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Direito internacional Humanitário

e Direito Dos conflitos armaDos

AU TO R D O C U R S O

Antoine A. Bouvier

E D I TO R DA S É R I E

Harvey J. Langholtz, Ph.D.


LIÇÃO 2

PROTEÇÃO DE VÍTIMAS
NO CONFLITO ARMADO INTERNACIONAL

2.1 Introdução

2.2 Dispositivos comuns às quatro Convenções de Genebra de 1949 e


ao Protocolo Adicional I de 1977

2.3 Proteção de Feridos, Doentes e Náufragos

2.4 Normas de Proteção a Prisioneiros de Guerra

2.5 Proteção de indivíduos e populações civis

Verificação de Aprendizagem
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 26

OBJETIVOS DA LIÇÃ

Esta lição tem o objetivo de familiarizar o estudante com os tratados e outros


dispositivos de Direito Internacional Humanitário. Faz-se uma revisão das pessoas e das
situações às quais se aplicam os tratados e os costumes de DIH.

Ao final da Lição 2, o aluno deverá ser capaz de alcançar os seguintes objetivos:

Descrever que indivíduos, grupos e objetos são protegidos pelo DIH;


Compreender as diferenças na aplicação das quatro Convenções e do
Protocolo I, e que unidades são protegidas por cada um;
Descrever a diferença entre um combatente e um não-combatente e
compreender em que contextos cada um deles é protegido pelo DIH;
Discutir a aplicabilidade das quatro Convenções de Genebra de 1949 e do
Protocolo Adicional;
Compreender as proteções consagradas aos feridos, doentes e náufragos;
Compreender como o DIH oferece proteção a indivíduos (civis) e a
populações civis;
Diferenciar entre pessoas internamente deslocadas e refugiados.
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 27

2.1 Introdução

Há atualmente mais de 600 regras para a proteção de pessoas do poder do inimigo,


em situações de conflito armado internacional. Todas essas regras, que compõem o Direito
de Genebra (ver Lição 1) podem ser encontradas nas quatro Convenções de Genebra de
1949 e no seu Protocolo Adicional I.

Como uma análise detalhada de todos esses dispositivos vai além do objetivo deste
curso, vamos nos concentrar em quatro conjuntos de regras:

1) Algumas regras fundamentais comuns às quatro Convenções e ao Protocolo I;

2) Regras que protegem feridos, doentes e náufragos;

3) Regras que protegem prisioneiros de guerra; e

4) Regras que protegem civis e a população civil.

Serão incluídas nas próximas lições as regras e os princípios relativos à implementação do


Direito Internacional Humanitário (DIH) e ao papel do CICV, bem como aquelas que
protegem vítimas de conflitos armados não-internacionais.

2.2 Dispositivos comuns às quatro Convenções de Genebra de 1949 e ao


Protocolo Adicional I de 1977

Campo de aplicação material

As situações nas quais se aplicam as regras das quatro Convenções e do Protocolo


I (ou, em outras palavras, a noção de conflito internacional) são definidas da seguinte
maneira:

1) Art. 2º, comum às quatro Convenções:

“Além das disposições que devem entrar em vigor em tempo de paz, a presente
Convenção será aplicada em todos os casos de guerra declarada ou de qualquer
outro conflito armado que possa surgir entre duas ou mais das Altas Partes
Contratantes, mesmo se o estado de guerra não for reconhecido por uma delas.

A Convenção aplicar-se-á igualmente em todos os casos de ocupação total ou


parcial do território de uma Alta Parte Contratante, mesmo que essa ocupação não
encontre qualquer resistência militar.

Se uma das Potências em conflito não for parte na presente Convenção, as


Potências que nela são partes manter-se-ão, no entanto, ligadas, pela referida
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 28

Convenção, nas suas relações recíprocas. Além disso, elas ficarão ligadas por esta
Convenção à referida Potência, se esta aceitar e aplicar as suas disposições.”

2) Art. 1.4 do Protocolo

“Nas situações mencionadas no número precedente estão incluídos os conflitos


armados em que os povos lutam contra a dominação colonial e a ocupação
estrangeira e contra os regimes racistas no exercício do direito dos povos à
autodeterminação, consagrado na Carta das Nações Unidas e na Declaração dos
Princípios do Direito Internacional Relativos às Relações Amigáveis e à
Cooperação entre os Estados nos termos da Carta das Nações Unidas”.

Três comentários sobre essas definições:

1) O conflito deve ser armado; tal conflito existe quando forças armadas de dois ou mais
Estados lutam entre si. Mesmo pequenos incidentes fronteiriços entre representantes dos
Estados são suficientes para que o DIH seja aplicável e qualquer uso de armas entre dois
Estados faz com que as Convenções e o Protocolo I sejam trazidos à tona.

2) Os tratados não fazem distinção entre guerras, que devem ser declaradas, e conflitos
armados, um conceito objetivo que deve ser compreendido como qualquer situação em
que a força armada é usada entre dois ou mais Estados. Além disso, as Convenções e o
Protocolo I também são aplicáveis em caso de ocupação, mesmo se a ocupação não tiver
encontrado resistência armada.

3) De acordo com o Art. 1.4 do Protocolo I, as guerras de libertação nacional, que eram
tradicionalmente consideradas como conflito armado não-internacional (ver Lição 3),
agora são consideradas conflitos armados internacionais. No entanto, tal Artigo submete
essa qualificação a condições muito restritas.

Proibição de represálias

No Direito Internacional Público, Estados podem recorrer a represálias, sujeitas a


condições restritas (represálias devem ser interpretadas como qualquer ato ilegal
cometido com o objetivo de retaliar outro ato ilegal ou impedir sua continuidade).
Apesar de o DIH ser parte do Direito Internacional Público, há uma diferença entre
ambos no que se refere às represálias. O DIH contém um conjunto de dispositivos
específicos que proíbe represálias contra as pessoas, os bens e as instalações protegidas15.

