últimadécada cerca de meio milhãode pessoas, ou metade
do total,abandonaramas actividadesprimárias.O sectordos serviçosocupa
844 actualmentemais de 50% da população total.

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A presençadas mulheresna população activa modificou-seradicalmente.


De cerca de 15% da população empregadahá trêsdécadas, as mulheressão
hoje metadedo totalou ligeiramente mais. São maioritáriasna Administra-
ção Pública (que conta um pouco mais de 700 000 funcionários),especial-
mentenos sectoresda educação e da saúde. São maioritáriasentreos estu-
dantesdo ensinosuperiore ainda mais entreos diplomadosanualmentepelas
universidades.
A educação foi tambémum sectorde enormesmudanças.Portugaldistin-
guiu-se,até aos anos 60, pela crónicaincapacidadepara escolarizara popu-
lação, evitar o analfabetismo e proporcionar aos cidadãos um grau
satisfatóriode instrução.Até finaisda década de 60, os progressosforam
extremamente lentos.A partirdessa alturaverificou-seuma quase explosão
escolar. Em menos de trintaanos, o analfabetismojovem foi praticamente
eliminado,enquanto sobra algum analfabetismoadulto, menos de 9% da
população. No ensino secundáriopúblico (os actuais 10.° a 12.° anos), a
frequênciapassou de cerca de 8000 para quase 300 000! E o númerode
estudantesdo ensino superioraumentoude 24 000 para 290 000! O número
de docentesde qualquernível escolar conheceuevolução idêntica.De notar,
finalmente,que a frequênciaescolar já começou a reflectiras mudanças
demográficas.Com efeito,o númerode alunos do ensino básico (nove anos
de escolaridade) está em rápida diminuiçãodesde há vinte anos. Só nos
primeirosquatroanos de escola há meio milhão de criançasmenos do que
há duas décadas, cerca de metadedo total.Em conclusão: a coberturaescolar
é hoje universal.E a despesa pública com a educação passou de 1,5% para
5,5% do PIB. Mantemos,comparativamente, baixíssimosníveisde qualifica-
ção culturale técnica.O alargamentoquantitativoda escolarização não tem
tido consequênciasproporcionaisna preparaçãoprofissional.Mas a situação
actual,a este propósito,já não temnada a ver com a que se vivia no início
dos anos 70.
Evolução tão drásticaquantoesta verificou-se na saúde pública.Os partos
em estabelecimento hospitalarpassaram de 15% a 99% do total.Os números
relativosa consultas,urgênciase internamentos em hospitaldecuplicaram,
atingindohoje taxas impressionantes de, por exemplo,mais de uma urgência
por ano e por habitantee mais de trêsconsultaspor ano e por habitante.O
númerode médicos e enfermeiros quadruplicou,encontrando-se hoje Portu-
gal próximodas taxas europeias.Também aqui se deve concluirque a co-
berturasanitáriaé totale universal.E a despesa pública com a saúde passou
de menos de 1% para pertode 5% do PIB.
Na justiça registou-setambémuma mudançaimportante. Aumentaram, de
modo muitosignificativo, os tribunais,
os magistrados os
judiciais, magistra-
dos do MinistérioPúblico e os advogados,tal como aumentaramproporcio-
nalmenteos númerosde processos movimentados.O nível de litigação da 845

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sociedadeportuguesa cresceu,o que revelaumamuitosuperior formalização


