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IMIGRAÇÃO, MULTICULTURALISMO E ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA

Lino Moreira da Silva


Universidade do Minho

Portugal foi, desde sempre, ainda de que modo mais acentuado nuns períodos do que noutros, um país
de emigração. Dentro do espaço ibérico, e depois dentro da Europa e um pouco por todos os
continentes, os portugueses foram-se espalhando pelo mundo, misturando-se com outros povos, pelo
sangue e pelo ser.
Ao mesmo tempo, e com origem sobretudo no império que se formou, chegaram, no passado, ao
território continental português, indivíduos das mais diversas nacionalidades, detentores das mais
variadas culturas, com quem os portugueses se habituaram a interagir.
Muito recentemente, Portugal, sem deixar de ser país de emigração, tornou-se novamente país de
imigração. É um fenómeno difícil de explicar, mas real, a que não são alheios, entre outros, factores
como a integração do país na União Europeia e o surto de desenvolvimento manifestado na década de
noventa do século XX. A partir dessa altura, Portugal passou a ser procurado por estrangeiros,
sobretudo do leste da Europa, que se vieram instalar no seu território, esperançados em conseguirem
uma vida melhor.
Este fenómeno reflecte-se em vários domínios e levanta dificuldades diversas. Tendo, de um
momento para o outro, chegado a Portugal adultos, jovens e crianças, detentores de línguas e culturas
diversificadas, a interagir no espaço português com a língua e a cultura portuguesas, passou a estar na
ordem do dia a consideração do fenómeno do multiculturalismo, no mundo globalizado de hoje, e a
reflexão acerca dos melhores modos de ensinar Português.
O autor da presente comunicação propõe-se reflectir sobre estas realidades. Dessa reflexão, vai
procurar tirar conclusões para o desempenho educativo quotidiano, defendendo que, a nível do
multiculturalismo, importa equacionar os problemas surgidos à luz da sensibilidade interactiva e
integradora de hoje, e a nível do ensino da língua importa formular pontos de vista actualizados, de
carácter prospectivo (sobre objectivos, currículo, metodologias, materiais de apoio, avaliação),
aplicados à circunstância de os imigrantes crianças e jovens, em fase de escolaridade, deverem ser
integrados no sistema escolar vigente, e os imigrantes adultos deverem ser levados a participar em
instituições de diverso tipo (por exemplo, associações de bairro ou coordenadas pelas autarquias).

1 – INTRODUÇÃO

No mundo de hoje, justifica-se, cada vez mais, reflectir sobre imigração e multiculturalismo.
Por um lado, porque é um tema actual, activado pela globalização, em todos os domínios; por
outro lado, para os europeus, em geral, e para os portugueses, em especial, devido ao surto
imigratório que, repentinamente, se desenvolveu nos seus espaços, desencadeando situações de
diferença e alteridade, nem sempre facilmente compreendidas e ultrapassadas.
Da reflexão sobre imigração e multiculturalismo, ressai a reflexão sobre as línguas, e, no nosso
particular, sobre a Língua Portuguesa.
Se, no fenómeno migratório, a necessidade de integração exige, por parte de quem chega, a
aprendizagem da língua de quem recebe e a atenção à sua cultura, ao mesmo tempo quem
recebe não pode ignorar que quem chega tem igualmente uma língua e uma cultura, e que
também nessa dimensão deve ser considerado.
Daqui resulta a necessidade de se reflectir sobre esta realidade que, por mais que o seja, nunca
estará definitivamente atendida e considerada.

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A reflexão e a intervenção na área da imigração e do multiculturalismo implicam atender ao
relacionamento a estabelecer entre quem recebe e quem é recebido, para que haja uma
verdadeira integração e se cumpram os que são, cada vez mais, dadas as circunstâncias dos
tempos de hoje, os desígnios do mundo, que é ser interactivo, plural e colaborante.
Nesse sentido, e assumindo uma perspectiva formativa (em boa parte, aplicada à escola),
propomo-nos focalizar aqui os sub-temas da imigração e do multuculturalismo, da construção
de uma sociedade multicultural e da relação da multiculturalidade com a Língua Portuguesa,
com o objectivo de suscitar reflexão e, o que nos parece sobretudo necessário, de procurar
contribuir, neste domínio, para a transformação das mentalidades e dos desempenhos.