15
Ver, por exemplo, o Art. 46 da Primeira Convenção: Represálias contra os feridos, doentes, pessoal e
bens protegidos pela Convenção são proibidas.
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 29

Não-renúncia de direitos

As pessoas protegidas pelas Convenções e pelo Protocolo I são geralmente


pressionadas por seus captores para que renunciem à proteção de que se beneficiam por
conta dos tratados. Tal renúncia é expressamente proibida pelo Art. 7, comum às quatro
Convenções.16

2.3 Proteção dos Feridos, Doentes e Náufragos

N.B. As regras que protegem essas categorias de vítimas aparecem nas Convenções I e II
e na Parte I do Protocolo I.

REGRAS GERAIS

Aplicabilidade a indivíduos

De maneira geral, a Primeira e a Segunda Convenções são praticamente idênticas.


A Convenção I protege vítimas militares de guerras terrestres, enquanto que a Convenção
II protege vítimas militares de guerras navais. Os princípios subjacentes a ambos os
tratados são idênticos. O Protocolo I amplia a proteção garantida pelas Convenções para
todos os feridos, doentes ou náufragos, membros das forças armadas ou civis.

Definição de pessoas protegidas

Art. 8a) e b) do Protocolo I provê definições amplas:

“Os termos ‘feridos’ e ‘doentes’ designam as pessoas, militares ou civis, que, por
motivo de um traumatismo, doença ou de outras incapacidades ou perturbações físicas
ou mentais, tenham necessidade de cuidados médicos e se abstenham de qualquer ato
de hostilidade. Estes termos designam também as parturientes, os recém-nascidos e
outras pessoas que possam ter necessidade de cuidados médicos imediatos, tais como
os enfermos e as mulheres grávidas, e que se abstenham de qualquer ato de
hostilidade.

O termo ‘náufrago’ designa as pessoas, militares ou civis, que se encontrem numa


situação perigosa no mar ou noutras águas, devido ao infortúnio que os afeta ou afeta o
navio ou aeronave que os transporta, e que se abstenham de qualquer ato de
hostilidade. Essas pessoas, na condição de continuarem a abster-se de qualquer ato de
hostilidade, continuarão a ser consideradas como náufragos durante o seu salvamento
até que tenham passado a outro estado, em virtude das Convenções ou do presente
Protocolo”.

16
Art. 7o: “Os feridos e doentes, assim como os membros do pessoal do serviço de saúde e religioso, nunca
poderão renunciar parcial ou totalmente aos direitos que lhes são assegurados pela presente Convenção e
pelos acordos especiais referidos no artigo precedente, caso estes existam”.
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 30

Princípios gerais de proteção

O Art. 12, comum às Convenções I e II, dispõe:

“Os membros das forças armadas e as outras pessoas mencionadas no artigo


seguinte que sejam feridos ou doentes, deverão ser respeitados e protegidos em
todas as circunstâncias.

Serão tratados com humanidade pela Parte no conflito que os tiver em seu poder,
sem nenhuma distinção de caráter desfavorável baseada em sexo, raça,
nacionalidade, religião, opiniões políticas ou qualquer outro critério análogo. É
estritamente interdito qualquer atentado contra a sua vida e pessoa e, em especial,
assassiná-los ou exterminá-los, submetê-los a torturas, efetuar neles experiências
biológicas, deixá-los premeditadamente sem assistência médica ou sem tratamento,
ou expô-los aos riscos do contágio ou de infecção criados para este efeito.

Somente razões de urgência médica autorizarão uma prioridade na ordem dos


tratamentos.

As mulheres serão tratadas com todos os cuidados especiais devidos ao seu sexo. A
Parte no conflito obrigada a abandonar feridos ou doentes ao adversário deixará
com eles, tanto quanto as exigências militares o permitirem, uma parte do seu
pessoal e do seu material sanitário para contribuir para o seu tratamento.”

O Art. 10 do Protocolo I amplia esta proteção básica para todos os feridos,


doentes e náufragos. Além disso, quando caem nas mãos do inimigo, vítimas militares se
tornam prisioneiros de guerra protegidos pela Terceira Convenção.17

A busca pelos feridos, doentes e náufragos

Os tratados contêm uma série de dispositivos relacionados a essas questões. O


objetivo geral de tais regras é facilitar o direito das famílias de saber o destino de seus
parentes. Para alcançar este objetivo, as partes de um conflito devem adotar todas as
medidas possíveis para procurar e recolher os feridos e os doentes, protegê-los contras
saques e garantir que recebam tratamento adequado.

Além das obrigações com as vítimas sobreviventes, ambas as Convenções e o


Protocolo I contêm dispositivos relacionados às vítimas, fatais ou desaparecidas. As
pessoas são consideradas desaparecidas se seus parentes ou Estados dos quais elas
dependem não têm informação sobre seu destino. Cada parte tem a obrigação de procurar
as pessoas que tenham sido registradas como desaparecidas pela parte opositora.18

17
Art. 14 da Convenção I e 16 da Convenção II e infra, Capítulo III.
18
Ver Art. 33 (1) do Protocolo I.
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 31

Na realidade, as pessoas desaparecidas estão mortas ou vivas. Se elas estiverem


vivas, então elas ou estão detidas pelo inimigo ou estão livres mas foram separadas de
suas famílias por linhas de frente ou por fronteiras. Em todos os casos, elas se beneficiam
da proteção que o DIH oferece à categoria a qual elas pertencem (civis, prisioneiros de
guerra, feridos e doentes etc.). Em qualquer caso, o DIH contém regras designadas para
garantir que elas não continuem a ser consideradas desaparecidas – a menos que elas
assim o desejem para cortar os vínculos com sua família ou com seu país.

