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INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA DA DEPENDÊNCIA SOCIAL,

DA PEDAGOGIA DA SERVIDÃO E AS POTÊNCIAS LIBERTÁRIAS DO ESTUDO

Ciro Bezerra
ciro.ufal@gmail.com

Introdução
A dependência tratada neste ensaio não tem como foco a dependência
de um país em relação a outro desenvolvido ou, mais genericamente, dos
países dependentes do Sul em relação aos países independentes do Norte.
Trata de outro tipo de dependência: a dependência interna de um povo
em relação a si e às suas elites. Mais especificamente, trata dos
mecanismos que criam e reproduzem, continuamente, esta dependência
profunda, sociopsíquica e socioespacial, de um todo complexo com muitas
determinações históricas, geográficas, sociais, culturais, econômicas e
educativas ou formativas. Mas o ensaio aponta também caminhos
possíveis para a autolibertação de um povo tiranizado e demonizado por
suas castas.
De fato, encontramo-nos hoje, no Brasil, numa situação dramática.
Parece que a Caixa de Pandora foi aberta e todos os demônios do fascismo
soltos. O inferno se instaurou e a escravidão do povo brasileiro parece
revigorada por castas sui generis. Marilena Chauí, em várias de suas
conferências e trabalhos acadêmicos, tem nomeado essas castas de castas
dos quatro beis: da Bíblia, da Bala, do Boi e, mais recentemente, dos
Bancos. Jessé Souza chama essas castas de “elites do atraso”. Mas,
independentemente dos nomes que atribuamos a elas, o importante é que
essa estrutura tirânica e desumana vem se perpetuando ao longo da
história brasileira.
Tínhamos uma falsa impressão que essas castas tinham sido
neutralizadas, ou pelo menos contidas, na década de oitenta, com o “fim”
do Regime Empresarial-Militar e a redemocratização. Mas
surpreendentemente elas ressurgiram e iniciaram um golpe em 2014 e
tomaram de assalto o governo do Estado brasileiro, com o golpe
parlamentar, em 2016. Nas eleições de 2018 elas se articularam em seu
conjunto e conseguiram aprisionar o seu maior adversário político e,
pelos meios de comunicação de massa, um fascista, racista, terrorista,
militar e corrupto foi elevado à presidência da República das Castas
Brasileiras.
Desde então, o Brasil foi deslocado velozmente para sua posição
histórica original, na economia mundial, pelo pacto das castas
2

governistas: a de país de economia dependente, exportador de produtos


primários e commodities. Os rostos dessa gente denunciam suas intenções
escabrosas. As figuras públicas, políticas, religiosas, militares,
empresariais não deixam mentir. Basta abrir debates sobre direitos
sociais, direitos humanos, direitos trabalhistas, direitos das minorias,
educação, saúde e desenvolvimento sustentável para o pior
conservadorismo se manifestar.
Dentre tantas atrocidades cometidas e os diversos crimes de lesa-
pátria, como as mortes por asfixia de COVID no Amazonas, o que mais
chama atenção é o crime cometido contra a soberania nacional e a
consciência do povo brasileiro. Isto é, o ataque das castas do atraso ao
sistema nacional de ensino brasileiro, a todas as suas etapas, ciclos ou
modalidades. Fato que endossa a tese da existência de uma geografia da
dependência social, constituída desde os espaçosvivos das populações
escolares e universitárias1. Espaços que parecem sofrer as piores
consequências do Golpe de Estado, de 2016. Este fato desencadeou,
intelectualmente, uma série de curiosidades políticas e sociológicas: como
vivem as populações dos atores pedagógicos (das escolas e universidades)
em seus espaçosvivos? Qual a qualidade da formação dessas populações
escolares e universitárias? Mais precisamente: qual a qualidade da
capacidade de análise e domínio teórico-crítico dessas populações? O que
explica a inércia, acomodação e passividade política das suas
organizações representativas, diante das políticas educacionais,
desencadeadas com os governos golpistas? Ora, houve um gasto público
substancial com a cultura, nos governos do Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB) e do Partido dos Trabalhadores (PT), através da Lei
Rouanet. Por que os gastos públicos com as populações envolvidas com
a cultura, as escolas e as universidades não foram suficientes para
politizar essas populações e contribuir para que elas desencadeassem um
movimento de massas contra o fascismo e a direita mais reacionária que
se manifestou nos últimos cinquentas anos? Se todo esse investimento
em educação, entre 2003 e 2014, não foi suficiente para elevar a
politização das populações de professores e alunos, o que seria capaz de
realiza-la?

1 Como veremos adiante, esta tese encontra fundamentos históricos e


epistemológicos na obra de Etienne de La Boétie, em O discurso da servidão
voluntária.
3

O ataque das castas governamentais ao patrono da educação


brasileira, Paulo Freire, passou a ser sistemático, a partir de 2014. O
Projeto Residência Pedagógica, a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), o Projeto Escola sem Partido e mais a Emenda Constitucional
n.º 95, Emenda do Teto dos Gastos Públicos, que alterou a Constituição
brasileira de 1988 para instituir o Novo Regime Fiscal, a fim de aumentar
o arrocho econômico das classes trabalhadoras, dão o tom do retrocesso
econômico, político e social. E, como consequência, o reposicionamento
do Brasil na economia internacional, como país dependente. Esse
processo é levado a cabo com a privatização de diversas empresas estatais
e de economia mista, a começar pela Petrobrás e a expansão da casta do
agronegócio na Amazônia. Estampam-se os compromissos dessas castas
com o imperialismo estadunidense e o comprometimento da soberania
nacional.
Falar de Independência do Brasil, no Brasil, sendo brasileiro?
Comemorar dois séculos de (In)dependência do Brasil, nas atuais
circunstâncias? Com a realidade que vivemos hoje? Isto nos parece
possível apenas com muita farsa e cinismo, pois a tragédia está posta e a
olhos vistos. Como intelectual cabe refletir e estudar a profundidade
social desta tragédia, nas características das relações sociais
hegemônicas, que vigoram nos espaçosvivos da sociedade brasileira. Pelo
menos nos espaçosvivos de um dos complexos sociais mais relevantes: o
complexo social do sistema nacional de ensino. E esta tragédia
corresponde, no Brasil, à geografia da dependência social e a sua
correspondente “pedagogia da servidão” em La Boétie, “pedagogia do
embrutecimento” dos atores pedagógicos na versão de Jacotot-Rancière,
“pedagogia liberal” na visão anarquista de Francisco Ferre, “pedagogia da
dependência” na nossa perspectiva ou, como prefere Paulo Freire,
“pedagogia bancária”. Essas pedagogias indicam a existência de uma
tradição histórica.
O fundamento da “pedagogia bancária” é o ensino, a ideia de que “o
professor-explicador é capaz de transferir ou transmitir os seus
conhecimentos e os conhecimentos dos trabalhos acadêmicos ou dos
livros didáticos para os alunos” (FREIRE, 1987: 45). Postulamos,
apoiados na tradição da pedagogia libertária, exatamente o contrário. Na
imediaticidade e inofensiva ideia da pedagogia bancária esconde-se,
camufla-se e localiza-se a dinâmica sistemática da tirania e da
dependência materializada no que elaboramos, a partir de Fernando
4

Bárcena Orbe, Milton Santos e Paulo Freire, como Banco Globalitário da


Pedagogia Bancária (BGPB).
Mostraremos, nos últimos itens deste texto, como é possível operar
a ruptura com a “pedagogia da dependência”, a partir da análise de uma
experiência concreta, desenvolvida numa pesquisa realizada no
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), na
Universidade Federal de Alagoas (UFAL), entre 2014 e 2016, usando o
Método Dialético de Estudo da Leitura Imanente (MDELI). A
experiência vivida nesta pesquisa, pelos participantes, é análoga à
experiência do método universal vivido por Jacotot e descrito por
Rancière, na obra O Mestre Ignorante, bem como às experiências das
escolas anarquistas libertárias de Francisco Ferrer e à experiência da
pedagogia freireana no Brasil, América Latina e África.
A ideia de geografia da dependência social, marco categorial
importante neste ensaio, ao qual está profundamente ligada a ideia de
pedagogia da dependência, parece ter sido esboçada pela primeira vez no
século XVI, por Etienne de La Boétie, em seu livro O discurso da servidão
voluntária, publicado postumamente em 1563. Ela aparece inicialmente
para esclarecer como a tirania suprime a liberdade humana, pela
institucionalização da servidão voluntária. A ideia de institucionalização
(sinônimo de dependência), tem algumas referências importantes, embora
dispersas: dos romances de Charles Dickens aos estudos de Goffman
sobre estigmas, passando pelo clássico da sociologia Émile Durckheim,
ou mais contemporaneamente o livro de Jacques Lagroye, Sociologie de
l’institution (2011). Mas nosso conceito de apoio foi revelado no filme Um
sonho de liberdade. Ele abordou a dimensão viva do problema. Trata-se
de conceitos que se complementam nesta análise, pois a geografia da
dependência social é uma forma de institucionalização da geografia da tirania,
que produz e ao mesmo tempo atravessa os corpos das pessoas, de cada
pessoa, que vive suas existências nos espaçosvivos da sociedade, onde a
institucionalização opera na configuração da arquitetura social.
O estudo imanente da geografia da tirania, em La Boétie, nos
qualificou para esboçar a trama da geografia da pedagogia bancária na
educação brasileira, apresentada na forma de um complexo Sistema
Nacional de Gestão Democrático e Ensino Bancário. Estas análises
pretendem elucidar como as castas brasileiras dominam o povo brasileiro,
e como é possível a este emancipar-se do jugo dessas castas. É preciso
advertir que nossa proposição não faz mais do que concordar e enfatizar
a tese defendida por La Boétie, em O discurso da servidão voluntária. Para
5

construir esta possibilidade crítica não é suficiente divergir de


determinadas teorias sociais, mas apresentar uma alternativa concreta,
exequível e viável. Esta é a questão mais importante deste ensaio,
responder como o povo brasileiro pode lutar para conquistar a
independência e a autonomia das castas brasileiras. E será apresentado
nos últimos itens deste ensaio.
Aprendemos com La Boétie que a tirania apenas é possível com o
consentimento dos povos. Logo, a constituição da tirania ocorre
simultaneamente à constituição da servidão, pela supressão da vontade
de ser e viver livre para estudar, e desde os espaçosvivos, no “território
usado”2. Esse consentimento é produzido nas relações sociais, sobretudo
nas formas como os povos se educam e se ensinam. Isto é, se socializam,
se vinculam ou se associam entre si, em seus modos de ser e viver, que
ocorrem, essencialmente, nos espaçosvivos, nas ocupações cotidianas.
Estas posicionam cada pessoa, conforme suas capacidades e horizontes
sociais e pessoais, na sociedade. Tudo isso é uma construção social
comandada, na tirania, pelo governo que administra a tirania, e que
precisa de muitos corpos que servem a esta administração, nos tempos-
espaços, socialmente necessário, para reproduzir a servidão e a tirania.
Mas a administração ou gestão da sujeição apresenta riscos: é que
estas ocupações e posições do corpo social subjugado pela administração,
podem ser contestadas, negadas e até superadas pelos administrados, se
estes deixarem de “cumprir com suas obrigações” e priorizarem a
liberdade de si em ocupações libertárias, e, com isso, passarem a afirmar
o governo de si no presente, agora, nos espaçosvivos. Por que as pessoas
submetem-se à tirania ou ao governo dos outros é explicado pela
institucionalização das pessoas no processo de educação, do ensino e da
pedagogia da servidão voluntária. Em outras palavras: pela
institucionalização das pessoas nos diversos e infinitos espaçosvivos. A
institucionalização da tirania ocorre, simultaneamente, à
institucionalização da servidão voluntária e da pedagogia da obediência
cega e acrítica.

2Milton Santos propõe diversos conceitos à categoria território, em suas diversas


obras. Para este ensaio tomamos o seguinte conceito: “O território é o lugar em que
desemboca todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas
as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das
manifestações da sua existência. A geografia passa a ser aquela disciplina tornada
mais capaz de mostrar os dramas do mundo, da nação, do lugar” (SANTOS, 2011:
11).
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A ideia de institucionalização em “Um sonho de liberdade”


Nos dicionários de sociologia não aparece, em geral, a palavra
“institucionalização”, mas apenas “instituição”. Em alguns deles aparece
a derivação “instituição total”, que remete ao conceito de Erving Goffman
de um sistema isolado, fechado, com uma cultura própria, como as
prisões, os manicômios, os conventos, os internatos militares, etc. Assim
também ocorre nos dicionários de filosofia. Nos dicionários comuns ela
aparece com bastante frequência, com o sentido preciso de ação ou
conjunto de práticas que transforma uma hierarquia de relações em uma
instituição, funcionando com regularidade e regras próprias. Assim, por
exemplo, fala-se em institucionalização da corrupção. Mesmo no livro
anteriormente citado, organizado por Jacques Lagroye, o tema não é a
institucionalização, mas a instituição.
Mais concretamente falando, o que nos interessa aqui é refletir sobre
a institucionalização da pessoa humana, nas sociedades capitalistas. Importa
deslindar as formas sociais que viabilizam as pessoas se relacionarem
umas com as outras, nos espaçosvivos do território usado3. Uma questão
importante nestas relações é analisar os efeitos sociopsíquicos,
subjetivos, da objetividade do processo social da institucionalização.
Acontece que uma das formas hegemônicas de institucionalização,
no mundo moderno, é a escolarização processada nos sistemas de ensino.
Para analisarmos esse fenômeno social nos concentraremos no processo
de formação pessoal, na transfiguração e-ou trans-form-ação das pessoas
em atores ou formas sociais, pois este processo, como veremos adiante, é
o coração da institucionalização da servidão voluntária, tal como
formulada por La Boétie. A institucionalização escolar e universitária, na
modernidade capitalista, tem se revelado como um processo
extremamente desumanizador.
Apesar de haver algumas análises neste sentido4, optamos por tomar
como referência aqui o filme Um sonho de liberdade. A escolha não se deve
apenas ao expressionismo da linguagem cinematográfica, mas nos parece
3 A Escola Francesa de Regulação contribui, de muitas formas, para compreender a
moderna servidão voluntária. Ela também abstrai a categoria institucionalização
para análise, explorando como o compromisso nas empresas fordistas e pós-
fordistas forjam a subserviência do trabalhador. Mas essa escola tem se concentrado
nas crises institucionais e não na institucionalização das pessoas, na sua
transfiguração em coisas ou mercadorias, isto é, profissionais (BOCCI, 2000)
4 Uma análise bem interessante é fornecida por Ivan Illich, Sociedade sem escolas

(2018).
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ser a melhor forma para mostrar que existem muitos espaçosvivos de


formação5. A formação humana não se reduz à sala de aula. Pelo contrário,
é muito mais efetiva em outros espaçosvivos da sociedade.
A ideia é revelada aos nossos sentidos no diálogo entre os
personagens Brooks e Redding, remetendo-nos à atmosfera dos diálogos
platônicos, mas tendo como cenário o espaçovivo da prisão e não o do
Banquete, da Academia, do Liceu ou do Jardim. Os sábios são os
prisioneiros da prisão de Shawshank. Neste lugar os prisioneiros
ensinam-se a si mesmos, uns aos outros. Uns como colegas, outros como
amigos. E em diversos espaçosvivos: no refeitório, no pátio do presídio,
nas oficinas de trabalho, e inclusive quando fazem pequenos reparos na
construção dos prédios do presídio em sol escaldante.
No filme, a institucionalização provoca o suicídio e morte de Brooks,
e, simultaneamente, cena compara os modos de vida na sociedade e no
presídio. O diálogo sobre a institucionalização faz aparecer os
sentimentos vivos alojados na interioridade humana, que achamos
necessário evocar e trazer à luz do dia para pensar com mais vagar sobre
ela. É o que faremos agora: pensar mais vagarosamente sobre os detalhes
do presídio e os diálogos dos prisioneiros do filme Um sonho de liberdade.
A trama do filme tem o poder de revelar a concretude do conceito da
categoria institucionalização. É mágico como o roteiro do filme provoca
esta desvelação, cena à cena, sem pressa, para que possamos ruminar os
seus detalhes moleculares, em cada cela, em cada espaçovivo, onde cada
preso “ocupa-se em morrer e ocupa-se em viver”. Cada cela é um mundo
próprio e singular. O de Dufresne, por exemplo, está cheio de figuras de
pedras por ele artesanalmente trabalhadas, cheio de pôsteres com fotos
de mulheres. E atrás de um deles o espaço-vivo-vazio, do túnel que o leva
à liberdade, num dia nebuloso de chuva, cheio de relâmpagos e trovões.
O conceito de institucionalização ou dependência vai se desdobrando
lentamente, nos detalhes do presídio: no uniforme dos guardas e dos
presos, que uniformizam seus corpos; na alimentação que ingerem e que
padroniza sabores e digestão; no uso da Bíblia como lei, livro que disfarça
o cinismo e a corrupção, entre tantos outros detalhes. Assim se processa
a institucionalização dos corpos e das vidas dos presos e policiais,

