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INTRODUÇÃO
Todas as ciências que têm o homem como objeto de observação e análise
ocupam-se hoje do que faz dele um ser vivo distinto de todos os demais: sua
linguagem. Este fato expandiu consideravelmente as perspectivas de enten-
dimento da cultura e das formas simbólicas da interação humana, graças
à interface entre, por um lado, a linguística e, por outro, a antropologia, a
etnologia, a psicologia, a sociologia, a história, a psicanálise, a biologia, a
neurologia etc. Pode-se dizer que, se o século XIX ocidental privilegiou o
olhar histórico e evolutivo na compreensão da natureza e dos bens simbó-
licos, o século XX, 'era dos extremos' segundo a expressão de Eric Hobs-
bawm", distinguiu-se pelo debate sobre a `legitimidade da diferença'. Esta
diz respeito fundamentalmente ao eixo eu / outro (neste incluídos o tu e o
ele), mas se expande, a partir desse eixo, para outras polarizações, a saber:
unidade versus diversidade, sistema versus uso, padrão versus desvio.
A relatividade domina a cena e corrói os pilares que, petrificados ao
longo de séculos, sustentavam visões de mundo centradas em conceitos,
formas de expressão e estilos de vida considerados modelares e muitas ve-
zes definitivos. Para o homem moderno, os valores não são absolutos, mas
produzidos por relações dadas em cada momento da história, e esta é capaz
de subverter essas mesmas relações de um momento para outro. A instabi-
lidade dos conceitos e dos valores deixa-o inseguro, e o leva a buscar novo
equilíbrio no desenvolvimento de uma certa 'arte' de compreender essa
complexa rede de coisas que se interpenetram e se interinfluenciam, con-
sensualmente denominada `realidade'. Para tanto, é necessário estar a par
de tudo, ter à mão a qualquer momento e em qualquer lugar uma ferramen-
ta que, num passe de mágica, exibe o mundo na sua totalidade e urgência,
construindo-se e transformando-se. Acontecendo, enfim.
O jornal, o rádio, a televisão e agora a rede de intercomunicação por
computadores são correias de transmissão da história moderna, que nos
últimos duzentos anos transformaram a vida das sociedades no que já foi
chamado de `aldeia global'. Tudo está por toda parte, e esta onipresença das
coisas só é possível porque elas se apresentam não como coisas, mas como
imagens, como ícones, como símbolos. Enquanto o homem conhecia ape-
nas o código de sinais (gestos, palavras, desenhos) de seu grupo de convívio
diuturno, o mundo era um só e cada símbolo o próprio rosto da realidade. E
ele só passou a perceber que existem outros mundos quando deparou com
códigos simbólicos distintos do seu. Foi aí que ele descobriu que a 'rea-
lidade' do seu mundo não é uma oferenda da natureza, mas uma imagem
construída pelos símbolos — em particular pelas palavras — aprendidos no
convívio sociocultural. No mundo contemporâneo — um corpo cujas veias e
artérias são a internei — vivemos à mercê de um universo profuso de infor-
mações que é preciso selecionar, organizar, interpretar e entender, a fim de
reconquistar o equilíbrio.
As reflexões e a teorização sobre os fenômenos simbólicos, com des-
taque para a linguagem humana, passaram, assim, a ocupar espaço em
inúmeros ramos do conhecimento: da matemática à filosofia, da história
à biologia, da física à psicanálise. Nos últimos duzentos anos, a análise do
fenômeno linguístico assumiu pelo menos três feições, caracterizadas, res-
pectivamente, pelo predomínio de um enfoque:
a) evolutivo — que domina o panorama do século XIX,
b) estrutural — que compreende as reflexões e análises desenvolvidas
sob a influência de Ferdinand de Saussure e Moam Chomsky, e
c) enunciativo — que tem na sociolinguística e nas análises da con-
versação e do discurso suas expressões de maior realce.
97ZILLES, Ana M. Stahl. "Ainda os equívocos no combate aos estrangeirismos". In: FARACO
[2001: 143-161j
" Cf. FREIRE e ROSA [2003].
III - PORTUGUÊS BRASILEIRO: UM TEMA E ALGUMA POLÊMICA 537
" BONV1NL Emílio. "Línguas Africanas e Português Falado no Brasil". In: FIORIN e PETISR
12008: 33].
'°° HOUAISS [1985: 71-72].
1°' PRADO Jr. 12004: 50].
