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EMPRÉSTIMOS SEMÂNTICOS DO PORTUGUÊS EM XERENTE AKWE: UM

OLHAR ETNOSSINTÁTICO

Rodrigo MESQUITA*
Silvia Lucia Bigonjal BRAGGIO**

RESUMO: Em situações de contato sociocultural, principalmente quando há


assimetria político-econômica entre os povos envolvidos, alguns
fenômenos podem emergir do contato entre as línguas faladas por estes
povos. Entre eles está o empréstimo linguístico, fenômeno ao qual nos
dedicamos neste artigo sob a luz da teoria da etnossintaxe ou semântica
da gramática. Para tanto, revisitamos os dados de empréstimos por
criação (ou semânticos) da língua Xerente Akwe (Jê) em Mesquita
(2009). A língua é falada por aproximadamente 3.600 indígenas que
vivem no estado do Tocantins, Brasil. A análise procura mostrar como
os empréstimos criados com elementos da própria língua indígena
refletem traços culturais peculiares à visão de mundo dos Xerente,
assim como vestígios do contato com a sociedade majoritária.

PALAVRAS- Línguas em Contato. Etnossintaxe. Língua Xerente Akwe.


CHAVE: Empréstimos Linguísticos.

Introdução

O povo indígena xerente, habitante da região de cerrado localizada ao norte


de Palmas, capital do Estado do Tocantins, soma hoje uma população aproximada de
3.600 indivíduos. As terras que ocupam atualmente se encontram devi damente
demarcadas em duas áreas, Xerente e Funil, cuja maior parte está dentro do município
de Tocantínia.
Após um histórico de mais de 200 anos de contato (muitas vezes, desastroso)
com os não-índios, os Xerente mantêm a sua língua e traços culturais singulares, que
constituem uma maneira particular de perceber e se inserir na realidade. Apesar disso, a
situação presente não é tranquila. Este contato, que é cada vez mais intenso e se dá com
uma sociedade privilegiada política e economicamente, vem deixand o marcas na
cultura Akwe.

Este artigo pretende juntar-se aos trabalhos de outros pesquisadores 1 que


acreditam e mostram que estas marcas ou traços culturais podem ser percebidos na
língua, já que há uma relação intrínseca entre esta, a cultura e o compor tamento social.

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Sob esta ótica, pretendemos verificar, nos empréstimos semânticos do Português (daqui
em diante L2), para a língua xerente (doravante L1) 2 as possíveis marcas ocasionadas
pelo contato linguístico e sociocultural. Mesquita (2009) mostra como este fenômeno
ocorre entre os Xerente, relacionando a entrada massiva, de forma acelerada, de
empréstimos de L2 para L1 com a possível situação de obsolescência da língua
indígena. Uma série de fatores extralinguísticos são apontados como força influente
para que isto ocorra. Entre estes, estão a migração crescente para a cidade, a educação
escolar em língua portuguesa na cidade e também nas aldeias 3, os conflitos internos e a
dispersão dentro da própria reserva 4, além das pressões advindas de políticas
desenvolvimentistas do Estado que, em alguns aspectos, consideram o povo xerente e o
território que ocupam como um empecilho para o desenvolvimento (BRAGGIO, 2008).
Mesquita (2009) descreve quatro tipos de empréstimos, a saber: semânticos,
com adaptação fonológica, loanblends e diretos. Propomos uma revisita a estes dados,
com foco no primeiro tipo, considerado como o menos ‘aportuguesado’, por ser
constituído por termos e mecanismos da própria língua. Para tanto, apoiamo -nos nos
estudos sociolinguísticos de Grosjean (1982), Gumperz (1996), Hymes (1972) e
Gumperz & Levinson (1996) e de autores da corrente conhecida como etnossintaxe, tais
como Wierzbicka (1997), Pawley (2002) e Gomez-Imbert (1996), entre outros. A
seguir, explanamos um pouco mais sobre os caminhos que levaram à atual situação
sociolinguística dos Akwe e, então, passamos aos pilares teórico-metodológicos que

sustentam nossa análise.