5Ivan Illich usa a palavra “ferramenta convivencial” para referir-se a todo espaço
de produção da autonomia, como bibliotecas, em contraposição à escola, produtora
de heteronomia.
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transformados em bichos, para extirpar de suas interioridades as forças


da vontade de ser livre e viver em liberdade.
É preciso prestar atenção para perceber a extensão e profundidade
da penetração da institucionalização ou dependência prisional dos corpos
e nas almas dos que vivem-morrendo no presídio de Shawshank. Esse
processo social revela a institucionalização como acontecimento
sociopsíquico. É preciso perceber como as ventosas da institucionalização
ou dependência, grudam em suas atividades rotineiras e repetitivas,
submetem as pessoas a seus movimentos, isto é, capturam os personagens
do filme e os fixam naquela realidade ficcional, quase real. No
desvelamento dessa trama, dessa descoberta, a câmera que fez as tomadas
das cenas fílmicas denuncia, revela, desmascara, cena à cena, a totalidade
dos sentidos, a multiplicidade de formas sociais e encontros entre presos
e administradores, que dão sentido à institucionalização ou dependências
recíprocas no presídio de Shawshank.
Todas as ações dos prisioneiros, inclusive dos seus administradores:
do diretor e do capitão, dos dirigentes e funcionários da prisão, estão
institucionalizadas. Administradores e administrados são assujeitados às
dinâmicas da institucionalização prisional. Tanto quanto os prisioneiros.
Não há uma alma sem ser institucionalizada e justaposta umas sobre as
outras, umas com as outras, umas contra as outras, personagem à
personagem.
O comando de toda a institucionalização das dependências recíprocas
no presídio de Shawshank encontra-se num livro anunciado pelo diretor,
na recepção dos novos presos: a Bíblia Sagrada. E esse livro tem uma
particularidade no filme. Primeiro, é mais institucionalizado do que
qualquer preso ou funcionário do presídio, uma vez que é apresentado
como a fonte da institucionalização. Ele é apresentado como portador das
leis, normas e regras da prisão. Desta forma, ele justifica todo tipo de
violência e perversidade, cometido pelo capitão Hadley e o staff da
instituição prisional. Livro revelado pelo próprio diretor Samuel Norton
como a lei maior do presídio. Mas embora anunciado como símbolo das
regras prisionais abole estas regras ao esconder um segredo: o
instrumento de fuga, o martelo que fará o Sonho da Liberdade se
transformar em liberdade concreta, a liberdade de Dufresne.
Retiramos e abstraímos o conceito de institucionalização das
dependências recíprocas, da representação fílmica do personagem
Brooks. Ele é o livreiro do presídio, responsável por cuidar da biblioteca.
Portanto, o cineasta James Whitmore personifica a forma social do
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livreiro da prisão. E é esta forma social que é vivida pelo ator. Embora
esse conceito tenha sido criado por uma ficção, uma representação
cinematográfica, compreendemos que ele diz muito sobre como vivemos
na realidade concreta, como nós nos institucionalizamos, numa relação
de si para consigo, vivendo a vida dentro e fora das instituições. E isto
ocorre, sobretudo, nas instituições de ensino. Vale dizer: na tirania e na
servidão, na democracia formal e na dependência social, na geografia da
dependência social, as pessoas são ensinadas e educadas a viverem nestas
situações e condições sociais. Mais grave: elas têm o poder de anular nas
pessoas a vontade de as pessoas serem livres e viverem em liberdade no ensino e
na formação, por exemplo, quando desejam ser profissionais, uma
mercadoria que circula no mercado capitalista do trabalho. Esta vontade
faz-se latente, inclusive, nos Programas de Pós-graduação. Esta é uma
questão sistêmica, territorial, imanente às dinâmicas territoriais do
capital. Ou a destruímos e construímos outra ou submetemo-nos a ela,
não há outra opção! Não se reforma a dinâmica do capital porque ele
domina toda reforma possível desta dinâmica. O que observamos com as
reformas é, sempre, a perpetuação do domínio do capital. Assim, o capital
submete as reformas de suas dinâmicas perversas aos seus ditames,
princípios e diretrizes.
Mas nenhuma institucionalização é, de fato, total e definitiva. Dentre
as cenas mais relevantes que enfatizam as lacunas e temporalidade
relativa desse processo, destaca-se aquela em que o contador Dufresne
compartilha uma música – As bodas de fígaro, de Mozart –, com todos os
prisioneiros e eles ficam ali, no pátio do presídio, imóveis, hipnotizados e
arrebatados por aquela melodia. De repente o pátio do presídio, o
dormitório dos guardas, a mercenária dos presos de Shawshank vira
Woodstock ou concerto de música clássica, ao ar livre. E as potências
vivas, latentes, da interioridade humana, são despertadas como são
despertadas as larvas de um vulcão numa explosão em chamas.
Impossível tentar conter essas forças vulcânicas por qualquer força
externa. Elas são indomáveis. Não há meios que possam contê-las. Elas
partem correntes, independentemente de sua espessura. É a mesma força
que faz os povos em revolução bradarem: “viva a Revolução!”,
“trabalhadores de todo o mundo: uni-vos”.
A música, compartilhada por Andy Dufresne, no presídio de
Shawshank, muda completamente os rostos, olhos e sentidos dos
prisioneiros. Muda os semblantes de seus rostos provocada pelas foças
despertadas pela linguagem da música. Os semblantes dos prisioneiros
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expressam paz e contemplação. Por um instante sentem suas


humanidades restabelecidas. E só se consegue combater esta “potência
orgástica” com violência. O que num presídio é previsível. O ato de
compartilhar a música com os prisioneiros, numa invasão surrealista ao
pátio do presídio e em diversos espaçosvivos, levou o responsável à
solitária. Andy Dufresne foi, então, condenado, mais uma vez, à solitária.
Era preciso anular com a mesma intensidade de dor o a intensidade do
prazer que Dufresne pode desfrutar. Mas todas as pessoas presentes no
presídio naquele instante sentiram o mesmo furor, foi um autêntico gozo
coletivo. Esse acontecimento foi assunto corrente em muitos encontros
entre os presos, em muitas conversas ao longo dos anos, após a fuga de
Andy Dufresne. Ele deixou o seu ser no presídio. Alguns presidiários,
certamente, levarão consigo aquele sentimento por toda a vida.
A música despertou a esperança que se guardava em Dufresne: “em
sua mente e em seu coração”. E com a esperança é despertada a vontade
de ser e viver em liberdade, vontade que fez Dufresne se ocupar com a sua
fuga durante aproximadamente vinte anos. Escavando um túnel com um
martelo de pedra, de 6 a 7 centímetros.
Incorporamos, neste ensaio, o conceito de institucionalização ou
imbricações de dependências sociais, vivido por Brooks, porque ele nos
faz ver e sentir, na alma, os nexos causais de nossas existências, nas
concretas instituições de ensino, com seus diferentes modos de vida. Os
espaçosvivos escolares e universitários são semelhantes aos espaçosvivos
do presídio, onde viveu o personagem Brooks – que acabou se suicidando
porque se sentia livre no presídio de Shawshank e prisioneiro quando
livre na sociedade, trabalhando como empacotador em um supermercado.
Depois de tantos anos, a vida só fazia sentido para ele, dentro do presídio.
Estava institucionalizado e absolutamente integrado e dependente na
prisão do presídio. Afinal, toda e qualquer instituição é uma prisão!
As cenas vivas e vividas por Brooks, endossam a tese defendida neste
ensaio: as formas sociais, projetadas pelas relações sociais, nos
espaçosvivos, e personificadas pelas pessoas, convertem-nas numa função
administrativa e administrada. Numa posição social na sociedade. Assim
as pessoas são posicionadas, numa hierarquia de correlações sociais,
administradas e geridas pelos agentes administrativos e administradores.
Nesta hierarquia as pessoas, cada qual em seus lugares, cada qual em suas
rotinas, são institucionalizadas nas atribuições que são obrigadas a fazer,
de acordo com os cargos e funções que ocupam no sistema prisional. Os
policiais controlam, supervisionam e os presos executam os serviços.
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Certamente, para controlar e supervisionar são exigidas competências,


habilidades e experiências, desenvolvidas na profissionalização policial e
militar. Tipo exemplar de institucionalização capitalista. É o que se
observa no filme.
Em cada função administrativa é o que ocorre. Esta ocupação, diz-
se, ocorre por um critério legítimo: o mérito. Estrutura-se uma
organização de funções de comando, supervisão e execução. Obediências
a regras, a normas, a rotinas e a ocupações impessoais, despersonificadas,
operadas por tecnologias incorporadas aos meios e instrumentos de
trabalho, compatíveis com as técnicas da administração e com os cargos
e funções encadeados, uns dependendo dos outros, para fazer a instituição
e a institucionalização funcionarem como máquinas.
Os humanos são acessórios das ocupações institucionais, destas
máquinas administrativas. Toda tirania e crueldade passam a ser
atribuídas ao sistema, sistema de autômatos, como se não tivessem
responsáveis que o comande e o põe em movimento e em funcionamento.
Mas apesar de totalitário, sempre haverá, nesse sistema, potências
latentes agindo em sentido contrário, procurando brechas para se
realizar, se atualizar e se exteriorizar. Sempre haverá os recalcitrantes,
que podem romper com a lógica e a dinâmica do sistema administrativo,
ainda que movido pelas tecnologias digitais, informatizadas e
internetizadas. Mesmo no sistema de gestão “democrática” do ensino os
atores pedagógicos podem estabelecer encontros pedagógicos baseados
e fundados no princípio da amizade. Não foi isto que ocorreu no presídio
de Shawshank entre Andy Dufresne e Redding? Uma relação pautada
nas potências da amizade e da esperança, que concretizou o sonho de
liberdade, quando a liberdade deixou de ser um sonho para ser vivida
como experiência.
Pois então ... A amizade, a esperança e a vontade de ser e viver em
liberdade revolucionaram as formas sociais daqueles personagens e seus
espaçosvivos, e produziram a potência do orgasmo. Incrível a imagem da
cena onde a potência do orgasmo se expressa: nos braços abertos de um
presidiário, Dufresne, ali parado na chuva, sob a fúria de um céu
revoltoso, relampeando e trovejando, após atravessar um longo percurso,
quase um quilometro de canos cheios de merda. Vencido todo esse
percurso, os braços abertos na chuva diluviana é o símbolo maior da
conquista humana e pessoal da vontade de ser e viver livre, libertação da
forma prisional de institucionalização das pessoas, que acumulou na
história da humanidade toda excrecência desta sociedade que a criou.
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Representa também a luta e a vitória contra a institucionalização durante


aproximadamente cinquenta anos, até conseguir se livrar,
simultaneamente, da tirania e da servidão.
A expressão da potência do orgasmo ocorre em uma cena
absolutamente incrível e arrebatadora: na concreção da fuga constituída
antes na imaginação, no pensamento, no em si para consigo ou no em si,
de si, por si e para si, de cabo a rabo, em todos os seguimentos da fuga, por
uma e mesma pessoa, com a ajuda de uns poucos amigos. Essa potência,
latente, em Andy Dufresne, desencadeia a (des)isnstitucionalização ou
independência do prisioneiro Dufresne, de si para consigo, independência
do ex-presidiário, que para se (des)institucionalizar e se tornar
totalmente independente precisou desfazer todas as marcas e cicatrizes
do presídio, impressa em seu corpo e em sua alma.
Dufresne, portanto, é um presidiário singular, consegue conquistar
a liberdade do lugar e, ao mesmo tempo, se libertar das marcas
psicológicas, impressas pelas rotinas e atividades que se ocupava no
presídio. É o que parece evocar, de dentro de si, e anunciar para nós, aqui
fora do seu interior, aqueles braços abertos na chuva torrencial, que são
erguidos pelas forças inconscientes das pulsões do Id, que proporcionam
o prazer de viver em liberdade, quando o presidiário se liberta de todos
os traços prisionais, na profundidade requerida. Liberta-se no em si, de si,
por si e para si. E, neste, de toda tirania e dependência vivida no presídio
de Shawshank.
Atenção: a sua libertação ocorre desde o presídio. Mas também nos
espaçosvivos do seu interior, desde dentro do seu corpo, num processo
autoeducativo e autopedagógico, comprometidos com a vontade de ser e
viver livre. A isto chamo giro reflexivo da pedagogia libertária. Foi este tipo
singular de formação em si, de si, por si e para si que o impediu de desistir
de si no presídio de Shawshank, mantendo as chamas dos desesperados
queimando em seu interior: a vontade da liberdade incandescente,
enquanto sua vida se esvaía nas rotinas e ocupações prisionais. Esta luta
de si para consigo, luta reflexiva – ver os estudos de Ana Caetano (2013a,
2013b, 2012 e 2011) sobre reflexividade, em seus estudos orientados pela
sociologia em escala individual –, não consentiu que Dufresne permitisse
ser institucionalizado pelos muros, refeitórios, cela e demais espaçosvivos do
presídio, impediu que o seu ser dotado de uma impressionante vontade
de ser e viver livre fosse suprimido pela geografia da tirania ou geografia
da dependência social.
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A institucionalização da tirania e da servidão voluntária


A ideia de institucionalização ou dependência social, como a
empregamos aqui, também pode ser encontrada em uma outra obra de
arte, no livro O discurso da servidão voluntária, de La Boétie, onde o
escritor trata da “pedagogia da tirania” e da “pedagogia da servidão”.
Esta, aparece como uma potência que domina e enlaça a interioridade do
subalterno e passa a fabricar seus desejos, vontades, paixões, além de
outras forças reflexivas, que incidem nas atividades e ocupações
cotidianas e, portanto, no “em si, de si, por si e para si” das pessoas. Em
Paulo Freire esta potência da servidão atua na pedagogia bancária, para nós
pedagogia da dependência. Nomes para um mesmo ser ou modo de existir.
O ensino, há muitos séculos, vem reproduzindo a servidão, a
opressão, a dependência dos professores-profissionais-bancários e dos
alunos-bancários, no âmbito dos Sistemas Nacionais de Ensino Bancário.
A pedagogia freireana, no entanto, não consegue captar a servidão e a
dependência dos atores pedagógicos, imanentes às dinâmicas territoriais
do capital, justamente por não identificar esse núcleo mais profundo do
corpo oprimido pelas linguagens capitalistas, que é a opressão de si para
consigo, a opressão em si, de si, por si e para si, imanente ao ato do ensino
bancário. E como não consegue identificar tal “giro reflexivo”, não tem
como oferecer alternativas aos atores pedagógicos, para que se libertem,
com suas próprias mãos, forças e meios da tirania e da servidão, da
dependência e da heteronomia, e mesmo do giro reflexivo da pedagogia
bancária. Os atores pedagógicos são os únicos capazes de promoverem o
“giro reflexivo” que os libertem da opressão, da servidão e da
dependência, por si mesmos. O que nos leva à seguinte questão
norteadora: como fazer a formação de si e fazer operar nela o giro reflexivo
libertário?
O ato pedagógico revolucionário é aquele que consegue despertar as
forças libertárias da interioridade humana, ainda que as pessoas
coexistam no mesmo espaçovivo das forças conservadoras, junto e em
presença das forças que instituem o ensino bancário. Isto é, instituem as
dependências recíprocas entre gestores, funcionários, técnicos escolares,
professores, alunos e responsáveis.
Em La Boétie o ato pedagógico libertador deve manter viva, nas
pessoas, a vontade de ser e viver em liberdade no estudo, para, justamente,
estudiosos e estudiosas estudarem e ensinarem a ser reciprocamente
livres. Ele nos oferece alguns exemplos de como isso é possível. Nos
14

conta, por exemplo, que os Venezianos nasciam e eram “criados de tal


modo que [o modo de viver e a filosofia de vida que praticavam] não
reconheciam nenhuma ambição senão a de serem melhores para vigiar, e
mais cuidadosamente tomar conta, do mantimento da liberdade” (LA
BOÉTIE, 1987: 21).
La Boétie enfatiza, entusiasmado, que os Venezianos eram
“ensinados e formados desde o berço” para não abrirem mão de sua
“liberdade e fruição”. Os Venezianos, diz La Boétie, tão profundamente
assim formados, eram absolutamente diferentes das pessoas “formadas”
nas “terras daqueles que chamamos grão-senhor”. Nessas “terras” as
pessoas “nasciam para servir o grão-senhor e que para manter seu
poderio elas abandonavam [suas próprias] vidas”6. E La Boétie critica a
formação nas terras do grão-senhor com severidade, porque ela fortalece o
tirano e a pedagogia da servidão, e anula a vontade das pessoas viverem
em liberdade. A diferença de uma formação para outra é semelhante a
“sair de uma cidade de homens [Venezianos e] entrar num parque de
bichos [inumanos]”. Conclusão: “os homens são como as criações
[formação] os faz7” (LA BOÉTIE, 1987: 21).
Há outros exemplos no livro sobre essas diferenças. Um dos mais
significativos é o de Licurgo. Conta La Boétie que ele também se
preocupava com o giro reflexivo pedagógico libertário, objetivando manter
acesa a vontade de ser e viver livre dos Lacedemônios. Com suas leis e
governo Licurgo “criou e formou8 tão bem os Lacedemônios que cada um
deles preferiria morrer mil mortes a reconhecer outro senhor que a lei e
a razão” (LA BOÉTIE, 1987: 21, grifos nossos). Portanto, é a formação de
si, o trabalho em si, de si, por si e para si, a atividade humana sensível, que

6 Esse tipo de “formação”, “formação em si, de si, por si e para si”, que pressupõe o
giro pedagógico reflexivo, é exercitado no momento “diário etnográfico” do método
de estudo da leitura imanente, que explicaremos ao final deste ensaio, no relato de
uma pesquisadora iniciante.
7 Notemos que La Boétie não faz diferença entre “criação” e “formação”. Mas estas

categorias apresentam sentidos históricos distintos. Formação se aproxima mais da


filosofia clássica e criação da teologia da Idade Média.
8 Criação e formação possuem em La Boétie o mesmo significado linguístico e

epistêmico. A perspectiva criacionista difere do sentido dado por La Boétie à criação


porque não a aproxima da formação. Mas pensar que na formação de si tem-se a
liberdade de criar e recriar nossas pessoas, guarda a tese do giro reflexivo libertário,
sugerido por Bourdieu em o Esboço da Autoanálise e pela sociologia em escala
individual praticada por Ana Caetano.
15

desperta as forças da vontade libertária e forja a emancipação humana do


jugo e da servidão.
Queria mencionar um último caso tratado no livro de La Boétie que
envolve o giro reflexivo pedagógico libertário. Os espartanos haviam
matado o pai de Xerxes, mas para diminuir sua ira enviaram “dois de seus
cidadãos” para morte, permitindo a Xerxes que “fizesse deles o que
quisesse”. Hidarnnes, administrador de Xerxes,
os recebeu com honrarias e grande amabilidade, e após
várias palavras [...] perguntou-lhes porque recusavam
tanto ‘a amizade’ do rei. Vede espartanos, disse o
administrador do rei9, através de mim reconhecei como o
rei sabe honrar os que o defendem e pensei que se dele
dependêsseis faria o mesmo convosco; se dele dependêsseis e se
ele vos tivesse conhecido não há dentre vós quem não seria
senhor de uma cidade da Grécia (LA BOÉTIE, 1987: 22,
grifos nossos).

Aqui, neste pedaço de texto, já aparece os primeiros sinais da


geografia social da dependência. Uma organização hierárquica, estruturada
em dependências recíprocas, na qual as pessoas são posicionadas em
funções administrativas. Estas funções são encadeadas de tal forma que
uma depende da outra, constituindo uma estrutura hierárquica de
dependências entrelaçadas pelos cargos, funções e papéis, resultando
num mecanismo sincrônico, uma máquina em que cada peça põe em
funcionamento toda engrenagem. As pessoas não apenas se sujeitam a
este mecanismo, a esta ordem socioadministrativa maquínica, mas a
clamam, a veneram, a desejam. Esforçam-se em socioterritorializá-la,
convencendo os outros de suas proezas.
Hidarnnes, o administrador de Xerxes, “senhor de uma cidade da
Grécia”, “aceita” ser “dependente” desse maquinismo em recompensa dos
benefícios de que desfruta. Ele tem plena consciência de sua servidão. Apesar
de administrador sabe que é subalterno. Mas aceita de muito bom grado sua
dependência e servidão, naturalizada por Hidarnnes. Mais do que isso.
Na medida em que tenta seduzir os espartanos a abrirem mão das suas
liberdades para servir a Xerxes, o administrador age territorializando o
reino da servidão de Xerxes, geograficizando as relações de dependência,
isto é, seu compromisso é fortalecer o império da servidão e dominação