ou contratualização das relaçõessociais,assimcomo uma crescente cons-
ciênciacolectivados direitose deveres.
Na segurançasocial,as mudançasforamradicais.Todos os sistemasde
protecçãosocial passaramde uma reduzidaminoriaà universalização. O
número de pensionistas passoude cercade 60 000 paramaisde 2,5 milhões.
Contam-se hoje 1,7 activosporpensionista. Em princípio, também estesis-
temase universalizou. Incluoo subsídiode desemprego, a maistardiadas
prestaçõessociais,que passou,nos últimosdez anos,de 15% para70% da
populaçãodesempregada. Finalmente, a despesapúblicacom a segurança
social cresceude menosde 1% do PIB paraquase 3%.
Muitasforamas mudançasregistadas noutrossectoressociais da vida
nacional.Os proprietários de alojamento próprio atingiram os 65% dos agre-
gadosfamiliares, uma das taxas mais elevadas da Os
Europa. serviçosbásicos
(águacanalizada,electricidade, esgoto)cobremmaisde 90% dosalojamentos,
sendoque,há duasou trêsdécadas,essesíndiceseramde menosde 40%. Os
bensde consumodurávelmaisimportantes (fogão,frigorífico, rádio,televi-
são, telefone, etc.)estão presentes em 80% a 95% dos alojamentos. O auto-
móvelligeiroestarána possede 55% dos agregadosfamiliares.
Uma observaçãofinala propósitodesteinventário. Jamaisreferi, mas
também nuncaesqueci,o lado qualitativo destasmudanças. Não é o que me
interessa aqui,masimporta pelomenossublinhar que muitasdestastransfor-
mações, embora constituindo uma realuniversalização, podemtraduzir-se em
pobresprestações, na dos
seja qualidade serviços, seja na deficienteorganiza-
ção, seja finalmente na pequenezdosmontantes atribuídos.São, porexemplo,
unanimemente reconhecidas deficiências dos sistemaseducativoe de saúde.
E não se podeperderde vistaque os valoresdas pensõesmínimas, a preços
constantes de 1990,situam-se entreos 8000$00e os 20 000$00mensais;ou
que as pensõesmédiasde todosos regimes oscilamentreos 20 000$00e os
30 000$00mensais(semprea preçosconstantes de 1990).Estassão as reali-
dades, mas o que pretendi fazer era uma observaçãodo âmbitode protecção
social,não a sua avaliação.
Eis apenasalgumasdas mudançassociaismaisvisíveise que traduzem
uma transformação importante da sociedadeportuguesa. Repito:o mais
impressionante é o ritmo a se
que aquelas processaram. caso de alguns
No
indicadores, Portugal pode ainda estarlongedos paíseseuropeus, sobretudo
na esferados consumose dos rendimentos, mas isso só acentuao enorme
atrasoem que se encontrava no inícioda décadade 60. Comodisseacima,
em vinteou trinta anos fez-seo caminhoque outrosfizeram em cinquenta
ou sessenta.
Quais foramas causasde tão importantes mudanças?Ou antes,em que
846 contexto global ocorreram? Se tiver de fazer uma curtalistadessascausas,

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não hesitariaem mencionar: a emigração, o turismo, o livrecomércioinicia-


do com a adesãoà AELE/EFTA,o investimento estrangeiro, a guerracolo-
nial e a televisão,fenómenos que podemserdatadosdos anos 60. A estas
acrescentaria,já nos anos 70, a democraciae, nos anos 80, a integração
europeia.Mas há aindaoutradimensãodas mudançassociaise de mentali-
dadesque, sendode difícildeterminação porvia de indicadores, tevedeci-
siva influência na sociedadeportuguesa dos anos 60. Refiro-me a toda a
atmosfera políticae cultural que se desenvolvena Europae no mundooci-
dentalem resultado do ConcílioVaticanoII. Assimcomo,poroutrolado,ao
climageradopelapermissividade doscostumes, pela liberdadede circulação,
pela cultura e
jovem pelo intercâmbio de culturas que se vive nessetempo
e de que os meiosde comunicaçãode massas,em particular a televisão,
propagam através das fronteiras. Acrescentem-se a estes factos as novas
formasde culturada liberdadee da contestação. Portugal não ficaráfora
destasinfluências.
As mudançassociais induzidaspor estes factores, tantoos sociais e
económicoscomoos espirituais e culturais, foramde tal modoprofundas e
rápidasque precederam e condicionaram as mudanças políticasdos anos 70.
Em certosentido,as mudançassociaisforçaram as mudançaspolíticas.É
certoque, numsegundomomento, a fundaçãodo Estadodemocrático teve
repercussões sociais e económicas essenciais: a adesão à Comunidade Euro-
peia resultoudaí; e as políticassociaisforamprofundamente remodeladas
pela pressão eleitoral.Mas a verdade é que não foi a revoluçãopolíticaque
desencadeou as transformações sociaisenumeradas: acelerou-as, consolidou-
-as, deu-lhesvisibilidade e traduçãoformal, mas não as criou.
Um fenómeno particular mereceaindaalgumaatenção:o crescimento e
o alargamento do Estado-providência. É umdos traçosmaismarcantes deste
períodode trêsdécadas.Numatentativa de analisara sua evolução,podem
ser determinadas quatrofases.Primeiro, o períodoque vai até 1968. São
feitosos primeiros ensaiosde protecçãosocial,mastudoé aindaincipiente.
Verificam-se algunsprogressoseficazesem domíniosrestritos da saúde
pública:vacinações, luta contra a tuberculose e início da assistênciaao parto.
Na segundafase,de 1969 a 1974,regista-se o primeiro arranqueem
massada segurança social, com a inclusão de centenas de milhares de rurais
e empregadas domésticas. É estabelecidoo regimedos não contributivos.
Acelera-sea cobertura da assistênciaao parto.Inicia-seo alargamento da
escolarizaçãoprimária e, maismoderadamente, do ensinosuperior.
Na terceira fase,de 1975 a 1985,assiste-seà explosãode todosos sis-
temassociais.A escolaridade básicade seis anosé generalizada. A frequên-
cia do ensinosuperior duplica. Procede-se à universalização pensõese
das
outrosabonos,da assistência ao parto,do serviçode saúde,das consultase
urgênciasem estabelecimento hospitalar. Note-se,todavia,que se assiste 847

