Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
OLHAR ETNOSSINTÁTICO
Rodrigo MESQUITA*
Silvia Lucia Bigonjal BRAGGIO**
Introdução
Sob esta ótica, pretendemos verificar, nos empréstimos semânticos do Português (daqui
em diante L2), para a língua xerente (doravante L1) 2 as possíveis marcas ocasionadas
pelo contato linguístico e sociocultural. Mesquita (2009) mostra como este fenômeno
ocorre entre os Xerente, relacionando a entrada massiva, de forma acelerada, de
empréstimos de L2 para L1 com a possível situação de obsolescência da língua
indígena. Uma série de fatores extralinguísticos são apontados como força influente
para que isto ocorra. Entre estes, estão a migração crescente para a cidade, a educação
escolar em língua portuguesa na cidade e também nas aldeias 3, os conflitos internos e a
dispersão dentro da própria reserva 4, além das pressões advindas de políticas
desenvolvimentistas do Estado que, em alguns aspectos, consideram o povo xerente e o
território que ocupam como um empecilho para o desenvolvimento (BRAGGIO, 2008).
Mesquita (2009) descreve quatro tipos de empréstimos, a saber: semânticos,
com adaptação fonológica, loanblends e diretos. Propomos uma revisita a estes dados,
com foco no primeiro tipo, considerado como o menos ‘aportuguesado’, por ser
constituído por termos e mecanismos da própria língua. Para tanto, apoiamo -nos nos
estudos sociolinguísticos de Grosjean (1982), Gumperz (1996), Hymes (1972) e
Gumperz & Levinson (1996) e de autores da corrente conhecida como etnossintaxe, tais
como Wierzbicka (1997), Pawley (2002) e Gomez-Imbert (1996), entre outros. A
seguir, explanamos um pouco mais sobre os caminhos que levaram à atual situação
sociolinguística dos Akwe e, então, passamos aos pilares teórico-metodológicos que
comércio, nas escolas e em suas próprias casas 5. Na cidade, muitas vezes, ficam à
margem da sociedade, são discriminados e expostos ao uso abusivo de álcool e drogas.
Muitos justificam que vão para a cidade em busca de melhores condições de vida, de
emprego e para acompanhar os filhos que lá vão estudar. Em 2006, havia
aproximadamente 150 crianças e jovens Xerente matriculados nas escolas da cidade. Há
uma série de conflitos envolvendo a educação escolar indígena 6, que vão desde a atitude
dos pais, que divergem quanto à língua em que seus filhos deverão ser educados (L1 ou
L2), até as políticas públicas que estão longe de efetivar o que está garantido no papel,
ou seja, uma educação diferenciada, dentro dos moldes e necessidades da cultura.
É no ambiente urbano, entre os mais jovens e mais escolarizados, que
Mesquita (2009) identificou a maior intensidade no uso de empréstimos. Assuntos que,
num passado não-distante, não faziam parte do repertório da língua e da cultura xerente,
tais como programas de televisão (há dois anos, não havia sequer energia elétrica nas
aldeias), problemas burocráticos a serem resolvidos na cidade, novidades tecnológicas,
assuntos escolares, dentre outros, são geralmente a motivação para a ocor rência de
empréstimos entre os Xerente.
Fundamentação Teórica
A perspectiva da Etnossintaxe
os seres humanos [...] se acham, em grande medida, à mercê da língua particular que
se tornou o meio de expressão da sua sociedade. É uma completa ilusão imaginar
que alguém se ajuste à realidade sem o auxílio essencial da língua e que a língua
seja, meramente, um meio ocasional de resolver problemas específicos de
comunicação ou raciocínio. O fato incontestável é que o “mundo real” se constrói
inconscientemente, em grande parte, na busca dos hábitos linguísticos do grupo. Não
há duas línguas que sejam bastante semelhantes para que se possa dizer que
representam a mesma realidade social. Os mundos em que vivem as diversas
sociedades humanas são mundos distintos e não apenas um mundo com muitos
rótulos diversos (SAPIR, 1929, p. 208).
O autor alerta que não é possível uma correlação direta entre cultura e estrutura
linguística, dado que as culturas podem se difundir apesar das diferenças entre as línguas.
Neste sentido, os empréstimos linguísticos são marcas dessa difusão cultural e podem ser
indícios da trajetória de uma cultura em contato com outras e das formas como se deram este
contato. Para Sapir, “o vocabulário é um índice bastante sensível da cultura de um povo e as
mudanças de sentido, a perda de velhas palavras, a criação e empréstimo de novas são todas
dependentes da história da cultura” (SAPIR, 1974, p. 62).