2 – IMIGRAÇÃO E MULTICULTURALISMO

2.1 – Portugal foi, desde sempre, um país de emigrantes. A estrutura cultural e étnica que
caracteriza os portugueses ganhou forma recebendo contributos muito variados dentro do
próprio território nacional, mas também colhidos externamente. Um marco especial na
formação dessa estrutura aconteceu a partir dos Descobrimentos, quando mais se revelou o
espírito empreendedor e aventureiro dos portugueses, indo à procura do desconhecido,
estabelecendo laços e raízes pelo mundo fora.
Nos séculos futuros, o mesmo fenómeno continuou, primeiro pelo território do império, e
depois pelo Brasil independente, pelas Américas, pela Europa, pela África, pela Ásia… do
extremo ocidente ao extremo oriente.
Esse surto migratório intensificou-se nos anos 60 do século XX, tendo-se acentuado, então, a
forte vocação emigrante dos portugueses. Daí sobrevieram vantagens, como o abrandamento
das tensões provocadas pela falta de trabalho e de oportunidades; a redução dos desequilíbrios
económicos (efeitos das remessas dos emigrantes no equilíbrio das contas públicas); a resposta à
ânsia natural de se aceder a uma vida melhor num país de destino, quando no país de origem ela
não era facilitada; a reacção, pela positiva, ao acabrunhamento político e sócio-cultural em que
se vivia.
Em consequência, existe hoje uma comunidade portuguesa espalhada pelo mundo superior a 4,5
milhões de indivíduos, cerca de metade da população portuguesa residente em Portugal,
perfeitamente integrada e reconhecida no contributo que dá para o desenvolvimento dos espaços
onde se radicou.

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2.2 – Mais recentemente, Portugal foi tocado, de modo intenso como nunca, pelo fenómeno
inverso, da imigração.
Tal fenómeno não é ímpar na sua história. Por exemplo, logo na formação da nacionalidade, a
nação portuguesa recebeu o contributo de imigrantes Cruzados, sobretudo franceses. Mais tarde,
em consequência dos Descobrimentos, os serviços mais comuns, um pouco por todo o país, com
destaque para Lisboa, eram prestados por negros e escravos, advindos do espaço do império,
constituindo-se estes (Oliveira Martins, 1988) em cerca de um oitavo da população. Além deles,
espalhados pelo território nacional, davam o seu contributo para o desenvolvimento e a
organização do país indivíduos das mais diversas proveniências (com destaque para árabes,
judeus, africanos…).
Mas esse fenómeno conheceu, nos nossos dias, em Portugal, como já antes por toda a Europa,
um incremento considerável, por força da demanda a território nacional de imigrantes africanos
(sobretudo dos novos países de Língua Portuguesa), brasileiros, de países do leste da Europa
(russos, moldavos, ucranianos, romenos…) e de fora dela (chineses, indianos, paquistaneses…),
dotados entre uma baixa qualificação sócio-cultural e profissional, como é o caso dos africanos,
e um elevado nível de formação, como é o caso de boa parte dos indivíduos oriundos dos países
do leste europeu.
Todos eles surgem marcados por outras maneiras de ver a vida e o mundo, de um modo que
Portugal não tinha conhecido até aqui, dentro do seu território. Eles caracterizam-se por uma
grande diversidade cultural, étnica, religiosa… e representam, já hoje, cerca de 5% da
população portuguesa, com todo o significado que isso possui atendendo à população e à baixa
de natalidade no país.