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tambéma uma perdade valorrealde todasas prestações sociais:pensões


mínimase médias,saláriomínimo, abonose subsídios.
A quartae últimafasedecorrede 1985a 1995e coincidecoma primeira
décadade integração europeia.É ummomento de consolidaçãodos sistemas
de protecção,quase sem alargamento. Verifica-se uma elevação real dos
valoresdas pensõesmínimase médias,assimcomode outrasprestações e
abonos.E aindase assistea dois tiposde alargamento de âmbito.Por um
lado, ocorrenova duplicaçãoda frequência do ensinosuperior, mas,desta
vez,feitatambém nasinstituições privadas.Poroutrolado,a maiornovidade
desteperíodoconsisteno aumento importante do subsídiode desemprego: é
nestadécadaque o número de subsidiados atinge os 70% de desempregados.
Finalmente, foi aprovadapor lei a passagemde seis para nove anos da
escolaridadeobrigatória.
Nesteúltimoperíodotornaram-se maisevidentes as dificuldadesfinancei-
rasdo Estado-providência. O crescimento de beneficiários de todaa espécie,
tantodo sistemade segurança socialcomoda Caixa Geralde Aposentações,
assimcomoo aumentode valoresreaisdas prestações, não têmsido acom-
panhadospor um aumento proporcional de subscritores e de contribuições.
Aindaporcima,a populaçãoactivaempregada temreveladotendência para
estabilizar
e nosúltimosanoso desemprego aumentou. Váriosautores, como
MedinaCarreira, Diogo de Lucena,EugênioRamose Bagão Félix,têmestu-
dado o assuntoe sublinhadosejam as dificuldades financeiras, sejam os
constrangimentos económicos, seja a necessidade de reexaminar ou reformar
o sistemade protecção.
Mas ninguémduvidade que estareforma, apesarde necessáriae, mais
do que isso,inevitável, revelagrandesdificuldades. No que, aliás,Portugal
não é caso único: em grandepartedos países ocidentais,a reformada
segurançasocial está na primeira páginada agendapolítica.Aconteceque
no nossopaís há dificuldades específicas.Apesarde universais, as presta-
ções sociaissão geralmente de baixovalore de reduzidaqualidade.Há até
quemafirme, com manifesto exagero,que se «pretende reformar o Estado-
-providência antesmesmode ele existir»!A universalidade, beneficiando
ricose pobres,é um factorcondicionante dos recursosdisponíveis. A ine-
ficiênciarelativada fiscalidade (porexemplo,apenas 8000 agregadosfami-
liaresdeclararam, em 1994maisde 15 000 contosde rendimento anual,isto
para já não falar da crónica ao
fuga fisco, nem das cerca de 60% das
empresasportuguesas que não pagamIRC porfaltade resultados...), a ine-
ficiênciafiscal,dizia,é outrofactorlimitativo. A ausênciade contribuições
parao sistemano passado,assimcomoo anormalhábitocontemporâneo de
contrairdívidasà segurança, aumentam as dificuldades previsíveis.Final-
mente,o reduzidovalordos rendimentos médiose das remunerações (por
848 comparação com outros não
paíseseuropeus) permite umgrandeoptimismo

