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EDUCAÇÃO EM MOÇAMBIQUE

Pensando interseções e políticas públicas1

Lúcia Helena Barbosa Guerra


Doutoranda em Antropologia - PPGA/UFPE

Resumo
O objetivo deste artigo é refletir sobre Educação em Moçambique, a partir da dinâmica
de gênero e suas interseções, dando enfoque nas desigualdades sociais e políticas públicas daí
decorrentes. O presente estudo integra meu projeto de doutoramento, no qual pretendo
discutir sobre as políticas públicas que o governo moçambicano vem desenvolvendo e que
visam promover a igualdade de gênero através do empoderamento das mulheres.
Realizamos pesquisa bibliográfica de caráter qualitativo (Cervo e Bervian, 1983:55) a
partir da utilização dos descritores “Gênero” e “Moçambique” nas bases de dados do
AFRICABIB. Foram localizados 96 artigos originais e de revisão publicados em periódicos
nacionais e internacionais, os quais foram classificados de forma contextual nas categorias:
Gênero, Educação, Violência e Políticas Públicas. Observamos uma lacuna em relação às
interseções, apenas poucos estudos sobre violência apontam para a importância da interseção
com raça e classe.
Quando os indicadores básicos do desenvolvimento humano são desagregados por
gênero, demonstram claramente a existência de um fosso significativo entre os sexos, fazendo
com que as mulheres sejam incapazes de participar na íntegra do desenvolvimento social,
econômico e político do país (Bergh-Collier, 2007). É interessante, destacar o surgimento de
políticas públicas que visam criar condições para que a igualdade de gênero possa
efetivamente se concretizar, e é sobre as mudanças sociais pelas quais vem passando
Moçambique nas últimas décadas que se debruça este texto.

Palavras-chave: Educação; Moçambique; Gênero

1
Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de
2014, Natal/RN.

1
SITUANDO A PESQUISA: DESIGUALDADE DE GÊNERO
Nas Ciências Sociais o conceito de gênero é considerado culturalmente construído
(Scott, 1998), servindo, para distinguir a dimensão biológica da social (Giddens, 2001:110). O
debate internacional esta marcado pela emergência de categorias que aludem a multiplicidade
de diferenciações que, articulando-se com categoria de gênero, permeiam o social (Piscitelli,
2008: 263). Para Avtar Brah dentro das estruturas de relações sociais, as mulheres não
existem apenas como mulheres, mas como categorias diferenciadas “mulheres trabalhadoras”
ou “mulheres negras”, cada uma delas relacionada a uma condição social específica (Brah,
2006: 341). O gênero se entrecruza com outros marcadores como gênero e raça, gênero e
classe, permitindo perceber dentro do debate sobre as interseccionalidades a coexistência de
diversas abordagens. Algumas feministas (Shohat, MacKlintock, Mohanty) que trabalham
com a teoria pós-colonial, chamam a atenção para necessidade de também articular gênero
com as categorias religião e nacionalidade (Piscitelli, 2008: 265).

A industrialização levada pelos europeus está na origem de uma desigualdade


de género que a cultura tradicional não conhecia, ao provocar uma profunda
mudança no tecido social, associada à divisão sexual do trabalho, impondo às
mulheres uma dependência económica dos maridos até então desconhecida.
No contexto de Moçambique, as mudanças sociais introduzidas pela política
de assimilação, assim como a crescente influência da Igreja, promotora de
novos e fortes estereótipos de género, reflectem esta realidade (Silva,
2007:61).

Para Stuart Hall (2003:56) o “pós-colonial” não sinaliza uma sucessão cronológica do
tipo antes e depois, uma vez que muitos dos problemas do colonialismo como dependência
econômica, subdesenvolvimento e desigualdades sociais não foram resolvidos no pós-
colonialismo, essas relações apenas assumiram uma nova configuração. Com bem adverte
Mia Couto (2008) as ex-colônias já tiveram várias nomenclaturas “terceiro Mundo, países
subdesenvolvidos, nações da periferia, hoje, países ricos e pobres são chamados de
parceiros”, o problema para este autor é que não se resolve nas palavras o que não esta
resolvido na substância. Os modos de classificação e identificação social que estruturam uma
sociedade determinam também a forma pela qual sua reprodução social é organizada,
determinando de que forma as concepções e as relações sociais são construídas (Stolcke,
2006:26).
Segundo Kimberlé Crenshaw (2002:178), as interseccionalidades são formas de
capturar as consequências da interação entre duas ou mais formas de subordinação: sexismo,

2
racismo, patriarcalismo. Ao analisar a Antropologia feminista, Verena Stolcke (2004:83)
destaca que a subordinação das mulheres não é exercida exclusivamente pelos homens, mas é
um fenômeno universal produzido ao longo da história a partir do surgimento da propriedade
privada e do colonialismo.

Os Portugueses tiveram um impacto mais directo sobre a posição dos homens,


mulheres e relações de género, não tanto devido à sua própria cultura
patriarcal (embora esta fosse muito forte), como devido às implicações das
suas políticas coloniais. (...) enquanto os homens trabalhavam para os
agricultores Portugueses, proprietários de barcos de pesca e,
subsequentemente, para as indústrias nas áreas urbanas, recebendo
pagamento em dinheiro ou espécie. Desta forma, a base económica para a sua
posição sócio-cultural como homens era reforçada (Tvedten, Paulo &
Tuominen, 2009:08).