2.3 – No entrecruzar dos efeitos da emigração com os da imigração, se foi firmando, ao longo
dos séculos, um espírito português multicultural, para o que foram concorrendo influências do
mais diverso tipo.
Mas, apesar desse espírito, e de Portugal continuar a ser país de emigração (o que nos confere
responsabilidades especiais), notícias divulgadas recentemente (Jornal Público, 10.04.2005)
mostram que a visão dos portugueses sobre a imigração se tem alterado, permitindo que sobre
eles impendam acusações de xenofobia e reacção à multiculturalidade.
Isto deve fazer-nos pensar e levar-nos a agir.
O entendimento negativo que os portugueses revelam sobre os imigrantes dever-se-á, como
acontece noutras sociedades, a vários mitos entretanto inculcados. Entre eles (ACIME, 2005)
destacamos os seguintes, que referimos com o propósito de, melhor sendo conhecidos, mais
facilmente se poderem combater:

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a) Identificação da imigração com criminalidade.
Verifica-se que não há verdadeiro fundamento para esta relação e que a criminalidade imigrante
não regista índices superiores à praticada por cidadãos nacionais. Todavia, deverá atender-se a
que, embora a esmagadora maioria dos imigrantes seja gente de bem, vivendo honestamente do
seu trabalho e contribuindo para o desenvolvimento (F. Ká, 2005), os fenómenos de exclusão
social que estes suportam, além de serem injustos, bem podem contribuir para originar essa
criminalidade.

b) Identificação da imigração com doença.


Trata-se de um receio injustificado, até porque os imigrantes são, em regra, recrutados entre
indivíduos saudáveis. A própria situação de imigração é que coloca, muitas vezes, os imigrantes
em posição de risco, devido a má alimentação, más condições de alojamento, desempenho de
profissões perigosas, falta de acesso a cuidados de saúde.

c) Identificação da imigração com comportamentos desviantes.


Constata-se que tal identificação é abusiva. Mas reconhece-se que a solidão e a marginalização,
as necessidades básicas insatisfeitas, as expectativas frustradas, a falta de recursos económicos e
de oportunidades sócio-profissionais podem levar a comportamentos desse tipo.

d) Identificação da imigração com actividades ilícitas.


Os imigrantes documentados não desempenham, em princípio, actividades desse tipo. Mas as
situações de carência e exclusão social podem levar, em situações extremas, a essas actividades.
Até por isso se deve combater a imigração irregular e tratar os imigrantes dentro dos melhores
padrões de dignidade humana, no respeito pelas leis nacionais e internacionais.

e) Identificação da imigração com isolamento.


Embora seja real o isolamento de algumas comunidades imigrantes em relação às comunidade
de adopção (por motivos culturais, étnicos, religiosos…), tal tendência não poderá ser
generalizada, e essa prática, nos casos em que acontece, não se revelará necessariamente
perigosa, sendo sempre possível, mesmo nas situações mais graves, criar pontos de união,
pautados pelo respeito mútuo, entre as diversas comunidades.

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f) Identificação da imigração com espírito de revolta.
Se existem imigrantes revoltados com o país de acolhimento, sobretudo após a primeira
geração, não se poderá inferir que eles não queiram fazer parte da sociedade em causa. Antes
deverão ser procurados os motivos de assim ser, que radicarão sobretudo na falta de integração e
de construção de raízes, para a solução do que não se terão desenvolvido os melhores esforços.
É importante a procura de solução para o problema, dada a relação que ele poderá ter com
comportamentos desviantes (por exemplo, o caso extremo do terrorismo).

g) Identificação da imigração com sentimentos de diferença 'anómala'.


As diferenças de usos e costumes, por parte dos imigrantes, não deverão desencadear atitudes
defensivas na população residente. Trata-se de uma questão cultural que pede resposta
educativa, na consideração de que o que é pertença do "outro" faz parte da sua diferença, e
como tal deve ser considerado.

h) Identificação da imigração com contaminação cultural.