9Que hoje bem poderia se configurar como o gestor “democrático” do sistema


nacional brasileiro de ensino bancário.
16

da realeza, o sistema socioespacial das dependências recíprocas no


reinado de Xerxes. Uma geografia da dependência social10 que apenas pode
ser possível com o agenciamento da dependência social de todos os
administrados, e por meio de uma pedagogia da servidão. O que é
perfeitamente operado pelo sistema de subalternos administrados pela
gestão imperial11.
A tirania atinge a alma e a espiritualidade, e produz a vontade de
servir. E se as pessoas, assim educadas e ensinadas, desde o nascimento,
promovem e fortalecem, em si e por si mesmas, a pedagogia subalterna
de si para consigo, demolem, mesmo sem ter consciência plena que o
fazem, a vontade de ser e viver em liberdade no mundo e com as pessoas.
Mas La Boétie é um humanista esperançoso e acredita que “humanos
mais bem-nascidos, que sentem o peso do jugo, e não podem se impedir
de sacudi-lo”, acabam se rebelando, como Dufresne o fez em Um sonho de
liberdade. Mas numa sociedade, o ato individual e isolado, de uma pessoa,
é insuficiente para superar a educação e o ensino da tirania e da servidão
em massa. Apenas o “estudo”, regular e sistemático, praticado com
método apropriado pelos atores pedagógicos, que participam da
institucionalização do ensino bancário, é capaz de manter vivo, nos
espaçosvivos escolares, universitários e nas residências, este sentimento
e vontade de ser e viver em liberdade.
Aqui se coloca, de forma evidente, o estudo como despertador das
potências libertárias. Talvez as forças e as potências libertárias do estudo
sejam as únicas que dispomos para lançar mão de imediato, no presente
de nossas existências, e em quaisquer circunstâncias, objetivando lutar e
subverter a pedagogia da tirania e da servidão voluntária, exercidas pelos
outros e por nós mesmos, sobre nossa vontade de ser e viver em
liberdade.
Como motor da formação de si, o estudo potencializa o agir reflexivo
pedagógico libertador, no encontro entre estudiosos e livros. Livros são
obras de arte, produzidos por escultores e engenheiros de palavras,
sentimentos e linguagens, referenciados nos mundos que compõe o
10 Na expressão de desejo: “se dele dependêsseis”, o administrador de Xerxes tem plena
consciência de sua dependência neste desejo: é senhor idealmente e servo realmente, como
todo e qualquer gestor escolar contemporâneo, que gere e é gerido pelo sistema de
administração escolar e universitário. Em tal expressão que informa o desejo à
dependência denuncia a servidão do administrador.
11 Sistema que administra administradores e administrados, ambos subalternos ao

sistema.
17

universo, mundos que os escritores têm conhecimento em suas


existências. Com suas linguagens próprias, os livros são criados pelo
trabalho intelectual dos humanos, para compartilhar, justamente,
sentimentos, linguagens e mundos.
O estudioso, o intelectual, os humanos dotados de “entendimento
nítido e espírito clarividente” são um problema e um perigo para toda e
qualquer tirania. Porque eles “não se contentam” em viver sem a
liberdade de estudar, pensar, questionar, filosofar, “fazendo com as suas
mãos suas próprias cabeças”. Eles estão condenados a se ocuparem “em os
polir [regularmente] com o estudo e o saber”. “Polimento” que exige,
além do tempo socialmente necessário, tempo livre, gasto em ocupações
comprometidas com a formação de si, formação de si para consigo, que
mantem viva a vontade de ser e viver livre, para, recursivamente, se fazer
livre no estudo, exercitando-se no giro reflexivo da pedagogia libertária.
Disto têm consciência os tiranos, como bem sabe La Boétie.
Descobrimos até aqui, com La Boétie, os pressupostos da dialética
tirania-servidão. Aquilo que é a base e fundamento da vontade de servir:
a formação da vontade de servir, de si para consigo, até fazer o
sentimento aí gerado inclinar o corpo ao senhor, para servi-lo
naturalmente, como gesto que reconhece a nobreza e o respeito ao
senhor. A formação desta vontade de servir voluntariamente ao tirano
exige frequência e tempo para virar disposição psicológica, subjetiva e
costume. Contra esta formação pedagógica, para subvertê-la e superá-la,
La Boétie apresenta a ocupação com o estudo, ocupação abominada pelos
tiranos do século XVI e de todos os tempos e espaçosvivos históricos.
Vejamos agora como La Boétie descreve a institucionalização da
geografia da tirania, que é uma particularidade da geografia da
dependência social. A estrutura hierárquica do poder tirânico (que
pressupõe a criação de dependências reciprocas e hierarquizadas em uma
ordem social e institucional), a máquina administrativa da tirania, são as
bases para a institucionalização das pessoas. La Boétie também registra
como a tirania funciona e cuida da institucionalização. Junto e subjacente
a esta organização institucional há os espaçosvivos, os lugares sociais e
as posições sociais nesses lugares, onde a institucionalidade ou
dependência opera, isto é, opera na fundação do edifício da tirania. Em
sua arquitetura social. Há, assim, uma engenharia socioterritorial da
tirania. Seu objetivo é se apropriar do valor de uso das pessoas. E o faz
mediado pela tirania da máquina administrativa. Paratanto, é necessário
que as pessoas personifiquem formas sociais dotadas de servilidade,
18

subserviência e subalternidade, desde os espaçosvivos onde elas vivem


concretamente.
O processo de institucionalização da tirania e da servidão é também
um processo simultâneo de desumanização e coisificação das pessoas
humanas. Isto ocorre na medida em que a pessoa personifica o ser tirano
ou o ser subalterno. Seres imbricados em vínculos e relações sociais.
Imbricações que ocorrem nos espaçosvivos. É deste modo que as pessoas
se modificam e se transformam, na personificação da forma social tirano
e na forma social subalterno ou servo.
Corpos, percepções e sentidos humanos são moldados nos modos de
viver e existir, no processo de personificação das formas sociais pelas
pessoas. O tirano, além de ser tirano para o outro é tirano para si. Neste
processo de sociabilidade o tirano se faz em si, de si, por si, para si, tirano.
O giro reflexivo pedagógico é uma relação de si para consigo, não se
reduz ou se confunde com a interação Eu-Tu e Eu-Outro. A formação de
si pressupõe a política de si, a relação autoreflexiva, autoanalítica, entre
Eu-Eu. Disto decorre que nenhuma pessoa pode fugir ou se furtar a esta
operação reflexiva, recursiva e singular. Nenhuma pessoa pode evitar ou
driblar o giro pedagógico reflexivo, que afirma a relação de si para
consigo. E este ato reflexivo é formativo, pedagógico e educativo. Mas
esse giro não fortalece ou legitima a “formação” profissional
comprometida com a inserção, dos assim qualificados, no mercado de
trabalho. O giro reflexivo pedagógico libertador é comprometido com a
formação de si e a política de si. Na formação de si, comprometida com o
giro reflexivo pedagógico libertador, mantem-se desperta a vontade de
viver livre como estudioso. É uma afirmação de uma identidade
(des)mercantilizada. O fato é que todos vivemos sujeitos a esta regra
sociontológica. As sociedades e grupos sociais se afirmam assim e dão
continuidade ao ser social desta forma. Se ocorre mudanças em alguma
proporção significativa neste giro pedagógico reflexivo, as sociedades e
os grupos sociais entram em crise e correm o risco de se desfazerem e
desaparecerem, na territorialização de novos vínculos sociais.
Considerando a postulação acima, podemos dizer que o tirano o é de
si para consigo, junto com os outros que o servem, nos espaçosvivos onde
estes existem concretamente. É como o tirano se move e, ao se mover,
move um conjunto de pessoas, e move até a estrutura de uma sociedade
inteira. O giro pedagógico reflexivo instaura uma dinâmica social desde
os espaçosvivos. E esta dinâmica é educativa, pedagógica ou formativa.
Ela conserva, inventa e destrói modos de vida. Provoca efeitos na
19

institucionalização e na personificação das formas sociais. Confunde-se


com a institucionalização porque é um dos seus componentes. E, como
tal, é instituinte na reprodução sociometabólica do ser social. Esta é uma
dinâmica que se institucionaliza territorialmente, nas diversas escalas,
nos reinos e governos tirânicos. As pessoas se institucionalizam no
processo de personificação das formas sociais.
O núcleo da tirania e da servidão, evidenciado por La Boétie, é a
relação de si para consigo. E este giro reflexivo envolve o corpo, a
linguagem e a formação de si das pessoas. O que pressupõe a posição das
pessoas na geografia social, nos espaçosvivos, e da linguagem social que
legitima a posição de cada um posicionado nestes espaços. A posição
social, portadora de linguagem singular, desperta a vontade das pessoas
desejarem, intransigentemente, essa posição. E não é um simples desejo,
mas um desejo determinado, ardente e fervoroso. Este só é possível de
ser despertado, na interioridade do corpo humano, pelas linguagens, em
conexão com outra geografia, a geografia dos sentimentos humanos, das
emoções, das pulsões e dos afetos, construída na convivência das pessoas
nos espaçosvivos, num longo processo educativo e formativo12.
A institucionalização das formas sociais projetadas pelas relações
sociais no ensino, é portadora de pedagogia correspondente, escolar e
universitária, imanente a esta institucionalização. Na tirania esta
pedagogia é a pedagogia da servidão e da dependência, chamada por
Paulo Freire de pedagogia bancária. A pedagogia bancária oprime
formadores e formandos. A opressão da pedagogia bancária oprime quem
ensina e quem aprende, o tirano e o servo, o educador e o educando, o
professor e o aluno. Não é unilateral ou linear: o caso de apenas o tirano
oprimir o servo ou do professor oprimir o aluno. Por quê? Porque na
formação existe o giro da pedagogia reflexiva. Para o professor oprimir
o aluno ele primeiro tem que se profissionalizar, tem que se fazer, fabricar

12 O que se tem em mente aqui é a profissionalização: a formação profissional,


portadora de linguagens técnicas, tecnológicas e científicas, particulares. Porque a
profissionalização, hoje, é o que tem despertado a vontade e o desejo de bilhões de
pessoas, senão de todas as pessoas no planeta, de se transformarem em profissionais.
Não há aquele ou aquela que almeje certificados profissionais emitidos por
instituições de ensino reconhecidas pelo Estado, custe o que custar. A
profissionalização reduz a totalidade da vontade humana à vontade de ser um
trabalhador qualificado. Pressuposto para ganhar um bom salário e consumir. No
neoliberalismo, a vida inteira reduz o desejo e a vontade dos humanos a isto:
consumir, consumir, consumir!
20

ou se trans-formar, pedagogicamente, em professoropressor. Logo, a


profissionalização é, simultaneamente, um processo de
institucionalização da autoridade intelectual do ser professor e da
supressão da autoridade intelectual do ser estudante. E, por ser assim, a
institucionalização do ensino, que se objetiva na profissionalização,
oprime quem ensina e quem aprende. A pedagogia bancária é,
simultaneamente, institucionalização de corpos e almas, das linguagens
e dos sentimentos imanentes às formas sociais personificadas pelas
pessoas. Daí que pensar num processo de (des)institucionalização ou
independência pedagógica, que implica na territorialização e
internalização da pedagogia libertária pelo estudo, conduz a pensar numa
revolução social, e radical, na geografia da dependência social. Na
reconfiguração dos espaçosvivos nesta geografia, por ocupações e
atividades humanas sensíveis libertadoras e revolucionárias dos grilhões
da civilização capitalista. Implica na reinvenção das linguagens
hegemônicas, socializadas e usadas pelas pessoas, em todos os
espaçosvivos, através das quais as pessoas fazem-se formas sociais.

Institucionalização da geografia da dependência social


A geografia da dependência social, fenômeno imanente às sociedades
onde imperam desigualdades, conflitos e lutas de classes, tem,
impreterivelmente, a sua gênese, base e fundação nos processos de
dominação dos espaçosvivos. Vivos porque as pessoas, nos seus afazeres
cotidianos, lhes emprestam suas vidas e energias, potências e forças
interiores, que compõem a interioridade humana. Esses espaços existem
espalhados nos diversos complexos sociais das sociedades modernas.
Nesses espaços atuam as forças de dominação e opressão, cujos efeitos
mais agudos são as marcas e traços do que estamos nomeando de
geografia da dependência social. Vale dizer, dependência de populações
inteiras à uma minoria independente. Por exemplo, as castas que governam
a sociedade brasileira. Todavia, suspeitamos que são também nestes
espaçosvivos que podemos encontrar as forças e energias sociais,
libertárias, descolonizadoras e emancipadoras, que podem desbaratar as
dinâmicas territoriais que engendram as dependências geográficas do
povo brasileiro. A questão é: como isso é possível?
Se há geografia dependente, forjada pelos trabalhadores, geografia
do trabalho, é porque há geografia independente, forjada pelos
capitalistas, geografia do capital. Estas geografias determinam-se
21

reciprocamente. Uma é a contraface da outra, embora simetricamente


contrárias e opostas. Uma comanda, dirige e governa enquanto a outra é
governada. Mas há uma outra geografia: a geografia das classes médias.
Esta geografia é menos dependente da geografia do capital e mais
independente do que a geografia do trabalho, no âmbito da geografia do
capital.
A geografia das classes médias é uma geografia polimórfica e
ambivalente. Por isso mesmo, são muitas as identidades que se expressam
nesta geografia, provocadas, por exemplo, pela elevada e constante
mobilidade espacial, que variam muito no tempo.
Se considerarmos o conceito de identidade formulado por Milton
Santos (2011, p. 14) – “identidade é o sentimento de pertencer aquilo que
nos pertence” – podemos admitir que “o sentimento de pertencimento”
das pessoas de classe média, nos espaçosvivos onde existem, é menor se
comparado ao mesmo “sentimento de pertencimento” das classes
burguesas e proletárias. Além disso, a geografia das classes médias é
dotada de espaçosvivos muito diversificado.
As classes médias, como todas as classes, forjam suas geografias, seus
espaçosvivos, suas paisagens geográficas. Paratanto, basta as pessoas
viverem, porque a vida transcorre nos espaços humanizados, no
território. Elas configuram uma arquitetura socioespacial singular, nos
espaçosvivos onde existem. A morfologia das geografias das classes
médias é singular, basta observar os espaçosvivos, urbanizados, onde elas
existem, completamente diferentes das populações proletarizadas e dos
condomínios das elites burguesas. Muitas vezes, os habitantes das
geografias das classes médias vivem a experiência de geografias
paradoxais: geografias que poderíamos nomear de “emergentes” e
“decadentes”13.
A dependência e independência podem ser observadas nas
configurações da geografia social, isto é, na transformação social dos
espaços naturais, e mesmo na transformação dos espaços sociais. Espaços
conexos, encadeados, coexistentes. Essas mudanças resultam de como o

13Estas reflexões têm apenas a intenção de esboçar e delinear, metodologicamente,


e em linhas gerais, uma definição plausível para trabalharmos conceitualmente à
categoria geografia da dependência. E enfatizar as realidades, heterogeneidades e
descontinuidades da geografia da dependência. A descrição empírica e concreta
desta forma de ser, desta categoria, exige pesquisa empírica. Mas para este ensaio
tal pesquisa não é necessária porque objetivamos apenas uma reflexão
metodológica.
22

território é socialmente apropriado e usado, de como as pessoas se fazem


e refazem nos espaçosvivos, instituídos, instituintes e regulados.
Os governos orientam e priorizam determinadas relações sociais,
determinadas estratégias de sobrevivência, justamente para se
viabilizarem e conservarem as sociedades que governam. Para governar,
o capital, usando os meios de comunicação de massa, preenche o tempo
livre com ocupações que provocam a alienação da vida. E, nestas
ocupações, a vida é banalizada. Consegue-se convencer, e as pessoas
consentem serem convencidas. Convencidas de que no tempo livre estão
“livres para não fazerem nada”, não se ocuparem com qualquer atividade
laboral, mesmo com as artes, as “atividades superiores”. Neste
posicionamento o ócio é praticamente convertido em comer, beber,
consumir drogas, ouvir músicas, assistir televisão, jogar e se divertir, isto
é, viver para o lazer capitalista.
Tempo livre não é tempo de estudar. O estudo é concebido como
obrigação. E, como tal, deve ser restringido as atividades que se realizam
na escola. Mesmo nesta o estudo é restringido às atividades que se
realizam em salas de aula. Na hegemonia do capital fictício e financeiro
estudar é perda de tempo, porque tempo é dinheiro! Eis a razão de ser
dos banqueiros e de sua ideologia: a especulação.
O “território usado”, os espaçosvivos usados, em sociedades
complexas, exigem governo e governamentalização, formas legítimas de
distribuição de poder e riquezas. Em sociedades desiguais, o tempo livre
existente, disponível e concretamente desfrutado pelas pessoas, é alvo de
intensas lutas e disputas.
No capitalismo, as geografias sociais da dependência e da
independência são exteriorizações reais de como o capital se apropria dos
espaçosvivos. Paradoxalmente, independente das contradições entre
essas geografias, elas formam uma unidade. A geografia do capital se
caracteriza pela integração das diversas geografias, o que lhe facilita
dirigir e dominar as dinâmicas territoriais. À territorialização do capital
corresponde, assimétrica e negativamente, a apropriação, simultânea e
necessária, dos recursos territoriais: relações sociais, poder e governo,
conhecimentos, riquezas naturais e riquezas produzidas socialmente. Se
há apropriação, há expropriação. É desta forma que o capital se amplia
metabolicamente e incessantemente, no território: apropriando e
expropriando. E, nesta dinâmica territorial, ele abre novos mercados e
nichos de mercados, expande fronteiras antigas e abre novas fronteiras
23

de exploração, com a finalidade de elevar o excedente econômico e a


acumulação ampliada de capital.
No território do capital luta-se incessantemente, nos espaçosvivos,
por tempo livre. A vontade de ser e viver livre no estudo é anulada pela
vontade de trabalhar, que pressupõe a vontade da profissionalização, com
qualificação certificada pelas escolas técnicas, tecnológicas, profissionais
e universitárias. Esta é uma luta cotidiana e persistente de praticamente
todas as pessoas. Uma luta longa, profunda, sem limite. Gerações após
gerações. Neste território coexistem lutas e conflitos descontínuos,
sociogeohistóricos, de classes e frações de classes, que envolvem,
também, os movimentos sociais: da terra, das minorias, de gênero e de
etnia, nos diversos espaçosvivos: das organizações empresariais (estatais,
privadas e confessionais) e as organizações sociais, onde se estabelecem
relações interpessoais ou intersubjetivas.
Enfim, no território do capital se exprimem as determinações
recíprocas entre os atores sociais, as classes sociais e os movimentos
sociais, as minorias, entre os apropriadores e expropriados, opressores e
oprimidos, exploradores e explorados, colonizadores e colonizados,
homens e mulheres, professores e alunos, entre estes e os gestores de
escolas e universidades, entre os professores e os coordenadores e
articuladores pedagógicos, entre as pessoas de um modo geral. Há muitos
conflitos, nas mais diversas relações, que fluem nos espaçosvivos.
Os espaçosvivos se justapõem e se encadeiam, de forma vertical,
horizontal e transversal, no território, e em diversas escalas
socioespaciais: variam entre as escalas microsocioespaciais,
mesosocioespaciais e macrosocioespaciais. Os espaçosvivos conferem
materialidade às escalas geográficas, e o ser capital se exterioriza nessas
escalas sociográficas. E da escala atômica e molecular à escala territorial,
na geografia do capital, criam-se dependências e independências, como as
faces do deus Janus. Faces de um mesmo rosto.
Na geografia do capital, dependência e independência são
“determinações reais e reciprocas”. Apesar desta ambivalência esta
geografia é una: um inteiro. Fato ontológico irredutível ao fato
epistemológico. Apesar de este, com as linguagens das ciências, ajudarem
a tornar visível e compreensível aquele. Esta ambivalência da geografia
do capital se explicita, objetivamente, nas paisagens geográficas,
observáveis na urbanização dos bairros e nas relações interpessoais.
Estas pressupõem a personificação das formas sociais pelas pessoas,
24

justamente para se relacionarem entre si, uma mediação imperial,


necessária, posta pelas existências.
Exemplo de formas sociais são as profissões técnicas, tecnológicas e
científicas, certificadas pelo sistema de ensino, emitidos por faculdades e
universidades, com autorização do Estado. Todas as funções sociais e
administrativas existentes, nas diversas organizações sociais, familiares,
militares, nas igrejas, clubes, entre outras, são também formas sociais. As
formas sociais fazem-se presentes em todos os complexos sociais das
sociedades que exigem governo autônomo, leis abstratas e-ou
constituições nacionais.
Os espaçosvivos, nas sociedades capitalistas, são constituídos por
essas formas sociais, projetadas pelas relações sociais, que obrigam as
pessoas a personificarem-nas, sem o que ficam impossibilitadas de
participarem das relações sociais esxistentes. A personificação ocorre na
trajetória de vida das pessoas. Muitas vezes é uma personificação
dolorosa, como a personificação das profissões universitárias, que exige
das pessoas um longo tempo de dedicação, disposições para conviver com
o choque cultural, competitividade e segregações, tendo como único
horizonte a possibilidade de se inserirem no mercado humano de
trabalho, mas sem qualquer garantia desta possibilidade.
O mercado humano de trabalho é o lugar onde as pessoas,
profissionalizadas, circulam como mercadorias: força de trabalho
qualificada, energizada pelos conhecimentos incorporados. Essa
transfiguração das pessoas em profissionais inicia com o ingresso na
educação escolar, às vezes até pré-escolar, e passa por todas as etapas de
escolarização e ensino: da educação infantil aos Programas de pós-
graduação, strictu sensu: mestrado e doutorado. Exige um tempo de
dedicação extensa, aproximadamente dezesseis anos, se considerarmos o
ensino superior.
A personificação social das profissões, reconhecidas pelo Estado,
necessárias ao funcionamento das empresas, impõe uma complexa
organização, regulação, administração ou gestão nacional de um sistema
de ensino territorial, que compreende populações inteiras, um número
quase infinito de salas de aula (espaçosvivos), uma arquitetura e
engenharia civil com capacidade de projetar e construir refeitórios,
armazéns de alimentos, bibliotecas e um orçamento pactuado com todos
os Municípios e Estados da Federação de uma Nação; envolve todos os
atores sociais de uma sociedade.
25

A população mobilizada pelos sistemas de ensino exige um sistema


de transporte coletivo: municipal, intermunicipal e, às vezes,
interestadual e internacional. E agora, com as novas Tecnologias
Digitais de Informação e Comunicação (TDICs), exige as infovias ou
estradas virtuais. Tornando-se, tais sistemas, necessários à existência das
sociedades modernas. É impossível pensar nas sociedades modernas,
hoje, sem a integração dos sistemas de ensino e de transportes, a
organização das ciências e a urbanização. Todos esses sub-sistemas
tornaram-se bens públicos, ainda que privatizados pelo capital, e são
imprescindíveis à qualidade de vida das populações que empenham suas
vidas na manutenção das sociedades modernas. O que é isto senão uma
verdadeira geografia!
Eis a tese defendida neste ensaio: a geografia da dependência social,
que se forja nos espaçosvivos, escolares e universitários, tem seu motor
de propulsão nas atividades pedagógicas realizadas pelos atores
pedagógicos: professores e alunos. A realização destas atividades está
condicionada pela necessária reprodução social desses atores.
Considerando especificamente o sistema nacional de ensino brasileiro,
postulamos que a geografia da dependência social, que compreende todo
o sistema, isto é, as etapas, ciclos e/ou modalidades de ensino, é erigida e
legitimada por um princípio educativo, formulado negativamente por
Paulo Freire: o princípio educativo do ensino bancário, de fragilidade
inequívoca e eficiência contestável. Este princípio educativo se atualiza
territorialmente e justifica as políticas de pesquisas, curriculares, de
formação de professores e avaliação de desempenho. Isto há mais de cinco
séculos14. O postulado de o professor transmitir, transferir, informar ou
passar os conhecimentos aos alunos.