Se a pessoa desaparecida estiver morta, é importante informar à família. Já que não é


um feito realizável, as partes não estão obrigadas a identificar todos os corpos
encontrados. Os adversários devem apenas esforçar-se e coletar informação de maneira a
auxiliar na identificação dos corpos19 (que é mais fácil quando a vítima fatal carrega
carteiras ou plaquetas de identificação, como recomendado pelo Direito Internacional
Humanitário), inclusive concordando com os termos de busca estabelecidos20. Se tal
identificação ocorre com sucesso, a família deve ser notificada. Em qualquer caso, os
restos mortais devem ser respeitados e enterrados de maneira decente, e as covas devem
ser sinalizadas.21

Formas de Implantação das Regras Gerais

A implantação das regras e dos princípios gerais discutidos acima é de


responsabilidade primária das partes conflitantes, mas um bom número de serviços e
instituições foram criados nos tratados de maneira a auxiliar na implantação. Tais
serviços e instituições são protegidos pelas Convenções e pelo Protocolo I; isto é, eles
devem ser respeitados, e não atacados, pelas partes conflitantes.

19
Ver o Art. 16 da Convenção I e o Art. 33 (2) do Protocolo I.
20
Ver o Art. 33 (4) do Protocolo I.
21
Ver o Art. 17 da Convenção I e o Art. 34 (1) do Protocolo I
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 32

Unidades e transportes médicos22

O Direito Internacional Humanitário garante uma proteção ampla e detalhada para


unidades médicas23, transportes médicos24 e material médico.25 Tais bens devem ser
respeitados e protegidos o tempo todo pelos beligerantes e não devem ser objetos de ataque.
Em hipótese alguma as instalações protegidas podem ser utilizadas com a intenção de
esconder objetivos militares de ataques.

A proteção garantida às instalações médicas não deve cessar, a menos que elas
sejam utilizadas, em objetivos além de sua função humanitária, para se cometerem atos que
sejam nocivos ao inimigo.26 No entanto, nessas ocasiões, sua proteção pode cessar somente
depois de um aviso que estabeleça, quando apropriado, um limite de tempo razoável e
depois de este aviso não ter sido atendido.

Pessoal de saúde27 e religioso28

As Convenções I e II, criadas para proteger os feridos, os doentes e os náufragos,


também estendem sua proteção para o pessoal de saúde, a equipe de apoio administrativo e
o pessoal religioso.29 Em campos de batalha, eles não devem ser atacados e devem ter
permissão de cumprir seus deveres médicos ou religiosos.30 Se caírem nas mãos da parte

22
Ver o Art. 8o (g) do Protocolo I: “A expressão ‘meio de transporte sanitário’ designa qualquer meio de
transporte, militar ou civil, permanente ou temporário, afeto exclusivamente ao transporte sanitário e
colocado sob a direção de uma autoridade competente de uma Parte no conflito”.
23
Ver Arts. 19-23 da Convenção I, Art. 18 da Convenção IV, Arts. 8 (e) e 12-14 do Protocolo I.
24
Ver Arts. 35-37 da Convenção I, Arts. 38-40 da Convenção II, Arts. 21-22 da Convenção IV e Arts. 8
(g) e 21-31 do Protocolo I.
25
Ver Arts. 33-34 da Convenção I.
26
Ver Art. 13 (1) do Protocolo I.
27
Ver Art 8 (c) do Protocolo I: “A expressão ‘pessoal sanitário’designa as pessoas exclusivamente afetas
por uma Parte no conflito aos fins sanitários enumerados na alínea e), à administração de unidades
sanitárias ou ainda ao funcionamento ou à administração de meios de transporte sanitário. Estas atribuições
podem ser permanentes ou temporárias. A expressão engloba: i) O pessoal sanitário, militar ou civil, de
uma Parte no conflito, incluindo o mencionado nas Convenções I e II, e o afeto aos organismos de proteção
civil; ii) O pessoal sanitário das sociedades nacionais da Cruz Vermelha (incluindo o Crescente Vermelho e
o Leão e Sol Vermelhos), e outras sociedades nacionais de socorro voluntárias devidamente reconhecidas e
autorizadas por uma Parte no conflito; iii) O pessoal sanitário das unidades ou meios de transporte sanitário
mencionados pelo artigo 9, n.º 2
28
Ver Art. 8 (d) do Protocolo I: “A expressão ‘pessoal religioso’ designa as pessoas, militares ou civis, tais
como capelães, exclusivamente votados ao seu ministério e adstritos: i) às forças armadas de uma Parte no
conflito; ii) às unidades sanitárias ou meios de transporte sanitário de uma Parte no conflito; iii) às unidades
sanitárias ou meios de transporte sanitário mencionados pelo artigo 9º, n.º 2; iv) aos organismos de
proteção civil de uma Parte no conflito.
A ligação do pessoal religioso a essas unidades pode ser permanente ou temporária e as disposições
pertinentes previstas na alínea (11) aplicam-se a esse pessoal”.
29
Ver Arts. 24 e 25 (referentes a membros das Forças Armadas da Convenção I, Arts. 36 e 37 da
Convenção II).
30
Ver Art. 56 da Convenção IV, Arts. 15-20 do Protocolo I e Art. 9 do Protocolo II.
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 33

oponente, o pessoal de saúde ou religioso não é considerado prisioneiro de guerra e deve


somente ser ali mantido para a assistência aos prisioneiros de guerra.31 A Convenção IV
dispõe sobre proteção de civis que cuidam dos civis doentes e dos feridos32. O Protocolo I
amplia ainda mais a categoria de pessoas (permanente ou temporário, militar ou civil)
protegidas em virtude de suas funções médicas ou religiosas.