Acusa-se a imigração de "contaminação" da cultura e das tradições. Mas quer exista imigração
quer não, no mundo globalizado de hoje é impossível não se ser influenciado por outras culturas
e tradições. Há que ver as influências (inevitáveis), não como contaminação, mas como
enriquecimento (no caso de aproximação ou identificação), ou como referência de identidade (o
que é do outro, e que se conhece, compreende e respeita, individualiza-o em relação ao que nos
pertence e caracteriza), no caso de manutenção de traços identitários.

i) Identificação da imigração com delapidação de bens.


Dentro do espírito de ciclicidade dos fenómenos sociais, será compreensível que, depois de um
período de relativa abastança, que deu origem à entrada de imigrantes no país, sobrevenha um
período de dificuldades. Este obriga os naturais a partilharem com aqueles que entretanto
chegaram o mesmo bolo escasso. Mas se os imigrantes ajudaram a criar riqueza, em tempos de
abastança, não podem ser abandonados em tempo de crise. Daí que, em vez de se considerarem
os imigrantes delapidadores de bens, se deverá procurar, também com o seu contributo, solução
para os problemas.

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3 – PARA UMA SOCIEDADE MULTICULTURAL

3.1 – O mundo globalizado em que vivemos determinou o fim do isolamento dos povos e das
culturas. As sociedades e os indivíduos puseram-se irreversivelmente em contacto, abrindo-se
uns aos outros, expondo publicamente o que diz respeito à sua existência, desenvolvendo
conflitos de interesses e tornando-se, de monoculturais, em heterogéneas.
Tal se deve à facilitação das comunicações presenciais (viagens inter-países e inter-continentes)
e à distância (velhas e novas tecnologias da comunicação e informação) e a toda a dinâmica
(quebra de barreiras de todo o tipo) que se desenvolveu com base nisso (M. Castells, 1997).
As marcas individualizadoras da existência das comunidades e dos indivíduos, fruto de uma
evolução de séculos, passaram a ser partilhadas, tornando-se impossível evitar a influência de
modos de viver, agir e pensar de uns sobre os outros.
Daqui resultou, por um lado, uma tendência efectiva para o global, mas, por outro lado, a
tendência para se demarcarem identidades, através da cultura, da língua, dos valores.
Nesse contexto de crescente sensibilidade para a temática da diferença, surge a necessidade de
trabalhar na qualificação dessa sociedade multicultural, permitindo a coexistência de diferentes
sensibilidades, pontos de vista, modos de intervenção.
Para isso, é necessário, antes de mais, reflectir sobre o conceito de multiculturalismo (A.
Semprini, 1999), de modo a ser possível envolvê-lo vincadamente na educação.

3.2 – O conceito de multiculturalismo não é uniforme, sendo vários (S. Hall, 2003) os
entendimentos admitidos a propósito dele. De qualquer modo, independentemente da
perspectiva em que nos situemos, será possível estabelecer alguns aspectos de aceitação geral
dentro do quadro que o caracteriza:

Reconhecer a existência de uma sociedade heterogénea e multiforme, com indivíduos e grupos


diferentes entre si (PNUD, 2004).
Compreender e resolver os problemas trazidos pela diversidade (cultural, política, religiosa,
étnica, racial, comportamental, económica…).
Resolver pacificamente conflitos envolvendo um espírito de abertura e tolerância.
Combater a exclusão e os preconceitos (J. G. Aquino, 1998).
Reconhecer igualdade de oportunidades, para lá das diferenças existentes.
Desenvolver espírito de tolerância (como base para o enraizamento da democracia e do respeito
pelos outros).