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relativamenteà eventualidade de criar,a curtoprazo,novosmecanismos de


e
segurança protecção.
A estas dificuldades acrescenta-se o factode a sociedadeportuguesa
revelarhoje características demográficas, padrõesde consumo,aspirações
sociaise expectativas muitoparecidos comos dospaísesocidentais vizinhos.
Ora, ao crescimento de não
expectativas correspondeu um aumento propor-
cionalde riquezae de potencialidades económicascapazesde as satisfazer.
Noutraspalavras,as mudançassociais,numprimeiro momento, sociais e
numsegundo,
políticas, forammaisrápidase maisprofundas do que a trans-
formação económica, empresarial e produtiva. Apesarde a estrutura do co-
mércioexterno português terevoluído e se terdiversificado,a verdade é que
a modernização e a extroversãoda economiaportuguesa, tendoemboraefei-
tos no plano do produtoe dos rendimentos, talveznão tenhamtido tão
profundos impactosna empresa, na produtividade e na organizaçãodo tra-
balho.Estudosrecentes de JoãoCésardas Nevese PedroLainssugerem uma
relativapermanência de certospadrõeseconómicos.Assim,grossomodo,
entre1959e 1991,o factor trabalhoaumentou regularmente a sua contribui-
ção parao crescimento, enquantoo factorprodutividade diminuiu sempre.
Eis que revela,porumlado,a manutenção de baixosníveisde desemprego,
mas,poroutro,as dificuldades de reconversão da indústria.O factorcapital,
que foi sempre o mais determinante para o crescimento neste período,diri-
giu-seprivilegiadamente parasectores de baixa produtividade e de trabalho
intensivo.Isto sublinhaa manutenção de umadas características da econo-
miaportuguesa, fontede sucessonos anos60, que foio relativamente baixo
nívelde salários.
Em sentidoconvergente concluem os estudosda OCDE sobrea evolução
da produtividade no conjuntodos países ocidentais.Olhandopara um
períodode cerca de quarentaanos,rapidamente se verificaque Portugal
ficouaquémde todos.Seja das médiasdos paísesditosdesenvolvidos, seja
mesmoem comparaçãocom os menosdesenvolvidos da Europa(Grécia,
Espanhae Irlanda).
Nestastrêsdécadase meia,a «modernização» da sociedadeportuguesa
foiprofunda. Foi, sobretudo, muito rápida.De modosimples, masrevelador,
a «modernização» que se detectaconsiste, no essencial,na aproximação dos
padrõesde crescimento e dos modelosde organizaçãosocialem vigornas
sociedadeseuropeiaseconómicae tecnologicamente mais avançadas,com
maisexperiência do Estado-providênciae com maistradiçõespolíticasde-
mocráticas.
De igualmodo,emsociedadeabertae de informação global,que é aquela
emque os Portugueses vivemde modocrescente, as expectativase as aspi-
raçõescresceram, nestasdécadassob análise,rapidamente, mais aindado
que os factosmateriais, económicose tecnológicos. 849