Tragédia e ficção de um sistema de ensino bancário financiado à


crédito bancário
A ideia de um Banco Globalitário da Pedagogia Bancária, esboçada
neste ensaio pela primeira vez, surgiu da leitura imanente de alguns

14O princípio educativo que erigiu as escolas no Brasil remonta à ação dos Jesuítas,
no século XVI. Seu instrumento principal foi a Ratio Studiorum (Plano de Estudo),
de 1551, onde Jerônimo Nadal, a pedido do fundador da Ordem, Ignácio de
Loiola, elaborou o primeiro regulamento que foi enviado aos colégios da
Companhia de Jesus.
26

trabalhos acadêmicos: o Privilégio da Servidão, de Ricardo Antunes15


(2020a); Por uma outra globalização, de Milton Santos (2009); e de vários
artigos de Francisco Bárcena Orbe, dentre esses “Uma porta fechada?
Sobre a educação e a corrupção pedagógica da juventude” (2014).
Todos esses trabalhos fazem lembrar a teoria social da tirania e da
servidão voluntária, formulada por La Boétie, no século XVI16. Lembram,
porque, apesar de evocarem, ora a categoria tirania, como faz Milton
Santos, ora a categoria servidão, como Antunes, Fontes e Geisler, não
fazem referência à obra clássica de La Boétie, tão relevante para as
Ciências Humanas. Este esquecimento, a princípio, nos mobilizou a
fazermos a análise imanente de O discurso da servidão voluntária.
Os trabalhos acadêmicos de Antunes, Fontes e Geisler alinham-se ao
conceito de servidão formulado por Marx. Os primeiros de forma direta
e evidente, a segunda nem tanto. A postulação de Marx, acerca da
servidão, foi esboçada nos Manuscritos de Paris, de 1844: “a opressão
humana inteira está envolvida na relação do trabalhador com a produção, e
todas as relações de servidão são apenas modificações e consequências dessa
relação” (MARX, 2004: 89).
Ricardo Antunes postula, em diferentes trabalhos acadêmicos, com
conteúdos bastante semelhantes, que as transformações capitalistas, do
final do século XX, provocaram uma profunda metamorfose do trabalho.
Esta desencadeou interpretações intempestivas e equivocadas de
diversos estudiosos: André Gorz, Claus Off, Jürgen Habermas, Armand
Mattelart. Os equívocos compreendem desde postulações que
decretaram o fim da centralidade do trabalho, no capitalismo
informacional, às que decretaram o fim da teoria do valor. Para desfazer
e superar os equívocos dessas interpretações, Antunes reposicionou a

15 Há uma linha de pesquisa, coordenada por Ricardo Antunes, na qual ele vem
conquistando resultados promissores. Resultados que têm sido publicados em
diversos trabalhos acadêmicos. Entre esses trabalhos destacam-se os livros,
organizado por ele e Ruy Braga: Infoproletários: degradação real do trabalho virtual
(2009); Uberização, trabalho digital e indústria 4.0, organizado apenas por Ricardo
Antunes (2020b).
16 Gostaria de destacar dois artigos que enfatizam a tendência e a atualidade da

servidão voluntária, na sociedade capitalista das TICs. O primeiro a chamar atenção


desta tendência foi escrito por Adriana Geisler, em 2006: Revisitando o conceito de
cidadania: notas para uma educação politécnica. O segundo, sobre a atualidade da
categoria servidão voluntária, foi escrito por Virgínia Fontes, também em 2006: Da
atualidade da Servidão Voluntária.
27

sociologia marxiana do trabalho, e ampliou a abrangência da análise de


algumas categorias da Crítica à Economia Política, de Marx. Duas das suas
elaborações nos parecem, particularmente, importantes: o conceito
ampliado da categoria classe social e a análise global do conflito entre
capital e trabalho, conflito agora globalizado, sob a hegemonia do capital
financeiro. Mas, a postulação mais significativa foi Antunes ter admitido
a geração de valor no complexo social dos serviços. Ele fundamenta essa
sua tese no Livro II: O processo de circulação do capital, de O capital, de
Marx (ANTUNES, 2020a: 41-55).
Há quase meio século da reestruturação produtiva, impulsionada
pelas novas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação
(TDICs), sob a hegemonia do capital financeiro, a globalização do capital,
alicerçada sob a expansão acelerada das plataformas digitais, internet e
aplicativos tornou-se um mercado promissor de valorização do valor,
explorado pelo capital fictício. Diferente da análise concreta da
“sociedade digitalizada, tecnologizada” e internetizada, que erigiu o
moderno “escravo digital”, num contexto em que os espaços de trabalho
se transformaram, globalmente, em “espaços de sujeição, sofrimento,
desumanização e precarização”, Antunes se empenha “em compreender o
trabalho em sua forma de ser contraditória”. Por outro lado, Virgínia
Fontes reconhece a tirania do capital em seu artigo: Da atualidade da
servidão voluntária. O trabalho de Fontes inspira-se no seguinte
fragmento de Adriana Geisler: “/.../ o não reconhecimento do trabalho como
‘objetividade e subjetividade’ é uma armadilha ideológica e, em nome dela, a
produção da subjetividade dos trabalhadores vem sendo orientada no sentido da
servidão voluntária” (GEISLER, 2006: 374).
Ora, ainda que reconhecêssemos a indissociabilidade entre
“objetividade e subjetividade”, nem por isso “a produção da subjetividade
dos trabalhadores” deixaria de ser “orientada” para a “servidão
voluntária”. Por quê? Conforme Marcos A. G. de Oliveira, há dois fatos
que esclarecem “a produção e orientação da subjetividade” dos
trabalhadores, no regime de acumulação pós-fordista:
Para os neoliberais as crises [tendência da queda da taxa
de lucro] estavam localizadas no poder excessivo e nefasto
dos sindicatos e, de maneira mais geral, no movimento
operário, que havia corroído as bases de acumulação
capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os
salários e com sua pressão parasitária para que o Estado
28

aumentasse cada vez mais os gastos sociais (OLIVEIRA,


2017: 93).

Mesmo antes dessas crises típicas, desencadeadas na segunda


metade do século XX, “teóricos liberais como Milton Friedman, Karl
Popper, Leonel Robbins, Ludwig Von Mises e outros, liderados por
Friedrich Hayek, fundaram na Suíça a Sociedade de Mont Pèlen, em
1947” (Ibidem, p. 98), objetivando mudar essa realidade, que para eles era
desastrosa para o regime de acumulação flexível. A Sociedade de Monte
Pèlen se determinou em “combater o Keynesianismo e o Solidarismo
reinantes e preparar as bases de outro tipo de capitalismo”
(ANDERSON, 1995: 9), o capitalismo neoliberal.
Se teórica e ideologicamente os neoliberais radicalizaram o
capitalismo, em termos empíricos a radicalização foi mais intensa e
profunda. De acordo com Maurício Tragtenberg (2005: 214), para
manipular e/ou fabricar a subjetividade dos trabalhadores, a “escola de
relações humanas [por exemplo, desenvolveu] a ‘empresa educadora’”. A
máxima dessa “empresa educadora”, em relação às relações humanas nas
empresas, é, sobretudo, “seduzir [os trabalhadores] no sentido estrito do
termo”. Isto é: “a preocupação [dos teóricos da administração, alinhados
à perspectiva] das relações humanas consiste em influenciar na produção
[na ‘valorização do valor’], donde se pode defini-la como [teoria do
capital ou] teoria do dinheiro. Nesse sentido, [para “ciência” da
administração de empresas] relações humanas são [simultaneamente]
uma teoria, uma prática e uma ideologia” (TRAGTENBERG, 2005: 199-
200).
Nessa mesma direção, o psicólogo e pesquisador australiano Elton
Mayo “percebeu, em suas pesquisas, realizadas em 1924 e 1936, a
importância do domínio sobre a espontaneidade do trabalhador como forma de
controlar os conflitos presentes na empresa. Mayo propõe a utilização do líder
informal como meio para ‘domesticar’ os trabalhadores” (OLIVEIRA, 2017:
89, grifos nossos).
Não apenas os australianos estavam preocupados em controlar a
subjetividade, mas, também, os “psicólogos europeus e americanos
trabalharam intensamente [para] fabricar uma estrutura tecnocrática em
nível de empresa e escola”; e desta forma “esperam contar amanhã com todos
os assalariados como cúmplices, em nome da ‘formação profissional
permanente’, que não é gerida pelos próprios produtores’”
(TRAGTEMBERG, 2005: 214). Portanto, o ataque à subjetividade do
29

trabalhador é resultado de uma política articulada e deliberada pelos


intelectuais orgânicos do capital, e globalmente.
Apoiado na tese de Ricardo Antunes e nas intenções teóricas dos
intelectuais orgânicos do capital, gostaríamos de chamar a atenção para
o fato de que não é apenas o trabalho que muda de forma com as máquinas
informacionais no capitalismo pós-fordista, mas também a servidão
voluntária das populações assalariadas e precarizadas. Essas técnicas
administrativas atuam diretamente na subjetividade dos trabalhadores,
nos seus comportamentos, para torná-los dóceis e produtivos. Seduzir
com uma nova gramática capitalista para conseguir que os trabalhadores
consintam, voluntariamente, se sujeitarem ao capital, torna-se a grande
estratégia neoliberal no regime de acumulação pós-fordista.
Esta “servidão voluntária” que se objetiva estrategicamente através
da manipulação da subjetividade dos trabalhadores, não é um fato que
aconteceu no capitalismo informatizado ou informacional, no fim do
século XX. Apesar da profunda metamorfose, o pós-fordismo não é
portador de um “novo espírito do capitalismo”, como pensaram Boltanski
e Chiapello (2009). Esse espírito é bem antigo. Foi, por exemplo, pensado
por Gramsci, na década de 1930, no século XX, e na totalidade de sua
forma real e concreta. Ele registrou esta totalidade em sua clássica obra
Americanismo e Fordismo. Esta “servidão voluntária” é a base de sua teoria
da hegemonia do capital e da burguesia. Para aqueles e aquelas que
postulam que Gramsci é um “teórico das superestruturas”, é importante
esclarecer que a categoria hegemonia tem a sua gênese no processo
produtivo: na fábrica ou empresa. Analisando a realidade empresarial
estadunidense, no presídio, Gramsci percebe o ataque do capital à
subjetividade dos trabalhadores no modelo de acumulação de fordista.
Desde o fordismo, postula Gramsci, “a coerção /.../ deve ser sabiamente
combinada com a persuasão e o consenso17, e este pode ser obtido pelas
próprias formas da sociedade dada a uma maior distribuição que permita
um determinado nível de vida capaz de manter e reintegrar as forças

17 Na segunda metade do século XX, com o neoliberalismo, a “persuasão e o


consenso” convertem-se, praticamente, em “coerção”, viabilizado pela revolução
informática, que é longa, extensa, culturalmente profunda e envolve vários
desdobramentos das TICs. Tecnologias sucessivamente reinventas e
reconfiguradas, sociogeohistoricamente, pela robótica, indústria 4.0, inteligência
artificial, comprometidas com a elevação da taxa de lucro média e fortalecimento do
capital e suas relações. Impõe o modelo flexível de acumulação, integrado aos
modelos anteriores: fordista, taylorista, fayolista e toyotista.
30

exauridas pelo novo tipo de esforço. (GRAMSCI, 2010: 75-76, grifos


nossos).
Descartada a hipótese do não “reconhecimento” da indissociabilidade
da “objetividade-subjetividade” ser a causa da “produção e orientação dos
trabalhadores à servidão voluntária”, também temos que ser cuidadosos
em afirmar que “a subjetividade, fabricada pelo sistema capitalista /.../,
faz o desejo de submissão intervir [no] indivíduo, estimulando-o a agir
como simples receptor da subjetividade em circulação nos espaços sociais”
(GEISLER, 2006: 360, grifos nosso). Temos que ter cuidado porque,
pesquisas recentes, como a de Oliveira, indicam “uma interessante
constatação: os intentos subjetivos propostos pelas empresas pós-
fordistas não são tão efetivos como muitos estudos apontam”. Oliveira é
mais enfático ao afirmar, com todas as letras, que “não há efetividade dos
intentos subjetivos sobre relações precárias de trabalho. Boa parte da
classe trabalhadora, uma interessante fração, explicitamente a mais
precarizada, é cética no tocante as propostas subjetivas das empresas”
(OLIVEIRA, 2017: 2).
Outro artigo que reconhece a “atualidade da servidão voluntária” é o
de Virgínia Fontes. Nele são propostas duas teses que convém destacar.
A primeira é que a moderna servidão voluntária é indissociável da lógica
capitalista (FONTES, 2006: 432). E, considerando esse vínculo, Fontes
se propõe a “rastrear a relação interna que une os dois termos
aparentemente excludentes – a servidão (coerção, constrangimento,
imposição) e a liberdade” (FONTES, 2006: 432). Este fragmento textual
faz-nos lembrar as reflexões de La Boétie, que trata, exatamente, da
relação entre tirania e servidão voluntária, mediada pela categoria
“vontade de ser e viver livre”. E é exatamente este vínculo categorial,
feito por La Boétie, que Virgínia Fontes considera “profundamente atual”.
O problema apresentado por Fontes assemelha-se à questão
formulada por La Boétie: “o que significa e o que torna possível a servidão
voluntária?” (FONTES, 2006: 432). Como vimos, esse problema foi
respondido por La Boétie, ainda no século XVI: extirpando da
interioridade de cada pessoa a vontade de ser e viver livre.
Nosso ensaio se diferencia do artigo de Fontes, sobretudo no
encaminhamento que ela deu a esta questão. Enquanto procuramos
responde-la apoiando-nos na teoria crítica da geografia social, formulada
por Milton Santos. Teoria que nos ajudou a articular o conceito da
categoria geografia da dependência social com a análise de como as
pessoas se institucionalizam nos espaçosvivos, nos lugares concretos
31

onde existem. Por sua vez, Fontes apoia-se na teoria social da história.
Sobretudo em Thompson (1989 e 1995) e Marx (1985).
Indicado o encaminhamento histórico da sua análise, a segunda tese
do trabalho de Fontes abrange dois sentidos. O primeiro é o de que a
liberdade do trabalhador, no capitalismo, se desdobrou de uma clivagem
entre “a formação concreta da liberdade separada da propriedade efetiva”
e dos conhecimentos incorporados pelas pessoas no processo de
valorização do capital, conhecimentos incorporados às máquinas, meios
e instrumentos de trabalho. Esse fato sociogeohistórico é a base
ontológica de sua outra tese, que diz respeito ao vínculo entre liberdade
e propriedade: quanto maior o patrimônio empresarial, maior a liberdade
do proprietário, e o patrimônio é resultado da “recompensa do trabalho
[abstrato], uma forma ideal”.
Marx nomeia esta abstração, idealizada, de “forma fantasmagórica”
ou “fetichista” da mercadoria. Na realidade, tal clivagem e idealização,
além de ocultar e encobrir a realidade do trabalhador assalariado, sua
trágica miséria e estranhamento no mundo das mercadorias, “instaura,
historicamente, uma enorme cisão entre a propriedade efetiva [abstrata],
que controla e domina o processo produtivo, e ato concreto de produzir
(tanto a produção de bens tangíveis [e intangíveis] e de todas as
necessidades, inclusive culturais e artística)” (FONTES, 2006: 433).
Se a questão formulada anteriormente por Fontes foi respondida por
La Boétie, há, entretanto, outra questão, a nosso ver é mais relevante que
a anterior, que não apenas sentimo-nos seduzidos em responder, mas que
norteia este ensaio, e que assumimos como desafio à nossa imaginação
filosófica, há muito tempo:
Como é possível viver num mundo no qual ao mesmo
tempo que se é instado a criar, agir, produzir, realizar algo
para além da mera reprodução imediata, a contribuir,
portanto, para uma coletividade social (cujas dimensões são
variáveis, desde a família até a nação ou a própria noção de
humanidade) e, simultaneamente, conviver com a
‘despossessão’, a expropriação sistemática dessa mesma
capacidade? (FONTES, 2006: 434).