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Rejeitar a "harmonia", enquanto imposição silenciosa, e até obscura, dos interesses do grupo
dominante (H. K. Bhabha, 2000).
Desenvolver espírito de alteridade, reconhecendo o imigrante como ser humano com direitos e
deveres idênticos aos dos nacionais.
Desenvolver interesse pelas formas alternativas suscitadas pela vida do outro (A. Heller & F.
Fehrér, 1998).
Respeitar a autenticidade do outro, numa recusa de violência ou dominação, ouvindo-o num
processo de "democracia dialógica" (A. Giddens, 2001).
Reconhecer e ser reconhecido no interior do grupo de que se faz parte (Ch. Taylor, 1994).
Recusar posições de xenofobia e racismo, de segregação e discriminação baseadas na cultura, na
etnia, nas questões de género e classe social.
Desenvolver uma política cultural dinâmica, com base na aceitação da diferença e da identidade.
Questionar o monoculturalismo e as contradições socioculturais desencadeadas por ele.
Atender ao estudo e à utilização das línguas e culturas envolvidas.

3.3 – Sendo novo, na nossa sociedade (na sua versão de hoje), o fenómeno do multiculturalismo
é igualmente novo na escola, que tem de ser preparada para o considerar. Tal deverá ser feito de
forma crítica e atenta. A escola não se pode ficar pelos discursos, mas importa que, devidamente
fundamentada, parta desse âmbito para o dos desempenhos e da prática.
Neste sentido, a metodologia de acção, para a escola, deverá passar pela consideração dos
destinatários e da sua realidade concreta e visar, não pressionar a "aculturação" do que é
diferente, mas promover aproximações e interacções.
Dever-se-á incentivar os alunos para que comparem as culturas em confronto, compreendam as
diversidades evidentes e assimilem, de umas e outras, contributros operantes.
Este esforço, se é positivo, de um modo geral, para o futuro da sociedade, é imprescindível, em
especial (E. Morin, 2000), para a criação de um ambiente de colaboração no espaço
multicultural criado.
Para este fim, todos os modos de proceder, na escola, devem ser aproveitados (curriculares e
extra-curriculares, de desempenho institucional e de ocupação dos tempos livres).

4 - MULTICULTURALISMO E LÍNGUA PORTUGUESA

4.1 – De um modo geral, como reconhece a Unesco (Unesco, 2001; Unesco, 2002), todos os
povos têm o direito de falar as suas próprias línguas e de praticar as suas culturas, em privado e

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em público. Importa, por isso, nos casos de multiculturalismo, reconhecer direitos linguísticos
específicos, tanto para as comunidades historicamente sediadas no território, como para os
grupos provenientes da imigração.
Mas é natural que as comunidades linguísticas residentes se sintam integradas e que sejam os
indivíduos entretanto chegados a desenvolver os primeiros esforços de integração, competindo-
lhes revelar motivação e interesse para aprenderem a língua de comunicação vigente no espaço
demandado. Só que essa tendência natural não deverá ir além de um primeiro momento,
devendo ser criado um ambiente que favoreça as interacções, aproxime e integre.
Dos cuidados especiais a tomar, farão parte, nomeadamente: desenvolver uma política
linguística e cultural que salvaguarde a identidade nacional, sem deixar de possibilitar a
preservação da identidade das comunidades acolhidas; estimular a integração destas
comunidades, facilitando a sua expressão através de valores próprios na presença de valores
alheios.
Para que haja verdadeira integração, daqui decorre, em primeira linha, a necessidade de se
faciliar aos imigrantes o ensino da língua de comunicação vigente. Depois, criar condições para
se desenvolverem espaços de interacção entre nacionais e imigrantes, que mobilizem contactos
culturais e, o mais possível (o que, apesar de ser desejável, nem sempre é fácil de praticar), a
língua, a cultura e os valores dos grupos acolhidos.

4.2 - Dada a importância da língua e das culturas na vida dos indivíduos e das comunidades, e a
transformação que se operou, entre nós, em termos de multiculturalismo e multilinguismo, é
inevitável, a partir do quadro criado, a consideração do papel da Língua Portuguesa num espaço
de coabitação com outras realidades linguísticas.
No caso especial do ensino da Língua Portuguesa a imigrantes, ele suscita várias
particularidades que, dada a acuidade de que reveste o fenómeno da imigração, entre nós, não é
possível deixar de considerar.