No princípio do século XV, devido a sua localização geográfica na costa oriental do


continente africano (Boléo, 1961:9), Moçambique passou a ser explorada por Portugal, mas
só com a Conferência de Berlim em 1885 é que se transforma “oficialmente” numa colônia
portuguesa. Em 1975, após dez anos de guerra, consegue sua independência, adotando a
denominação República Popular de Moçambique e o regime socialista liderado pela
FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique. A partir daí começa uma guerra civil
entre os membros da FRELIMO e da RENAMO – Resistência Nacional Moçambicana que
dura de 1976 a 1992 ficando conhecida como Guerra dos 16 anos. A unidade nacional
pressupõe uma língua comum2, uma vez que fortalece a coesão social e funciona como um
veículo importante de valores e normas culturais (Tvedten, Paulo & Tuominen, 2009:25), a
urgência em promover e solidificar essa unidade levou a FRELIMO, desde os tempos da luta
armada, a optar pelo português.

Antes, a mulher moçambicana não tinha voz, a mulher não podia estudar mais
que o homem, diziam que a mulher não pode conduzir o carro, a mulher não
pode trabalhar nas secretarias. Então, a FRELIMO começou a luta armada,
dizia que na nossa luta não há homem, não há mulher, mas sim todos somos
militantes. – Depoimento de Rosa ex-guerrilheira (Corrêa e Homem,
1977:415).

Verificamos que a língua, como prática cultural, é importante não apenas por ser capaz
de comunicar e ter acesso à informação, mas também para entendimento mais profundo do

2
Entre os onze principais grupos étnicos de Moçambique foram identificadas 31 línguas diferentes, todas de
origem Bantu (Corrêa e Homem, 1977:182).

3
mundo em mudança onde as pessoas vivem. O problema em Moçambique, de acordo com o
último Censo realizado em 2007, é que apenas 40% da população sabe falar o idioma, quando
utilizamos gênero como categoria de análise os números são bem mais alarmantes, apenas
20% das mulheres moçambicanas falam o idioma, em termos educacionais a escolarização
feminina também foi sempre menor que a masculina. Em todas as idades as taxas de
analfabetismo são maiores entre as mulheres, nas áreas rurais a taxa de analfabetismo
feminina é 1,5 vezes superior à masculina e nas cidades é 2,4 superior. Isto significa que os
homens são mais favorecidos pelas facilidades urbanas ao acesso às escolas, em
contraposição ao campo. Quando realizamos um recorte por faixa etária/localização
geográfica verificamos altíssimas taxas de analfabetismo feminino nos grupos etários a partir
dos 40 anos de idade e que habitam zonas rurais, todas as taxas superam os 90% (Caccia –
Bava e Thomaz, 2001:38). Nas últimas décadas o governo tem investido massivamente num
sistema de educação básica gratuita, mas na prática ainda é preciso pagar pelo fardamento e
material escolar, nesse contexto as famílias pobres continuam tendo dificuldade para educar
as crianças.

Em Moçambique, os homens têm tradicionalmente a responsabilidade de


ganha-pão e das tarefas financeiramente produtivas e, consequentemente, a
educação dos rapazes foi durante muito tempo considerada uma prioridade.
Como a divisão tradicional do trabalho coloca as mulheres em casa a cuidar
das tarefas reprodutivas, não se achava necessário, ou até significativo, pagar
a educação de uma rapariga (Tvedten, Paulo e Tuominen, 2009: 43).

Curiosamente Conceição Osório (2007) percebeu que a valorização da educação


escolar feminina é predominante em famílias com capital cultural médio ou elevado3 e em
famílias monoparentais chefiadas por mulheres, muitas vezes sem formação acadêmica, com
poucos recursos e com histórico de violência doméstica. Neste caso podemos estabelecer uma
relação direta com a teoria da racionalidade de Goldthorpe, descrita por Edison Ricardo
Bertoncelo, onde para atingir seus objetivos os indivíduos avaliam seus custos e benefícios
relativos.

Nesse sentido, as escolhas dos indivíduos podem ser entendidas como


estratégias adaptativas diante da estrutura de oportunidades que determina os
custos e benefícios relativos de diferentes cursos de ação. Assim, por exemplo,
no caso dos filhos da classe trabalhadora, deixara escola após o período de

3
De acordo com a UNICEF em Moçambique as taxas de alfabetização de mulheres das famílias mais abastadas
tende a ser oito vezes superior do que as famílias pobres (Maputo, 2005:38).

4
estudos obrigatórios e optar por um curso profissionalizante que leve a um
ofício manual seriam escolhas racionais (senão as mais racionais e eficientes)
diante da estrutura de oportunidades que se impõe sobre essa posição de
classe (Bertoncelo, 2009:29).

De acordo com o relatório do CMI - Chr. Michelsen Institute (Tvedten, Paulo e


Tuominen, 2009: 43) as ações do governo no setor de educação tem exercido um impacto
positivo nos níveis de frequencia escolar, mas ainda apontam para uma diferença de gênero
principalmente no que tange os índices de evasão escolar entre as meninas. Além da carência
de escolas também percebemos o preconceito da sociedade tradicional de que a mulher não
deve estudar. Para Verena Stolcke (2006:16) é dada pouca atenção ao papel crucial do Estado
e da Igreja no controle social da mulher e em como as múltiplas normas morais, religiosas e
sociais interagem dialeticamente com as desigualdades sociais.

Assim como é verdadeiro o fato de que todas as mulheres estão, de algum


modo, sujeitas ao peso da discriminação de gênero, também é verdade que
outros fatores relacionados a suas identidades sociais, tais como classe, casta,
raça, cor, etnia, religião, origem nacional e orientação sexual, são “diferenças
que fazem diferença” na forma como vários grupos de mulheres vivenciam a
discriminação (Crenshaw, 2002:173).