É esta questão norteadora, formulada por Virgínia Fontes, que


respondemos neste ensaio. Na nossa compreensão, e considerando as
teorias sociais propostas pela geografia crítica, o encaminhamento e
resposta dada por Fontes é necessário, mas não é suficiente. Para sê-lo, é
32

necessário considerar a geografia: a organização e reprodução capitalista


dos espaçosvivos no território usado.
Parece-nos que Milton Santos, David Harvey, Henri Lefebvre, Ana
F. A. Carlos e Ruy Moreira nos ajudam, com suas formulações e análises
críticas da geografia social, a respondermos tal questão, em termos
concretos e abstratos, como requer o método dialético. Neste ensaio, nos
concentramos apenas em mostrar como Milton Santos contribuiu para
responder esta questão. Paratanto, fizemos a leitura imanente da obra
Por uma outra globalização (2009), para identificarmos algumas unidades
significativas e epistemológicas relevantes, que nos ajudam a contribuir
para esta resposta.
Este livro de Milton Santos tem, como outros, o objetivo de
conceituar a categoria “espaço geográfico”. No caso desta obra, o espaço
geográfico globalizado. Para Milton Santos “a globalização [espaço
geográfico globalizado] é /.../ o ápice do processo de internacionalização
do mundo capitalista”, comandado pelo capital financeiro (SANTOS,
2009: 23). Os componentes basilares deste espaço são “o estado das
técnicas e o estado da política”. Ele concebe a história deste espaço de
forma singular. O que erigiu a história da globalização foi um
acontecimento ímpar, o fato “/.../ das técnicas serem oferecidas como
sistema e realizadas [...] de forma combinada com o trabalho e as formas
de escolher os momentos e lugares do uso [desse sistema técnico]”
(Ibidem).
Milton Santos postula que foi “no fim do século XX e graças aos
avanços da ciência que se produziu um sistema de técnicas presididas
pelas técnicas da informação que passaram a exercer um elo entre os
demais [sistemas técnicos], unindo-os e assegurando ao novo sistema
técnico uma presença planetária” (SANTOS, 2009: 23).
A arquitetura social da globalização foi estruturada sobre quatro
pilares: unicidade das técnicas informáticas; convergência dos momentos
escolhidos para colocá-las em andamento; cognoscibilidade do planeta e
a existência de um motor que dinamizou o território usado e permitiu a
expropriação do maisvalor em termos globais (SANTOS, 2009: 24).
Para Milton Santos, os sistemas técnicos promovem diferentes
civilizações, logo os diferentes períodos do capitalismo são demarcados
pelos diferentes sistemas técnicos. No âmbito do capitalismo financeiro,
hegemônico no padrão de acumulação flexível, o sistema técnico da
informação configurou uma sociedade capitalista ímpar: “o mercado
33

global utilizando esse sistema de técnicas [digitais] avançadas resulta


nessa globalização perversa” (SANTOS, 2009: 24, grifos nossos).
Mas por que “perversa”? Porque desencadeou uma dupla violência:
violência monetária ou do dinheiro, e mesmo, “tirania do dinheiro em
estado puro”; e violência simbólica ou da informação, e mesmo, “tirania
da informação”. Para este ensaio importa compreender a tirania e a
perversão do dinheiro em estado puro.
A violência ou tirania do dinheiro em estado puro decorre da
internacionalização do capital financeiro. E a perversão desta
internacionalização se liga à lógica atual do crédito e da dívida.
A perversão da globalização do espaço geográfico, pelo capital
financeiro, “é a lógica [e dinâmica territorial], atual, da
internacionalização do crédito e da dívida” (SANTOS, 2009: 43).
Portanto, “nas condições atuais de economia internacional, o financeiro
ganha uma espécie de autonomia /.../ a relação entre finança e produção,
economia real e mundo financeiro dá lugar o que Marx chamou de
‘loucura especulativa’, fundada no papel do dinheiro em estado puro”
(SANTOS, 2009: 43).
Nessas circunstâncias, “o dinheiro se torna o centro do mundo. É o
dinheiro como dinheiro, recriando seu fetichismo pela ideologia”
(SANTOS, 2009: 44). Esse fato desorganiza o território usado das
sociedades dependentes, que participam desigualmente da divisão
internacional e territorial do trabalho. Estas economias participam com
todos os seus recursos mobilizados pelo capital globalizado, mas se
apropriam de forma marginal e injusta do excedente produzido
globalmente.
Ora, constata Milton Santos, “essa presença do dinheiro em toda
parte [“presença despótica” nos espaçosvivos] acaba por constituir um
dado ameaçador da nossa existência cotidiana” (SANTOS, 2009: 44).
Concordamos que é, realmente, ameaça, a monetização da vida, das
existências concretas nos espaçosvivos, porque “a existência é produtora de
sua própria pedagogia” (SANTOS: 116). E, sob o império da dominação
financeira dos bancos, “do dinheiro em estado puro”, a pedagogia que
permeará e se fará hegemônica nos espaçosvivos desse império, será a
pedagogia financeira ou pedagogia bancária.
Paulo Freire, quando vivo, se posicionou criticamente contra a
penetração, em larga escala, dessa pedagogia financeira ou bancária, no
âmbito dos sistemas nacionais do ensino que foi convertido em Sistema
Nacional de Ensino Bancário.
34

No Prefácio da obra magistral Crédito à morte: a decomposição do


capitalismo e suas críticas, do filósofo alemão Anselm Jappe, Olgária Matos
postula que viver no neoliberalismo, nas sociedades financeirizadas e
comandadas pelas máquinas digitais, pela indústria 4.0 e pelo “escravo
digital”, “é comprar a morte a crédito18” (MATOS, 2013: 9). Neste
momento em que nem a morte escapa ao capital financeiro. Isto é, os
empreendimentos financeiros passaram a oferecer crédito à morte às
famílias, em larga escala. Constituindo um verdadeiro mercado da morte,
que se ampliou em escala, desde as empresas de caixão às instituições
financeiras. Nesses novos tempos em que a morte é financiada em vida, à
longo prazo, a sombra dos defuntos é antecipada e passa a inferniza a vida
cotidiana dos trabalhadores assalariados. Há, certamente, uma pedagogia
em viver desta forma, porque esta vida também é formativa: há efeitos no
modo de viver das pessoas, quando as instituições financeiras oferecem
crédito à morte, fazendo o futuro defunto se tornar presente.
A morte é transformada em custo no presente da vida. A “morte à
crédito” força reduzir a vida à custo. As preocupações com os custos de
vida tomam proporções desmesuradas, torna-se vivo o custo da morte. O
custo do crédito concedido à morte desencadeia impacto no salário real.
O que remonta, na civilização capitalista, à relação eterna entre salário e
custo de vida. Por fim, aquele ou aquela que faz um plano de crédito à morte
passa a incluir a morte na sexta de consumo mensal. Mas o que é trágico,
é a inclusão da morte na sexta básica. O pagamento mensal do plano
indica a presença mensal da morte. Estranhamente o custo da morte se
impõe às pessoas vivas. A morte é convertida em mercadoria e faz
aparecer a figura, ou forma social, do consumidor da morte. E é assim
que se vive na financeirização da morte, quando a morte é financiada à
crédito.
Ao ler o Prefácio escrito por Olgária Matos. E ao sermos
estimulados, por tal escrito, a pensar, concretamente, na relação entre
crédito e morte. E que, de fato, há oferta de planos empresariais que
comercializam a morte, por meio do crédito da morte e do débito da vida.
Operação contábil, racional, que valoriza a morte e transforma a vida em
custo, ficamos a nos perguntar: o que morre quando os conteúdos
18 No tempo acelerado das partidas dobradas movidas pelo aplicativo financeiro PIX

nos distanciamos velozmente dos modos de viver “das sociedades tradicionais”.


Sociedades “que se pautavam pelo tempo livre, o único no qual o indivíduo [as
pessoas] poderia responder ao ‘conhece-te a ti mesmo’ para ascender à justa vida e
ao bem viver” (MATOS, 2013, p. 10-11).
35

curriculares oferecidos pelas escolas e universidades se transformassem


em créditos financeiros financiados por Bancos? O que ocorreria se o
financiamento de crédito, para aquisição de créditos curriculares,
compusesse um dos produtos da carteira de crédito oferecidos pelos
gerentes bancários? E se o crédito desses conteúdos fossem
financeirizados ou bancarizados? E se o sistema de ensino fosse
convertido em um sistema financeiro de ensino à crédito? E se as
universidades fossem convertidas em Agências Bancárias de Ensino e
Formação de Professores-Profissionais do Ensino Bancário? E se todos
os créditos curriculares fossem administrados por um Sistema Nacional
de Ensino Bancário, financiado por um Banco Globalitário de Ensino
Bancário e sua pedagogia correspondente: a pedagogia bancária?
Estas questões são ressonâncias e ecos da conversão do crédito
bancário em unidade de medida dos créditos curriculares, tal como vem
ocorrendo na Europa, desde o final do século XX. É o que revelam os
estudos de Fernando Bárcena Orbe (2014), sobre o Plano de Bolonha na
Espanha, e das Declarações que dele se derivaram, em diversas Nações
europeias. Esse fato, analisado por Bárcena, está recriando o ensino
universitário europeu.
Na universidade [europeia] os saberes não se orientam à
formação que emancipa senão a algum tipo de
financiamento público [educação à crédito ou crédito
educativo]. Tudo que tem que ver com os projetos de
investigação [estudo e pesquisa] e com a ingente
quantidade de Grupos de Pesquisa, que proliferam em todo
o mundo. Não ter [ou não estar vinculado à] um Grupo de
Estudo e Pesquisa [cadastrado em órgão governamental
ou para-governamental] é algo assim como apresentar-se
ao mundo com a abstrata nudez de não ser, senão, um
simples mortal [pária no mundo acadêmico]; descartável e
supérfluo: “vida nua” (BÁRCENA, 2014: 444).

Essa universidade europeia, nomeada por Marilena Chauí de


“universidade operacional”, nega “o reconhecimento simbólico” aos
intelectuais acadêmicos, que não se sujeitam às Agências Universitárias
de Ensino Bancário. Aos recalcitrantes do sistema bancário de ensino
bancário-curricular nega-se “uma existência [intelectual] socialmente
reconhecida”. Para conquistar um pingo de “humanidade”, nos sistemas
de ensino à crédito, é necessário bajular (e até ser chumbeta ou capacho)
dos professores gestores, burocratizados pela administração escolar.
36

Como opera, concretamente, esta “negação”? Segundo Bárcena, pelo


sistema de ensino bancário à crédito bancário.
Fernando Bárcena descreve em seu artigo como funciona o sistema
de ensino bancário à crédito bancário, tomando como exemplo o ensino
bancário superior da Espanha. Enfatiza que desde o Plano de Bolonha e
das reformas universitárias, além das diversas Declarações dele
decorrentes19, essa mudança se concretizou. Entretanto, Bárcena deixa
entrever em sua análise a coerência das postulações de Milton Santos
sobre a “tirania do dinheiro” e do crédito no “globalitarismo”. Segundo a
interpretação de Grzybowski (2016), o sistema bancário de crédito
curricular exacerbou o que Paulo Freire temia já em 1997, que “a escola”
e, sobretudo, as universidades, se transformassem em “bancos de
conhecimento a serem transferidos às crianças, jovens e adultos”.
Analisando as Declarações que se sucederam ao Plano de Bolonha,
Bárcena observa que “a /.../ introdução na ordem do saber e na lógica
das transmissões, de um dispositivo bancário de medida: o crédito (modo
de ser imanente ao Sistema Europeu de Transferência e Acumulação de
Créditos – ECTS)”, causou “grande estranheza no mundo acadêmico”
(BÁRCENA, 2014: 447-448).
Na análise de Bárcena dessas Declarações, o crédito financeiro
curricular, esta unidade bancária de medida do crédito educativo, define
o compromisso docente de professores e discentes com um número, uma
quantidade de horas aula [descartados pesquisa e extensão], para
priorizar a elevação de competências, habilidades e destrezas, em cada
disciplina à crédito. Porque, o que importa nestas Reformas
Universitárias, postula Bárcena, é “permitir e consentir que os estudantes
se preparem como ‘profissionais’ competentes para um mercado em
constante mudança e dinamismo” (BÁRCENA, 2014: 443).
A consequência da financeirização do sistema de ensino
universitário espanhol, à crédito bancário, para financiar créditos
curriculares oferecidos pelas universidades europeias, resulta da
flexibilização da produção, socialização e apropriação de conhecimentos
científicos, e que se materializa, no território do capital financeiro, sob a
nova lógica da intermitência e hiperexploração do trabalho pedagógico
dos docentes e discentes. Esta realidade se traduz na absoluta negação de
tempo livre aos atores pedagógicos, quando se realizam estudos e

19Declaração de Bolonha (1999); de Praga (2001); de Berlim (2003); Berlin (2005);


Londres (2007) e Leuven (2009).
37

pesquisas sistemáticos. No sistema de conteúdos curriculares,


financiados por crédito bancário, cada vez se estuda e se pesquisa menos,
o que desqualifica de forma sistemática e persistente o trabalho
intelectual no capitalismo financeiro, informatizado e internetizado, da
Indústria 4.0.
Diante desse enquadramento da universidade ao sistema financeiro,
no contexto neoliberal. Não apenas da universidade, mas de todo sistema
nacional de ensino, imaginamos um complexo Sistema Nacional de
Ensino Bancário, no contexto da globalização financeira, com todos os
ingredientes que se fazem necessários para compreendermos como se
institucionaliza a geografia da dependência social, no âmbito do nosso
recorte analítico, que é a educação escolar e universitária.
Abaixo esboçamos uma possível tendência, certamente esquemática
e superficial, do que seria, imaginariamente, esse Sistema Nacional de
Ensino Bancário, gerido por um Banco Globalitário da Pedagogia
Bancária, com todas as instâncias reguladoras necessárias para esse
sistema de ensino universitário funcionar, orientado pela racionalidade
bancária e pelas teorias dos mais destacados representantes da pedagogia
e ensino bancário do século XXI: Tardif, Nóvoa, Perrenoud e Gauthier.

Os limites da pedagogia da autonomia no contexto da hegemonia


da pedagogia do oprimido e do totalitarismo do capital financeiro

BANCO GLOBALITÁRIO DA PEDAGOGIA BANCÁRIA - BGPB


BGPB - MATRIZ
ESTADOS UNIDOS

BGPB – FILIAL
BRASIL
MEC – SISTEMA NACIONAL DE GESTÃO DEMOCRÁTICA DO ENSINO BANCÁRIO - SNGDEB

CAPS CNE CNPq

AGÊNCIAS UNIVERSITÁRIAS DE FORMAÇÃO GERIR E ENSINAR


DE PROFESSORES-PROFISSIONAIS DE GERIR E ENSINAR
NÃO SIM
ENSINO BANCÁRIO - AUFPPEB GERIR E ENSINAR

CURSOS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES-PROFISSIONAIS


EM GESTÃO DEMOCRÁTICA E ENSINO BANCÁRIO - CFPPGDEB

PROFISSIONAL DE GESTÃO E ENSINO NO ENSINO MÉDIO PARA ENSINAR E GERIR


ENSINO DE SOCIOLOGIA, DE FILOSOFIA, DE GEOGRAFIA E DE HISTÓRIA
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O esquema acima é inspirado na teoria sociocrítica de Paulo Freire


ao ensino bancário e à pedagogia bancária. Seu objetivo é ampliar,
elucidar e ferir o ensino bancário na alma, paratanto utilizamos o recurso
do gênero literário da ironia e do sarcasmo. Os estudiosos da pedagogia
sabemos que a teoria da autonomia pedagógica de Paulo Freire (1996) se
propõe libertária e transformadora. Mas ela nos liberta de quê? Em que
nos transforma? No atual contexto da civilização capitalista ela nos
liberta da opressão da tirania do dinheiro e da informação, do
globalitarismo financeiro. E nos transforma em intelectuais autônomos e
independentes.
Sociologicamente, a opressão se materializa na dialética das relações
sociais concretas. A dialética das relações entre opressores e oprimidos
se aproxima, de muitas maneiras, do que Hegel (1992) descreve como
dialética do senhor e do escravo, e do que Marx e Engels (1998)
descrevem como as lutas entre “burgueses e proletários”. Mas em Paulo
Freire (1996, 1994, 1987) o que se estuda é a pedagogia da opressão e a
pedagogia libertária e/ou pedagogia da autonomia. A pedagogia da
opressão se confunde com a pedagogia bancária/financeira e o ensino
bancários. A pedagogia bancária oprime os professores opressores e
oprime os estudantes oprimidos. As consequências da estruturação e
territorialização da pedagogia bancária e do ensino bancários, na
sociedade das TICs, por meio das AUFPPEB, através dos CFPPGDEB
que oferece, são trágicas para as teorias educacionais freireanas, e,
sobretudo, para sua pedagogia libertária.
Segundo Paulo Freire, a opressão se localiza, geograficamente, nos
afazeres humanos, nos modos de existir das pessoas. Se queremos
conhecer a realidade da opressão, é aí, nas atividades com as quais as
pessoas se ocupam, no como e nas condições em que transcorrem as
ocupações, que devemos observa-la: nos fazeres de si do opressor, nos
fazeres de si do oprimido e nos fazeres de ambos entre si. Como não há
fazer sem saber, e como o saber está no fazer e não em qualquer outro
lugar, então há saberes próprios, incorporados ao corpo, e usados pelos
opressores e saberes próprios incorporados no corpo e usados pelos
oprimidos. Esses saberes, incorporados e usados, são apropriados pelas
pessoas, em duas situações semelhantes, embora, na maioria das vezes,
de forma distinta e antagônica, e às vezes, no mesmo processo, em
presença uma da outra: na medida em que elas personificam formas
sociais que caracterizam os opressores nos fazeres necessários às suas
existências (sendo ou não, por exemplo, burgueses) e algumas outras
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pessoas que personificam formas sociais que caracterizam os oprimidos,


nos fazeres necessários às suas existências (sendo ou não, por exemplo,
proletários). Mas esses saberes, incorporados e usados, podem, inclusive,
serem extraídos dos fazeres, abstraídos, registrados e socializados em
salas de aula, nas relações entre professores e alunos, e podem também
ser estudados e publicados em livros.
Ainda segundo Freire (1987), a pedagogia bancária se caracteriza em
perpetuar, na relação entre professor e aluno, no ensino, a condição do
sujeito professor e do objeto aluno. Nas salas de aula das escolas e
universidades, concursados ou contratados, professores ou tutores, e na
ralação mais universal e evidente, professor e aluno, reproduz-se o cerne
da pedagogia bancária e do ensino bancário: um governa na vida do outro
governado, um manda na vida do outro obediente, um é ativo o outro
passivo. O primeiro transfere ou transmite conhecimentos (debita os seus
conhecimentos e concede crédito aos alunos devedores, que deverão
saldar esse ato de dívida com o professor em algum momento), o segundo
recebe-os (credita os conhecimentos transferidos ou transmitidos pelos
professores, contraindo uma dívida ou débito com os professores).
Crédito e débito são relações sociais concretas, contábeis e
monetárias, entre pessoas, que funcionam estritamente de acordo com a
lógica e dinâmica bancárias. Isto é, relações sociais entre pessoas,
mediadas por Agências Bancárias (instituição financeira reconhecida pelo
Estado). As Agências de Ensino Bancário constituem, em seu conjunto
ou totalidade, o Sistema Nacional de Ensino Bancário.
No caso desta hipotética Agência de Ensino Bancário, o professor é
o credor e o aluno o devedor. Para honrar o débito e manter o crédito
com o professor, tal como ocorre com uma operação bancária, mas agora,
com transferência de conhecimentos, reproduz-se do mesmo modo a
relação entre os correntistas, o correntista professor e o correntista
aluno. A operação é relativamente simples: o aluno deve pagar
mensalidades (por boleto bancário, transferência ou pix) diretamente no
Banco ou na Secretaria dos estabelecimentos privados de ensino. Há
outra possibilidade, quando a instituição de ensino é federal, estatal ou
municipal: o Estado recolhe impostos da sociedade para pagar o crédito
devido dos alunos aos professores, em decorrência da transferência ou
transmissão de conteúdos curriculares, equivalentes a determinado
número de créditos oferecidos semestral ou anualmente. Na globalização
muitas universidades privadas são investimentos financeiros de Bancos
ou grupos empresariais a eles associados.
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Feito o pagamento, crédito e débito são anulados. O pagamento pode