De entre elas, importa:

Distinguir o ensino da língua dirigido a crianças e jovens em idade escolar (na escola) do ensino
da língua aplicado a adultos (na escola, mas ainda noutros espaços educativos, de bairro ou
proporcionados pelas autarquias). Embora os objectivos sejam os mesmos, eles envolvem
naturais especificidades.
Promover a comunicação funcional (aprendizagem da língua propriamente dita), orientada por
níveis etários e de formação (adultos, jovens, crianças).

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Seja qual for o caso (embora isso tenha repercussões mais notórias no ensino de adultos),
desenvolver o ensino da língua sempre em situações de comunicação.
No caso específico da escolaridade, formar turmas proporcionadas, integrando imigrantes nelas
(sem prejuízo de outros espaços específicos onde eles possam receber apoio indvidualizado).
Diversificar os currículos e adequá-los à realidade e situação dos destinatários, aproveitando
para este fim a autonomia responsável, a nível educativo e administrativo, de que usufruam as
escolas.
Atender às situações de formação profissional (também a aprendizagem da língua adaptada a
esses fins), reconhecendo que, no mundo de hoje, é cada vez mais difícil dissociar as línguas e
as culturas da economia e do desenvolvimento.
Promover a integração sócio-cultural (apoiada pela escola – mas desenvolvida através de
projectos dinamizados em colaboração com instituições de apoio a imigrantes, no terreno).
A par do ensino da língua e da cultura, não ignorar a oportunidade para a inculcação de valores
(educação intercultural, espírito de tolerância, respeito pela diferença…).
Elaborar e facultar documentos que possibilitem o debate de grandes temas (cooperação, União
Europeia, mercado de trabalho, realidade das regiões…), com a disponibilização de materiais
como revistas, filmes, dossiês, acesso orientado a bibliotecas….
Suscitar a inclusão, nos manuais escolares, de textos exprimindo situações práticas em
ambientes multiculturais, e ainda textos de autores portugueses, a par de outros de autores
lusófonos e das comunidades imigrantes.

4.3 – Há ainda outros aspectos a que é preciso atender, no particular da Língua Portuguesa,
como resposta para os problemas suscitados:

a) A entrada de imigrantes em Portugal leva, uma vez mais, à urgência de se repensar uma
estratégia para a Língua Portuguesa. A realidade é que tal estratégia não existe. Não se tem
tomado consciência da relevância da Língua Portuguesa no mundo de hoje e, em vez disso, tem-
se verificado demasiada subserviência relativamente à dominação exercida por outras línguas e
culturas. Não sendo um problema novo, não deixa de tomar proporções mais gravosas que
nunca, dada a ligação que as línguas têm hoje com todos os domínios da vida, nomeadamente o
político e o económico. Além disso, estando a língua directamente relacionada com o reforço da
identidade dos povos, preservando-a e fazendo-a marcar o seu lugar na esfera das influências do
mundo, estar-se-á a valorizar o modo de ser português e de todos os países que adoptaram o
Português como sua língua oficial.