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O Estado-providência cresceumuitíssimo, a pontode assegurara sua


universalidade. No entanto,a qualidadedos serviçosé frequentemente
deficiente e o níveldas suas prestações é geralmente pobre.
Apesarde se viverhoje numasociedadeculturalmente maisigualitária,
mantêm-se fortesdesigualdadessociais na repartição do rendimento. Os
dualismossociaise geográficos de há trêsdécadasestãoem vias de desapa-
recimento, masas desigualdades ganharam umcarizdiferente. Toda a popu-
do
lação, ponto de vista territoriale regional, em
tem, princípio, acesso aos
bense serviços,aos direitos, aos sistemasinstitucionais e aos circuitosco-
merciaise de informação da sociedademoderna.Política,associativismo,
moeda,crédito, seguros,segurança social,educação,saúde,justiça,polícias,
correios,comunicação, imprensa, informação, transportes, alimentação, co-
mércio,modas, cultura e entretenimento cobrem o paísinteiro, são nacional-
mentehomogéneos, istoé, pertencem ao mesmosistema,podendoembora
revestirmodalidades e intensidades várias.Os localismose os regionalismos,
parao melhor e o pior,têmhojemuitomenosinfluência e foramsubstituídos
pelo «sistema nacional» em praticamente todos os aspectosda vidacolectiva.
Se Portugal já era,semprefoi, uma sociedade relativamente integrada,no
sentidode que, no mesmoespaço,umpovo,umalíngua,umEstadoe uma
nação são coincidentes há muitosséculos,a verdadeé que as diferenças
internas de desenvolvimento e de organização eramaindafortíssimas há três
ou quatrodécadas.
Ora,os dualismossão hoje maismarcadamente sociaise económicose
menosnitidamente espaciais. Até porquegrandeparteda populaçãodo in-
teriore do campose deslocouparaas cidadese parao litoral,semfalarno
estrangeiro. Alémdisso,as novasvias de comunicação, sejamas estradas,
sejamos telefones e as televisões, aproximaram todasas regiões.O acesso
aos bense serviçosestágeneralizado ou,pelomenos,estádisponível. A dis-
e o
tribuição consumo, antes, ou o acesso efectivo é que está socialmente
condicionado. Noutrostermos, estásociale economicamente condicionado,
vistoseremreduzidasas barreiras espaciaise institucionais. As «duassocie-
dades» vivemhoje paredesmeias,nas áreasmetropolitanas, eventualmente
nas poucascidadesdo interior, mas seguramente nos subúrbios de Portoe
Lisboa,ondealgunsmilhares de barracase umasdezenasde bairros-da-lata
persistem em condenarpublicamente a prosperidade e as prioridades dos
últimosanos.
A estepropósito, queroreferir-me brevemente à discussãoemcursosobre
a regionalização, considerada esta comoinstrumento de «revitalização» do
interior.Creio que há aqui um errode análisee uma propostapolítica
irrealista.A desertificação demográfica do interior e mesmode partedo
litoralfazpartede umapadrãoirreversível de desenvolvimento. Peranteesse
850 fenómeno, parece-me mais mais
importante, urgente, olhar para as suas

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consequências graves,comosejamas barracasmetropolitanas, do que inven-