Whorf, a partir dos trabalhos de Sapir, procurou mostrar, com um pouco mais de
rigor as relações entre linguagem, pensamento e cultura. Suas ideias sobre o relativismo
Uma visão determinista (versão forte) leva (2) ao extremo. Se por um lado, no
determinismo linguístico, a linguagem determina o pensamento e, por consequência, afeta a
cultura, por outro, no relativismo linguístico, a cultura influencia o pensamento por meio da
linguagem. Gumperz & Levinson (1996, p. 24) não consideram tal teoria como determinista.
Para eles, corrobora o fato de que (1) e (2) podem variar em intensidade, incidindo sobre (3).
A interpretação determinista das ideias de Sapir e Whorf culminou em duras críticas aos
trabalhos destes autores.
Dentro da abordagem das relações intrínsecas entre língua e sociedade, o período
seguinte é marcado pelos estudos sociolinguísticos, dos quais destacamos os trabalhos de Dell
Hymes. Ao atribuir relevância ao contexto social/cultural e afirmá-lo como constitutivo da
realidade linguística, o trabalho de Hymes é considerado como uma quebra de paradigma em
relação aos estudos formalistas até então vigentes.
Hymes (1972) prioriza aspectos sociais em detrimento de linguísticos na
delimitação do conceito, porém não descarta o sistema. Desta forma, o código linguístico é
deslocado pelo ato de fala que, por sua vez, se torna o foco da atenção. O autor defende ainda
a heterogeneidade da comunidade de fala e admite que um indivíduo pode participar de
diferentes comunidades de fala, o que torna a relação entre estas e o indivíduo bastante fluida.
No mesmo sentido, Gumperz (1996) justifica a diversidade dentro de uma
comunidade de fala, afirmando que ela se constitui por uma variedade de redes de
socialização, associadas a padrões linguísticos de uso e interpretação. Porém, para Gumperz, a
comunidade de fala não deve ser considerada como uma unidade de análise, mas o papel das
redes sociais:
“língua-” não são as nações, os grupos étnicos ou algo parecido [...] ao invés, são
redes de indivíduos em interação (GUMPERZ, 1996, p. 11).
A partir de fins dos anos 1980, autores como Wierzbicka (1997), Pawley (2002) e
Gomez-Imbert (1996) retomaram a ‘versão fraca’ do relativismo linguístico, ao abordar a
relação entre a gramática de uma língua e seu significado cultural.
Segundo os estudos etnossintáticos, a diferença entre as línguas revela diferentes
formas de ver o mundo, tal como afirma Wierzbicka (1979 apud PAWLEY, 2002, p. 110): “as
estruturas sintáticas de uma língua codificam certos significados específicos que incorporam
certa visão de mundo”. No mesmo sentido, Grace (1987 apud PAWLEY, 2002, p. 110)
aponta que “as construções de uma língua são um conjunto de recursos para dizer coisas sobre
o mundo”.
Para Lucy (1996), é importante conhecer os usos culturais da linguagem, a fim de
avaliar o significado de um dado efeito estrutural tanto na própria cultura como entre culturas
em contato, como é o caso dos Xerente, e também para avaliar o significado geral da
linguagem na vida social e psicológica dos falantes. Segundo Lucy (1966, p. 44), “um estudo
adequado da relação entre a língua e o pensamento deve apresentar evidências claras da
correlação entre o sistema linguístico com os padrões não-linguísticos (crenças e
comportamento), individuais ou institucionais”.
O estudo de Wierzbicka (1997) ilustra estas afirmações. A autora analisa
metodicamente as semelhanças e as diferenças entre conceitos relacionados à “liberdade”
(freedom) que foram lexicalmente codificados em línguas diferentes e que são, muitas vezes,
assumidos como sendo simplesmente idênticos. Para tanto, são discutidos o conceito
encapsulado na palavra do Inglês freedom e diversos conceitos relacionados: libertas (Latim),
liberty (Inglês), svoboda e volja (Russo) e wolnosc (Polonês). A autora se baseia na premissa
de que
indígena não envolve contrastes e conflitos que, no mundo ocidental, levou à articulação
de tais ideais) e iii) palavras como freedom, libertas, svoboda, ou wolnosc incorporam
conceitos diferentes, que refletem diferentes ideais culturais. O surgimento de tais conceitos
em uma determinada língua pode ser entendido apenas no contexto da cultura à qual pertence
esta língua e eles fornecem pistas preciosas para a compreensão dessa cultura
(WIERZBICKA, 1997, p. 152/153).