Emblemas e símbolos

As Convenções e os Protocolos Adicionais autorizam o uso de três emblemas: a


cruz vermelha, o crescente vermelho, e o leão e sol vermelhos em fundo branco.33 Hoje,
porém, apenas os dois primeiros emblemas autorizados são utilizados.

Estes emblemas têm a dupla função de proteção e de indicação. O principal


emprego do emblema é a proteção dos que são amparados pelas Convenções e Protocolos
Adicionais (p.ex., pessoal médico, unidades médicas e meios de transporte) durante o
conflito, distinguindo-os dos combatentes. Para ser eficaz nessas circunstâncias, o
emblema deve ser grande e fazer-se claramente visível. Ele só pode ser utilizado por
motivações médicas e este uso deve ser autorizado e controlado pelo Estado.

A função do emblema voltada para a identificação é geralmente usada em tempos


de paz, uma vez que não significa proteção. Tal uso indica pessoas, equipamentos e
atividades (em conformidade com os princípios da Cruz Vermelha) afiliados à Cruz
Vermelha.34 A utilização para propósitos de indicação deve estar de acordo com a
legislação nacional e, em regra, o emblema deve ser pequeno. Diferente das limitações às
Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e outras, anteriormente mencionadas, as
organizações da Cruz Vermelha Internacional podem usar o emblema a todo o tempo,
para todas as suas atividades.

O abuso e o mau uso do emblema – que, em certas situações, constituem crime de


guerra35 – devem ser evitados de maneira a impedir que se esvaeça a proteção oferecida
por ele. Assim, ele não pode ser copiado nem utilizado para fins particulares ou
comerciais.36 Os Estados partes têm a obrigação de implantar uma legislação no âmbito
nacional que seja consistente com as Convenções e os Protocolos Adicionais, no que
concerne não apenas à autorização para o uso do emblema, mas também à punição pelo
abuso ou mau uso.37

31
Ver Arts. 28 e 30 da Convenção I, Art. 37 da Convenção II e Art. 33 da Convenção III.
32
Ver Art. 20 (1) da Convenção IV.
33
Ver Art. 38 da Convenção I, Art. 41 da Convenção II, Art. 8 (1) do Protocolo I e Art. 12 do Protocolo II.
34
Ver Art. 44 (2)-(4) da Convenção I.
35
Ver Art. 34 das Regulamentações de Haia e Arts. 37 (1) (d) e 85 (3) (f) do Protocolo I.
36
Ver Art. 53 da Convenção I, Art. 45 da Convenção II, Arts. 38 e 85 (3) (f) do Protocolo I.
37
Ver Art. 54 da Convenção I e Art. 45 da Convenção II.
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 34

Proteção da missão médica

De acordo com o Art. 1638 do Protocolo I, ninguém será punido por ter exercido
uma atividade de caráter médico conforme à deontologia, quaisquer que tenham sido as
circunstâncias ou os beneficiários dessa atividade. Além disso, ninguém poderá ser
obrigado a praticar atos que sejam contrários à ética médica (p.ex., “assistência” médica
para tortura e outros tratamentos desumanos ou degradantes).

2.4 Normas de Proteção a Prisioneiros de Guerra

N.B. As regras de proteção dessas categorias de vítimas estão contidas na Convenção III
e na Parte III do Protocolo I.

A proteção dos prisioneiros de guerra tem relação íntima com outros dois

importantes elementos do DIH:


O princípio da distinção entre combatentes e civis; e
A definição de combatente.

Antes de analisar as detalhadas regras relacionadas ao status e ao tratamento dos


prisioneiros de guerra (que são combatentes que caíram nas mãos do inimigo), deve-se
focar nos dois conceitos acima mencionados.

A distinção entre civis e combatentes

A regra essencial do DIH prevê que, em um conflito armado, o alvo deve ser
exclusivamente o potencial militar do inimigo. Este princípio indica que o DIH deve
definir quem pode ser considerado parte deste potencial e, portanto, quem pode ser
atacado e pode participar diretamente das hostilidades mas não pode ser punido por esta
participação pela lei local ordinária. Pelo princípio da distinção, todos os envolvidos no
conflito armado devem distinguir, por um lado, os civis e, por outro lado, as pessoas
definidas como combatentes. Combatentes devem, portanto, distinguir a si mesmos (isto

38
Ver Art 16, sobre a proteção geral da missão médica:
1 - Ninguém será punido por ter exercido uma atividade de caráter médico conforme a
deontologia, quaisquer que tenham sido os beneficiários dessa atividade.
2 - As pessoas que exerçam uma atividade de caráter médico não podem ser obrigadas a praticar
atos ou a efetuar trabalhos contrários à deontologia ou às outras regras médicas que protegem os
feridos e os doentes, ou às disposições das Convenções ou do presente Protocolo, nem de se abster
de praticar atos exigidos por essas regras e disposições.
3 - Nenhuma pessoa que exerça uma atividade médica poderá ser obrigada a dar a alguém,
pertencente a uma Parte adversa ou à sua própria Parte, salvo nos casos previstos pela lei desta
última, informações afetas a feridos e doentes que trate ou que tenha tratado se achar que tais
informações podem ser prejudiciais a estes ou às suas famílias. As regras relativas à notificação
obrigatória das doenças contagiosas devem, no entanto, ser respeitadas”.
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 35

é, devem permitir que os inimigos os identifiquem) de todos os civis, ou seja, daqueles


que não podem ser atacados e que não participam diretamente das hostilidades.
Ao longo dos anos, a linha divisória entre as duas categorias possibilitou certa
acomodação entre os interesses conflitantes das forças potentes e bem equipadas e os das
forças mais fracas. As forças bem equipadas sugeriam uma definição restritiva e uma
clara identificação dos combatentes. Por outro lado, as forças mais fracas queriam manter
flexível a opção de usar recursos humanos adicionais, de maneira a continuar as
hostilidades mesmo quando seu território estivesse sob controle do inimigo. Isso é
praticamente impossível se os combatentes precisam se identificar de maneira
permanente.