O contexto: situação sociolinguística dos Xerente Akw

Alguns autores relatam que os Xerente, povo falante de uma língua da


família Jê, tronco linguístico Macro-Jê (RODRIGUES, 1986) mantinham, num passado
distante, relações próximas com outro povo Jê, os Xavante. Maybury-Lewis (1965),
baseado em documentos de bandeirantes e viajantes, sugere que chegaram a forma r um
só povo, embora não se saiba precisamente quando e como isso ocorreu. O autor, no
entanto, relata semelhanças linguísticas e culturais que corroboram tal hipótese.
Farias (1990) relata que os primeiros contatos dos Xerente com os não -
índios se deram no século XVII e se intensificaram a partir da segunda metade do

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século XVIII, quando passaram por processos de aldeamento e catequização. A partir de


então, os Xerente travaram diversas batalhas por sua sobrevivência, enfrentando a
população sertaneja que avançava em busca de terras para pastagem e exploração
vegetal e mineral. Além disso, sofreram com epidemias e doenças ainda desconhecidas
e, portanto, não passíveis de serem tratadas com o conhecimento de plantas medicinais
que possuíam. Tudo isso ocasionou uma redução demográfica que quase os levou à
extinção.
A recuperação demográfica só foi possível com a demarcação das Terras
Indígenas Xerente e Funil em 1972 e 1988, respectivamente, e com as garantias
advindas da Constituição Federal de 1988 que, embora aplicada de forma tímida, deu o
pontapé inicial para que uma nova luta se iniciasse, desta vez, com argumentos
ancorados em leis. Desde 1989, com a criação do Estado do Tocantins, os Xerente se
encontram no caminho do desenvolvimento daquele estado, principalmente pela
proximidade com Palmas, a capital.
A cidade de Tocantínia, onde está a maior parcela das terras Xerente, fica a
aproximadamente 100 km de Palmas. É, nesta cidade, que pode ser observado, a
qualquer hora do dia, a movimentação de vários Akwe, nas ruas e praças da cidade, no

comércio, nas escolas e em suas próprias casas 5. Na cidade, muitas vezes, ficam à
margem da sociedade, são discriminados e expostos ao uso abusivo de álcool e drogas.
Muitos justificam que vão para a cidade em busca de melhores condições de vida, de
emprego e para acompanhar os filhos que lá vão estudar. Em 2006, havia
aproximadamente 150 crianças e jovens Xerente matriculados nas escolas da cidade. Há
uma série de conflitos envolvendo a educação escolar indígena 6, que vão desde a atitude
dos pais, que divergem quanto à língua em que seus filhos deverão ser educados (L1 ou
L2), até as políticas públicas que estão longe de efetivar o que está garantido no papel,
ou seja, uma educação diferenciada, dentro dos moldes e necessidades da cultura.
É no ambiente urbano, entre os mais jovens e mais escolarizados, que
Mesquita (2009) identificou a maior intensidade no uso de empréstimos. Assuntos que,
num passado não-distante, não faziam parte do repertório da língua e da cultura xerente,
tais como programas de televisão (há dois anos, não havia sequer energia elétrica nas
aldeias), problemas burocráticos a serem resolvidos na cidade, novidades tecnológicas,
assuntos escolares, dentre outros, são geralmente a motivação para a ocor rência de
empréstimos entre os Xerente.

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Fundamentação Teórica

A perspectiva da Etnossintaxe

Enfield (2004) define etnossintaxe como “o estudo das conexões entre o


conhecimento cultural, atitudes e práticas dos falantes, e os recursos morfossintáticos que
empregam na fala”. Para se chegar a tal conceito, é necessário voltar um pouco na história, ou
mais precisamente, aos estudos antropológicos de Franz Boas e, posteriormente, Edward
Sapir e Benjamin Whorf. Whorf foi aluno de Sapir, que, por sua vez, foi discípulo de Boas.
Embora a preocupação com a relação entre língua, cultura e pensamento tenha
sido levantada por Humbold no século XVIII (GUMPERZ & LEVINSON, 1996), foi somente
no início do séc. XX que a ideia vem novamente à tona com os trabalhos de Boas (BLOUNT,
1974, p. 22), que considera como fundamental a relação entre língua e cultura, sugerindo
inclusive que os etnógrafos tomassem conhecimento das línguas dos povos estudados, a fim
de uma melhor compreensão da cultura.
Sapir, influenciado por Boas e outros autores, deu continuidade à linha de
pesquisa que ficou conhecida como Linguística Antropológica. No entendimento de Sapir,

os seres humanos [...] se acham, em grande medida, à mercê da língua particular que
se tornou o meio de expressão da sua sociedade. É uma completa ilusão imaginar
que alguém se ajuste à realidade sem o auxílio essencial da língua e que a língua
seja, meramente, um meio ocasional de resolver problemas específicos de
comunicação ou raciocínio. O fato incontestável é que o “mundo real” se constrói
inconscientemente, em grande parte, na busca dos hábitos linguísticos do grupo. Não
há duas línguas que sejam bastante semelhantes para que se possa dizer que
representam a mesma realidade social. Os mundos em que vivem as diversas
sociedades humanas são mundos distintos e não apenas um mundo com muitos
rótulos diversos (SAPIR, 1929, p. 208).