ser relativo à hora/aula, curso, contrato mensal de trabalho, entre outras
possibilidades. Nas relações capitalistas as posições entre credores e
devedores invertem as impressões e os sentidos imediatos dos
correntistas. Isso complica quando as relações não são imediatamente
entre pessoas, mas mediadas por meios financeiros ou meios financeiros
fictícios.
O espaço social específico, no território do capital, onde se processa
essa racionalidade contábil, das partidas dobradas, nas escolas e
universidades, é o espaço do mercado de trabalho, que envolve escolas,
professores, alunos, famílias, responsáveis pelos alunos e dinheiro. Esses
são os componentes necessários para haver comercialização ou circulação
de conhecimentos objetivos, acumulados historicamente pela
humanidade. Conhecimentos expropriados pelos empresários
capitalistas, diretamente dos professores opressores, quando transferem
conhecimentos, e dos alunos oprimidos, quando pagam suas
mensalidades. Isto é, desde o momento em que os atores pedagógicos
iniciam suas participações no mercado de comercialização de
conhecimentos, bastando para isso que assinem contrato de trabalho ou
de serviços. O que cria obrigações que devem ser honradas: aulas do
professor e mensalidade dos alunos. Estes pagam mensalidades
correspondentes ao número de horas/aula, correspondentes ao trabalho
dos professores. Mas, além disso, há um produto gerado pelas escolas e
universidades que encerram, definitivamente, as obrigações entre
professores e alunos: quando os alunos concluem os cursos e recebem
diplomas e certificados.
Assim se efetiva a comercialização de conhecimentos pelas
instituições de ensino: da etapa pré-escolar aos programas de pós-
graduação: mestrado e doutorado, strictu sensu. E não importa a forma
específica, profissional, do professor, quando assina o contrato: se como
professor-estudante estagiário, professor-estudante remunerado por
hora/aula, professor-estudante concursado, professor-estudante
contratado. Ou a profissão dos responsáveis dos filhos que pagam as
mensalidades. Tampouco de qualquer cidadão que pague impostos. A
questão é que o crédito que o professor faz quando transfere
conhecimentos nas salas de aula, tem que ser honrado pelo pagamento
do aluno: o devedor de conhecimentos transmitidos e transferidos (ou
ainda, outra palavra corrente entre os atores pedagógicos, passados)
pelos professores.
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Os contratos desse sistema fictício respeitam a diversidade e o


pluralismo da formação profissional. O que importa é que os professores
sejam profissionais e que os alunos desejem ser profissionalizados,
objetivando algum retorno das suas atividades profissionais no mercado
de trabalho. Esse desejo do aluno é vital para o SNGDEB funcionar e
conciliar os interesses do Mercado, do Estado e dos clientes (os alunos e
suas famílias). O pressuposto para esta dinâmica ocorrer é a existência de
pessoas que desejem obter avidamente diplomas e certificados, quando
concluírem o curso profissional.
E os professores não precisam, como profissionais e assalariados do
conhecimento, se preocuparem ou se estressarem, o BGPB, com suas
AUFPPEB, e esta com seus CFPPGDEB, prestam um excelente serviço
à sociedade. Além de investirem em infraestrutura e contratarem
recursos humanos necessários, visando garantir a qualidade dos serviços
oferecidos pelas AUFPPEB. Para garantir o padrão de qualidade,
exigidos pelos clientes, faz-se investimento na qualificação dos gestores
e dos professores. Assim, todas as famílias que matriculam seus filhos em
tal instituição de ensino, os empresários da educação e o Estado garantem
a gestão de qualidade da melhor educação aos alunos matriculados em
seus cursos. Os funcionários da rede privada, por exemplo, fazem os
melhores cursos de especialização oferecidos pelos Cursos MBA20 da
Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pelo Instituto Brasileiro de Mercado
de Capitais (IBMEC), criado pela idônea Bolsa de Valores do Rio de
Janeiro. A FGV e o IBMEC têm reputação e reconhecimento
internacional.
Um fato relevante é invisível à pedagogia bancária: há professores
tão comprometidos com o que fazem, que têm a coragem de empenhar
suas vidas ao estudo. Professores dispostos a se transformarem em
estudantes e pesquisadores. E viverem como eternos estudantes. Daí a
razão do registro professor-estudante, que deveria ser escrito sem hífen
e grafado de forma inversa, respeitando a realidade de como ele deveria
existir no mundo, e não como a civilização capitalista forja
concretamente, a forma social professora, lemos no dicionário o que é
professor ou ouvimos dizer da boca do povo. Professor-estudante deveria
ser grafado desta forma: estudanteprofessor. Pois o Ser do professor é o
Estudo.

20Master of Business Administration (MBA). O MEC define como MBA cursos de


especialização, em nível de pós-graduação, na área de administração.
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Mas, infelizmente, os teóricos e intelectuais orgânicos da pedagogia


bancária, no século XXI, não pensam como esses professores socráticos,
epicuristas, estoicos e cínicos; como, por exemplo, os renascentistas
Rabelais e Erasmus. Eles cingem a pedagogia, imanente à produção,
apropriação e socialização de conhecimentos, em duas operações, como
fizeram os sofistas, jesuítas da Companhia de Jesus, escolanovistas. Os
teóricos da pedagogia bancária do século XXI (Tardif, Nóvoa, Gauthier
e Perrenoud) persistem prisioneiros da dualidade sofista. Aliás, à
sofisticaram ainda mais. Enquadraram a divisão da apropriação de
conhecimentos à racionalidade bancária das partidas dobradas: débito e
crédito. O sistema nacional de ensino passou a ser impensável e
ininteligível fora do enquadramento desta histórica dualidade
pedagógica estrutural. Para os teóricos da pedagogia bancária o ato
pedagógico compõe-se de duas operações: uma operação de crédito
(transferência ou transmissão de conhecimentos pelos professores) e em
uma operação de débito (recepção de conhecimentos pelo aluno). Esta é
a Lei Universal que regula racionalmente todas as ações do BGPB, do
SNGDEB e das AUFPPEB. Todos os CFPPGDEB funcionam de acordo
com esta lei, porque ela foi estabelecida pelo Ministério da Educação
(MEC) do Brasil, para regular as práticas no ensino bancário nas salas de
aula. As AUFPPEB que desrespeitarem esta lei correm o risco de
perderem a licença para funcionar.
O professor aparece no SNGDEB, curiosamente, como correntista
de uma agência bancária singular, uma agência que movimenta, através
das operações contábeis de débito e crédito, estoques consideráveis, não
de valores monetários, mas de conhecimentos valiosos, acumulados
geohistoricamente pela humanidade, concentrados nas AUFPPEB e
socializados em seus CFPPGDEB, pelos seus magníficos professores.
Todos os docentes das AUFPPEB possuem PHD em Harvard
(USA), na Universidade de Paris (Soborne), no Centre National de la
Recherche Scientifique (CNRS, França) e na Universidade de Jena
(Alemanha). Os conhecimentos transmitidos e transferidos pelos
professores das AUFPPEB foram adquiridos muito parcialmente nos
trabalhos acadêmicos usados para construírem suas teses. Para o ensino
bancário, os conhecimentos tácitos e empíricos valem mais do que
qualquer outro tipo de conhecimento, porque estes são adquiridos na
experiência profissional, na experiência empírica, ensinando mesmo em
salas de aula. Os adquiridos nos cursos de doutorado e pós-doutorado são
até importantes. Mas indiscutivelmente inferiores aos adquiridos na
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empiria do ensino na sala de aula. Como em tudo na vida, justificam esta


tese com o seguinte axioma: adquire-se os conhecimentos relativos ao
ensino, ensinando-se21!
Paulo Freire (2002) postula que os saberes empíricos são “saberes
feitos na-e-da experiência”, mas estes são muito frágeis, pois dotados de
“curiosidade ingênua”. É preciso transformar tais saberes e curiosidade
em “saberes objetivos” e “curiosidade epistemológica”. O que é possível
praticando estudos e pesquisas sistemáticos. Mas o SNGDEB rejeita e
descarta esta postulação de Freire.
Os teóricos representantes da pedagogia bancária e do ensino
bancário, no século XXI, consideram a tese de Paulo Freire ultrapassada.
Propõem exatamente o contrário. Sustentam que os saberes do ensino
são adquiridos ensinando. E que é nas atividades de sala de aula,
sobretudo ensinando, que se adquire habilidades técnicas e competências
cognitivas para se exercer o magistério com a excelência necessária.
Segundo eles, a excelência requerida pela profissão docente é adquirida
ensinando-se em salas de aula. É uma questão óbvia: ensinando nos
profissionalizamos como ensinadores.
Como correntistas do BGPB os professores com contrato de
trabalho assinado com as AUFPPEB têm acesso aos conhecimentos
necessários, prescritos em seus currículos, para ensinar; ensinando em
suas salas de aula arejadas e equipadas com os recursos de última geração
das tecnologias digitais da educação. Nas AUFPPEB os professores são
contratados exclusivamente para transferir ou transmitir os
conhecimentos, que adquiriram ao longo de suas vidas, ensinando os
alunos matriculados nos CFPPGDEB. É assim que o sistema de ensino
bancário funciona. É com esta metodologia que as AUFPPEB têm
formado excelentes profissionais: profissionais de ensino bancário de
Sociologia, profissionais de ensino bancário de Filosofia, profissionais de
ensino bancário de Geografia, profissionais de ensino bancário de
História. Profissionais de ensino bancário, ensinadores, que só sabem

21 Esta é uma tese sem fundamento. O professor não transfere ou transmite sua
técnica de ensino ou didática de exposição de conteúdos. Esta tem pouco interesse
para o aluno. A este interessa estritamente os conhecimentos transferíveis ou
transmissíveis. Técnicas de ensino ajudam, mas na pedagogia bancária não é o que
é essencial. Por outro lado, não há como transferir tais técnicas de ensino ou
didática. A questão fundamental não é como se ensina melhor, mas como melhor
podemos apropriar os conhecimentos. Mas, não para a pedagogia bancária! Esta
questão ou não se põe, não existe ou é irrelevante.
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ensinar (transferir, transmitir, informar, passar conhecimentos, não os


cria, tampouco os produz), porque se especializaram técnica e
bancariamente ensinando. Ensinam bancariamente como nenhum outro
profissional de ensino: ensinam e gerem ensino /.../, ensinam e gerem
ensino. É o que fazem! É o que aprenderam: trabalhar em sala de aula
ensinando. Eles exercem suas profissões de ensinadores tão bem que não
precisam de auxiliares de salas de aula, desonerando a folha de salários
de muitas escolas do Ensino Médio. O foco é ensinar e gerir, ensinar e
gerir, ensinar e gerir. As AUFPPEB não perdem o foco. Porque,
justamente, é o que as diferenciam das universidades tradicionais e
deletérias Universidades Públicas do Brasil. A orientação fundamental
das Diretrizes Curriculares Nacionais do SNGDEB é: nenhum professor
deve fazer pesquisa, e sobretudo estudar de forma metódica, regular e
sistemática. Essas ações oneram os custos com recursos humanos das
AUFPPEB. Pesquisas e estudos são concebidos como custos
desnecessários. Atividades como estas não têm a menor relevância no
mercado de ensino onde os profissionais de ensino bancário, ensinadores,
atuam22.
Os conhecimentos dos profissionais, formados nos CFPPGDEB das
AUFPPEB, são transferidos, transmitidos e incorporados ao corpo dos
graduandos durante as aulas. É o que ocorre na prática de ensino
bancário dos CFPPGDEB em ensino bancário de Sociologia, ensino
bancário de Filosofia, ensino bancário de Geografia e ensino bancário de
História. Os discentes que concluem tais Cursos profissionalizam-se com
os professores profissionalizados, financiados com bolsas da CAPES e
CNPq. São docentes profissionalizados em cursos de excelência,
reconhecimento e expertise, com Curriculum Lattes invejáveis. Todos
com teses e pesquisas em Gestão Democrática e Ensino Bancário.
Portanto, na área: ensino bancário de Sociologia, ensino bancário de
Filosofia, ensino bancário de Geografia e ensino bancário de História. Os
doutores e pós-doutores, assim profissionalizados, são altamente
especializados, conhecem tudo de Profissão Docente, Didáticas de
Ensino, Estágio Supervisionado, Prática de Ensino e Código
Deontológico da Profissão Docente.

22
Principalmente para as castas que governam o sistema nacional de ensino
bancário: as castas militares, financeiras (banqueiros), religiosas, as castas dos meios
de comunicação de massa, entre outras castas fascistoides.
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A expressão na área está em negrito porque é estratégica para os


Programas Curriculares dos Cursos de Formação de Professores-
Profissionais em Gestão Democrática e Ensino Bancário
(PCCFPPGDEB), vinculados aos SNEB, autorizados pelo MEC, e
institucionalizados nas AUFPPEB. Todos os CFPPGDEB, oferecidos
pelas AUFPPEB, são uniformes, padronizados e enquadrados nos
princípios e exigências das Diretrizes Curriculares Nacionais do
Currículo Único Bancário (DCNCUB). Elaboradas com a participação
dos docentes no processo que institucionalizou esse modelo bancário de
profissionalização docente. Portanto, a expressão na área, está coerente
com o ideário da profissionalização e do Código Deontológico da
Profissão Docente, no Brasil e no mundo.
O BGPB, desejando promover a reserva de mercado e o monopólio
de inserção no mercado de trabalho dos profissionais de ensino formados
na AUFPPEB, extinguiu do seu processo seletivo de docentes a
expressão áreas afins e a substituiu pela expressão na área; passando a
exigir do Estado a mesma atitude. E conseguiu institucionalizar essa
mudança. O objetivo é que no Ensino Médio a Sociologia seja ensinada
por profissionais-ensinadores de Sociologia, que a Filosofia seja ensinada
por profissionais-ensinadores de Filosofia, que a Geografia seja ensinada
por profissionais-ensinadores de Geografia e que a História seja ensinada
por profissionais-ensinadores de História. Garantindo-se, com isto, o
monopólio, a oligarquia e o corporativismo profissional, com o
dispositivo de poder na área! Todavia, com a mudança da condição de
áreas afins para a condição na área descarta-se a tese da meritocracia.
No mínimo esta passa a ser cinicamente defendida.
Com a seleção de professores na área, passando-se a se exigir o curso
de graduação dos inscritos, para deferimento de inscrição no concurso, o
inscrito aprovado e classificado deixa de ser aquele que melhor domine
os pontos sorteados da prova inscrita e da prova de aula. O que
comprometerá, no tempo, a excelência da universidade. Pois cada vez
mais serão contratados professores universitários menos qualificados. O
império do profissional se sobrepõe ao valor catedrático e acadêmico, a
formação clássica. Esta era valorizada nas tradicionais Universidades que
valorizavam o Ensino, a Pesquisa e a Extensão. Não mais nas
universidades operacionais. Nas AUFPPEB o que importa é,
exclusivamente, o ensino, o profissional de ensino, o ensinador; não mais
o pesquisador, acadêmico e catedrático.
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Com este ideal e esta nova legislação, intelectuais como Paulo Freire
seriam inabilitados a participarem de concursos públicos, para lecionar
em Cursos de Licenciatura Plena em Pedagogia, porque não seriam
profissionais-ensinadores de Pedagogia, mas jurista formado no Curso
de Graduação em Direito. Uma questão: mas ele não é o Patrono da
Educação Brasileira? Como é possível ser Patrono da Educação
Brasileira e ser impedido de participar de concurso público em
Pedagogia? Ora, porque é necessário ser graduado na área, máxima da
pedagogia bancária. O mesmo ocorre com o geógrafo Milton Santos, e
tantos outros. Milton Santos também não poderia participar de concurso
público, para lecionar em Cursos de Bacharelado ou Licenciatura em
Geografia, pois também é graduado em Direito. Mas quem são Paulo
Freire e Milton Santos diante dos milhões de ensinadores profissionais
formados nas AUFPPEB?

Estudo, formação de si e a leitura imanente como forças da vontade


de ser e viver livre estudando e possível caminho autolibertador do
povo brasileiro
A singularidade do Método Dialético de Estudo da Leitura Imanente
(MDELI) está na sua arte de cuidar de nós: cuidar da nossa autonomia e
cuidar da nossa independência intelectual, priorizando a formação de si
referenciada na formação humana e comprometida com a ética das
virtudes e a estética da existência. Como triângulo desencadeador do giro
reflexivo pedagógico libertador, o estudo, a formação de si e a leitura
imanente impõe-nos libertar das atividades e ocupações que nos sujeitam
à formação bancária e à pedagogia bancária, tipicamente capitalistas.
Para Bezerra (2021; 2019a e 2019b) o estudo é ao mesmo tempo
“atividade humana sensível”, libertadora e antecapitalista. Esta tese é
evidente, quando postula:
Nós somos livres e independentes estudando, o estudo é nossa condição
de liberdade. Logo, lendo e escrevendo, como os helenos e os socráticos,
somos capazes de sentir prazer e sabor. Em outros termos: somos livres
estudando, lendo e escrevendo, sentindo prazer de sermos livres em
imaginações, intuições, afetos e emoções.
No estudo nossos sonhos e imaginações criam asas e viajam e penetram
no universo linguístico dos mundos existentes. E dentro desse universo,
trabalhando nele, nos reelaboramos desde o nosso interior, alargamos e
ampliamos os limites de nossos horizontes, sentidos e percepções, nossas
latentes potencialidades humano-intelectuais.
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No estudo, conhecendo o significado das palavras ignoradas, as unidades


significativas e epistemológicas, na geografia textual, podemos apreender
e delinear a natureza do mundo cosmológico, biológico e humano,
podemos reelaborar as teorias existentes e fazer novas descobertas
científicas. Desta forma, fazemos as linguagens dos mundos desse
universo brotarem como obra de arte, e como seus artesãos podemos
contemplar a literaturalização desse universo com as linguagens
literárias das humanas-ciências, humanas-poéticas, humanas-políticas,
entre outras humanas-linguagens. Contemplar os ritmos e tons evocados
pela literaturalização desse universo. Na atividade singular que nos ajuda
na apropriação dessas linguagens, no estudo, também nos exercitamos
espiritualmente. Agimos, desta forma, sobre nós mesmos: sobre nossos
corpos e sobre nossas mentes, com alegria e paz interior, porque sabemos
que nos fazemos, desfazemos e refazemos quando estudamos e
conquistamos, por esta técnica de si, que é o estudo, a ‘tranquilidade da
alma’ que os estoicos, epicuristas, cínicos e socráticos tanto enfatizaram
e insistiram em viver, escrever e enfatizar em seus escritos filosóficos.
Porque tiveram a coragem de viver livres, sem peias nem beiras, ‘o amor
à sabedoria’. Viveram a filosofia como modo de vida, sem limites, e
aprenderam vivendo desta forma a organizar a vida na cidade, os modos
e formas de saberviver e fazerviver a vida cotidiana (BEZERRA, 2019b:
65).

Vivendo e reconhecendo as virtudes e potências do estudo, fomos movidos,


pelas forças dessas potências, a reconstruir o método da leitura imanente. Este
método não é uma receita pedagógica ou didática de ensino, é um processo de
trabalho intelectual, uma nova forma de fazer política: política de si,
constituída por momentos estratégicos – conjuntos de ações orgânicas,
articuladas e coerentes entre si – e momentos. O conceito de “momento”
foi-nos agraciado, generosamente, por Carlos Matus (1993, p. 297). Na
sua concepção: “Nenhum momento é necessariamente anterior ao outro.
Nenhum momento fecha ou termina o processo encadeado. Nenhum momento
começa ou termina num tempo preciso /.../23 (MATUS, 1993: 297).
Este conceito de momento é importante para compreender a
apropriação de conhecimentos proposta pelo método da leitura

23 As ciências, a dinâmica de apropriação dos conhecimentos, nos mais diversos


campos, também funcionam desta forma. A visão de Thomas Kuhn sobre a sucessão
de paradigmas científicos na história da Estrutura das Revoluções Científicas,
prisioneira da ideia de progresso, é equivocada e ultrapassada por esta perspectiva
dialética de momento de Matus.
48

imanente. Método de estudo forjado na formação de si pelo estudioso,


desde uma perspectiva geográfica, espacial, na escala territorial mais
elementar: a escala da pessoa que transita em vários espaçosvivos. Esta
descrição do espaçovivo confirma a definição de momento de Matus.
Parodiando Matus: os momentos da leitura imanente também se fazem
dinâmicos, dialéticos, em movimento espiralado e recursivo: são
“espaçosvivos onde imperam fluxos; onde vige a infinitude; onde há
apenas início e início; onde o espaço-tempo livres é exigido para, de fato,
haver estudo. Com essas características o estudo se contrapõe à gestão
taylorista dos corpos e movimentos, num tempo cada vez mais
comprimido e exíguo. O taylorismo impôs o empresariamento à
formação escolar e universitária, escancarando o que muitos nomeiam
produtivismo. Mas o estudo, materializado nos espaçosvivos dos
momentos da leitura imanente, desmonta e desfaz a formalização e
petrificação das linguagens das ciências, tornando-as flexíveis, fluidas e
leves”, pelo princípio educativo da amizade.
O estudo tem como consequência social a incontornável reinvenção
de si como pessoa. Mas desde que estas se proponham e se empenhem
em lutar, por si e para si, pela apropriação sistemática, regular e metódica
dos conhecimentos, socializados nos trabalhos acadêmicos e livros
didáticos.
Nos momentos do MDELI, verdadeiros laboratórios de recriação
literária das linguagens científicas, as pessoas tendem a personificar a
forma social estudioso. É no processo formativo desta personificação que
edificamos a “maioridade”, a autonomia e a autoria intelectual. O MDELI
está estruturado em quatro momentos estratégicos: Diálogo crítico;
Mapas das unidades significativas, epistemológicas e questões
norteadoras; Diário autoetnográfico e Intepretação compreensiva.
O método da leitura imanente sugere que durante o diálogo crítico
o estudioso construa os mapas das unidades significativas,
epistemológicas e identifique as fundações estruturais, as colunas e vigas,
as amarrações da geografia textual estudada, além de identificar as
questões norteadoras. Esses registros são organizados e
sistematicamente escritos e registrados pelos estudiosos. Sugerimos que
esses escritos sejam registrados em cadernos ou em folhas de papel
pautado. A elaboração do mapa das unidades significativas,
epistemológicas e das questões norteadoras, juntamente com o registro
das palavras desconhecidas, contribuem para a reconstrução, a
atualização e o enriquecimento da memória, justamente por contribuir
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para a assimilação das linguagens das ciências referenciadas no mundo.