538 OITAVA PARTE - APENDICES
tos poéticos. Nos anos 1960, J. Mattoso Câmara Jr.1°6 publicou o que ele
mesmo chamou de 'despretensiosa obra', com quatro capítulos destinados
à 'exposição oral', ou seja, ao discurso oral planejado, modalidade que se
aproxima muito do discurso escrito. Estes registros apenas indicam que a
língua falada não era objeto de observação e análise. Noutras palavras, a
fala não era estudada como atividade discursiva (até porque não se dispu-
nha de aparato teórico-metodológico para isso), mas, no espaço da escola,
como uma técnica para vocalizar o discurso de um único indivíduo (leitura
em voz alta, exposição oral); e no espaço da academia, como repositório de
formas em risco de desaparecimento. Compiladas e devidamente registrada
sua dispersão no espaço, tais formas dariam subsídios ao desvendamento
do itinerário histórico da língua e da formação histórica da nacionalidade.
O grande prestígio da forma escrita não era suficiente, porém, para
encorajar análises mais detalhadas, certamente porque as motivações prá-
ticas — estimuladas pela urgência de análises para atender a propósitos pe-
dagógicos — tinham prioridade. É nesse quadro que Júlio Ribeiro publica em
1881 a Grammatica Portuguezam, que, segundo historiadores da gramati-
cografia brasileira, marca o início de seu 'período científico".
O cenário contemporâneo é bem outro Desde que, nos anos 1960, a
Linguística se tornou disciplina obrigatória nos cursos de Letras, o estudo
da língua portuguesa se ampliou e se diversificou de modo extraordinário. A
análise da língua falada conta hoje no Brasil com uma pluralidade de esfor-
ços e projetos em que se articulam diversos centros de pesquisa doaí p sio9.
Tanto se estudam as peculiaridades lexicais, fonético-fonológicas, morfo-
lógicas e sintáticas, como se descrevem os procedimentos de organização
do texto na interação a distância e face a face. Oferecer um panorama do
português falado no Brasil, seja nas áreas urbanas seja nas zonas rurais, é
hoje o principal objetivo das pesquisas geo- e sociolinguísticas promovidas
pelas universidades brasileiras.
1" Ver, entre outros, AGUILERA, Vanderei de Andrade. "Caminhos da Dialetologia: os Atlas Lin-
guísticos do Brasil" HENRIQUES e PEREIRA 12002: 77-921; MATTOS e SILVA 11995]; CA5TH110
[1998]. Estes títulos contêm bibliografias representativas.
III - PORTUGUÊS BRASILEIRO: UM TEMA E ALGUMA POLÊMICA 541
ROMANTISMO E NACIONALISMO:
A CONTRIBUIÇÃO DE ALENCAR
A renovação, no Brasil, da língua literária só se torna objeto de um pro-
grama no Romantismo. Por um lado, a independência política inspirava
o anseio de romper com a tradição portuguesa em vários níveis — entre
eles o da expressão literária —; por outro, o cardápio temático e estético do
Romantismo — que valorizava o nativo, o peculiar, o original, o popular em
detrimento, respectivamente, do estrangeiro, do universal, do canônico, do
aristocrático — encontrou no Brasil um ambiente propício ao desenvolvi-
mento de um projeto de afirmação nacionaln°.
José de Alencar foi o principal realizador dessa obra. Procurando re-
tratar a vida brasileira no campo, na selva e na cidade, elaborou, a despeito
"° "A Independência importa de maneira decisiva no desenvolvimento da ideia romântica, para
a qual contribuiu pelo menos com três elementos que se podem considerar como redefinição de
posições análogas do Arca.dismo: (a) desejo de exprimir um nova ordem de sentimentos, agora
reputados de primeiro plano, como o orgulho patriótico, extensão do antigo nativismo; (b) desejo
de criar uma literatura independente, diversa não apenas literatura, de vez que, aparecendo o
Classicismo como manifestação do passado colonial, o nacionalismo literário e a busca de mode-
los novos, nem clássicos nem portugueses, davam um sentimento de libertação relativamente à
mãe-pátria; finalmente (c) a noção (...) de atividade intelectual não mais apenas como prova de
valor do brasileiro e esclarecimento mental do país, mas tarefa patriótica na construção nacional."
CÂNDIDO 11964:111.