O autor alerta que não é possível uma correlação direta entre cultura e estrutura
linguística, dado que as culturas podem se difundir apesar das diferenças entre as línguas.
Neste sentido, os empréstimos linguísticos são marcas dessa difusão cultural e podem ser
indícios da trajetória de uma cultura em contato com outras e das formas como se deram este
contato. Para Sapir, “o vocabulário é um índice bastante sensível da cultura de um povo e as
mudanças de sentido, a perda de velhas palavras, a criação e empréstimo de novas são todas
dependentes da história da cultura” (SAPIR, 1974, p. 62).
Whorf, a partir dos trabalhos de Sapir, procurou mostrar, com um pouco mais de
rigor as relações entre linguagem, pensamento e cultura. Suas ideias sobre o relativismo

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linguístico ficaram conhecidas como a hipótese de Sapir-Whorf e receberam interpretações


diferentes pelos estudiosos da época. Estas interpretações ficaram conhecidas como “versão
forte” (que remete ao determinismo linguístico) e “versão fraca” (relativismo linguístico). O
princípio da relatividade linguística de Whorf parte dos seguintes pressupostos (GUMPERZ
& LEVINSON, 1996, p. 24):

(1) diferentes línguas utilizam diferentes categorias linguísticas;


(2) categorias linguísticas determinam aspectos do pensamento de seus falantes;
Consequentemente:
(3) aspectos do pensamento de cada indivíduo variam de acordo com a língua que
esse indivíduo fala.

Uma visão determinista (versão forte) leva (2) ao extremo. Se por um lado, no
determinismo linguístico, a linguagem determina o pensamento e, por consequência, afeta a
cultura, por outro, no relativismo linguístico, a cultura influencia o pensamento por meio da
linguagem. Gumperz & Levinson (1996, p. 24) não consideram tal teoria como determinista.
Para eles, corrobora o fato de que (1) e (2) podem variar em intensidade, incidindo sobre (3).
A interpretação determinista das ideias de Sapir e Whorf culminou em duras críticas aos
trabalhos destes autores.
Dentro da abordagem das relações intrínsecas entre língua e sociedade, o período
seguinte é marcado pelos estudos sociolinguísticos, dos quais destacamos os trabalhos de Dell
Hymes. Ao atribuir relevância ao contexto social/cultural e afirmá-lo como constitutivo da
realidade linguística, o trabalho de Hymes é considerado como uma quebra de paradigma em
relação aos estudos formalistas até então vigentes.
Hymes (1972) prioriza aspectos sociais em detrimento de linguísticos na
delimitação do conceito, porém não descarta o sistema. Desta forma, o código linguístico é
deslocado pelo ato de fala que, por sua vez, se torna o foco da atenção. O autor defende ainda
a heterogeneidade da comunidade de fala e admite que um indivíduo pode participar de
diferentes comunidades de fala, o que torna a relação entre estas e o indivíduo bastante fluida.
No mesmo sentido, Gumperz (1996) justifica a diversidade dentro de uma
comunidade de fala, afirmando que ela se constitui por uma variedade de redes de
socialização, associadas a padrões linguísticos de uso e interpretação. Porém, para Gumperz, a
comunidade de fala não deve ser considerada como uma unidade de análise, mas o papel das
redes sociais:

Se os significados residem em práticas interpretativas e essas se localizam em redes


sociais nas quais o indivíduo está socializado, então as unidades “cultura-” e

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“língua-” não são as nações, os grupos étnicos ou algo parecido [...] ao invés, são
redes de indivíduos em interação (GUMPERZ, 1996, p. 11).

A partir de fins dos anos 1980, autores como Wierzbicka (1997), Pawley (2002) e
Gomez-Imbert (1996) retomaram a ‘versão fraca’ do relativismo linguístico, ao abordar a
relação entre a gramática de uma língua e seu significado cultural.
Segundo os estudos etnossintáticos, a diferença entre as línguas revela diferentes
formas de ver o mundo, tal como afirma Wierzbicka (1979 apud PAWLEY, 2002, p. 110): “as
estruturas sintáticas de uma língua codificam certos significados específicos que incorporam
certa visão de mundo”. No mesmo sentido, Grace (1987 apud PAWLEY, 2002, p. 110)
aponta que “as construções de uma língua são um conjunto de recursos para dizer coisas sobre
o mundo”.
Para Lucy (1996), é importante conhecer os usos culturais da linguagem, a fim de
avaliar o significado de um dado efeito estrutural tanto na própria cultura como entre culturas
em contato, como é o caso dos Xerente, e também para avaliar o significado geral da
linguagem na vida social e psicológica dos falantes. Segundo Lucy (1966, p. 44), “um estudo
adequado da relação entre a língua e o pensamento deve apresentar evidências claras da
correlação entre o sistema linguístico com os padrões não-linguísticos (crenças e
comportamento), individuais ou institucionais”.
O estudo de Wierzbicka (1997) ilustra estas afirmações. A autora analisa
metodicamente as semelhanças e as diferenças entre conceitos relacionados à “liberdade”
(freedom) que foram lexicalmente codificados em línguas diferentes e que são, muitas vezes,
assumidos como sendo simplesmente idênticos. Para tanto, são discutidos o conceito
encapsulado na palavra do Inglês freedom e diversos conceitos relacionados: libertas (Latim),
liberty (Inglês), svoboda e volja (Russo) e wolnosc (Polonês). A autora se baseia na premissa
de que