En términos muy generales, existe la conciencia en los grupos indígenas de que las
formas tradicionales de comunicación, adquiridas históricamente y vinculadas a las
lenguas indígenas, ya no satisfacen el conjunto de necesidades comunicativas a las
quales ellos se enfrentam como grupo y como individuos. [...] Existe, en otras
palabras, una fuerte presión basada en sanciones socioeconômicas, políticas y
culturales para que los hablantes indígenas desarrollen un domínio suficiente de la
lengua nacional (HAMEL, 1988, p. 49/50).
silábico e tônico do ILP (Item Lexical Padrão) da língua katukina, como nos exemplos
de Aguiar (1995, p. 83):
a. caju
b. café
c. papai
d. boi ui [oi
alimento a “aquilo que se põe dentro para que funcione”, assim como está o alimento
para o organismo humano. A cultura xerente, assim como as demais comunidades
indígenas, tem como uma das bases da organização social a atividade de obtenção e
coleta de alimentos. Vários eventos de fala estão relacionados a esta atividade.
Atualmente, a maior parte dos alimentos é obtida na cidade, nos mercados e feiras
locais. Isso fez com que formas como (7) e (8) surgissem. Tratam -se de loanblends, ou
seja, itens lexicais formados por elementos das duas línguas. Termos deste tipo são
mais utilizados no contexto da cidade ou quando se fala deste contexto, pois é lá que
estão localizados os objetos referidos.
segunda associação ao alimento que faz com que o carro (o ‘ferro que corre’) possa
funcionar.
A criação de novas palavras por analogia às funções que os objetos
desempenham também é bastante utilizada e pode ser observada nos exemplos (9) a
(12). Para tanto, o nominalizador xerente ‘-z’7 é um recurso muito produtivo.
O pronome pessoal (PP) da-, observado nos exemplos (2), (3), (13) e (14), foi definido
por Santos (2004), ao analisar a morfologia do substantivo xerente, como Prefixo de
Possuidor Não Identificado – PPNI. Segundo o autor, nesta língua, o substantivo pode
ser obrigatoriamente, facultativamente, possuído ou não. O prefixo da -, assim, aparece
ligado aos substantivos obrigatoriamente possuídos (como os que denotam partes do
corpo humano e termos de parentesco) quando estes não são marcados por um
possuidor definido. Desta forma, podemos entender dapra como ‘pé de alguém’ ou
datmõ como ‘olho de alguém’. No dado (15), encontramos um exemplo em que o
prefixo da- não aparece junto ao mesmo item lexical tratado em (2). O que acontece é
que em (15) o possuidor é definido, ou seja, em Xerente, o ‘pé’ pertence ao ‘veículo’ na
formação do conceito ‘pneu’, emprestado do Português. Braggio (2011) faz uma análise
dos termos inalienáveis na língua xerente, tendo como base os pressupostos da
semântica da gramática. A autora investiga o que leva esse povo à classificação e
atribuição dos inalienáveis em busca das formas de categorização de si mesmos, dos
animais e das plantas a partir de seu universo sociocultural.
Siqueira (2010) mostra como o sistema de classificadores nominais xerente pode servir
a este propósito, entre vários outros. Nos exemplos (4) e (5), podemos observar que
estes empréstimos fazem, através da metáfora, alusão à forma dos objetos que
designam, usando como parâmetro a forma como enxergam os animais do seu convívio.
Braggio (2000) explica que há, em Xerente, um inventário de classificadores
para formatos e partes de plantas que compõem um sistema de classificação do mundo
vegetal típico da língua que falam, além de classificadores de gênero. Em seguida,
mostramos como os termos de classe 9 são produtivos na composição dos empréstimos
por criação.
‘casca/pele’
(16) [ - - ] ‘chinelo’
PP+pé+casca/pele
(lit.: ‘casca/proteção para pé’)
composto e classifica os nomes que a eles se adjungem. Outros termos de classe, como
hesuka ‘folha para escrever/papel’, skuza ‘roupa/vestimenta’ e ktw a ‘ferro’, também
expressão complexa que se refere a um objeto ou uma ideia, com significado mais
específico ou diferente do que os significados das palavras que a formam. Contudo, o
mesmo não se dá se considerarmos outros critérios (como o ortográfico, fonológico ou
gramatical).
Aronoff (1976), ao tratar da noção de produtividade morfológica, consider a
que, em morfologia, muita coisa é possível e algumas coisas, entretanto, são mais
possíveis do que outras. Segundo o autor, no léxico mental do falante, encontram -se
armazenadas as palavras existentes na língua, que podem conter apenas um morfema ou
podem ser compostas por morfemas identificáveis, cujo sentido não é composicional,
mas, imprescindível. Já as formas complexas, ainda que bem formadas
morfologicamente, ficam fora do léxico, uma vez que a análise de seus componentes é
processada por completo e facilmente através da gramática do falante. Assim, a palavra
será ouvida e compreendida claramente, sendo descartada em seguida, sem entrar no
léxico mental do indivíduo.