Entretanto, uma distinção precisa ser feita se o DIH deve ser respeitado: as vidas
dos civis podem – e irão – ser respeitadas somente se os combatentes inimigos
presumirem que aqueles que se pareçam com civis não irão atacá-los.
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 36

A tabela a seguir esclarece os principais elementos do DIH que diferencia os civis dos
combatentes em tempos de conflito armado internacional:

Figura 2-1

CIVIS COMBATENTES

Todos os que não sejam combatentes Membros das forças armadas


(Ver “A definição de combatente”)

ATIVIDADES

Não se envolvem diretamente com as Participam diretamente das


hostilidades hostilidades

DIREITOS/OBRIGAÇÕES

Não têm o direito de se envolver Têm direito de participar


diretamente nas hostilidades (mas têm o diretamente das hostilidades (mas
direito de ser respeitados) têm a obrigação de observar o
Direito Internacional Humanitário)

PUNIBILIDADE

Podem ser punidos por sua simples Não podem ser punidos por sua
participação nas hostilidades participação nas hostilidades desde
que tenham respeitado as regras do
DIH

PROTEÇÃO
São protegidos porque não participam das São protegidos quando não mais
hostilidades participam das hostilidades
- se estiverem sob o controle do
São protegidos porque não participam da inimigo
defesa - se feridos, doentes ou náufragos
- se caídos de pára-quedas fora de uma
aeronave em perigo (ver Art. 42 do
Protocolo I)

São protegidos contra alguns meios e


métodos de guerra mesmo durante
combate (ver infra, Lição 4:
Regras sobre a condução das
hostilidades).
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 37

Apesar de a distinção entre civis e combatentes ser essencial, ela é geralmente muito
difícil de ser respeitada, sobretudo nos conflitos modernos.

A definição de combatentes

Os combatentes são membros das forças armadas. O principal aspecto de seu


status jurídico nos conflitos armados internacionais é o fato de que têm direito de
participar diretamente nas hostilidades. Se caem nas mãos dos inimigos, tornam-se
prisioneiros de guerra e não podem ser punidos por terem participado diretamente das
hostilidades.

Os combatentes têm a obrigação de respeitar o Direito Internacional Humanitário


(DIH), o que inclui distinguir-se da população civil. Em caso de violação do DIH, eles
devem ser punidos, mas não perderão seu status de combatente. Logo, se capturados pelo
inimigo, eles mantêm seu status de prisioneiro de guerra, a menos que tenham violado sua
obrigação de distinguir-se.
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 38

Figura 2-2

De acordo com as normas do DIH, um combatente é uma das opções abaixo.

1) Um membro das forças armadas stricto sensu de uma parte do conflito armado
internacional39,
a) desde que respeite a obrigação de distinguir-se da população civil

2) Um membro de outro grupo armado40


a) pertencente a uma parte do conflito armado internacional; e
b) cumprindo, enquanto grupo, as seguintes condições:
- estar sob comando responsável;
- vestir sinais distintivos fixos;
- carregar armas ostensivamente; e
- respeitar o DIH.

3) Um membro de outro grupo armado 41 que está:


a) sob comando responsável de uma parte do conflito armado internacional;
b) sujeito a um sistema disciplinar interno;
c) sob a condição de que este membro respeite:
- individualmente,
- no momento de sua captura42,
- a obrigação de distinguir-se da população civil43;
- como regra geral, enquanto estiver envolvido em um
ataque ou operação militar preparatória para um ataque ou,
- em situações excepcionais (p.ex., territórios ocupados,
guerras de libertação nacional), ao carregar suas armas;
- de maneira ostensiva durante cada ação militar; e
- quando ele estiver visível ao inimigo enquanto
envolvido com o preparo militar que precede o início
de um ataque no qual ele/ela deva participar

Espiões, sabotadores e mercenários44 não são considerados combatentes. Se capturados,


eles não têm o status ou o tratamento de prisioneiros de guerra.

39
Ver o Art. 4 (A) (1) da Convenção III.
40
Ver o Art. 4 (A) (2) da Convenção III.
41
Ver o Art. 43 do Protocolo I.
42
Ver o Art. 44 (5) do Protocolo I.
43
Ver o Art. 44 (3) do Protocolo I.
44
Ver o Art. 47 do Protocolo I.
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 39

Direitos e obrigações dos prisioneiros de guerra

Aqueles com status de prisioneiro de guerra têm tratamento de prisioneiro de


guerra. Prisioneiros de guerra podem ficar em prisões sem qualquer procedimento
particular ou razão específica. Essa internação não tem por objetivo sua punição; ela
simplesmente visa a impedir sua participação direta nas hostilidades e/ou protegê-los.
Esses são os objetivos de todas as restrições que podem ser impostas aos prisioneiros de
guerra sob as regras detalhadas da Convenção III. A proteção contida em tais normas
constitui uma acomodação entre os interesses da potência detentora, o interesse da
potência da qual o prisioneiro depende (o Estado de origem do prisioneiro) e os interesses
do próprio prisioneiro. Sob a influência dos padrões de Direitos Humanos, a importância
do último fator recebe cada vez mais importância, mas o Direito Internacional
Humanitário continua a perceber o prisioneiro de guerra como um soldado de seu país.
Devido aos interesses dos Estados envolvidos, o prisioneiro não pode renunciar a seus
direitos e a seu status.