[...] do ponto de vista linguístico, é particularmente importante que os conceitos


específicos da língua codificados em palavras-chave como freedom, libertas e
Svoboda sejam decodificados e traduzidos numa metalinguagem semântica cultural-
independente que tornaria as semelhanças e as diferenças entre eles
explícitas (WIERZBICKA, 1997, p.126).

O estudo de Wierzbicka (1997) conclui que i) freedom não representa um ideal


humano universal; ii) muitas línguas de sociedades modernas ou aborígenes parecem não ter
palavras correspondentes, mesmo remotamente, a qualquer coisa como freedom, libertas
svoboda ou wolnosc (estas últimas, presumivelmente porque a forma de vida tradicional

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indígena não envolve contrastes e conflitos que, no mundo ocidental, levou à articulação
de tais ideais) e iii) palavras como freedom, libertas, svoboda, ou wolnosc incorporam
conceitos diferentes, que refletem diferentes ideais culturais. O surgimento de tais conceitos
em uma determinada língua pode ser entendido apenas no contexto da cultura à qual pertence
esta língua e eles fornecem pistas preciosas para a compreensão dessa cultura
(WIERZBICKA, 1997, p. 152/153).

Empréstimos linguísticos em contexto de contato assimétrico

De uma situação de contato entre povos de línguas e culturas diferentes podem


emergir fenômenos diversos, entre eles, o empréstimo. Câmara Jr. (1991) considera o contato
como uma condição para a ocorrência deste fenômeno. Dado o caráter não homogêneo do
contato entre culturas distintas e da forma como os empréstimos se dão, faz-se necessária uma
avaliação do macro e micro contexto, a fim de estabelecer uma relação intrínseca entre a
situação sociolinguística de um povo e os fenômenos decorrentes dela.
Grosjean (1982) aponta como fator predominante para a adoção de empréstimos a
inexistência de itens lexicais em uma determinada língua para expressão de novos conceitos,
objetos e lugares advindos de uma situação de contato, geradora de novas experiências
socioculturais. Em consequência destas experiências, torna-se eminente a necessidade de
ampliação vocabular para suprir as necessidades comunicativas decorrentes.
Pesquisadores como Grosjean (1982), Hamel (1988) e Nettle & Romaine (2000)
procuraram mostrar como povos em situação de contato assimétrico, em que uma cultura (e
consequentemente a língua que falam) é privilegiada em relação à outra, encontram-se em
situações sociolinguísticas delicadas, com conflitos diglóssicos capazes de levar uma língua à
extinção. Hamel (1988) explica que, quando o contato se dá entre povos com poderes
políticos desiguais, também às línguas é atribuído um valor histórico, ideológico e político
diferenciado. Neste sentido, o autor afirma:

En términos muy generales, existe la conciencia en los grupos indígenas de que las
formas tradicionales de comunicación, adquiridas históricamente y vinculadas a las
lenguas indígenas, ya no satisfacen el conjunto de necesidades comunicativas a las
quales ellos se enfrentam como grupo y como individuos. [...] Existe, en otras
palabras, una fuerte presión basada en sanciones socioeconômicas, políticas y
culturales para que los hablantes indígenas desarrollen un domínio suficiente de la
lengua nacional (HAMEL, 1988, p. 49/50).

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Neste trabalho, esboçamos uma análise dos empréstimos por criação na


língua xerente que tenta ir além de uma análise da dimensão formal. De forma geral, a
maneira como o contato se dá é determinante para avaliar os empréstimos,
codeswitching e outros fenômenos linguísticos. Da mesma forma, acreditamos que é
possível, através da semântica da gramática, traçar alguns aspectos da visão de mundo
Akwe e as possíveis mudanças provenientes da situação de contato assimétrico em que

se encontram, observando a formação de novas palavras para compor o léxico da língua


e os aspectos extralinguísticos que motivam os processos.