O nosso ponto de partida, neste artigo, é discutir a Educação em Moçambique como


uma condição multifacetada envolvendo diferenças ligadas ao gênero, uma vez que as
desigualdades são frutos da soma de diferentes fontes de opressão contra as mulheres,
envolvendo além do gênero a interseção com raça e classe nas estruturas de dominação
históricas (Stolcke, 2004:93).

DOMINAÇÃO DE GÊNERO E A INFLUÊNCIA RELIGIOSA


Logo após sua independência em 1975, o país adotou o sistema socialista,
nacionalizando o patrimônio da Igreja e instituindo a laicidade do Estado, mas de modo geral
as influências religiosas e culturais ainda estão muito presentes na sociedade moçambicana
fortalecendo o sistema patriarcal, que subordina as mulheres (Bergh-collier, 2007:10). De
acordo com o último censo realizado em 2007 as pessoas que professam a religião católica
constituem a maioria da população (28,4 %), seguido pelos mulçumanos (17,9%) e pelos
evangélicos (15,5%), ainda de acordo com Bergh-collier esta diversidade religiosa provém da
influência católica portuguesa, das religiões animistas tradicionais e dos laços históricos com
as rotas comerciais árabes.

5
A construção cultural de homens e mulheres em Moçambique é inserida hoje através
das práticas culturais, influenciadas pelos dogmas religiosos e propagadas através do Alcorão
e da Bíblia. No que tange as questões de gênero é clara a similaridade, seja qual for a
confissão religiosa, das desigualdades entre homens e mulheres, colocando-as num patamar
de inferioridade (Silva, 2007:62). A frequência escolar tem correlação direta com a religião do
chefe familiar, dentre os católicos 63% das crianças frequentam a escola, enquanto nas
famílias mulçumanas este percentagem cai para 48% (Tvedten, Paulo e Tuominen, 2009: 45).
Em pesquisa realizada pelo CMI - Chr. Michelsen Institute as meninas entrevistadas
declararam que sua educação escolar seria interrompida caso seus pais identificassem um bom
marido para elas (Ibdem, 2009: 17), parte do problema esta relacionado com a percepção de
que a educação é perda de tempo e gasto de recursos financeiros, principalmente em relação
às meninas (Tvedten, Paulo e Tuominen, 2009: 23).

O mito patriarcal começa a sedimentar-se pelo percurso religioso e reforça-se


através dos cânones sociais que, valendo-se de estereótipos, constroem um
perfil feminino. (...) esses estereótipos mistificam-se, tornando se cada vez
mais impermeáveis aos modelos do que seja ideal masculino e feminino,
gerando protótipos que dificilmente perdem força (Silva, 1995:110).

Nestas comunidades fortemente muçulmanas, muitos pais preferem mandar os seus


filhos para Madrassa, escola mulçumana, que além de dar uma formação religiosa também
orienta os estudantes sobre o Islã e a posição de homens e mulheres na sociedade, ensinando
desde a puberdade noções de sexualidade ligadas ao gênero que reforçam a superioridade dos
homens e as obrigações das mulheres para com os maridos.

GÊNERO UMA QUESTÃO DE CLASSE


Pelo que vimos a religião parece inibir o envolvimento das mulheres na esfera social e
econômica do país (Tvedten, Paulo & Montserrat 2008), principalmente nas províncias do
norte do país, de maioria mulçumana. A evasão escolar feminina corrobora para o aumento da
disparidade entre as taxas de alfabetização feminina e masculina como podemos perceber no
quadro abaixo:
DADOS SÓCIO-ECONÓMICOS DA POSIÇÃO DAS MULHERES EM MOÇAMBIQUE (%)
Item Homens Mulheres
Emprego formal 19,0 3,9
Emprego na agricultura 67,5 89,3

6
Taxa de alfabetização 67,0 37,5
Frequência na escola primária 62,7 56,7
Fonte: Banco Mundial 2007

Durante muito tempo o conceito de classe teve lugar central para compreensão dos
conflitos e transformações da sociedade (Bertoncelo, 2009: 25), ao correlacionar gênero e
classe, Bergh-Collier (2007:44/45) percebeu que a alfabetização entre as mulheres urbanas
(65%) é três vezes maior do que as mulheres rurais (21,6%), enquanto a taxa de alfabetização
de mulheres de famílias mais abastadas tende a ser oito vezes superior as mulheres pobres,
sendo mais provável que as mulheres pobres não terminem o ensino primário. Como vimos
anteriormente apesar do ensino em Moçambique ser “gratuito” as famílias tem de pagar uma
matricula, sobre este pagamento o diretor de uma escola rural falou:

Em Maputo o modo de vida das pessoas é diferente, a maior parte das pessoas
trabalha e aí pode pagar. Ao passo que aqui é muito complicado e para não se
vedar a escola às crianças que não têm possibilidades de pagar, faz-se mais
barato. Mesmo assim há crianças que chegam até à quinta classe e nunca
puderam pagar e a gente vai deixando (Silva, 2007:134).

Numa perspectiva mais sintética, Bertoncelo (2009:26), baseado em Max Weber e


Antony Giddens, afirma que as categorias de classe e classe social permitem investigar como
as relações tipicamente econômicas se conectam com as relações não econômicas e se
transformam em sistemas estruturados de relações sociais baseados na classe. A pesquisa de
Gabriela Silva (2007:103) demonstra que quanto mais baixa é a escolaridade dos adultos
menor é a importância dada a escola, além disso, fatores tais como a distância da escola,
deficiência nas estruturas, violência no ambiente escolar, carência de material didático, não
permitem que estes estudantes adquiram na escola o capital cultural necessário para
apropriação dos objetos de uma “cultura legítima” (Bertoncelo, 2009: 34/35).
Gabriela Silva (2007:103) constatou que no meio rural as meninas são vítimas de um
duplo processo de exclusão educacional, baseados em fatores que vão além do gênero e
perpassam pelo rendimento familiar e os custos diretos e indiretos com a educação4, fazendo
com que tenham de optar por manter um dos filhos na escola, e essa escolha na maioria dos
casos recai sobre os meninos. Tomando como premissa a lógica da escolha racional, descrita

4
“Os custos das propinas e dos materiais escolares podem ser demasiado elevados para muitas famílias e no caso
da principal actividade da família depender da mão-de-obra de todos os familiares, significam uma redução de
recursos humanos na economia familiar” (Silva, 2007: 103).