Ciências exatas, naturais e humanas, consagradas e institucionalizadas
há séculos.
Como se nota, nesse breve esboço, a leitura imanente dispõe de
mecanismos dinâmicos de estudo para apreender os elementos basilares
da composição geográfica textual, dos trabalhos acadêmicos e livros
didáticos, que possibilitam a assimilação e a compreensão profunda das
linguagens e vocabulários das diversas ciências, sendo as unidades
significativas as unidades textuais mais elementares: categorias,
conceitos, ideias. As unidades epistemológicas constituem os
componentes textuais das linguagens das ciências: objetivo, hipótese,
método, postulado, pressuposto, entre outros.
Neste mesmo processo de reelaboração e reconstrução, decomposição e
recomposição das geografias textuais, manifestam-se, nos pesquisadores-
estudiosos, sentimentos, imagens, ideias, intuições, sensações e
imaginações, que, geralmente, são negligenciados e-ou desconsiderados
como momentos singulares do estudo, embora estejam sempre nele
presentes. Segundo Bezerra (2019a, p. 90), indica uma das pesquisadoras
iniciantes do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
(PIBIC, 2014-2016): “o estudioso não consegue manter-se indiferente e
frio durante o ato da leitura-escrita”. As palavras ferem a alma dos
leitores (escritores em potencial), o texto é uma totalidade de sentidos
humanos, concatenados numa específica geografia textual, e despertam
sentimentos latentes, imanentes à interioridade humana. Portanto, o
trabalho pedagógico é uma atividade sensível e sensibilizadora
(BEZERRA, 2019a).
Os mistérios intelectuais e cognitivos, imanentes ao vulcão da
interioridade humana, são despertados pelos “exercícios espirituais” da
leitura e da escrita, no ato do estudo. Mistérios que poderiam permanecer
mudos e em silêncio, e até silenciados, até à morte. O MDELI sugere que
registremos essas impressões no diário autoetnográfico, para refletirmos
sobre os mistérios dessas forças despertadas pelas potências libertárias
do estudo. É nos espaçosvivos da leitura imanente, no uso dos seus
momentos, onde manifestam-se os fenômenos sensíveis, psicológicos,
subjetivos e sublimes da apropriação de conhecimentos pelo estudo.
Trata-se de mais um momento deste método de estudo que reconhece
existir força interna ao corpo, psíquicopedagógica, agindo em silêncio
dentro de nós, como uma espécie de Alien, pulsando viva e latente,
mobilizada pelo estudo, e que deve ser encarada como constitutiva do
50

processo de pesquisa. Apesar de presentes e recorrentes, essa força


interior é imperceptível aos leitores passivos, que são “assujeitados”, mas
que também se permitem ser “assujeitados” pelo ensino bancário e à
pedagogia bancária, que oprimem e suprimem os afetos misteriosos da
interioridade vulcânica, despertados pelo estudo.
A “pulsão” psíquicopedagógica não é dada imediatamente aos
sentidos, mas, incontestavelmente, está presente no processo de
apropriação de conhecimentos. Admiti-la e reconhecê-la é o primeiro
passo para conhecermos as potências libertárias do estudo e ter a
possibilidade de trabalhar, simultaneamente, nesta potência ou pulsão.
Por isso é necessário escrever e registrar os seus efeitos,
conscientemente, no diário autoetnográfico.
Neste momento vivido como escrita-de-si-do-estudioso, neste
espaçovivo do diário autoetnográfico, o pesquisador abre-se ao
conhecimento de-si-no-estudo, e, por ser crítico, por exercitar-se na
crítica teórica e literária desde o diálogo crítico, criam-se as
possibilidades de o estudioso reconhecer seus limites intelectuais e
trabalhar para superá-los. A escrita no diário autoetnográfico deve ser
compreendida como a escrita de si, uma forma de escrita que potencializa
o cuidado-de-si mediado pelo desejo de conhecer-se a si mais
profundamente como estudioso.
O diário autoetnográfico é, pois, o momento em que o estudioso
reflete sobre suas ocupações cotidianas: os efeitos sobre sua
interioridade, sobre os pensamentos que habitam sua memória e
territorializam sua mente, muitas vezes sem o seu consentimento. Ele
sugere que nos perguntemos:
 Quais as consequências e implicações dessas atividades intelectuais –
estudo e pesquisa, responsáveis pela apropriação de conhecimentos e
assimilação das linguagens das ciências – em nossas vidas?
 Em que elas contribuem para o que desejamos ser-sendo? Para o nosso
ser-sendo?
 Quais os efeitos dessas atividades intelectuais sobre os objetivos que
nos propomos a conquistar em vida, existindo agora?
 Em que e como retardam ou aceleram a realização do nosso projeto de
vida, hoje?
 Em que medida incidem sobre nossa trajetória de vida hoje, agora, no
presente, em cada situação concreta?
 Em que afetam o controle que temos sobre nós, nossa vida, nosso
projeto, nossas aspirações e a trajetória da nossa curta existência neste
51

planeta?

Estas questões procuram evidenciar o que ocorre na ontologia do


presente do estudioso, no próprio ser de qualquer pessoa no percurso do
estudo, e estão vinculadas ao dinamismo realizado no diálogo crítico e
na elaboração dos mapas das unidades significativas e epistemológicas.
Trata-se de uma autoanálise dos sentidos (palavras, coisas e seus usos) e
sentimentos aflorados durante a realização dos dois primeiros momentos
do MDELI.
A leitura imanente é dotada de ações que permitem a tomada de
consciência dos pesquisadores, provocada pelas impressões das potências
do estudo nos nossos sentidos, percepções, consciências e toda
interioridade. Ações que mobilizam os pesquisadores desde a construção
do momento diálogo crítico à sua culminância: o momento interpretação
compreensiva. O momento interpretação compreensiva é mais um dos
momentos do método da leitura imanente. Ele ganha materialidade em
um texto de autoria dos estudiosos. “Concluído o trabalho inconcluso e
inesgotável” da leitura imanente, com a interpretação compreensiva,
temos um texto com introdução, desenvolvimento e conclusão. Uma
composição literária, geográfico-textual, pronta para ser lapidada,
transformada e publicada como trabalho acadêmico, um texto
reconstruído e reelaborado exclusivamente pelo leitor, estudante,
professor, pesquisador. Postulamos que nós “reelaboramos” nossas
existências elaborando os momentos da leitura imanente. A cada
exercício refazemos nossas existências e as atualizamos. Refazemo-nos e
atualizamos nosso ser quando estudamos. Esses são os efeitos concretos
das pulsões e potências libertárias do estudo.

 Diário autoetnográfico de uma pesquisadora iniciante


Neste item explicitaremos breves extratos do relato de experiência,
de uma das pesquisadoras iniciantes, que participou do PIBIC 2014-2016.
Os extratos indicam como ocorreu os efeitos dos estudos éticos de
Foucault na interioridade da pesquisadora iniciante24. Os estudos da
pesquisadora se concentraram na análise imanente do livro Hermenêutica
do Sujeito e de alguns ensaios do livro Ditos e escritos, Volume V. Abaixo
expõe-se um extrato dos diários autoetnográficos da pesquisadora,
24Para realização da pesquisa e publicização do relato há a anuência dos estudantes
com a assinatura do Termo de Livre Consentimento em Pesquisa.
52

dentre os vários diários realizados durante o PIBIC 2014-2016.


Evidencia-se nele o que compreendemos por autoanálise e conhecimento
de si como estudante, mediado pela escrita:
Já consigo perceber o desenvolvimento das minhas capacidades
intelectuais depois que passei a usar o método da leitura imanente. Por
exemplo, no modo de estudar. Algum tempo atrás lia o texto de maneira
despretensiosa, sem escrever ou registrar nada. Raras foram às vezes que
escrevi um comentário sobre o que li. Anseio deixar claro que a forma
como estudava não satisfazia minhas necessidades intelectuais de
compreensão e interpretação, tal como entendo hoje o que é compreender
e interpretar. Apesar de ser aquela a forma de estudo utilizada durante
toda a minha vida escolar, até ingressar na universidade. O que inclui o
primeiro período da graduação do Curso de Licenciaturas Plena em
Pedagogia. Só depois, já no segundo período e nos Grupos de Pesquisa
Sociologia do Trabalho (Pedagógico), Currículo e Formação Humana e
Milton Santos, que aprendi a estudar com o método da leitura imanente.
No uso dos procedimentos propostos, no empenho atencioso e dedicado
aos momentos da leitura imanente, é que minha postura como leitora-
estudiosa mudou essa situação. Desde então, minha prática de estudo
mudou totalmente. Com a utilização desse método desenvolvi um olhar
mais crítico e independente dos textos acadêmicos, diminuindo
relativamente a força da autoridade dos teóricos sobre mim, o que me
possibilitou perceber, e com mais consciência, as imaginações e
pensamentos que se manifestavam nas leituras que realizava. Este é um
sentimento mágico que me revelou a magia do estudo. O método da
leitura imanente exige um tratamento cuidadoso com a leitura do texto.
Mais do que leitura o método propõe estudo e empenho na escrita. Este
olhar crítico, esta atitude racional e sistemática para com a escrita, acabou
me mobilizando de um tal jeito que se estendeu para minha vida
intelectual como um todo. Na utilização do método somos exigidas e
instigadas a escrever. Acaba-se criando o hábito de estudar registrando
as unidades significativas, as unidades epistemológicas e as questões
norteadoras. Esse exercício gera disposições subjetivas e psicológicas.
Ler nunca mais será só ler. Ler, agora, com o método de leitura imanente,
significa entender, dialogar e, portanto, reconstruir, reconceituar e
ressignificar. É isto o que entendo, hoje, como trabalho educativo.
Atividade que deveria ser vivenciada e exercitada por toda rede escolar.
Ao longo da pesquisa várias inquietações surgiram, uma delas foi gerada
pela seguinte interrogação: a Universidade nos leva, realmente, a
compreender os conteúdos socializados nas diversas disciplinas
53

curriculares, ofertadas pelos Cursos de Graduação e Pós-graduação


(mestrado e doutorado)?
Infelizmente cheguei à conclusão que a Universidade não instiga os
alunos a estudarem, promove apenas aprovação compulsória nas
disciplinas, e que a maioria esmagadora dos docentes não têm qualquer
compromisso com a efetiva aprendizagem dos discentes. Não há uma
preocupação com o verdadeiro aprendizado, que só pode acontecer por
meio de método que contribua com a apropriação de conhecimentos e de
forma sistemática e regular. Isto é, através da reflexão do que se estuda e
registra. Escrevendo me deparo ainda com enormes dificuldades, mas
consigo sentir o avanço na minha maneira de estudar25 (grifos nossos).

A apropriação de conhecimento está presente nas atividades que


constituem a totalidade complexa do ser social. Nestas atividades – não
há atividades sem relações –, que existem nos espaçosvivos ou lugares
onde se estruturam as subjetividades pelas técnicas de subjetivação,
vivendo indiferente e de forma mecânica, sem criticar o que se faz, sem
se inquirir e tomar consciência de si, mesmo nas atividades intelectuais,
as pessoas desconhecem os porquês de questões que envolvem o estudo
e a existência, como: “por que se é o que é?”; “por que se é obrigado a
fazer isto ou aquilo”; “por que se é isto e não aquilo”; “por que não se
gosta de estudar”; “por que o ser humano é precisamente deste modo e
não de outro?”; “como se pode ser ou se conquistar o que se deseja ser?”;
“por que é tão difícil, às vezes considerado impossível, conquistar o que
se deseja”; “em que medida a formação inicial universitária fortalece as
distinções e desigualdades, como aquelas que envolvem a forma de ser
das pessoas, suas problemáticas, valores e princípios, enfim, sua
consciência e formas de ser e existir como estudioso?”. Todas essas
questões nos remetem a escrita de si, a autoanálise no estudo e nas nossas
existências.

 Diálogo crítico da pesquisadora iniciante com Foucault


No segundo semestre de 2016 a pesquisadora iniciante fez o diálogo
crítico de alguns ensaios do Volume V - Ética, Sexualidade e Política, da
Coleção Ditos e Escritos. Foram identificadas várias categorias
relevantes para a teoria da leitura imanente: sujeito, subjetividade, saber,

25 Registro da pesquisadora iniciante.


54

poder, ética e estética da existência. Segue texto parcial do diálogo crítico


da pesquisadora.
O sujeito é entendido de duas maneiras: como uma figura autorefenciada
em si mesmo, soberanamente livre, mas implicado em relações sociais.
Em Foucault o sujeito é analisado por meio da arqueologia, que considera
a constituição dos saberes, discursos (orais e verbais) e a circulação dos
objetos simbólicos como palavras e imagens. Trate-se de compreender o
sujeito tomando-o como base das determinações sociais e psicológicas, da
ordem do discurso e do regime de verdade. Esta noção de sujeito nos leva
a pensar na subjetividade, entendida como ‘a maneira pela qual o sujeito
faz a experiência de si mesmo num jogo de verdade, no qual ele se
relaciona consigo /.../’ (FOUCAULT, 2004: 236). Ora, se o sujeito se
constrói ‘num jogo de verdade’, ele se determina por meio de práticas de
podersaber ou saberpoder. E isto envolve as atividades26 que se realizam
em diferentes instituições e espaçosvivos. Pois o ‘jogo de verdade’ é
‘jogado’ dentro de uma hierarquia no ordenamento dos discursos, em
função de existir hierarquia nas relações socioespaciais. E não se vive tal
‘jogo’ no espaço vazio sem interação entre as pessoas. Essa verdade
existente no jogo é vivenciada como poder nas ‘relações de poder’. Trata-
se, portanto, de um fato social. O poder incrustrado no modo de ação
social, caracteriza-se como relacional. Não se confunde com o fato de
compreender de forma abstrata e unilateral que o poder é ‘produtivo’,
pois o poder produz inclusive o discurso de quem diz que ele é produtivo.
Produz inclusive o discurso do próprio Foucault. O que nos leva à
questão: que tipo de poder produz o saber e o discurso foucaultiano?
Portanto, a questão não é o fato de o poder ser difuso e horizontal; ou se
está em todo lugar e em lugar algum. A questão ontológica fundamental
é que o poder está em todos os discursos orais e em todos os discursos
verbais, e que tais discursos têm o poder de reproduzir a realidade em
nossas mentes, desde nossa visão de mundo. O poder está na visão e em
como a fazemos em nós. Um dos problemas da conceituação de poder-
difuso e sem localização socioespacial, é que nos parece que a hierarquia
socioeconômica desaparece, é dissolvida no imaginário do discurso

26 Método, atividade e “a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si” são
componentes da subjetividade, e epistemologicamente se equivalem. Pensando com
Foucault: nas atividades a posição de sujeito de si ou senhor de si “faz a experiência
de si mesmo [certamente onde existe, nos espaçosvivos], num jogo de verdade
[linguagens que reproduzem o mundo na mente dos sujeitos, o mundo onde esses
sujeitos existem], no qual o sujeito se relaciona consigo [mas os senhores de si, os
sujeitos de si, precisam de linguagens específicas para pensarem sobre si, sobre suas
existências nos espaçosvivos]”.
55

simbólico, mas o poder persiste concretamente na realidade dos fatos, nas


relações socioespaciais concretas, que se erigem nos espaçosvivos, por
meio das atividades que os constituem e os tornam realidades concretas.
Não é verdade que o poder seja invariável, que todos tenham a mesma
força no uso discursivo na ordem do discurso. O que para nós é pouco
plausível. No ‘jogo de verdade’ os jogadores que jogam no tabuleiro das
instituições capitalistas são posicionados de acordo com a cultura e as
riquezas acumuladas que possuem. Se poder e saber são indissociáveis, o
poder é intrínseco ao ato de conhecer, e os conhecimentos estão nas
atividades e ocupações humanas. O exercício do poder implica em
‘formar, organizar e pôr em circulação um saber, ou melhor, aparelhos de
saber’ (FOUCAULT, 2004, p. 89). As escolas e universidades são
‘aparelhos de saber’ do capital.
Outra categoria considerada no complexo categorial foucaultiano, é a
ética, que, em Foucault, difere da moral (conjunto de valores e normas
disseminados por instituições como família, escola, igrejas). A ética é
constituída no modo de vida, na forma como as pessoas vivem consigo,
com os outros e com as normas e valores. As éticas são imanentes às
práticas sociais. Sobretudo nas maneiras como as pessoas agem ou são
obrigadas a agir, nas atividades sociolaborais que realizam. Esta tese
pode ser estendida territorialmente para as formas como as pessoas
vivem nos espaçosvivos no-e-do território usado. Formas que afirmam a
autonomia ou a sujeição. Nesse sentido, ‘[as pessoas] não opera[m]
simplesmente como agente[s], mas, sim como sujeito[s] moral[is] de
suas ações’ (FOUCAULT, 2004: 211, grifos nossos). Em outros termos:
as ações dos ‘sujeitos assujeitados’ são portadoras de ‘moralidade’ porque
não há sujeito amoral. A partir da reflexão da categoria ética Foucault
analisa a categoria estética da existência. Tentarei apresentar como essa
categoria contribui para a leitura imanente. Em termos gerais, o sentido
da categoria estética da existência está relacionado aos atos de coragem das
pessoas ‘fazerem de sua vida uma obra de arte’. Portanto, esta categoria leva-
nos a pensar na relação da pessoa consigo, nas ações de si para consigo,
o que a leva a tomar consciência de si a partir da reflexão de si no mundo,
nos espaçosvivos, desde as atividades que realiza. Paratanto, utiliza a
capacidade e os recursos que controla, desde o centro prático de suas
ações.27