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b) É preciso atender a metodologias adequadas para ensinar/aprender uma língua, envolvendo,
destacadamente, situações de comunicação, componente linguística de fundamentação à
comunicação (vocábulos, expressões, estruturas…), desenvolvimento de competências a nível
da compreensão e expressão oral (que permitam chegar rapidamente ao domínio da língua
requerido para enfrentar situações básicas de comunicação), prática de diálogos vivos e
autênticos (permitindo a integração num contexto da língua em grau de exigência aceitável),
recurso a textos de comunicação comum em grau crescente de complexidade.
Nesse sentido, importa reflectir sobre novos métodos de ensinar/aprender a Língua Portuguesa.
Eles podem nem ser verdadeiramente novos, mas constituírem-se numa recombinação, e
sobretudo adequação, de métodos antigos adaptados às novas realidades. Será relevante
desenvolver estudos que envolvam essas matérias, visto que, hoje, as mentalidades e as
motivações que presidem à aprendizagem das línguas, as necessidades sociais, as próprias
características dos aprendentes, são muito diversas das do passado (Ch. Puren, 1996).
Os professores (o que, nas escolas portuguesas, raramente acontece) deverão de ter em conta a
investigação realizada, informando-se e auto-fornando-se, sem perder de vista que se estuda
uma língua para... aprender essa língua, comunicar nessa língua, o melhor possível, com o
menor esforço e no mínimo lapso de tempo. Se assim não for, desmotiva-se e desiste-se, com
todas as consequências negativas trazidas por esse insucesso.
Nesse contexto, o Português a ser ensinado em situação de língua materna, língua segunda e
língua estrangeira, sendo o mesmo, não pode dispensar a perspectiva do aprendente situado. É
aí que o nível de estudo da língua fará toda a diferença, devendo as metodologias a propor
corresponder às especificidades encontradas.

c) A um nível básico comunicativo, na aprendizagem de uma língua, pretende-se, antes de mais,


responder a necessidades imediatas de oralização, e dar sobretudo resposta a situações do
quotidiano. A um nível de especialização, pretende-se responder a cada vez maior exigência no
contacto com as línguas e as culturas por elas veiculadas, e fazer com que quem fala comunique
e reflicta, e interiorize, fundamente e desenvolva gradualmente uma consciência cada vez mais
perfeita da língua.
Ambos os níveis são sequenciais (F. Cavacas, 1997). O primeiro tem resultados mais imediatos
que o segundo, e é essencial para que ele dê resultados. Dele faz parte, sobretudo, a
interiorização da competência comunicativa. Para se entrar no segundo nível, depreende-se que
já esteja instalada uma competência mínima, para se tornar possível atender a uma
sensibilização mais profunda no espírito da língua e serem exploradas situações de comunicaçâo
cada vez mais complexas e variadas.

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Assim sendo, não é a mesma coisa ensinar Português a um nível de comunicação (competência
comunicativa) e de especialização (aprofundamento). Não havendo regras nem "receitas" para
isso (L. González Nieto, 2001), importa desenvolverem-se conhecimentos de linguística e
informação acerca dos candidatos a falantes da língua, enquanto pessoas e aprendentes, e o mais
possível das suas línguas e culturas originais. Há, depois, orientações/recomendações a serem
reflectidas e interiorizadas e a transposição para a prática das experiências que vão sendo
conseguidas.
A resposta às diversas situações é, ainda, necessariamente metodológica. Perante elas, há que
considerar metodologias diferenciadas/adequadas, mas sem nunca se perder de vista que, em
qualquer situação, o mais importante é a aprendizagem da língua de modo adequado às
necessidades de uso.

d) Promover e disponibilizar, dentro do possível, o ensino das línguas dos imigrantes,


aproveitando, para isso, as organizações que os representem e defendam, ou então que aceitem
fazê-lo directamente do país de origem. Ao mesmo tempo, criar contrapartidas nos países de
origem dos imigrantes relativamente à Língua Portuguesa (o que, sendo muito importante, e
relativamente simples de aplicar, não tem sido praticado). Ao mesmo tempo, há que saber
aproveitar os contactos a nível diplomático que resolvam questões da língua e da cultura e
suscitar colaborações entre instituições linguísticas e culturais dos países envolvidos (dando-se
atenção especial aos países e povos que falam português). Igualmente será proveitoso promover
parcerias entre universidades, grupos de investigação, empresas e centros de empreendedorismo
diversos, favorecendo-se o intercâmbio linguístico, cultural e de pessoas.