Empréstimos por criação ou semânticos

Nos empréstimos por criação (GROSJEAN, 1982), duas ou mais palavras já


existentes na L1 são combinadas para expressar o conceito contido nas novas palavras
da L2.
Também conhecido como empréstimo de conteúdo semântico ou
“nativização” (ROMAINE, 1995), esta modalidade de empréstimo acontece quando, de
acordo com Carvalho (1989), ao ser incorporado a uma língua, um item lexical é
regularmente adaptado a ela fonética, fonológica e sintaticamente, ou seja, ele reproduz
a matéria fônica, mórfica e sintática da língua que o empresta, no sentido de evidenciar
as mesmas regras fonológicas, morfológicas e sintáticas a que obedecem os itens
lexicais nativos. Neste conceito, a autora inclui os empréstimos por criação e com
adaptação fonético-fonológica, que são tratados separadamente em Mesquita (2009) e
neste trabalho, por considerar o segundo tipo mais próximo ao Português.
Quando este tipo de processo é mais abrangente, como é o caso do Katukina,
da família Pano, essas línguas parecem oferecer maior resistência à entrada de
empréstimos de forma direta. Segundo Aguiar (1995), esta língua indígena não admite a
inclusão de palavras de outras línguas em seu léxico sem antes passarem por um
rigoroso processo de adaptação. Para tanto, são utilizados como processos mais
frequentes a adaptação fonética da palavra e a inclusão de conceitos novos expressos
através de termos e mecanismos da própria língua. A adaptação fonética é fei ta somente
se a palavra a ser emprestada for dissilábica e oxítona, que se constitui no padrão

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silábico e tônico do ILP (Item Lexical Padrão) da língua katukina, como nos exemplos
de Aguiar (1995, p. 83):

a. caju 
b. café  
c. papai  
d. boi ui [oi

O segundo processo de criação de palavras novas é considerado por Aguiar (1995,


p. 83-84) como o mais comum no Katukina e pode se dar pela combinação de dois itens
lexicais (ex. ‘e’ a ‘g’) ou pelo acréscimo de um afixo (ex. ‘h’ a ‘j’):

e. relógio - -


‘sol – unti’-
f. laranja (cor) -  
‘amarelo – vermelho’
g. batom -  -
‘lábio – vermelho’
h. galinha -
‘ta – ave do mato’
i. cana de açúcar - 
‘ta – mel’
j. banana nanica -  
‘wi – banana’

Entretanto, Santos (2000, p. 20) lembra que “durante o processo de transmissão


dessa informação há, em maior ou menor grau, uma modificação na visão de mundo desses
interlocutores”. A seguir, tratamos os empréstimos na língua xerente.

Empréstimos por criação em Xerente Akwe

Conforme observou Mesquita (2009), este tipo de empréstimo é mais utilizado


pelos falantes mais velhos, menos escolarizados e que vivem na aldeia, ou seja, as pessoas
que provavelmente tiveram menos contato com os não-índios, pelo menos em um momento
anterior.
A partir da perspectiva de Hymes (1972) e Gumperz (1996), pudemos observar
alguns domínios sociais mais abrangentes entre os Xerente: 1) ambiente familiar; 2) pessoas
que vivem na cidade; 3) ambiente escolar; 4) reuniões das lideranças; 5) discurso dos anciãos;
e 6) rituais. É importante salientar que há várias outras comunidades de fala, com atos de fala
específicos e que uma mesma pessoa pode estar inserida em várias delas. Porém, para esta

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análise é suficiente destacarmos as cinco supracitadas e, quando necessário, citaremos as


demais. Isso porque são nas quatro primeiras comunidades de fala onde os empréstimos se
realizam com maior frequência e em 5 ocorre mais raramente. Nos discursos de anciãos e
falas rituais, quando aparecem, os empréstimos verificados são os criados com termos da
própria língua. Este fato se dá, provavelmente, porque esta modalidade de empréstimo foi
mais produtiva na época em que os primeiros contatos com os não-índios eram estabelecidos
ou quando ainda não eram tão intensos. Só desta forma era possível haver tempo para que os
novos conceitos passassem pelo filtro da língua e fossem usados por todos.