7
no texto de Bertoncelo (2009: 29/30), podemos afirmar que as famílias optam por manter os
meninos uma vez que o trabalho desenvolvido pelas meninas na machamba 5 não exige
escolaridade. No entanto o que temos percebido e que está alinhado com muitos outros
estudos é uma tendência das famílias em evidenciar a educação as meninas, principalmente
quando o chefe familiar é uma mulher. Tvedten, Paulo e Tuominen (2009: 44) afirmam que as
mulheres com capacidade de tomar decisões tendem a investir mais na educação das suas
crianças do que os homens. Como já foi dito anteriormente a valorização da educação escolar
feminina é predominante em famílias com capital cultural médio ou elevado e em famílias
pobres chefiadas por mulheres, que não tiveram acesso a escola e em muitos casos já foram
vítimas de violência doméstica (Osório, 2007).

VIOLÊNCIA ESCOLAR E DE GÊNERO


É considerada violência de gênero contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada
no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico a mulher, tanto
no âmbito público como no privado (Claden, 2000). Desde o fim da guerra civil (1992), várias
mulheres têm vindo a público para relatar casos de violência sofridas durante este período,
como bem lembra Joeyta Bose6 à violência sexual é uma arma tão ou mais eficiente do que a
arma de fogo. Tais abusos são caracterizados não apenas como ataques as mulheres, mas
como ataques contra a honra de todo o grupo, uma vez que as mulheres são percebidas como
representantes “da honra simbólica da cultura e como guardiãs genéticas da comunidade”
(Crenshaw, 2002:176). Além de trazer danos de longo prazo a violência sexual desumaniza a
vítima e quebra a Comunidade (Sorg, 2011:104), por isso é tão utilizada por exércitos e
guerrilhas.

Um agente da Polícia, em parte incerta, é acusado de ter violado sexualmente


uma mulher de 24 anos, identificada por A. O acto ocorreu na madrugada de
domingo, na Zona Verde, no município da Matola. Os factos deram-se quando
a vítima, na companhia de uma amiga, de nome B, colhia couve numa
machamba, para posterior venda num dos mercados da capital. A vítima, que
foi obrigada a manter relações sexuais desprotegidas, está a receber
tratamento médico devido às lesões sofridas. Jornal de Notícias O País – 20 de
maio de 2011

5
Significa pedaço de terra, utilizado para ser referir as lavouras.
6 Coordenadora da ONG Women for Women.

8
No exemplo acima a mulher foi abusada em um espaço público enquanto realizava
suas responsabilidades femininas na machamba, geralmente locais isolados, um contexto em
que sua condição de mulher lhe deixa vulnerável a violência dos homens. Para Kimberlé
Crenshaw esta violência é intersccional, uma vez que as dimensões raciais, de gênero ou de
classe, que são parte da estrutura, têm de ser colocadas em primeiro plano, como fatores que
contribuem para a produção da subordinação (Crenshaw, 2002: 176). A falta de compreensão
das desigualdades nas relações de poder acabam tornando as mulheres e meninas vulneráveis
a violência e ao abuso sexual (Bergh-collier, 2007: 78), principalmente no espaço escolar.
Em sua pesquisa sobre socialização escolar e violência de gênero nas escolas,
Conceição Osório (2007) constatou que as vítimas de assédio sexual são desencorajadas pela
família e pela direção da escola a denunciar o agressor, sendo em muitos casos
responsabilizadas pelo assédio sofrido em virtude do uso de roupas socialmente condenáveis.
Nos casos de abuso sexual cometido na escola, por professores ou outros estudantes, as
meninas acabam sendo culpabilizadas ou incitadas a aceitar formas de mediação
insatisfatórias, que as deixam mais vulneráveis e ainda tornam a violência aceitável na
sociedade (Bergh-Collier, 2007:77).

A acusação e a responsabilização das meninas pelo assédio de que são


vítimas, mostram bem como, na incorporação do modelo cultural na
construção do feminismo, as mulheres são cúmplices e agentes da sua
submissão: a noção de decência relativamente ao vestuário é uma forma de
dominação, isto é, as raparigas “descontroladas” que usam saias curtas
expõem-se a uma violência que é social e culturalmente legítima (Osório,
2007).

Para Sherry Ortner essa desvalorização universal das mulheres pode ser explicada pela
concepção da “cultura como uma classe especial de manipulação do mundo” (Ortner, 2006:
111). No que diz respeito a posição dos rapazes entrevistados, Conceição Osório, constatou
que o assédio sexual esta sempre relacionado ao poder, a posição de supremacia dos
professores e da manipulação das meninas que usam o corpo como forma de troca de bens
materiais e favores escolares, para eles não há como competir com os professores ou com
outros homens adultos fora da escola. Para pesquisadora da WLSA - Women and Law in
Southern Africa Research and Education Trust a combinação desses fatores pode ser uma das
explicações para violência sexual sofrida pelas meninas no caminho para escola ou nela, “a
violação aparece nestes casos como vingança e como punição” (Osório, 2007). A violência
sexual contras as meninas não é praticada apenas pelos colegas de escola, mas por professores