e) Importa desenvolver uma nova mentalidade multicultural (F. Cristóvão, 2005), envolvendo
nisso, sobretudo, as línguas e as culturas dos imigrantes que, em número mais significativo, se
sediam em determinadas regiões do país. A sensibilização dos naturais para a realidade e os
problemas dos imigrantes concorrerá, em muito, para o desenvolvimento dessa nova
mentalidade. A solução poderá passar pela procura de visibilidade para essas línguas e culturas,
com a inclusão, nos currículos, de referências oportunas e pela promoção de iniciativas
adequadas, contando para isso com o apoio de instituições representativas.

f) Promover uma reflexão profunda sobre a língua portuguesa, que deverá passar por aspectos
como: a entrada em vigor do acordo ortográfico, a elaboração de novos materiais de apoio no
estudo da língua, a reflexão em torno das especificidades da língua, o debate sobre questões
linguísticas e culturais suscitadas.

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Tal reflexão deverá passar, ainda, pela maior adaptação da língua portuguesa à actualidade (a
língua falada, a língua popular, a língua escrita, a correcção linguística, os estrangeirismos e os
neologismos, os vários contextos de utilização da Língua Portuguesa…).

g) Considerar as novas vias para promover e ensinar a Língua Portuguesa, através das novas
tecnologias, como são os cursos de línguas e sobretudo o ilárnim, como poderoso processo de
organizar o ensino que é. Alguns passos se estão a dar neste domínio, mas ainda muito tímidos,
e sobretudo muito aquém do que já há muito é feito por outras línguas.
Mesmo assim, não deixa de ser positiva, por exemplo, a entrada proximamente em serviço da
plataforma que permitirá o acesso à aprendizagem da Língua Portuguesa, em todo o mundo,
através da internete (M. Crespo, 2005).
Por essa via, será possível o acesso a "aulas virtuais" de Português, com correspondência, para
já, aos programas curriculares do 9° ao 12° anos, e, depois de 2007, aos programas dos restantes
anos de escolaridade.

5 - CONCLUSÕES

Apesar do capital de experiência e do espírito multicultural, sobre multiculturalidade e


multilinguismo, recolhidos, ao longo dos tempos, pelos portugueses, a recente onda de
imigrantes que demandou o país não deixou de constituir uma novidade e de trazer alguns
problemas.
No esforço de se dar resposta ao princípio humanista de uma Europa que pretende ser "dos
Cidadãos", e portanto das suas línguas, envolvendo estas identidade e culturas, e ainda de dar
continuidade ao espírito miscigenador e multirracial que tem assistido aos portugueses, desde há
séculos, importa reaprender a lidar com os problemas surgidos e superá-los.
Este facto leva à necessidade de se repensar, entre nós, como acontece há décadas no espaço
europeu, as questões da multiculturalidade, e as suas influências no quotidiano do país, tanto
mais que impendem, hoje, sobre os portugueses acusações de xenofobia e reacção à
multiculturalidade. Uma vez identificadas as causas (mitos) em que radica o sentimento de
reacção à multiculturalidade, importa combatê-las, na sociedade e sobretudo na escola.
Se o mundo globalizado em que vivemos determinou o fim do isolamento dos povos e das
culturas, importa incutir espírito de tolerância, políticas culturais dinâmicas com base na
aceitação da diferença e da identidade, ao mesmo tempo que se desenvolvem estudos em torno
da utilização das línguas e culturas envolvidas.

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Na escola, dever-se-á incentivar os alunos para que comparem as culturas em confronto,
compreendam as diversidades e assimilem, de umas e outras, os contributos operantes. Este
esforço será sobretudo positivo para a criação de um ambiente de colaboração no espaço
multicultural criado.
Um aspecto relevante é a consideração, a partir do quadro criado, do papel da Língua
Portuguesa, num espaço de coabitação com outras realidades linguísticas, mobilizando diálogos
linguístico-culturais, aproveitando contactos a nível diplomático que resolvam questões da
língua e da cultura, suscitando colaborações entre instituições, sensibilizando para a realidade e
os problemas dos imigrantes, desenvolvendo metodologias e reflexão sobre novas vias para
promover qualificar o ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa.

BIBLIOGRAFIA

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