tarsoluçõesromânticas para reencontrar o tempoperdido.Quantoao inte-
rior,parece-me também que o interessante é considerar o que ali estácomo
um dado,não comoumapatologia,e agirem consequência.
Retomemos o cursode reflexão.Ao fenómeno de «não integração na
sociedademoderna» sucedeuumoutro,composto por uma economia «infor-
mal»,pela marginalidade e pela «exclusão»,ondesão numerosos os desem-
pregadose subempregados, os que vivemde expedientes e em condiçõesde
precariedade. A estesacrescenta-se o sectordos «socialmente protegidos»,
istoé, umaenormemassade pessoasmantidas pela segurançasocial,entre
as quais se contamsobretudo os idosos,os pensionistas de «sobrevivência»,
os beneficiáriosde pensõesmínimas, de subsídiosde desemprego e de sub-
sídiossociais.Recorde-se a
que,porexemplo, redução drástica de população
do sectorprimário, quase ummilhãode pessoasem vinteanos,fez-se,em
grandeparte,graçasà segurança social,não à criaçãode empregoindustrial
e nos serviços.
O alargamento quantitativodo Estado-providência foicontemporâneo do
estabelecimentodos direitos sociais dos cidadãos, reconhecidos pela
Constituição, desde 1976,e protegidos pela lei. Um razoávelmovimento,
nessesentido, começaraaindadurante os anos60, especialmente a partirde
1969,mas foi depoisde fundadoo Estadodemocrático que processose
o
alargou e intensificou.As doutrinas dominantes nas últimas décadassubli-
nharamcom força os princípiosda igualdade de direitossociais, da
universalização e da gratuitidade dos serviçospúblicosde protecçãosocial.
Nos últimosanos,todavia,estesprincípios passarama ficarsob análisee
reexame,dado que as potencialidades financeiras do «Estadosocial» são
cada vez menores e parecenãoresistirem a umaou duasdécadasde contínuo
desenvolvimento das prestaçõessociaise de aceleradoenvelhecimento da
população.Estapreocupação é verdadena maiorpartedos paísesocidentais,
tantocomoem Portugal.
Na sociedadeportuguesa, abertaao mundopela emigração, pelos meios
de comunicação de massas,pela integração e
europeia pela globalizaçãodos
mercados, todas as são
expectativas permitidas, tantonos domíniosdo
consumoe da promoçãoeconómicacomo nos da mobilidadesocial e da
protecçãoou da segurança. Do pontode vistadas expectativas, nadaparece
distinguirum cidadãoportuguês de umoutrode qualquerpaís maisdesen-
volvido.Aconteceque os recursosmateriais, as capacidadeseconómicase
a as
empresariais,produtividade,competencias tecnológicas e científicasea
experiência competitivasão muito inferiores à quase totalidade dos países
ocidentaiscom os quais Portugalmantémas mais estreitasrelações.Por
outrolado,a tradicional vantagem comparativa da sociedadeportuguesa, os
baixossalários,não só temhoje menosinfluência na concorrência interna- 851

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cional,comofoipostaem crisepela entradados paísesasiáticos,africanos


e latino-americanos nos circuitos comerciais. Eis, assimbrevemente enume-
os
rados, obstáculosaparentesao desenvolvimento do Estado-providencia
emPortugal. E a sua reforma também deparacomgrandes dificuldades: a ser
feita,comopareceindispensável, não deverápôrem causa a coesão social,
nema plasticidade de que a sociedadedeu provas.
As políticassociais não são independentes das políticaseconómicase
financeiras, muitomenosda situaçãoe das potencialidades da economia.
Ora, aconteceque cada vez menosse pode falarde economiasnacionais.
A integração europeiae, aindamais,a integração empresarial internacional
e multinacional condicionam fortemente as políticassociais.Uma vez mais,
o «Estadosocial»necessitade reexameatentoe de reorganização. Os prin-
cípiosda gratuitidade e da universalidade poderãoserdiscutidos e revistos,
atéporque,comose temvistoem váriossectores, podemcriarnovosmeca-
nismosde desigualdadesocial.
Nos últimosvinteanos,a sociedadeportuguesa passouporváriasmudan-
ças de grandesignificado histórico e de profundas implicaçõesestruturais.
A descolonização e a perdado Ultramar constituíram umautêntico cortecom
a tradiçãodosúltimos séculos.O estabelecimento do regime democrático teve
enormesconsequênciasna vida públicade um país com poucas tradições
democráticas. Em 1976,pela primeira vez na sua história,
Portugal passoua
viverem regimepolíticono qual o direitode votoé universal, os cargos
políticossão eleitos,os órgãosde poderautárquico são igualmente eleitos,os
direitosfundamentais e as garantiasdos cidadãossão legale universalmente
reconhecidos. Desde essa data,Portugaliniciouum períodode vida sem
presospordelitopolítico,semexiladose semdeportados, situaçãoraríssima
na sua história.
A integração europeia orientoua economia e a sociedadepara
um continente do qual, mau gradolhe pertencer geograficamente, o país
esteverelativamente distantedurantedécadas.Esta mesmaintegração, ao
abolirfronteirascomerciais, criouumainéditavidade competição internacio-
nal numpaís onde o proteccionismo e o «condicionamento» foramquase
semprea regra.Todas estasmudançasocorreram em relativamente pouco
tempoe pareceteremsido absorvidas pela sociedadee peloscidadãoscom
relativafacilidade.Paraumpaís,comodiz EduardoLourenço,«comidenti-
dadea mais»serialegítimo imaginar que tantase tãobruscasviragens emtão
poucotempopoderiam causar a vertigeme o conflito.Assimnão foi.No seu
conjunto, a sociedadeportuguesa revelouumaflexibilidade, ou umacapaci-
dade de adaptação,que surpreendeu os que viamsobretudo a rigidezdas
estruturase dos comportamentos. Estaespéciede plasticidade foi,porexem-
plo, demonstrada com o acolhimento, rápidoe pacífico,de cinco ou seis
centenasde milhares de ex-residentesem África.De igualmodo,o derrube,
852 pela forçamas semviolência,do regimeautoritário, assimcomoa ultrapas-

