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Ciro Bezerra
ciro.ufal@gmail.com
Introdução
A dependência tratada neste ensaio não tem como foco a dependência
de um país em relação a outro desenvolvido ou, mais genericamente, dos
países dependentes do Sul em relação aos países independentes do Norte.
Trata de outro tipo de dependência: a dependência interna de um povo
em relação a si e às suas elites. Mais especificamente, trata dos
mecanismos que criam e reproduzem, continuamente, esta dependência
profunda, sociopsíquica e socioespacial, de um todo complexo com muitas
determinações históricas, geográficas, sociais, culturais, econômicas e
educativas ou formativas. Mas o ensaio aponta também caminhos
possíveis para a autolibertação de um povo tiranizado e demonizado por
suas castas.
De fato, encontramo-nos hoje, no Brasil, numa situação dramática.
Parece que a Caixa de Pandora foi aberta e todos os demônios do fascismo
soltos. O inferno se instaurou e a escravidão do povo brasileiro parece
revigorada por castas sui generis. Marilena Chauí, em várias de suas
conferências e trabalhos acadêmicos, tem nomeado essas castas de castas
dos quatro beis: da Bíblia, da Bala, do Boi e, mais recentemente, dos
Bancos. Jessé Souza chama essas castas de “elites do atraso”. Mas,
independentemente dos nomes que atribuamos a elas, o importante é que
essa estrutura tirânica e desumana vem se perpetuando ao longo da
história brasileira.
Tínhamos uma falsa impressão que essas castas tinham sido
neutralizadas, ou pelo menos contidas, na década de oitenta, com o “fim”
do Regime Empresarial-Militar e a redemocratização. Mas
surpreendentemente elas ressurgiram e iniciaram um golpe em 2014 e
tomaram de assalto o governo do Estado brasileiro, com o golpe
parlamentar, em 2016. Nas eleições de 2018 elas se articularam em seu
conjunto e conseguiram aprisionar o seu maior adversário político e,
pelos meios de comunicação de massa, um fascista, racista, terrorista,
militar e corrupto foi elevado à presidência da República das Castas
Brasileiras.
Desde então, o Brasil foi deslocado velozmente para sua posição
histórica original, na economia mundial, pelo pacto das castas
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(2018).
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5Ivan Illich usa a palavra “ferramenta convivencial” para referir-se a todo espaço
de produção da autonomia, como bibliotecas, em contraposição à escola, produtora
de heteronomia.
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livreiro da prisão. E é esta forma social que é vivida pelo ator. Embora
esse conceito tenha sido criado por uma ficção, uma representação
cinematográfica, compreendemos que ele diz muito sobre como vivemos
na realidade concreta, como nós nos institucionalizamos, numa relação
de si para consigo, vivendo a vida dentro e fora das instituições. E isto
ocorre, sobretudo, nas instituições de ensino. Vale dizer: na tirania e na
servidão, na democracia formal e na dependência social, na geografia da
dependência social, as pessoas são ensinadas e educadas a viverem nestas
situações e condições sociais. Mais grave: elas têm o poder de anular nas
pessoas a vontade de as pessoas serem livres e viverem em liberdade no ensino e
na formação, por exemplo, quando desejam ser profissionais, uma
mercadoria que circula no mercado capitalista do trabalho. Esta vontade
faz-se latente, inclusive, nos Programas de Pós-graduação. Esta é uma
questão sistêmica, territorial, imanente às dinâmicas territoriais do
capital. Ou a destruímos e construímos outra ou submetemo-nos a ela,
não há outra opção! Não se reforma a dinâmica do capital porque ele
domina toda reforma possível desta dinâmica. O que observamos com as
reformas é, sempre, a perpetuação do domínio do capital. Assim, o capital
submete as reformas de suas dinâmicas perversas aos seus ditames,
princípios e diretrizes.