A Convenção III contém cerca de 90 normas detalhadas que regem o cotidiano dos
prisioneiros de guerra. Elas vão do interrogatório inicial (Art. 17) às restrições de
movimento (Art. 21), passando por questões relativas aos alojamentos (Art. 25), alimentação
(Art. 26), vestimentas (Art. 27), esportes (Art. 38), liberdade de religião, higiene, trabalho
etc. Todas essas regras estão claramente formuladas; o princípio geral da Convenção III é o
de que os prisioneiros de guerra devem ter uma vida o mais normal possível durante o
conflito internacional.45

Já que os prisioneiros de guerra são detidos apenas para impedir seu retorno às
hostilidades, eles devem ser liberados e repatriados quando sua participação não for mais
possível, seja por razões de saúde ainda durante o conflito, seja quando as hostilidades
ativas já tiverem terminado.46

45
N.B. O papel do CICV em nome dos prisioneiros de Guerra será discutido na Lição 8.
46
Ver o Art. 118 da Convenção III.
“Os prisioneiros de guerra serão libertados e repatriados sem demora depois do fim das hostilidades ativas.
Na ausência de disposições para este efeito num acordo entre as Partes no conflito para pôr fim às
hostilidades, ou na falta de tal acordo, cada uma das Potências detentoras estabelecerá e executará sem
demora um plano de repatriamento conforme o princípio enunciado no parágrafo anterior.
Num e noutro caso, as medidas adotadas serão levadas ao conhecimento dos prisioneiros de guerra.
As despesas de repatriamento dos prisioneiros de guerra serão em todos os casos repartidas de maneira
eqüitativa entre a Potência detentora e a Potência de que dependem os prisioneiros de guerra.

Para este efeito, serão observados os seguintes princípios nesta repartição: a) Quando estas duas
Potências forem limítrofes, a Potência de que dependem os prisioneiros de guerra custeará os
encargos do seu repatriamento a partir da fronteira da Potência detentora;

b) Quando estas duas Potências não forem limítrofes, a Potência detentora custeará os encargos do
transporte dos prisioneiros de guerra no seu território até sua fronteira ou seu ponto de embarque
mais próximo da Potência de que eles dependem. Quanto às outras despesas resultantes do
repatriamento, as Partes interessadas acordarão para as repartir eqüitativamente entre si.
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 40

É de comum acordo que prisioneiros de guerra com medo de perseguição não


devem ser forçosamente repatriados – isso de acordo com o espírito do Direito dos
Direitos Humanos e do Direito dos Refugiados. Uma vez que essa disposição oferece
para a potência detentora a oportunidade de abusar do prisioneiro de guerra ao forçá-lo a
sair ou a ficar – o que aumenta o risco de desconfiança mútua –, é importante determinar
se o prisioneiro realmente deseja sair. No entanto, é difícil comprovar o livre arbítrio e o
destino do prisioneiro se a potência detentora não lhe deseja garantir o asilo.

2.5 Proteção de indivíduos e populações civis

N.B. As regras que protegem essas categorias de vítimas estão contidas na Convenção IV
e na Parte IV do Protocolo I.

O Art. 50 do Protocolo I provê uma clara definição de civil:

“Definição de pessoas civis e de população civil

1) É considerada como civil toda pessoa não pertencente a uma das categorias
mencionadas pelo artigo 4.º-A, alíneas 1), 2), 3) e 6), da Convenção III e pelo
Artigo 43 do presente Protocolo. Em caso de dúvida, a pessoa citada será
considerada como civil.

2) A população civil compreende todas as pessoas civis.

3) A presença no seio da população civil de pessoas isoladas que não


correspondam à definição de pessoa civil não priva essa população da sua
qualidade”

Em outras palavras, qualquer não-combatente é um civil.

Cada vez mais os civis têm se tornado a grande maioria das vítimas dos conflitos
armados, apesar do DIH, que estipula que os ataques devem ser direcionados aos
combatentes e aos objetivos militares, e que civis devem ser respeitados.

Durante a guerra, os civis devem ser respeitados por aqueles que têm autoridade, que
podem detê-los, praticar maus-tratos, incomodá-los, confiscar sua propriedade ou privá-
los de alimentação e assistência médica. Sob o DIH, algumas dessas proteções são
garantidas a todos os civis. No entanto, a maioria delas é específica para “civis
protegidos”47, ou seja, aqueles nas mãos do inimigo – seja porque se encontram no
território inimigo48 ou porque seu território está ocupado pelo inimigo49. Aqueles que não

A conclusão de tal acordo não poderá em caso algum justificar a menor demora no repatriamento dos
prisioneiros de guerra”.
47
Ver principalmente a Parte II da Convenção IV, Arts. 13-26 e Seção II da Parte IV do Protocolo I, Arts.
72-79, mais especificamente as garantias fundamentais contidas no Art. 75.
48
Ver os Arts. 27-46 e 79-135 da Convenção IV.
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 41

se encontram nas mãos do inimigo, no entanto, se beneficiam da proteção do Art. 75 do


Protocolo I. As mais detalhadas normas dizem respeito aos civis internados – em ambos
os casos supramencionados – por atos relacionados ao conflito, e para sua própria
segurança (não porque tenham cometido um crime).50 Esse detalhado padrão normativo
para civis internados é justificado pelo fato de que tal internação é uma exceção à regra
geral que diz que os inimigos civis, diferente dos combatentes, não podem ser detidos.
Isso segue a máxima relacionada aos prisioneiros de guerra contida na Convenção III.