9
e funcionários, trazemos como exemplo o caso noticiado no Jornal de Notícias de 23 de junho
de 2001, que um professor no distrito de Xai-Xai violentou quatro alunas de 11 e 12 anos, o
que mais chama atenção neste caso é que a direção da Escola Primária de Magawane tinha
conhecimento do caso, mas apesar disso o professor continuava a lecionar na escola. A
pesquisadora Maria José Arthur (2003) reflete sobre o assédio sexual e a violência nas escolas
a partir de carta escrita por um cidadão (sem identificação) sobre o caso acima, transcrevemos
algumas trechos:

Como foi possível deixar um incidente como este tão visível e descaradamente
impune? Perguntamos nós! Como foi possível uma instituição educadora fazer
“vista grossa” a tamanha barbaridade? Como pôde um país inteiro com 26
anos de independência não ter um destino claro para um crime desta
natureza? Exigimos e aguardamos com a paciência quase esgotada, que tal
professor violador, e os seus imitadores que sabemos existirem às dezenas
deambulando pelas instituições de ensino, sejam exemplarmente punidos com
a merecida expulsão do Aparelho de Estado e com alguns anos de cadeia
intensamente vividos (Arthur, 2003).

Este caso apresentado como exemplo, que infelizmente não é um caso isolado 7 ,
demonstra a complacência das autoridades em relação a este tipo de ocorrência. Ao
estabelecer o ensino gratuito e priorizar o campo da educação, o governo moçambicano se
comprometeu em garantir à igualdade de acesso a escola para meninos e meninas, mas
infelizmente na prática a realidade escolar ainda é muito hostil e perigosa para as meninas. A
questão central para Conceição Osório envolve a desvalorização, a super-valorização e a
negação da sexualidade feminina, o seu corpo é representando como exterior, de disputa de
dominação masculina e não para si (Osório, 2007).
Na África do Sul uma em cada três alunas do ensino secundário engravida, em muitos
casos do próprio professor, a situação moçambicana não é muito distinta. Diferentemente do
país vizinho, em Moçambique quem é punida é a estudante que devido a gravidez tem de
abandonar a escola para casar, em muitos casos com o agressor, ou ser transferida para cursos
noturnos. Como bem destaca Maria José Arthur (2003) os co-responsáveis pela gravidez,
colegas ou professores, não sofrem nenhum tipo de sanção

7
Para confeção do “Relatório do estudo sobre abuso sexual de raparigas nas escolas moçambicanas” foram
aplicados 1.191 questionários destes 117 estudantes, sendo 38 crianças (32,4%) e 79 adolescentes (67,5%),
afirmaram já ter sido vítimas de violência sexual. Em 37% dos casos o agressor é o professor/funcionário ou
colega da escola (SAVE THE CHILDREN, CARE, REDE-CAME, MEC E FDC, 2005: 25 E 31).

10
É interessante constatar que a gravidez, objecto de grandes encómios, quando
vivida no seio do casamento, é diabolizada entre as jovens sem marido porque
é elemento de desordem social, de conspurcação de valores, de fuga ao
controle social (Osório, 2007).

De acordo com o Despacho nº 39/GM/2003 do Ministério da Educação as estudantes


grávidas devem ser compulsoriamente transferidas para o curso noturno, para Conceição
Osório (2007) os principais argumentos desta transferência são a “má influência sobre as
outras e a necessidade de responder pelo erro cometido”. Quando a gravidez resulta de abuso
sexual por parte do professor, a vítima é punida duas vezes, pela violência sexual sofrida e
pela privação da educação (Bergh-collier, 2007:78). Na sua pesquisa, Conceição Osório
(2007) questionou as entrevistadas sobre quais medidas deveriam ser adotadas contra os
professores responsáveis pela gravidez, o que choca é que a grande maioria respondeu que o
problema deve ser resolvido com o casamento, que surge não como punição ao agressor, mas
como reparação da honra da família da vítima. Para Gayle Rubin as transações de casamento8
são uma rica fonte de informação para determinar exatamente quem tem direitos sobre quem,
e na maioria dos casos os direitos das mulheres são consideravelmente mais residuais que
aqueles dos homens (Rubin, 1993: 10).

Os casos de abuso que envolvem professores são, na sua maioria, resolvidos


por estes directamente com os familiares das vítimas, quando há gravidez. O
professor negocia com os pais, prometendo a estes, pagamento de multa ou
casamento, para que estes não levem o caso a outras instâncias (SAVE THE
CHILDREN, CARE, REDE-CAME, MEC E FDC, 2005: 40).

Em diversos relatos constam as mesmas histórias sobre violência e impunidade, o


resultado desta política permissiva é que os criminosos além de não serem punidos continuam
a lecionar e a violar outras meninas. Nos casos em que os pais buscam a autoridade policial,
de acordo com LDC - Liga dos Direitos da Criança e a ONG Action Aid, a violência tende a
ser minimizada e a queixa não é registrada, sendo considerado um assunto de família que
deve ser resolvido no âmbito privado. Nos casos em que a família exige e consegue registrar a
queixa, o trâmite consiste na prisão do acusado e na instauração de um processo, como pena o
acusado tem de pagar uma multa a família e o tratamento médico da vítima (SAVE THE
CHILDREN, CARE, REDE-CAME, MEC E FDC, 2005: 45). Para Maria José Arthur e Zaida

8
Em Moçambique esse acordo de casamento é chamado lobolo, neste caso a familia do noivo tem que dar uma
compensação financeira ou material a familia da noiva. Ver mais sobre o tema no texto “A antropologia na
África e o lobolo no sul de Moçambique” de Osmundo Pinho publicado na revista Afro-Ásia, 43 (2011), p. 9-41.