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sagemdemocrática das tentativas revolucionárias, igualmente feitasemvio-


lência,foram sinaisde maleabilidade da sociedade.
É verdadeque,paratudoisto,sobretudo paraa separaçãoda metrópole
das suas colónias,a Europadesempenhou papelimportante. Eventualmente,
nemsequerumpapelactivo.Mas umareferência, semdúvida.O ideal de-
mocrático e a abertura ao mundoforamsimbolizados em grandepartepela
Europa. Esta deu um sentido concreto, visível,enraizado, palpável,às aspi-
raçõesporliberdade, que,semmais,exigemrisco.Deu significado territorial
e geográfico aos horizontes incertos da democracia e da economiaaberta.Foi
substitutorealde glóriaspassadas.Foi um lar,ondehavialugarparamais
um. Para além da vizinhança, da simpatiae das afinidades, a Europafoi
segurança.
Dito isto, nem tudo começou,repito,com a democraciaou com a
integração europeia.Na verdade, é frequente atribuir grandepartedas recen-
tesmudançassociaisseja às duasdécadasdecorridas depoisde 1974,seja ao
novoregimepolíticodemocrático e à integração europeiaa partirde 1985.
Esta relaçãotemalgumavalidade, mas está longede serexclusiva.Talvez
nemsequerseja a maisimportante. A própriarevoluçãopolíticade 1974 e
a fundaçãodo regimedemocrático devemsercompreendidas no quadrodas
mudanças sociais mais profundas e nitidamente detectáveis desde o princípio
dos anos60. A emigração a
para Europa(já em si uma de
espécie primeira
integração europeia...),a urbanizaçãomais acelerada,a des-ruralização, a
abertura económicaaos paísesocidentais, o investimento externoe o turis-
mo,aos quais se deverãojuntara crescente escolarizaçãoe a introdução da
televisãonos costumes, são fenómenos maisantigosdo que a revoluçãode
1974,mas que a influenciaram, tal como moldarama sociedade,que se
encontrava já nessa alturaem plenamudançaacelerada.
Da demografia aos padrõesde consumoe às actividadesculturais,a
mudançasocialfoi,comose disse,muitorápida.Este factonão deixoude
criarproblemasde algumaamplitude.Nas actividadeseconómicas,por
exemplo,a rapidezdas transformações fezcomque saíssemda agricultura,
nos últimosquinzea vinteanos,centenasde milharesde activose suas
famílias,semque tenhahavidotempo, meiosou circunstâncias de reciclagem
produtiva. Este verdadeiro êxodo ocorreu num tempodurante o qual não se
criaram, nas indústrias transformadoras, empregos em quantidade suficiente.
Pelo contrário, vivia-setambémnestesectoruma necessidadehistórica de
modernização tecnológica,isto é, de mecanização e de de
diminuição força
de trabalho. Paralelamente, os novosempregosnos sectoresterciarios não
em
eram, quantidade, de molde a proporcionar alternativas.Por outro lado,
a idade e as aptidõesda populaçãoruralnão permitiram considerar com
facilidadeumareconversão produtiva, nemsequera hipótesede emigração.
Assimé que os novoscondicionalismos de uma economiacada vez mais 853