Durante a guerra, civis também precisam ser respeitados pelas forças inimigas,
que poderiam, por exemplo, bombardear suas cidades, atacá-los nos campos de batalha,
ou dificultar o recebimento de alimentação ou a transferência de mensagens às famílias.
Tais regras sobre a proteção da população civil contra os efeitos das hostilidades,
principalmente encontradas no Protocolo I51, são parte das normas de conduta das
hostilidades52 e beneficiam todos os civis que se encontrem no território das partes de um
conflito armado internacional.53

Regras que protegem a população civil inteira

A Parte II da Convenção IV (“Proteção geral das populações contra certas


conseqüências da guerra”) e Parte IV do Protocolo I contêm uma série de dispositivos que
protegem todos os civis ou, dentre a população, protege algumas categorias de pessoas
especialmente vulneráveis, entre as quais estão as mulheres (Art. 76), as crianças (Art.
77) e os jornalistas (Art. 79).

Outras regras referem-se à proteção de hospitais e ambulâncias civis e à proteção do


pessoal civil de saúde. Todas essas normas são semelhantes aos dispositivos analisados no
item 2.2 desta lição.

Por fim, é também relevante mencionar um conjunto específico de normas,


aquelas que prevêem a criação de áreas protegidas. O DIH geralmente tenta proteger os
civis e outras categorias de pessoas protegidas ao criar para os combatentes a obrigação
de identificar os objetivos militares de maneira inequívoca e de atacar apenas aqueles
alvos, respeitando civis onde quer que eles estejam. O DIH também define diferentes
tipos de zonas cujo objetivo é separar os civis dos objetivos militares. Tais zonas54 são

49
Ver os Arts. 27-34 e 47-135 da Convenção IV.
50
Ver os Arts. 79-135 da Convenção IV.
51
Ver especificamente os Arts. 48-71 do Protocolo I.
52
Ver Lição 4.
53
Ver os Arts. 49 (2) e 50 (1) do Protocolo I.
54
Ver os Arts. 25 da Convenção I; 14-15 da Convenção IV; 59-60 do Protocolo I.
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 42

criadas para proteger as vítimas de guerra dos efeitos das hostilidades e para evitar que
elas se encontrem sob o fogo do inimigo, por meio da garantia das forças inimigas de que
não há objetivos militares em determinada área onde as vítimas de guerra estejam
concentradas. Assim, se o inimigo respeita o DIH, as vítimas de guerra nessas zonas não
correm risco de serem feridas ou alcançadas pelos efeitos das hostilidades. As zonas
criadas sob o DIH devem ser diferenciadas das zonas de proteção, corredores
humanitários ou das zonas de segurança recentemente criados sob o Capítulo VII da
Carta das Nações Unidas, de maneira a impedir que essas áreas e as vítimas de guerra ali
encontradas caiam sob o controle do inimigo.

Regras de proteção de civis nas mãos ou em território do inimigo

O princípio geral dessas normas55 (que protegem estrangeiros em território de


uma das partes do conflito) é o de que essas pessoas devem ser autorizadas a deixar o
território no início de um conflito. No entanto, a Convenção IV estipula que, sob
determinadas circunstâncias, o Estado hospedeiro pode proibir a partida de estrangeiros
se tal partida for prejudicial à sua segurança nacional (Art. 35). Indivíduos que não
possam ou que não queiram deixar o país hospedeiro devem ter autorização para viver
uma vida o mais normal possível (Arts. 38 e 39).

A Convenção IV apresenta vários meios de limitar a liberdade de movimento de


estrangeiros quando o país hospedeiro acredita que não pode permitir que alguns
estrangeiros sejam livres. No entanto, tais meios não são irrestritos. De maneira a
restringir o movimento dos estrangeiros, o Estado pode designar uma residência para eles
ou mesmo interná-los sob condições limitadas (Art. 42). As condições da internação de
tais civis são muito semelhantes àquelas designadas aos prisioneiros de guerra (ver
Capítulo III).

Regras que protegem civis em territórios ocupados

Civis em territórios ocupados merecem e precisam de rigorosas regras de proteção.


Eles entram em contato com o inimigo simplesmente por causa do conflito armado no qual
este obtém controle territorial sobre o lugar em que eles vivem. Os civis não têm obrigações
outras em relação à potência ocupante além daquela inerente ao seu status, ou seja, a de não
participar das hostilidades. Por causa dessa obrigação, o DIH não permite que eles resistam
de maneira violenta à ocupação de seu território pelo inimigo, nem que tentem libertar esse
território por meios violentos.

Baseado nos exemplos anteriores do DIH, é lógico que as obrigações da potência


ocupante podem ser resumidas a permitir que a vida no território ocupado continue o mais
normal possível. Assim, de maneira eficiente, o DIH protege o status quo ante mas, de
maneira inadequada, responde às novas necessidades da população do território ocupado.
Quanto mais longa for a ocupação, mais evidentes ficam as deficiências do regime atual.