(1) [ kumk - snokda ] ‘munição’


espingarda alimento
(lit.: ‘alimento da espingarda’)

(2) [ da - pra - h ] ‘chinelo’


PP pé casca
(lit.: ‘casca para pé’)

(3) [ da - tmo - h ] ‘óculos’


PP olho casca
(lit.: ‘casca para olho’)

(4) [ sika - ndupt ] ‘relógio’


galinha estômago/bucho
(lit.: ‘estômago de galinha (moela)’)

(5) [ ab - pa(h)i ] ‘guarda-chuva’


morcego asa
(lit.: ‘asa de morcego’)

(6) [ twa - wa - nkuda ] ‘combustível’


ferro correr alimento
(literalmente (lit.): ‘alimento do ferro que corre (carro)’)

Em todos os exemplos citados podemos ver algum traço que reflete o


contato com os não-índios. Eles refletem a necessidade de ampliação lexical, dada a
entrada de novos objetos que passaram a fazer parte do cotidiano das pessoas e, assim,
da própria cultura. O recurso da metáfora é bastante utilizado e pode ser observado nos
exemplos de (1) a (6) e em muitos outros. Fodor (1983, apud GUMPERZ &
LEVINSON, 1966) afirma que, na relação entre pensamento e linguagem, cada input e
output funcionam como um sistema de módulos mentais, onde o processamento central
pode ser diferenciado em diferentes “linguagens de pensamento” (proposicional,
imagética etc.). Essa visão sugere propriedades universais ao pensamento e que estão
codificadas na estrutura das línguas. A metáfora e as analogias são consideradas como

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exemplos destas propriedades. Em (1) e (6), o nome [nk(u)da] relaciona a noção de

alimento a “aquilo que se põe dentro para que funcione”, assim como está o alimento
para o organismo humano. A cultura xerente, assim como as demais comunidades
indígenas, tem como uma das bases da organização social a atividade de obtenção e
coleta de alimentos. Vários eventos de fala estão relacionados a esta atividade.
Atualmente, a maior parte dos alimentos é obtida na cidade, nos mercados e feiras
locais. Isso fez com que formas como (7) e (8) surgissem. Tratam -se de loanblends, ou
seja, itens lexicais formados por elementos das duas línguas. Termos deste tipo são
mais utilizados no contexto da cidade ou quando se fala deste contexto, pois é lá que
estão localizados os objetos referidos.

(7) --- ‘posto (de combustível)’


carro alimento vender NMZ
(lit.: ‘vendeção de [lugar de vender] alimento do carro’)

(8) - -    ‘açougue’


carne vender NMZ
(lit.: ‘vendeção de [lugar de vender] carne’)

No exemplo (6), há uma dupla metáfora. A primeira para a formação do


conceito “carro”, o ‘ferro que corre’ na visão de um Akwe. Em seguida, é feita uma

segunda associação ao alimento que faz com que o carro (o ‘ferro que corre’) possa
funcionar.
A criação de novas palavras por analogia às funções que os objetos
desempenham também é bastante utilizada e pode ser observada nos exemplos (9) a
(12). Para tanto, o nominalizador xerente ‘-z’7 é um recurso muito produtivo.

(9) [ tkai - zapa - z ] ‘pá’


terra acolher/pegar NMZ
(lit.: ‘pegador de terra’)

(10) [ k - zkne - z] ‘copo’


água beber NMZ
(lit.: ‘bebedor de água’)

(11) [ dasa - i - zapa - z ] ‘colher’


comida VL8 pegar NMZ
(lit.: ‘pegador de comida’)

(12) [ dasa - i - kahi - z ] ‘fogão’


comida VL cozinhar NMZ
(lit.: ‘cozinhador de comida’)

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O pronome pessoal (PP) da-, observado nos exemplos (2), (3), (13) e (14), foi definido
por Santos (2004), ao analisar a morfologia do substantivo xerente, como Prefixo de
Possuidor Não Identificado – PPNI. Segundo o autor, nesta língua, o substantivo pode
ser obrigatoriamente, facultativamente, possuído ou não. O prefixo da -, assim, aparece
ligado aos substantivos obrigatoriamente possuídos (como os que denotam partes do
corpo humano e termos de parentesco) quando estes não são marcados por um
possuidor definido. Desta forma, podemos entender dapra como ‘pé de alguém’ ou
datmõ como ‘olho de alguém’. No dado (15), encontramos um exemplo em que o
prefixo da- não aparece junto ao mesmo item lexical tratado em (2). O que acontece é
que em (15) o possuidor é definido, ou seja, em Xerente, o ‘pé’ pertence ao ‘veículo’ na
formação do conceito ‘pneu’, emprestado do Português. Braggio (2011) faz uma análise
dos termos inalienáveis na língua xerente, tendo como base os pressupostos da
semântica da gramática. A autora investiga o que leva esse povo à classificação e
atribuição dos inalienáveis em busca das formas de categorização de si mesmos, dos
animais e das plantas a partir de seu universo sociocultural.