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Cabral (2004) fica claro que as medidas corretivas que se destinam aos agressores são letra
morta, restando então aplicar a pena que se prevê para as adolescentes grávidas, aquelas que
carregam a “prova do crime”.
Os esforços no sentido de melhor compreender os problemas ligados à
interseccionalidade passam por um ponto de inflexão que vai da invisibilidade até a
conscientização dos membros de órgãos revisores dos tratados internacionais, dos
formuladores de políticas públicas, de ativistas de ONGs e de tantos outros atores (Crenshaw,
2002: 182). Tanto que no ano de 2009, após grande pressão da sociedade civil de ONG’s que
atuam em defesa dos direitos das mulheres o Parlamento Moçambicano aprovou a Lei nº
29/2009, um dos grandes avanços foi determinação de uma pena de seis meses a dois anos de
prisão em caso de estupro, e se dessa relação sexual resultar a transmissão de vírus de
imunodeficiência adquirida (AIDS), a pena será muito mais grave, entre oito a doze anos de
prisão.

O IMPACTO DO CONCEITO DE RAÇA SOBRE AS RELAÇÕES DE GÊNERO


Antes de iniciarmos este tópico, apresento a distribuição por raça da população de
Maputo, capital do país, de acordo com os dados do Anuário de Moçambique de 1940 e o
Censo de 2007:
RAÇA 1940 (%) 2007 (%)
Negra 66,5 95,07
Branca 21,34 0,67
Mestiça 3,0 2,81
Indianos 7,73 0,76
Asiáticos 1,43 0,69

Em Moçambique os negros estão distribuídos em diversos grupos étnicos, de acordo


com Bergh-collier (2007:10) os Makua, os Sena, os Ndau e os Shanganes são os grupos
dominantes, os brancos são europeus - a maioria de ascendência portuguesa-, existem também
os asiáticos de origem paquistanesa que se estabeleceram em Moçambique trabalhando com
pesca e seu comércio e os indianos que trabalham o comércio de roupas.
Ao falarmos de interseções é necessário reconhecermos que os conceitos de classe,
gênero e raça apresentam-se como fatores simultâneos de opressão, para Avtar Brah (2006:
334) a classe foi um importante elemento constitutivo no surgimento do conceito de “negro”
como cor política, mas ela também salienta que tanto negros como brancos experimentam seu

12
gênero, classe e sexualidade através da raça (2006: 345). Já o conceito de raça é um dos mais
difíceis de definir cientificamente, referindo-se ao multiculturalismo Stuart Hall afirma que o
termo raça, como outros relacionados, encontra-se tão discursivamente enredado que só pode
ser utilizado “sob rasura” (Hall, 2003:51). Neste artigo estamos trabalhando com o conceito
de raça social de Antonio Sérgio Guimarães (1999), retomado por Lia Schucman (2012) em
sua tese de doutorado, que vai além da questão biológica ao afirmar que as raças são
construtos sociais baseados numa idéia errada, mas eficaz de uma “superioridade” branca.
Conceitos plenamente existentes no mundo social, produtos de formas de classificar e de
identificar que orientam as ações dos seres humanos (Guimarães, 1999 apud Schucman,
2012:36).
A colonização efetiva de Moçambique começa a partir do século 19, marcada por uma
política economicista de exploração de mão-de-obra, sem nenhum investimento em estrutura,
saúde ou educação, que era fornecida pelas missões religiosas. De acordo com Gabriela Silva
(2007: 54) é só a partir da década de 1930 que o governo colonial implementa uma profunda
modificação no sistema educacional separando negros, brancos e assimilados, visando obter
um controle mais direto sobre a educação da população negra o ensino das línguas nacionais
fica proibido. Termo assimilado era utilizado para descrever os “indígenas” que sabiam falar
o português, em alguns casos também sabiam ler/escrever e tinham uma boa conduta social.

Do ponto de vista dos nativos de Moçambique, adquirir valores culturais


portugueses e rejeitar os tradicionais africanos (ainda que apenas
formalmente, na aparência) apresentava-se como uma pré-condição para a
ascensão social, algo muito valioso num contexto de repressão e desigualdade
e apenasalcançável por uma minoria, dadas as dificuldades impostas pelo
sistema (Wane, 2010: 165)

Para os Comaroff (2010:41) os textos escritos sobre o período colonial mostram uma
cadeia de elementos e revelam um conjunto de argumentos que nos permitem verificar como
se davam as relações raciais em Moçambique durante este período a partir da analise do
sistema educacional, que desde aquela época se mostrava discriminatório, uma vez nas
escolas dos negros não havia estrutura adequada, bem como aulas ministradas por professores
mal preparados, vedando o acesso dos negros ao ensino superior e a postos de trabalho mais
valorizados, privilegiando os filhos da população branca (Silva, 2007: 55). A extinção deste
sistema segregacionista, com escolas para negros e escola para brancos, tem início em 1975
com a independência do país, também é a partir desta época são criadas as primeiras escolas
mistas, para meninos e meninas.

13
En una sociedad estructurada por desigualdades de clase y raciales las
feministas negras tuvieron que movilizarse en dos frentes: por un lado, contra
los hombres negros que las oprimían en tanto que mujeres y, por otro, contra
el racismo de la población blanca que las explotaba y discriminaba. (Stolcke
2004: 91)

As mulheres “indígenas” acabavam sofrendo um duplo preconceito, eram consideradas


inferiores por serem mulheres e por serem negras, ficando evidente que existem algumas
situações de violência e subordinação que atingem majoritariamente as mulheres negras e por
motivações étnicas (Crenshaw, 2002:176).