Mas nenhuma institucionalização é, de fato, total e definitiva. Dentre
as cenas mais relevantes que enfatizam as lacunas e temporalidade
relativa desse processo, destaca-se aquela em que o contador Dufresne
compartilha uma música – As bodas de fígaro, de Mozart –, com todos os
prisioneiros e eles ficam ali, no pátio do presídio, imóveis, hipnotizados e
arrebatados por aquela melodia. De repente o pátio do presídio, o
dormitório dos guardas, a mercenária dos presos de Shawshank vira
Woodstock ou concerto de música clássica, ao ar livre. E as potências
vivas, latentes, da interioridade humana, são despertadas como são
despertadas as larvas de um vulcão numa explosão em chamas.
Impossível tentar conter essas forças vulcânicas por qualquer força
externa. Elas são indomáveis. Não há meios que possam contê-las. Elas
partem correntes, independentemente de sua espessura. É a mesma força
que faz os povos em revolução bradarem: “viva a Revolução!”,
“trabalhadores de todo o mundo: uni-vos”.
A música, compartilhada por Andy Dufresne, no presídio de
Shawshank, muda completamente os rostos, olhos e sentidos dos
prisioneiros. Muda os semblantes de seus rostos provocada pelas foças
despertadas pela linguagem da música. Os semblantes dos prisioneiros
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6 Esse tipo de “formação”, “formação em si, de si, por si e para si”, que pressupõe o
giro pedagógico reflexivo, é exercitado no momento “diário etnográfico” do método
de estudo da leitura imanente, que explicaremos ao final deste ensaio, no relato de
uma pesquisadora iniciante.
7 Notemos que La Boétie não faz diferença entre “criação” e “formação”. Mas estas
sistema.
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14O princípio educativo que erigiu as escolas no Brasil remonta à ação dos Jesuítas,
no século XVI. Seu instrumento principal foi a Ratio Studiorum (Plano de Estudo),
de 1551, onde Jerônimo Nadal, a pedido do fundador da Ordem, Ignácio de
Loiola, elaborou o primeiro regulamento que foi enviado aos colégios da
Companhia de Jesus.
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15 Há uma linha de pesquisa, coordenada por Ricardo Antunes, na qual ele vem
conquistando resultados promissores. Resultados que têm sido publicados em
diversos trabalhos acadêmicos. Entre esses trabalhos destacam-se os livros,
organizado por ele e Ruy Braga: Infoproletários: degradação real do trabalho virtual
(2009); Uberização, trabalho digital e indústria 4.0, organizado apenas por Ricardo
Antunes (2020b).
16 Gostaria de destacar dois artigos que enfatizam a tendência e a atualidade da
onde existem. Por sua vez, Fontes apoia-se na teoria social da história.
Sobretudo em Thompson (1989 e 1995) e Marx (1985).
Indicado o encaminhamento histórico da sua análise, a segunda tese
do trabalho de Fontes abrange dois sentidos. O primeiro é o de que a
liberdade do trabalhador, no capitalismo, se desdobrou de uma clivagem
entre “a formação concreta da liberdade separada da propriedade efetiva”
e dos conhecimentos incorporados pelas pessoas no processo de
valorização do capital, conhecimentos incorporados às máquinas, meios
e instrumentos de trabalho. Esse fato sociogeohistórico é a base
ontológica de sua outra tese, que diz respeito ao vínculo entre liberdade
e propriedade: quanto maior o patrimônio empresarial, maior a liberdade
do proprietário, e o patrimônio é resultado da “recompensa do trabalho
[abstrato], uma forma ideal”.
Marx nomeia esta abstração, idealizada, de “forma fantasmagórica”
ou “fetichista” da mercadoria. Na realidade, tal clivagem e idealização,
além de ocultar e encobrir a realidade do trabalhador assalariado, sua
trágica miséria e estranhamento no mundo das mercadorias, “instaura,
historicamente, uma enorme cisão entre a propriedade efetiva [abstrata],
que controla e domina o processo produtivo, e ato concreto de produzir
(tanto a produção de bens tangíveis [e intangíveis] e de todas as
necessidades, inclusive culturais e artística)” (FONTES, 2006: 433).