Mesquita (2009) tratou estes exemplos como formas complexas que, na
verdade, caracterizam perífrases que os próprios Xerente criam para fazer referência a
um novo conceito/objeto, como podemos observar nos seguintes exemplos:
Considerações finais
perspectiva da Etnossintaxe. Neste sentido, a cada exemplo exposto neste trabalho caberia
uma análise mais sistemática.
No entanto, essa análise prévia nos possibilita afirmar que, através do estudo dos
empréstimos, é possível traçar uma relação multidirecional entre língua, cultura, pensamento
e comportamento social. Através dos empréstimos criados com elementos da própria língua
por meio de processos variados, é possível perceber traços culturais arraigados nestes
processos, como noções particulares de tempo e espaço, relação com o meio, formas da
organização social e outros traços peculiares da visão de mundo Akwe.
entendimento poderá ajudar o próprio povo a decidir quais são as ações mais iminentes para
manter a cultura e a língua fortalecidas, evitando assim o seu deslocamento.
ABSTRACT: Phenomena can surface from the contact of the languages spoken by
people in situations of social and cultural contact and when there is
political and economic asymmetry between those involved. Borrowing
is one of these phenomena which will be discussed in this paper from
the point of view of ethnosyntactic or grammar symantic theory. For
this purpose, the data of created loans or semantic borrowings of
Xerente Akwe (Jê) in Mesquita (2009) was examined. This language is
spoken by approximately 3,600 indigenous people living in Tocantins,
Brazil. This analysis aims at showing how these loans, created with
elements of the indigenous language itself, reflect cultural traits which
are characteristic to the Xerente worldview, as well as having vestiges
of their contacts with majority society.
Referências
sobre os empréstimos e sua relação com a dispersão areal, a migração e a escolarização. In.:
UniverSOS, nº5, 2008, p.193-215.
BRAGGIO, S. L. B. Reflexões sobre os empréstimos do tipo loanblend e direto na língua
xerente akwén. In: Revista de Estudos da Linguagem. Belo Horizonte, v. 18, nº 1, 2010, p. 87-
100.
______, S. L. B. Os Xerente Akwe, os animais e as plantas: uma revisita aos inalienáveis com
214, 1929.
______, E. The Unconscious Patterning of Behavior in Society. Em BLOUNT, B.G. (ed.).
Cambridge: Whintrop, 1974
SIQUEIRA, K. M. F. Os classificadores nominais em Akwe Xerente: âmbitos de análise. Tese
Notas
*
Rodrigo Mesquita é doutorando em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail:
rodrigomesquitago@hotmail.com.
**
Silvia Lucia Bigonjal Braggio é doutora em Linguística pela University of New Mexico. É professora titular
da Faculdade de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de
Goiás (UFG).
1
Este artigo faz parte do Projeto LIBA: línguas indígenas brasileiras ameaçadas de extinção: documentação
(análise e descrição) e tipologias sociolinguísticas e do Grupo de Educação e Línguas Indígenas da UFG,
coordenados por Silvia Lucia Bigonjal Braggio.
2
Os Xerente são, em geral, bilíngues em Xerente – Português. Embora haja exceções, as crianças aprendem
primeiro a língua indígena e depois o Português, adquirido no contato com não-índios, na escola e, mais
recentemente, com a televisão.
3
Para uma visão mais ampla sobre a educação escolar xerente, veja Braggio (2000 e 2008) e Sousa Filho (2000).
4
Sempre que visitamos a reserva xerente, há notícia do surgimento de uma ou mais aldeias. Em agosto de 2011,
este número já chagava ao total de 58 aldeias, distribuídas nas duas áreas indígenas.
5
Há uma estimativa de que há mais de trezentos Xerente morando em Tocantínia, em casas próprias,
emprestadas ou alugadas. Há, inclusive, a formação de algumas “aldeias urbanas” (BAINES, 2001) às margens
da cidade, resultado da crescente migração para a cidade e da vontade de continuarem vivendo próximos uns dos
outros.
6
Sobre o assunto, veja Braggio (2008).
7
Segundo Sousa Filho (2007), o nominalizador (NMZ) Xerente -z, quando sufixado ao verbo, transforma a
estrutura verbal em nominal. Santos (2001) considera que esta é sua única função quando age sobre os verbos,
uma vez que este sufixo não possui semântica específica.
8
Vogal de ligação (SOUSA FILHO, 2007).
9
Para uma maior compreensão do funcionamento dos termos de classe ou classificadores nominais, veja
Siqueira (2010) e Sousa Filho (2007).
10
Dados coletados em campo, em agosto de 2011. Estes dados serão tratados em trabalhos futuros.