542 OITAVA PARTE - APÊNDICES
"1 "O advento da burguesia (...) criava novos problemas de ajustamento da conduta. E ao definir
uma classe mais culta, irrequieta e curiosa (ao contrário da rude obtusidade das elites rurais),
determinava condições objetivas e subjetivas para o desenvolvimento da análise e o confronto do
indivíduo com a sociedade. Acompanhando de perto as vicissitudes do nacionalismo literário, e
atendendo de certo modo às necessidades e aspirações desta nova classe, o romance se desdobra
desde logo numa larga frente, que não cessaria de se ampliar e refinar." CÂNDIDO [1964: 131.
112 ALENCAR [1977: 1711.
III - PORTUGUÊS BRASILEIRO: UM TEMA E Aulumn POLÊMICA 543
Alencar, com efeito, foi fiel ao conceito de língua literária que formulou
nesta passagem, e em nenhum momento fez concessão a uma dicção colo-
quial e distensa. Sua retórica literária, calcada na comparação, no símile, na
metáfora, tem uma impostação solene, formal, respaldada na seleção do vo-
cabulário, sempre culto, às vezes precioso e areaizante, e no disfarce sutil da
polidez da expressão e dos eufemismos. As ousadias linguisticas de Alencar
não chegaram a ser radicais como fez crer a celeuma que recheia páginas e
páginas de 'questões filológicas' e pós-escritos. A nosso ver, a contribuição
de Alencar está em ter ele produzido uma obra que consumaria o prestígio
do romance como gênero literário entre nós, e em ter esgotado de forma
brilhante o que o Romantismo haveria de fazer pela literatura brasileira. A
originalidade do estilo de Alencar, fulcrado em imagens e símiles inspirados
numa visão mítico-idealizadora da natureza americana, tem seduzido gera-
ções de leitores que nele identificaram o mais brasileiro de nossos romancis-
tas do século XIX. Além disso, o Romantismo tinha proposta antiacadêmica
e anticlássica. Talvez por isso, "as gerações modernistas e pós-modernistas —
no sentido em que empregamos a expressão desde 1922 — estão muito mais
próximas de Alencar que a dos seus sucessores imediatos"4.
O ideal de uma solução dialética para a língua literária brasileira seria
mais tarde defendido também por Machado de Assis na última parte — A
Língua — do célebre artigo intitulado "Notícia da atual literatura brasileira:
instinto de nacionalidade"15. Sabemos, porém, que no período que se segue
à fase destes dois depoimentos, mais exatamente as duas últimas décadas no
século XIX, entrariam em cena alguns atores que, sem serem romancistas
ou poetas, acabaram tornando-se arautos da reação ao projeto brasileirista
dos românticos. O Brasil vivia a transição do regime imperial para a expe-
riência republicana e se imaginava ingresso em um tempo de modernidade
institucional, cujo modelo ainda era, porém, a Europa. A figura de Rui Bar-
bosa acabou encarnando esse ideal purista e relusitanizante, que o levou a
travar com gramáticos dura batalha para provar quem era capaz de ostentar
maior numero de relíquias — ou, como preferiam dizer — louçanias da língua.
Curiosamente, a boa literatura continuava a ser produzida ao arrepio dessa
querela, que muitas vezes confundiu qualidade literária com ornamentação
[1975: 29-36].
tu - PORTUGUÊS BRASILEIRO: UM TEMA E ALGUMA POLÊMICA 545
área dita carioca. A essa altura, Joaquim Mattoso Câmara Jr. já tinha dado
a público resultados de suas pesquisas sobre a rima na poesia brasileirang,
evidenciando, em correspondências desconhecidas no português europeu,
traços peculiares à pronúncia brasileira incorporados por nossos poetas
românticos (ex., rima entre luz e azuis).
O interesse pelo desvendamento das particularidades do português
brasileiro cresce impulsionado não tanto por certas veleidades nacionalis-
tas, mas, sobretudo, pelo prestigio que os estudos dialetológicos alcança-
riam entre nós logo após a fundação da Geografia Linguistica, que, reagindo
à onda neogramática do final do século XIX, se firmara como ciência. Pres-
tigiada como estudo cientifico, arrimada numa metodologia de trabalho de
campo considerada rigorosa, a Dialetologia imprimia à pesquisa linguistica
um rumo novo e promissor. O mais célebre resultado dessa reorientação
no cenário brasileiro é o Atlas Prévio dos Falares Baianos, elaborado sob a
orientação de Nelson Rossi e publicado em 1963. A este seguiram-se outros,
como o Atlas Linguístico de Sergipe, o Atlas dos Falares Mineiros, o Atlas
Linguístico da Paraíba e o Atlas Linguistico do Parandix
Paralelamente a estes esforços, e em larga escala inspirados por eles,
outros pesquisadores, não necessariamente dialetólogos, deram importan-
tes contribuições para o conhecimento das peculiaridades lexicais do por-
tuguês brasileiro: são vocabulários regionais, léxicos de variados ramos de
atividade econômica, glossários diversos, como os que acompanham edi-
ções de obras literárias que retrataram regiões e costumes do Brasil'2t.