Se a questão formulada anteriormente por Fontes foi respondida por
La Boétie, há, entretanto, outra questão, a nosso ver é mais relevante que
a anterior, que não apenas sentimo-nos seduzidos em responder, mas que
norteia este ensaio, e que assumimos como desafio à nossa imaginação
filosófica, há muito tempo:
Como é possível viver num mundo no qual ao mesmo
tempo que se é instado a criar, agir, produzir, realizar algo
para além da mera reprodução imediata, a contribuir,
portanto, para uma coletividade social (cujas dimensões são
variáveis, desde a família até a nação ou a própria noção de
humanidade) e, simultaneamente, conviver com a
‘despossessão’, a expropriação sistemática dessa mesma
capacidade? (FONTES, 2006: 434).
BGPB – FILIAL
BRASIL
MEC – SISTEMA NACIONAL DE GESTÃO DEMOCRÁTICA DO ENSINO BANCÁRIO - SNGDEB
21 Esta é uma tese sem fundamento. O professor não transfere ou transmite sua
técnica de ensino ou didática de exposição de conteúdos. Esta tem pouco interesse
para o aluno. A este interessa estritamente os conhecimentos transferíveis ou
transmissíveis. Técnicas de ensino ajudam, mas na pedagogia bancária não é o que
é essencial. Por outro lado, não há como transferir tais técnicas de ensino ou
didática. A questão fundamental não é como se ensina melhor, mas como melhor
podemos apropriar os conhecimentos. Mas, não para a pedagogia bancária! Esta
questão ou não se põe, não existe ou é irrelevante.
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Principalmente para as castas que governam o sistema nacional de ensino
bancário: as castas militares, financeiras (banqueiros), religiosas, as castas dos meios
de comunicação de massa, entre outras castas fascistoides.
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Com este ideal e esta nova legislação, intelectuais como Paulo Freire
seriam inabilitados a participarem de concursos públicos, para lecionar
em Cursos de Licenciatura Plena em Pedagogia, porque não seriam
profissionais-ensinadores de Pedagogia, mas jurista formado no Curso
de Graduação em Direito. Uma questão: mas ele não é o Patrono da
Educação Brasileira? Como é possível ser Patrono da Educação
Brasileira e ser impedido de participar de concurso público em
Pedagogia? Ora, porque é necessário ser graduado na área, máxima da
pedagogia bancária. O mesmo ocorre com o geógrafo Milton Santos, e
tantos outros. Milton Santos também não poderia participar de concurso
público, para lecionar em Cursos de Bacharelado ou Licenciatura em
Geografia, pois também é graduado em Direito. Mas quem são Paulo
Freire e Milton Santos diante dos milhões de ensinadores profissionais
formados nas AUFPPEB?
planeta?
26 Método, atividade e “a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si” são
componentes da subjetividade, e epistemologicamente se equivalem. Pensando com
Foucault: nas atividades a posição de sujeito de si ou senhor de si “faz a experiência
de si mesmo [certamente onde existe, nos espaçosvivos], num jogo de verdade
[linguagens que reproduzem o mundo na mente dos sujeitos, o mundo onde esses
sujeitos existem], no qual o sujeito se relaciona consigo [mas os senhores de si, os
sujeitos de si, precisam de linguagens específicas para pensarem sobre si, sobre suas
existências nos espaçosvivos]”.
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Conclusão inconclusa
Partindo do conceito da categoria institucionalização proposto pelo
filme Um sonho de liberdade, perscrutamos, com La Boétie, a
institucionalização da tirania ou criação da geografia da dependência
social. Em outras palavras, como é anulada, nas pessoas, a vontade de ser
e viver em liberdade, nos processos de sociabilidade nos espaçosvivos. A
servidão é fruto da educação, da formação de si para consigo, que
caracteriza o giro reflexivo. Particularmente o giro reflexivo da
pedagogia da servidão. O estudo é a arma, sacada por La Boétie, para
resistir, combater e vencer a pedagogia da servidão voluntária. Eis a tese
fundamental do livro O discurso da servidão voluntária, escrito em 1563.
À tese de La Boétie acrescentamos o método de estudo da leitura
imanente, alinhando-o à tradição da pedagogia libertária e com isto
tivemos que desenvolver uma teoria social e uma filosofia social do
estudo. Fazer ver o estudo como modo de vida e arte de viver foi a meta
que nos propomos neste ensaio, incorporando, piamente, a tese boétieana
ao método da leitura imanente, aqui brevemente esboçado em suas
características empíricas basilares.
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