Para Foucault a estética da existência se faz presente nas “práticas


racionais e voluntárias pelas quais os homens não apenas determinam para si

27 Registro da pesquisadora iniciante.


56

mesmos regras de conduta, como buscam transformar-se e modificar seu ser


singular28”. (FOUCAULT, 2004: 198, grifos nossos). Ele complementa
esta postulação com o conceito de estética da existência: “/.../ ser moderno
não é aceitar a si mesmo como se é no fluxo dos momentos que passam; é tomar
a si mesmo como objeto de elaboração complexa e dura /.../29” (FOUCAULT,
2004: 290, grifos nossos).
Ora, esse conceito é fundamental para a leitura imanente, porque a
potência libertária do estudo atualiza a estética da existência. Ele sugere
questões relevantes: como podemos nos “elaborar” ou laborar no estudo?
Como “tomar-se a si mesmo como objeto de elaboração complexa e dura”,
no MDELI? Como “tomar-se a si mesmo como objeto de elaboração
complexa e dura”? Respondo: Como sujeito de si, senhor de si, governo
de si, nas atividades que laboramos, especificamente quando estudamos.
Podemos ter dificuldades em responder positivamente estas
questões. Mas em termos negativos podemos afirmar, sem medo de nos
equivocar, que o trabalho assalariado, necessariamente coisificado,
estranhado e fetichizado, quando laboramos para o outro – o empresário
capitalista –, nega a potência libertária da estética da existência,
ressaltada por Foucault.
Não é possível “tomar a si mesmo como objeto de elaboração
complexa e dura” ou transformar nosso ser singular numa civilização em
que impera o assalariamento capitalista, a profissionalização e o sistema
de ensino bancário. O principal obstáculo para potencializar a estética da
existência no estudo, e reposicionar os atores pedagógicos, de “sujeitos

28Esta definição contribui para pensarmos as características e a natureza do trabalho

pedagógico em pesquisa. Além disso, nos permite pensar sobre o trabalho


educativo, tal como Newton Duarte o define (DUARTE, 2003: 17-38). O trabalho
educativo, sobretudo o trabalho pedagógico em pesquisa, pode construir, segundo
Foucault, uma “vida [e] uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e
que corresponda a certos critérios de estilo” ou modo de vida, porque no trabalho
pedagógico também “tomamo-nos como objeto de elaboração complexa e dura”.
29 A categoria estética da existência é, assim, emblemática e necessária à teoria

sociofilosófica da leitura imanente. Mas há nesta proposição de Foucault algo que


nos incomoda. É que a atitude de “tomar a si mesmo como objeto de elaboração
complexa e dura” não é um posicionamento do “ser moderno”, mas do ser dos
filósofos antigos greco-romanos: socráticos, epicuristas, estoicos e céticos ou
cínicos. O ser moderno vive essa tomada de posição de forma contraditória e
ambígua. Na melhor das hipóteses, de forma ambivalente: em conflito e em luta.
Mas jamais como ideal possível ou utopia concreta, como caminho histórico de
objetivação do ser.
57

assujeitados” em sujeitos de si, é o sistema nacional de ensino bancário: a


ideia de ensino, a ideia de profissionalização e a concretização dessas
ideias. Essas ideias convertidas em ideais e projetos de vida, em escala
pessoal, atrelam e agrilhoam o trabalho pedagógico dos professores e
alunos à mercadorização dos sistemas de ensino.
A categoria estética da existência, relacionada à produção de si,
sugere que cuidemos de nossas vidas o quanto antes, agora, se
pretendemos vertê-la em obra de arte. Viver como artesão de si, como
escultor de si é o princípio ético mais vigoroso da filosofia antiga. Fazer
da vida uma vida intelectualmente virtuosa, fazer da formação de si uma
filosofia de vida, eis a arte de saber viver protagonizado pelos filósofos
greco-romanos.
O que nos parece relevante da estética da existência é o fato dos
exercícios espirituais, que estão nela implicados, posicionar as pessoas
como senhoras de si, seres artísticos, artesãos de si, escultoras
existenciais que esculpem a interioridade humana. Ora, isto é uma
conquista das potências libertárias do estudo, despertadas pelo método
da leitura imanente30. Há no estudo uma potência pedagógica libertária.
Mas desde que o vivamos como técnica de si, cuidado de si, terapia,
exercício espiritual, atividade humana sensível, trabalho em si, de si, por
si e para si. Só assim damos fluxo às potencias e forças do giro reflexivo
pedagógico libertador. E, por isso mesmo, como ato político, política de
si, atividade pilar que organiza a vida dos estudiosos e estudiosas na
cidade.
Vivido como modo de vida o estudo é a luz em torno da qual giram
todas as atividades e ocupações possíveis e existentes, na polis grega e
helênica (aqui já em decomposição). A política de si envolve,
simultaneamente, técnica, estética, ética e existência. A política de si é
uma forma de exercer o poder nos espaçosvivos dos momentos da leitura
imanente. Isto em escala pessoal, onde existimos concretamente com os
outros de carne, osso e alma.
A estética da existência, tal como conceituada por Foucault, nos
posiciona como sujeitos de si na pesquisa e no estudo. Mas a posição de
sujeito de si, no âmbito do sistema nacional de ensino bancário, é uma
conquista pessoal e social dolorosa. Para podermos nos investigar é
30O MDELI desperta as potências libertárias do estudo nos espaçosvivos de seus
momentos, e essas potências materializam-se na formação de si, cujo
desdobramento psiquicopedagógico materializa a autonomia e emancipação
intelectual, a autoria e a conquista da “maturidade intelectual”.
58

necessário “tomarmo-nos como objeto de elaboração complexa e dura”,


não é tão somente como objeto de investigação positivista – porque, neste
caso, faríamos a objetificação ou coisificação de nós mesmos –, mas como
“objeto de elaboração”. Nos “elaboramos” no estudo. A posição sujeito de
si é a posição do intelectual outsider e independente, senhor de si 31.
Todavia, como adverte Apple, a posição do sujeito de si, autônomo e
crítico, “envolve a compreensão de um conjunto de circunstâncias
historicamente contingentes e [a compreensão] das contraditórias
relações de poder [do capital e da formação bancária] que criam as
condições nas quais vivemos” (APPLE, 1997: 18).
A “posição sujeito de si” ou intelectual outsider se diferencia da
posição “sujeito assujeitado”. A subjetividade de um e outro são
absolutamente antagônicas. A “posição sujeito de si” é um horizonte
utópico e ideal concreto, antagônico à forma como o capital posiciona os
“sujeitos assujeitados” e a formação bancária posiciona os atores
pedagógicos: docente e discente, nos espaçosvivos das instituições de
ensino32.
A “posição sujeito de si” é o anverso da posição “sujeito assujeitado”.
Mas a conquista da “posição sujeito de si” exige a conquista do governo
de si. Isto é, sugere que as pessoas conquistem a condição senhor de si. E
esta conquista pressupõe o exercício cotidiano de nos “tomarmos, a nós
mesmas, como objeto de elaboração complexa e dura”, no estudo. Trata-
se de nos convertermos em estudiosos.
A categoria estética da existência nos encoraja a fazermos de nós
mesmos sujeitos de nossa “elaboração”, nas atividades que realizamos. O
que implica em conquistar o poder de não apenas reinventarmos nossas
vidas, mas reinventarmos o universo com seus mundos e reinventarmos
a sociedade, e de acordo com nossas razões, afetos, desejos e vontades.

31 Impossível desenvolver essa problemática aqui. Mas é necessário registrar que, a


posição sujeito de si difere da posição objeto, e da posição “sujeito assujeitado”. A
posição sujeito de si é a mesma do senhor de si. E antípoda à posição “sujeito
assujeitado”. A estética da existência é o ninho da posição sujeito de si e nega a
pedagogia bancária em termos absolutos. Esta afirma a posição “sujeito
assujeitado”. A posição sujeito de si é antagônica a posição sujeito na relação sujeito-
objeto, da pedagogia bancária e da filosofia kantiana. A posição sujeito de si é dotada
de uma subjetividade singular e oposta à de sujeito na relação sujeito-objeto e na
condição social de “sujeito assujeitado”.
32 A pedagogia é uma química imanente às formas de apropriação de conhecimento:

dos métodos de estudos sistemáticos ou arbitrários.


59

Qual o problema desta reinvenção se a natureza do ser social é ser zõon


politikõn?
Postulamos que “a posição sujeito de si” é uma das conquistas do
processo formativo, desencadeado pelo horizonte da leitura imanente.
Ele posiciona as pessoas como sujeitos de si, desde o diálogo crítico. Toda
a teoria e filosofia social da leitura imanente valoriza e privilegia a
posição sujeito de si, os seus próprios momentos orientam as pessoas a se
posicionarem como sujeito de si no estudo33. Esta foi a marca profunda
da experiência PIBIC 2014-2016. Os momentos da leitura imanente, tal
como o conceito da categoria estética da existência em Foucault, exigem-
nos que personifiquemos a forma social estudioso (intelectual outsider),
que é uma forma social singular de zõon politikõn, mesmo na condição de
pesquisador iniciante, inclusive na de estudante. A posição sujeito de si
coincide com a forma social estudioso no método da leitura imanente.

Conclusão inconclusa
Partindo do conceito da categoria institucionalização proposto pelo
filme Um sonho de liberdade, perscrutamos, com La Boétie, a
institucionalização da tirania ou criação da geografia da dependência
social. Em outras palavras, como é anulada, nas pessoas, a vontade de ser
e viver em liberdade, nos processos de sociabilidade nos espaçosvivos. A
servidão é fruto da educação, da formação de si para consigo, que
caracteriza o giro reflexivo. Particularmente o giro reflexivo da
pedagogia da servidão. O estudo é a arma, sacada por La Boétie, para
resistir, combater e vencer a pedagogia da servidão voluntária. Eis a tese
fundamental do livro O discurso da servidão voluntária, escrito em 1563.
À tese de La Boétie acrescentamos o método de estudo da leitura
imanente, alinhando-o à tradição da pedagogia libertária e com isto
tivemos que desenvolver uma teoria social e uma filosofia social do
estudo. Fazer ver o estudo como modo de vida e arte de viver foi a meta
que nos propomos neste ensaio, incorporando, piamente, a tese boétieana
ao método da leitura imanente, aqui brevemente esboçado em suas
características empíricas basilares.

33 Porque o estudioso já o é. Ao potencializar o estudo a leitura imanente


potencializa o sujeito de si. Os espaçosvivos dos momentos da leitura imanente são
habitados pelo ser e a subjetividade do sujeito de si, senhor de si, intelectual
outsider, autônomo, independente, descolonizado, que governa a si mesmo. É este
ser que nomeamos sujeito de si.
60

A pedagogia da servidão está na base da geografia da dependência


social. Primeiro na configuração dos espaçosvivos, no século XVI, no
Antigo Regime ou Monarquia Absoluta. Nesse regime de acumulação o
senhor que serviliza é uma pessoa, “um nome”, sob as máscaras ou formas
sociais da nobreza, como as do Imperador ou Rei. Mas após as revoluções
burguesas do século XVIII, a sociedade capitalista ergue o dinheiro e as
mercadorias como signos de riqueza e poder. Com isto, tudo muda!
Sobretudo a partir do princípio da impessoalidade e criação das
sociedades anônimas e dos proprietários privados dos meios de vida.
O pressuposto ontológico da sociabilidade capitalista é que as
pessoas são obrigadas a personificar formas sociais para poderem se
relacionarem entre si e consigo mesmas. Formas sociais projetadas por
relações sociais. No capitalismo essa personificação se impõe como
dominação porque as formas sociais são formas capitalistas subjugadas à
administração do capital e seus intelectuais orgânicos. E a instituição
exemplar onde essa transfiguração ocorre é a instituição de ensino:
escolares e universitárias.
A geografia do capital estrutura uma geografia da dependência social
singular. E essa dependência se materializa nos espaçosvivos onde as
pessoas existem concretamente. Paratanto, pressupõe um tipo específico
de apropriação e socialização de conhecimentos, orientado pela
pedagogia bancária e efetivada pelo ensino bancário.
Descobrimos com Milton Santos que os sistemas técnicos que
criaram as condições de possibilidade para a globalização financeira: a
informática: informação automática, informação em tempo real, foi
responsável por dois tipos de tirania: a tirania do dinheiro e da
informação. Mas, na medida em que o “dinheiro em estado puro” se torna
hegemônico, na forma do crédito e da dívida, a perversão global é
aprofundada e ampliada. Situação que nos permite qualifica-la de
tragédia. Vários pensadores corroboram com esta tese de Milton Santos.
A pedagogia da servidão voluntária, imanente à pedagogia da tirania,
esculpida literária e artisticamente pela pena, corpo e alma de La Boétie,
não foi enterrada no século XVI. Tampouco desapareceu nos séculos
seguintes. E para provar sua vitalidade e força transhistórica, parecendo
imanente ao ser das sociedades que persistem na pré-história da
humanidade, indicamos alguns trabalhos acadêmicos, contemporâneos,
que reconhecem tacitamente a “atualidade” da servidão social na
modernidade. Reconhecimento encontrado desde os escritos de Marx.
Trata-se dos trabalhos acadêmicos de Ricardo Antunes e Virgínia
61

Fontes. Esta última provocada pelo artigo de Adriana Geisler. E como


abordagem geográfica original da tirania encontramos a obra de Milton
Santos: Por uma outra globalização.
Todos esses trabalhos acadêmicos, contemporâneos, revelam a força,
atuação e vitalidade da pedagogia da servidão voluntária. Parece
intrínseca às sociedades desiguais. Faz supor que a persistência das
desigualdades exige a anulação persistente da vontade de ser e viver livre
estudando.
Por outro lado, a análise do filósofo da educação Fernando Bárcena
ressalta, em seus estudos sobre o Plano de Bolonha e sobre as
Declarações que dele sucederam, a emergência de um fenômeno
preocupante para a pedagogia da autonomia ou libertária: o crédito
bancário como unidade de medida do crédito curricular oferecido pelas
universidades europeias. Indicando com isto que a pedagogia bancária, o
ensino bancário, suprassumido às partidas dobradas do débito e crédito,
atingiu um limite máximo no final do século XX. O crédito educativo,
financiado pelos Bancos, que facilitará o domínio planetário dos sistemas
nacionais de ensino bancários, e de todas as populações de professores e
estudantes, existentes no mundo, pelos banqueiros e especuladores. Caso
isso ocorra estaremos diante do totalitarismo do capital. Isto é, do
domínio do complexo cultura da humanidade pelos banqueiros e
especuladores e seus intelectuais orgânicos. Esta possiblidade fez-nos
imaginar um fictício Banco Globalitário da Pedagogia Bancária, com sede
no Império do Tio Sam. Trata-se de uma tragédia para a tradição da
pedagogia libertária.
Mas nem só de tragédia vive a humanidade. A filosofia clássica, cuja
condição de possibilidade foi o tempo livre, viveu o seu auge, justamente,
porque o estudo foi encarado como modo de viver, como filosofia de vida,
como razão de ser do cidadão grego. Assim foi concebido como técnica
de si, askesis, catarse. O modo de vida prioritário dos cidadãos gregos: os
humanos livres para filosofar ou “dedicar a vida a sabedoria”. O estudo
foi concebido como um exercício espiritual capaz de transformar a vida dos
estudiosos em obra de arte. Além de aprimorar a ética das virtudes.
Estudar era vivido como fundamento da estética da existência.
Inspirados nesta filosofia reconstruímos o método de estudo da
leitura imanente, que foi compartilhado em diversas Pesquisas de
Iniciação Científica, projetos de monitoria e projetos de extensão, nos
possibilitando alcançar resultados dignificadores. Se tornou parte da
grade curricular da disciplina Sociologia da Educação. A articulação de
62

todas essas atividades construiu uma formação oposta à formação


endossada pela pedagogia bancária, pedagogia da dependência ou
pedagogia da servidão voluntária; e foi registrada em cadernos e papel
pautado por diversos estudantes, da Universidade Federal de Alagoas,
entre 2011 e 2017.
Dentre o cipoal desses registros selecionamos apenas um para
demonstrar e compartilhar, com os leitores e leitoras, a potência
libertária do estudo.
Ora, os registros da pesquisadora iniciante que utilizou os aplicativos
da leitura imanente, no PIBIC 2014-2106, são enfáticos em afirmar que
a pesquisa resultou numa “conclusão inconclusa”, numa “conclusão
inacabada”. Mas o que significa isto? O que significa esta “conclusão
inconclusa”: a infinitude do estudo em relação a infinitude do gênero
humano e a finitude de cada pesquisador-estudioso?
Significa que a grande “relevância” desta pesquisa, realizada tanto no
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), quanto em
outros programas, Programa de Ações Interdisciplinares (PAINTER) e
Programa Círculos Comunitário de Atividades Extensionistas (ProCCAExt),
abriu o caminho para reconstruirmos o significado da potência libertária
do estudo, na sequência da elaboração de nossa crítica à Geografia do
capital e aos Efeitos do território do capital sobre a educação escolar (esta
elaborada com Denis Avelino). Concluímos o PIBIC em 2016 com a
certeza de que não concluímos o estudo proposto no cronograma do
Projeto. Isto por um lado. Mas o fato mais relevante é que após 2016
continuamos vivos e com as mesmas preocupações do início da
pesquisa34.
Descobríamos com essa náusea, com essa sensação de impotência e
ausência de plenitude, que o estudo é necessário à existência humana. E
concluíamos a experiência intelectual do PIBIC 2014-2016 mais
conscientes dos efeitos do método da leitura imanente na formação de si.
Como docentes e discentes comprometidos, mais do que tudo, com o
estudo e a pesquisa. Eis a contribuição dos Programas indicados acima:
eles nos permitiram “tomarmos, a nós mesmos, como objeto de

34 Ainda persiste o domínio da formação bancária em todo sistema de ensino


brasileiro e as consequências desse domínio tornam-se trágicas com a expansão da
EAD no formato hibrido e remoto. Essa expansão transforma as casas em
ambientes de trabalho. O que ocorre, hoje, é a expansão da colonização do
ciberespaço pela educação bancária.
63

elaboração complexa e dura”, e despertou-nos o desejo ardente de


persistirmos nos “elaborando” por nós mesmos, com nossas razões,
vontades e desejos; eles nos permitiram experimentar a força das
potências libertárias do estudo e, nelas, a foça da estética da existência e
da ética das virtudes; eles nos encorajaram a persistir “buscando nos
trans-formar e modificar [pela leitura imanente e a formação de si] nosso
ser singular, e fazer de nossas vidas uma obra que seja portadora de
certos valores estéticos”. E, desta forma, aprimorarmos o nosso ser no
aprimoramento do método da leitura imanente.
O que significa que não se conclui uma pesquisa, desta natureza, com
o fim de um projeto de pesquisa. Ela tem desdobramentos e implicações
que apenas se resolvem com outras pesquisas, até conseguir que as ideias
daí resultantes se exprimam em uma política que combata a política
nacional de ensino bancário. Mas, até lá, podemos persistir insistindo em
nos “tomarmos, a nós mesmos, como objeto de elaboração complexa e
dura”, usando a leitura imanente em nossos estudos e pesquisas como
política de si, comprometida com a formação de si, referenciada na
formação humana.
Portanto, para nós que experimentamos o método dialético da
leitura imanente, em nossos estudos e pesquisas, não temos dúvidas da
relevância e das consequências práticas das potências libertária do estudo
na formação escolar e universitária.
São inegáveis as conquistas intelectuais alcançadas pela leitura
imanente e registradas nos relatórios parciais e finais do PIBIC 2014-
2016. Com esses resultados e o domínio do método o Grupo passou a
compartilha-lo com os professores do ensino fundamental e os
professores e estudantes do Ensino Médio. Essas iniciativas têm
gratificado todo o nosso trabalho.
E, como política molecular, em escala pessoal ou individual, o
método ganha, a cada dia, novas adesões. O que abre a oportunidade para
territorializar a leitura imanente objetivando aprimorar os atores
pedagógicos em termos técnicos, éticos e estéticos, na medida em que
eles são posicionados como sujeitos de si no estudo e o experimentam
como modo de vida. Isto é o que a leitura imanente tem despertado e
desencadeado. Dada tais conquistas, acreditamos que a socialização do
método da leitura imante seja um projeto exequível para autolibertação
de qualquer povo, sobretudo a do provo brasileiro.
64

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