do que geográficas. (...) "as diferenças nos modos de falar são maiores, num dado lugar, entre um ho-
mem culto e seu vizinho analfabeto do que entre dois brasileiros de mesmo nível cultural proceden-
tes de duas regiões distantes uma da outra. A dialetologia deve ser vertical mais do que horizontal."
548 OITAVA PARTE - APÊNDICES
Na sequência, dou uma notícia sobre quatro aspectos que têm ocupa-
do vários pesquisadores nos últimos anos: (1) o sujeito pronominal redun-
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CONSTRUÇÕES DE RELATIVIZAÇÃO
Fernando Tarallo é o autor de uma tese de doutoramento em que expôs
peculiaridades sintáticas do português brasileiro relativamente ao processo
de relativização. Ele comparou estruturas dos seguintes tipos:
a) Conheço um rapaz cujo pai é marceneiro.
b) Conheço um rapaz que o pai dele é marceneiro.
c) Conheço um rapaz que o pai é marceneiro.
d) A casa em que eu moro é antiga.
e) A casa que eu moro nela é antiga.
O A casa que eu moro é antiga.
de 'cortadora' a estrutura relativa do tipo 'c' / T, uma vez que resulta do corte
do pronome anafórico e da preposição que o rege. É este corte que particula-
riza o português brasileiro, caracterizado como uma língua de 'objeto nulo',
diversamente do português europeu, que é uma língua de objeto manifesto.
CIÁTICOS PRONOMINAIS
As gramáticas normativas brasileiras ensinam que, na 3° pessoa, o portu-
guês dispõe das formas o/a/oslas para o papel de objeto direto e 1/te/lhes
para a função de objeto indireto. O português falado no Brasil em geral des-
conhece esse sistema: conforme as condições sintáticas apropriadas, as for-
mas olaloslas são correntemente substituídas por ele/ela/eles/elas (De dia
ela prendia o cachorro, mas à noite deixava ele solto no quintal), ou ficam
subentendidas (objeto elíptico ou nulo, como em Leve o guarda-chuva,
mas cuidado para não esquecer [ ] na condução. Quanto a lhe/lhes, em-
pregam-se correntemente apenas para designar o interlocutor (você/vocês,
a você/a vocês); para a 3 pessoa, emprega-se normalmente a ele/ela, a eles/
elas, com a preposição a servindo para marcar a função de objeto indireto.
Por outro lado, o emprego comum de a gente em substituição a nós contri-
bui para que as variações pessoais do verbo se reduzam à oposição entre
três formas, duas do singular - (eu) sou, posso X (a gente, você, ele/ela) é,
pode - e uma do plural - (vocês/eles/elas) são, podem. O estudo de maior
abrangência sobre pronomes pessoais no português do Brasil é o de Mon-
teiro 119941. Omena 119961132 analisou a variação nós/agente e Vandresen
120001'33 as formas de tratamento na região Sul do país. A reorganização
do sistema de cliticos pronominais na fala brasileira é o tema central dos
ensaios de Galves [2001].
SCHERREl1996: 183-2151. E ainda, "As Influências Sociais na Variação Entre NÓS e A GENTE na
Função de Sujeito". (Idem: 309-323].
VANDRESEN, P. "Sociolinguistica e Ensino: o Sistema Pronominal e a Concordância Verbal no
Português falado na Região Sul". In: FORTKAMP e TOMITCH 12000: 229-2431.
552 OITAVA PARTE - APÊNDICES
13-' SILVA, G. M. de O. E. "Estertores da Forma SEU de Terceira Pessoa na Língua Oral: Resultados
Sociais". In: SILVA e SCHERRE 11996: 295-3071.
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Revisão
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C1P)
(Camara Brasileira do Livro, Si', Brasil)
Azeredo, José Carlos de
Gramática Houaiss da Língua Portuguesa / José Carlos de
Azeredo. - São Paulo: Pubilfolba, 2012.
10-09638 CDD-469.507
Este livro segue as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde
12 de janeiro de 2009.
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