DESDOBRAMENTOS E POLÍTICAS PÚBLICAS


Como bem apontam Emilio Caccia – Bava e Omar Thomaz (2001:40) os indicadores
sociais são de extrema utilidade para implementação de políticas públicas que levem em conta
o (in)devido acesso das mulheres a instituições como o ensino regular. As políticas públicas
que prevêem a igualdade de gênero têm feito parte da agenda internacional desde a
Conferência de Beijing em 1995, não sendo diferente em Moçambique, uma vez que constitui
um dos objetivos centrais do Governo desde os primeiros dias da Independência.
Moçambique foi o primeiro país africano a receber o alívio da dívida externa, como requisito
elaborou em 1999 as Linhas de Ação para Erradicação da Pobreza Absoluta, um ano depois as
linhas foram transformadas no PARPA - Plano de Ação para a Redução da Pobreza Absoluta
(2000-2004), o seu processo de elaboração foi criticado pelos doadores e pelo movimento
feminista por não ser suficientemente sensível ao gênero. Ao longo dos anos o governo tem
feito várias alterações no plano inicial lançando novas versões do projeto: PARPA I (2001-
2005), PARPA II (2006-2009) e PARP III (2011-2014), desde a sua criação o plano já previa
a participação da sociedade civil e possíveis alterações no projeto inicial. Prevendo-se que o
aprofundamento da discussão sobre o mesmo (no seu todo e partes) prossiga, uma vez que se
trata de um processo de planejamento com o pressuposto de um aperfeiçoamento interativo.
Essa característica permite que seja incorporado novos elementos consequentes da evolução
da sociedade e economia, desde que o objetivo principal – a redução da pobreza absoluta –
não se altere, mas os instrumentos, políticas e metas podem sê-lo à medida que se for
aprimorando o conhecimento sobre as diferentes variáveis. A principal diferença entre a
primeira versão do PARPA e as subseqüentes é que o primeiro enfatiza as ações de curto
prazo, enquanto os demais alargam sua visão estratégica através de ações de médio e longo

14
prazo. As políticas de Moçambique reduziram o número de pessoas vivendo na pobreza
absoluta de 69.4% entre 1996/1997 para 54.1% entre 2002/2003 (Bergh-collier, 2007:26).
As áreas estratégicas de ação são: 1. Educação, 2. Saúde, 3. Agricultura e
desenvolvimento rural, 4. Infra-estrutura básica, 5. Boa governação e 6. Gestão macro-
económica e financeira. De acordo com o texto do PARPA II a seleção dessas prioridades
resultou do diagnóstico dos determinantes da pobreza em Moçambique, dos estudos
direcionados à redução da pobreza (a luz de lições de experiências internacionais) e das
consultas com a sociedade civil e setor privado. Neste artigo daremos maior destaque as
estratégias de ação do PARPA em relação a Violência e Educação, sobre este último aspecto
o plano conjetura melhorar o nível educacional da população economicamente ativa, com
maior destaque para as mulheres que apresentam uma taxa de analfabetismo na área urbana de
46% e na zona rural de 85%. Isto significa que uma criança pobre numa zona urbana tem
maior probabilidade de frequentar a escola do que uma criança não pobre na zona rural,
entretanto, numa zona rural um rapaz pobre tem maior probabilidade de frequentar a escola do
que uma mulher não pobre (PARPA III). Outras ações chave incluem a criação de um
programa de alfabetização de adultos, direcionado particularmente para mulheres das zonas
rurais através de parcerias com instituições religiosas e ONG’s, tendo como modelo o
PASMO - Programa de Alfabetização Solidária de Moçambique9 e a formação de professoras
primárias elevando pelo menos para 45% a proporção de mulheres com magistério. Para
Elísio Macamo (2002) as intervenções humanitárias, o reajustamento estrutural, o alívio à
pobreza, a democratização, a reconciliação, tornam Moçambique em grande parte visível e
compreensível como realidade social. O plano também destaca a relação entre a educação do
chefe familiar e o estado de pobreza da família, esta relação é especialmente forte nas zonas
urbanas e nos agregados chefiados por mulheres. Lembrando que nos países africanos a
matrilinearidade permanece, o poder de máximo de decisão continua nas mãos das mulheres
(Corrêa e Homem, 1977:31). O novo PARP, aprovado pelo Conselho de Ministros em maio
de 2011, também prevê a titulação de terras para as comunidades, especificamente em nome
das mulheres da família. A violência nem é citada na primeira versão do PARPA, surgindo
apenas dentro da área de Boa Governação onde o programa prevê:

Reforçar a capacidade e eficiência do sistema legal e judicial, melhorar a


segurança pública, proteger os direitos e liberdades dos cidadãos, impor o
cumprimento dos contractos e facilitar a resolução de disputas; e o

9 O Pasmo é um programa de origem brasileira, podemos ler mais sobre ele no artigo “Reflexões sobre
alfabetização em Moçambique” de Cristina Martins Fargetti (UNIMEP).