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abertaprovocaram uma verdadeira destruição de economiaslocais,de sub-


sistenciasrurais,de actividades semiartesanais, de empresasfamiliares e de
circuitosde trocae comérciorudimentares massocialmente efectivos. Desta
verdadeiramutação, operada rapidamente,resultamsobretudoduas
consequências. A primeira, o alargamento muitosignificativo da massade
dependentes da segurançasocial, até porquetambémas redesfamiliares
deixaramdepressade exerceras suas funçõesde apoio.A segunda,o cres-
cimento considerável da populaçãodos subúrbios de Lisboa,Portoe Setúbal,
em condiçõesmuitoprecárias de vida,emprego e habitação.Esta situaçãoé
tantomaisinquietante quantoa economiae a sociedadenão têmmostrado
reais capacidadespara criarnovos empregosem quantidadee qualidade
Mais: a economiaestá a dar sinais,nos últimose para os
significativas.
próximos anos, de que vai criaranualmente mais desempregados do que
novosempregos.
Não se penseque os desequilíbrios do Estado-pro vidênciaem Portugal
são únicos.Como já se disse acima,são hoje frequentes na maioriados
países ocidentais.Em quase todos, este tópico é assuntode primeira priori-
dadee principal preocupação, tantodospoderespúblicoscomodoscidadãos.
Estesúltimos, habituados há algumasdécadasa vivercom segurança relati-
vamenteà reforma, à velhice,à doençae à educaçãodos filhos,começam,
um poucoportodoo lado,a recearque partedessascertezasdeixemde o
ser.
Sendoassim,não seráque emPortugal se vivemexactamente os mesmos
problemas? Só em Na
parte. verdade,algumas circunstâncias históricaspró-
priastornam aqueledesequilíbrio particularmente delicado.Primeiro,a rapi-
dez do crescimento do Estado-providência, semsolideze semcapitalização.
Segundo,a faltade contribuição financeira, ao longoda vida,da maiorparte
dos que hoje são dependentes da segurança social.Terceiro, umenvelheci-
mentodemográfico mais rápidodo que na maioriados países europeus.
Quarto,as baixas produtividades do trabalhoe das empresas,que geram
do
menosriqueza que noutros países.Quinto,a reduzidacapacidadeeconó-
micados Portugueses não lhespermite encararfacilmente soluçõesde con-
tribuiçãopessoalou privadaporvia de poupançase de seguros.Finalmente,
a já referidadistorçãoou a desproporção existente entreas capacidades
económicase as expectativas.
Não será,contudo,verdadeque este desequilíbrio entrecapacidadese
expectativas existeem todos os paísesdo mundo?Assimé. Que teráentão
a situaçãoportuguesa de especial?No essenciale em resumo, o factode ser
o país maisperiférico do centro.Pertencer, geográfica,políticae cultural-
mente,à Europa,à OCDE, à UniãoEuropeiae à NATO, istoé, a um dos
maisimportantes centros económicos e políticosdo mundo,fazos Portugue-
854 ses assimilara cultura,a mentalidade, as ambições,os comportamentos e as

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Portugalna periferia

expectativas de todosos cidadãosdesteconjunto. Em sociedadeaberta,esta


assimilação rapidíssima. entanto, campo actividades
é No no das na
criativas,
capacidadeeconómica, na formação técnica, na criação
na forçacompetitiva,
de riquezae no talentoorganizativo, a assimilaçãoé muitomaislenta.E, a
poderfazer-se, seráseguramente maisdolorosa.Temos,cada vez mais,os
problemas e as expectativas Europa,mas não temosa sua capacidade
da
industrial,técnicae científica, nema sua produtividade ou as suas disponi-
bilidadesem capital.Aindamenosa sua experiência ou empre-
organizativa
sarial.E o proteccionismo nãoparecesera solução.Estouconvencido de que
não é a alternativa. É nesteparadoxo,no factode sero maisperiférico dos
países do centro, que reside a especial dificuldadedos Portugueses para
encararem a evoluçãosocialdas próximas décadas.Não no factoem si, que
é meramente descritivo,masnas suasconsequências. Às aspiraçõespróprias
do centrocorrespondem as debilidades As grandesexpectativas,
da periferia.
próprias dos países mais desenvolvidos do mundo, podemser frustradas
pelasfragilidades naturais,económicas e tecnológicas,semfalarnas distân-
cias físicase nos atrasoscientíficos e culturais.É este paradoxoque os
próximos cinco,dez, quinzeanos vão pôrà prova.

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