55
Ver as Seções I, II e IV da Parte II da Convenção IV.
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 43

De acordo com o DIH, as leis locais continuam em vigor nos territórios ocupados56 e
os tribunais locais permanecem ativos, exceto em relação à proteção da segurança da
potência ocupante57. Além disso, exceto quando absolutamente necessário para as operações
militares, a propriedade particular não poderá ser destruída,58 ela só pode ser confiscada sob
a legislação local. A propriedade pública (outras que não as dos municípios) pode
obviamente não mais ser administrada pelo Estado que antes controlava o território
(geralmente o soberano). Pode, com isso, ser administrada pela potência ocupante, mas
apenas sob as normas do DIH.59 A população local não pode ser deportada;60 a potência
ocupante não pode transferir sua própria população para o território ocupado.61

O único interesse da potência ocupante que é protegido pelo DIH é a segurança de


suas forças armadas. Ela deve adotar as medidas necessárias para proteger tal segurança,
mas também pode ser responsável pela lei e pela ordem do território ocupado,62 assim como
por assegurar higiene, saúde pública,63 alimentação e suprimentos médicos.64 A potência
ocupante também tem o interesse legítimo de controlar o território pelo tempo que durar a
ocupação, ou seja, até que o território seja liberado pelo antigo soberano ou transferido para
a soberania da potência ocupante por um acordo de paz. O DIH não privilegia nenhuma das
situações mencionadas acima, já que é neutro sobre as questões de jus ad bellum. Ele
somente tenta garantir, de maneira legal, que nenhuma das medidas adotadas durante a
ocupação prejudique o retorno do território ao antigo soberano.

As regras do DIH para os territórios ocupados são aplicáveis sempre que um


território estiver sob controle do inimigo da potência que controlava o território durante o
conflito armado, assim como em casos de ocupação beligerante, mesmo quando tal
ocupação não encontrar resistência armada. As regras protegem todos os civis, exceto os
nacionais da potência ocupante (o que não inclui refugiados).65 A anexação unilateral do
território ocupado pela potência ocupante – seja legal ou ilegal sob o jus ad bellum, ou seja,
por acordos realizados entre a potência ocupante e as autoridades locais do território
ocupado – não pode retirar dos civis a proteção garantida pelo DIH.66

56
Ver o Art. 43 das Regulamentações de Haia e o Art. 64 da Convenção IV.
57
Ver o Art. 66 da Convenção IV.
58
Ver o Art. 53 da Convenção IV.
59
Ver o Art. 55 das Regulamentações de Haia.
60
Ver o Art. 49 (1) da Convenção IV.
61
Ver o Art. 49 (6) da Convenção IV.
62
Ver o Art. 43 das Regulamentações de Haia.
63
Ver o Art. 56 da Convenção IV.
64
Ver o Art. 55 da Convenção IV.
65
Ver o Art. 73 do Protocolo I e o Art. 70 (2) da Convenção IV.
66
Ver o Art. 47 da Convenção IV.
Lição 2/ Proteção de Vítimas no Conflito Armado Internacional 44

Refugiados e pessoas deslocadas

Se os Estados respeitassem os princípios do Direito Internacional Humanitário


(DIH) de maneira consistente e integral para proteger os civis, seria evitada a maioria dos
movimentos populacionais provocados pelos conflitos armados. O DIH dos conflitos
armados não-internacionais contém uma proibição geral de transferência forçada de civis,67
enquanto que o DIH dos conflitos armados internacionais provê tal proibição geral somente
para os territórios ocupados.68 Apesar de o DIH reconhecer que tais situações e os
movimentos populacionais ocorrem por várias razões além do conflito, ele oferece proteção
às pessoas deslocadas e aos refugiados desamparados pelo conflito armado.

Pessoas deslocadas são civis que fogem do conflito armado para um destino dentro
de seu próprio país.O DIH protege aqueles deslocados por causa de um conflito armado
internacional, por exemplo, a eles garantindo o direito de receber itens essenciais à
sobrevivência.69 Os civis deslocados por conflitos armados internos têm proteção similar,
apesar de ser menos detalhada nesse caso.70

Os refugiados, por outro lado, são os que fogem de seu país. O DIH protege tais
indivíduos, como civis afetados pelas hostilidades,71 somente se eles tiverem fugido de um
país que estiver envolvido em um conflito armado internacional72 (ou se este Estado estiver
gravemente envolvido com um conflito armado interno73). O DIH protege de maneira
específica os refugiados que entram o território do Estado inimigo, impedindo um
tratamento desfavorável (baseado em sua nacionalidade74) Aqueles considerados refugiados
antes do início das hostilidades (incluindo os de um Estado neutro) sempre serão
considerados pessoas protegidas sob o DIH dos conflitos armados internacionais.75 O DIH
também oferece proteção especial àqueles que fogem para territórios que depois são
ocupados pelo seu Estado de origem.76 Por fim, no que se refere à não-repatriação, as
Convenções dispõem, de maneira expressa, que as pessoas protegidas não podem ser
transferidas para um Estado onde haja temor de perseguição por motivações políticas ou por
crenças religiosas.77

67
Ver o Art. 17 do Protocolo II.
68
Ver o Art. 49 da Convenção IV.
69
Ver o Art. 23 da Convenção IV e o Art. 70 do Protocolo I.
70
Ver o Art. 3o comum das Convenções e o Protocolo II (que repete e amplia as regras do Art. 3o comum).
71
A Convenção da ONU Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) e seu Protocolo de 1967 definem o
refugiado com termos muito restritos (de maneira geral, é aquele que foge de perseguição). Somente a
“Convenção da Organização da Unidade Africana que Rege os Aspectos Específicos dos Problemas dos
Refugiados na África” inclui, em seu conceito de refugiados, pessoas que fogem de conflitos armados. Ainda
assim, no caso de fuga de território que não esteja envolvido em conflito armado, os civis devem confiar em
tais Convenções e no Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados para obter proteção e
benefícios, já que o DIH não é aplicável.
72
Ver os Arts. 35-46 da Convenção IV.
73
Nesse caso, aplicar-se-ia o Art. 3º comum às Convenções e o Protocolo II.
74
Ver o Art. 44 da Convenção IV.
75
Ver principalmente o Art. 73 do Protocolo I.
76
Ver o Art. 70 (2) da Convenção IV.
77
Ver o Art. 45 (4) da Convenção IV.

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