15
desenvolvimento de um programa focalizado para reduzir e conter a
corrupção a todos os níveis. PARPA I

Apesar da violência contra a mulher ser um dos aspectos mais perturbantes da


sociedade Moçambicana, quase não existem estudos sobre esta ocorrência, entre os poucos
dados temos uma pesquisa realizada em 2004 pelo Ministério da Mulher e Ação Social
indicando que 34% das mulheres haviam sofrido agressão física. De acordo com WLSA -
Women and Law in Southern Africa Research and Education Trust (2008) Políticas de
Género e Feminização da Pobreza, em Moçambique o nível elevado de violência estaria
relacionado a um conjunto complexo de condições, como experiências gerais de violência do
colonialismo, da guerra e a perda crescente de controle social dos homens, que usam a
violência como um (último) meio de afirmar a sua masculinidade. O PARP (2011-2014)
estabelece o oferecimento de serviços integrados de prevenção e resposta à violência contra a
mulher, incluindo a expansão e fortalecimento dos Gabinetes de Atendimento, acesso à
justiça, assistência social e psicológica.
Uma explosão de casos de violência contra a mulher em Moçambique provocou
diversas reações de indignação, dando inicio a um processo de discussão das ONGs que
atuam na área de direitos humanos para elaboração de uma proposta de lei contra a violência
doméstica. Tanto que foi aprovada pelo Parlamento Moçambicano a Lei 29/2009 10 que
protege a mulher da violência doméstica. Como falamos anteriormente esta consciência
pública contra a violência representa um grande avanço, mas infelizmente a essência do
projeto foi alterada com a retirada do preâmbulo que justificava o fenômeno da violência
doméstica contra as mulheres, enquanto violência de gênero (Arthur, 2009). Vale registrar que
o projeto de lei era visto pela imprensa e por parte da população moçambicana como
discriminatório, só tendo sido aprovado depois da inclusão de um artigo que prevê
aplicabilidade da lei no caso de agressão ao homem. Por isto é importante que se evite
analisar a lei dissociada do contexto que ela esta inserida, a maneira como a lei funciona é na
pratica tão importante com o seu próprio conteúdo.
Dessa maneira entendemos que a questão da violência contra a mulher devia constituir
uma das linhas de ação do PARPA, porque não bastam apenas ações para melhorar a questão
econômica, elas têm que ser ações interligadas, visando à igualdade de gênero em
Moçambique. No que diz respeito ao fenômeno da feminização da pobreza, verificamos que
as disparidades de gênero, sobretudo nas zonas rurais são notáveis, evidenciando a

10 Aprovação publicada no Boletim da República de Moçambique em 29 de setembro de 2009.

16
necessidade de aprofundamento dos estudos dos perfis da pobreza em Moçambique na
perspectiva do gênero, esperando-se que produzam informações que permitam aperfeiçoar as
políticas públicas neste país.

ENCERRANDO (POR ORA)...


Como base em nossos questionamentos, mesmo que incipientes, propomos uma
reflexão sobre os esforços do Governo moçambicano para erradicação da pobreza, tendo a
igualdade de gênero como estratégia para alcançar este objetivo. Compartilhamos as
perspectivas de análise sustentadas pelo CMI - Chr. Michelsen Institute, instituto
independente com sede em Bergen na Noruega e do WLSA - Women and Law in Southern
Africa Research and Education Trust, ONG que desenvolve pesquisas sobre a situação das
mulheres em países africanos. Os dados levantados por estas instituições que foram
trabalhados ao longo deste artigo demonstram claramente que as mulheres em Moçambique
estão em desvantagem em termos sócio-culturais, políticos e econômicos. O CMI (Tvedten,
Paulo & Rosário, 2009:04) identificou condições externas que tem conseqüências diretas na
pobreza, dentre as quais destacamos o gênero, uma vez que o sistema “altamente patriarcal
de Moçambique” impõe implicações para a pobreza e bem estar das mulheres. Operamos
neste artigo, sobretudo, com o conceito de empowerment (Léon, 2011), que nos orienta a
reconhecer restrições sociais que a categoria está submetida e a necessidade de pensar práticas
sociais coletivas e individuais para reverter essa situação.
Nessa perspectiva de desigualdade de gênero, as mulheres estão altamente susceptíveis
à violência doméstica e ao abuso sexual, dentro e fora da escola, contribuindo para o aumento
da pobreza entre as famílias chefiadas por mulheres (Tvedten, Paulo & Tuominen, 2009:02).
Apesar dos estudos demonstrarem maior independência econômica das mulheres que habitam
em áreas urbanas do que nas rurais, globalmente, contudo, os dados confirmam que há uma
feminização da pobreza em curso no país (Tvedten, Paulo & Montserrat 2008). Essa noção
de uma “feminização da pobreza” serve para reafirmar que em Moçambique as mulheres são
mais pobres do que os homens, e que o crescente aumento da pobreza entre as mulheres está
ligado à feminização da chefia dos agregados familiares (Chant 2007).

A cultura ‘tradicional’ e a religião ainda têm um forte impacto na formação de


casamentos e relações de género (...) Além dos aspectos sócio-culturais
essenciais do parentesco e casamento, a divisão do trabalho e controle dos
recursos económicos é provavelmente a determinante mais importante na

17
formação das concepções de masculinidade, feminilidade e relações de género
em Moçambique (Tvedten, Paulo & Montserrat 2008).

A construção social de homens e mulheres em Moçambique é pautada através de


práticas culturais e religiosas, que transmitem papéis e noções de sexualidade ligadas ao
gênero, dentre quais destacamos o casamento precoce, o analfabetismo feminino e a
associação da feitiçaria/bruxaria as mulheres, podendo ser visto como forma de dificultar o
crescente empoderamento das mulheres. Para Conceição Osório (2007) a pouca contestação e
atuação das jovens à desigualdade, evidencia as limitações da educação escolar como agente
de mudança social, reforçando ao mesmo tempo, a normalidade de um sistema que discrimina
segundo o sexo. Reafirmamos que este estudo ainda esta em fase inicial e que este artigo é um
diagnóstico precoce das políticas públicas que vem sendo desenvolvidas pelo governo
moçambicano, mas já podemos constatar que o problema da igualdade de gênero, pode ser
traduzido pelas dificuldades das mulheres em ter acesso a saúde, educação e inserção no
mercado de trabalho, sobretudo nas camadas economicamente menos favorecidas e rurais.

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