(13) [ da - sdawa - p - z ] ‘batom’


PP (de alguém) boca vermelho NMZ
(lit.: ‘avermelhador de boca’)

(14) [ da - nikp - p - z ] ‘esmalte’


PP unha vermelho NMZ
(lit.: ‘avermelhador de unha’)

(15) [ twa - wa - pa ] ‘pneu’


ferro correr pé
(lit.: ‘pé do carro’)

A ligação dos Akwe com a natureza pode ser percebida em várias

manifestações da cultura e através da língua. A cosmologia xerente tem os deuses Sol


(Waptokwá) e Lua (Wahi) (LUZ, 2007) como seus heróis civilizadores. A formação dos
nomes próprios ou pessoais (SOUSA FILHO, 2007), a organização social em clãs
patrilineares (FARIAS, 1990), a pintura corporal, enfim, vários aspectos do modo de
vida dos Xerente estão relacionados com o meio em que vivem. A percepção de tempo
e espaço característica dos Akwe pode também ser percebida na estrutura da língua.

Siqueira (2010) mostra como o sistema de classificadores nominais xerente pode servir
a este propósito, entre vários outros. Nos exemplos (4) e (5), podemos observar que

Nome - Revista de Letras, Goiânia, vol. I, n. 1, p. 26-44, jan.-jun. 2012. 37


Empréstimos semânticos do Português em Xerente Akwe: um olhar etnossintático

estes empréstimos fazem, através da metáfora, alusão à forma dos objetos que
designam, usando como parâmetro a forma como enxergam os animais do seu convívio.
Braggio (2000) explica que há, em Xerente, um inventário de classificadores
para formatos e partes de plantas que compõem um sistema de classificação do mundo
vegetal típico da língua que falam, além de classificadores de gênero. Em seguida,
mostramos como os termos de classe 9 são produtivos na composição dos empréstimos
por criação.

 ‘casca/pele’
(16) [ - - ] ‘chinelo’
PP+pé+casca/pele
(lit.: ‘casca/proteção para pé’)

(17) [- - ] ‘óculos’


PP+olho+casca
(lit.: ‘casca/proteção para olho’)

  ‘líquidos’
(18) [ - - ] ‘copo’
líquido(água)+pegar+NMZ
(lit.: ‘pegador de água’)

(19) [ -  - ] ‘copo’


líquidos+beber+NMZ
(lit.: ‘bebedor de líquidos’)

(20) [ -  ‘xarope’


líguido+balançar/agitar
(lit.: ‘líquido de/para agitar’)

(21) [- - ] ‘aguardente/pinga’


água+VL+catinga/mal cheiro
(lit.: ‘água mal-cheirosa’)

(22) [ - -] ‘geladeira’


água+esfriar+NMZ
(lit.: ‘resfriador de água’)

Nos exemplos de (16) a (22), os nomes e  aparecem como núcleo do

composto e classifica os nomes que a eles se adjungem. Outros termos de classe, como
hesuka ‘folha para escrever/papel’, skuza ‘roupa/vestimenta’ e ktw a ‘ferro’, também

foram identificados em nosso corpus.


Determinar os limites da palavra na língua xerente ou qualquer outra língua
não é tarefa fácil. Assim, se considerarmos o critério semântico para classificar os
exemplos a seguir, estes podem ser tratados como uma só palavra, ou seja, uma

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Rodrigo Mesquita
Silvia Lucia Bigonjal Braggio

expressão complexa que se refere a um objeto ou uma ideia, com significado mais
específico ou diferente do que os significados das palavras que a formam. Contudo, o
mesmo não se dá se considerarmos outros critérios (como o ortográfico, fonológico ou
gramatical).
Aronoff (1976), ao tratar da noção de produtividade morfológica, consider a
que, em morfologia, muita coisa é possível e algumas coisas, entretanto, são mais
possíveis do que outras. Segundo o autor, no léxico mental do falante, encontram -se
armazenadas as palavras existentes na língua, que podem conter apenas um morfema ou
podem ser compostas por morfemas identificáveis, cujo sentido não é composicional,
mas, imprescindível. Já as formas complexas, ainda que bem formadas
morfologicamente, ficam fora do léxico, uma vez que a análise de seus componentes é
processada por completo e facilmente através da gramática do falante. Assim, a palavra
será ouvida e compreendida claramente, sendo descartada em seguida, sem entrar no
léxico mental do indivíduo.
Mesquita (2009) tratou estes exemplos como formas complexas que, na
verdade, caracterizam perífrases que os próprios Xerente criam para fazer referência a
um novo conceito/objeto, como podemos observar nos seguintes exemplos:

(23) [ ------ ‘ponto/nota’


você+REF+PRN Indef. (cada um do
grupo)+melhorar+CL+autêntico/verdadeiro+PRED
(lit.: ‘para você e cada um se tornar melhor e ser/estar autêntico’)

(24) [ ---] ‘revólver’


espingarda+pequeno+não-índio+nós
(lit.: ‘espingarda pequena de nós (os índios e os brancos)’)

(25) [ ----- ‘remédio’


líquido+recomendar+ENF25+PP+medicar+NMZ
(lit.: ‘líquido recomendado (pelo doutor) para curar’)

(26) [ ------- ‘xarope’


tosse + medicar + NMZ + 1 + CLAS (sem consistência sólida) + VL + CONJ
(como, semelhante a) + ENF
(lit.: ‘remédio para tosse semelhante a caldo/líquido’)

Conforme observado por Mesquita (2009), estes exemplos foram dados na


tentativa de ‘improvisar’ uma forma que utilizasse apenas elementos da língua indígena
na constituição dos novos conceitos pelos falantes xerente. Em geral, os exemplos
acima não são recorrentes, ou seja, foram dados por apenas um falante. Na ocasião da
coleta dos dados, observamos que os colaboradores que deram estas respostas

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Empréstimos semânticos do Português em Xerente Akwe: um olhar etnossintático

(geralmente os +velhos) pensavam bastante antes de formulá-las. Provavelmente,


porque o primeiro termo que lhe veio à cabeça foi a forma ‘aportuguesada’, porém
houve um reconhecimento daquela forma como alheia à sua língua nativa, antes de dar
a resposta. Provavelmente, isso o levou a elaborar formas como as mostradas nos
exemplos acima. No nosso entendimento, isso demonstra uma atitude positiva por parte
dos falantes e tem a ver com a identificação da língua como patrimônio cultural,
enquanto marca específica da cultura daquele povo. Recentemente 10, fizemos a seguinte
pergunta aos moradores da aldeia Waktohu: O que é ser Akwe? As respostas foram

diversas, mas várias delas citaram: “É falar a língua Akwe...”.

Considerações finais

Os empréstimos por criação, apesar de muito frequentes na língua xerente,


provavelmente foram mais produtivos no período em que o contato com os não-índios era
menos intenso. Isso proporcionava tempo para que os falantes da língua criassem estratégias
para formular os novos termos a partir de recursos lexicais próprios. Com a intensidade do
contato e a situação de bilinguismo alto (high bilingualism) (BRAGGIO, 2010), os
empréstimos começaram a entrar com maior velocidade, muitas vezes, com uma base lexical
próxima ou mesmo idêntica à da língua prestigiada, no caso, o Português.
Santos (2000, p. 20) afirma que, “durante o processo de transmissão dessa
informação (o empréstimo), há, em maior ou menor grau, uma modificação na visão de
mundo desses interlocutores”. Em estudo realizado junto aos Karajá (outra língua da família
Jê), a autora ressalta que “embora isso permita uma movimentação nas estruturas léxicas
internas do grupo, proporcionada pelo caráter intersubjetivo dos falantes, provoca
necessariamente uma ruptura na cosmovisão karajá” (SANTOS, 2000, p. 20). Neste sentido,
os caminhos do empréstimo lexical refletem, até certo ponto, a influência da cultura
privilegiada, ou seja, quanto maior for a influência de uma cultura sobre outra, maior será a
quantidade de empréstimos adotados.
Este trabalho não pretende encerrar a discussão sobre o assunto na língua xerente.
Pelo contrário, fica uma proposta para uma discussão mais aprofundada sobre os empréstimos
por criação e os demais tipos, com adaptação fonológica, loanblends e diretos, dentro da

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Rodrigo Mesquita
Silvia Lucia Bigonjal Braggio

perspectiva da Etnossintaxe. Neste sentido, a cada exemplo exposto neste trabalho caberia
uma análise mais sistemática.
No entanto, essa análise prévia nos possibilita afirmar que, através do estudo dos
empréstimos, é possível traçar uma relação multidirecional entre língua, cultura, pensamento
e comportamento social. Através dos empréstimos criados com elementos da própria língua
por meio de processos variados, é possível perceber traços culturais arraigados nestes
processos, como noções particulares de tempo e espaço, relação com o meio, formas da
organização social e outros traços peculiares da visão de mundo Akwe.

Este trabalho busca contribuir para as ciências da linguagem, mais


especificamente para os estudos sobre línguas indígenas, e da Etnossintaxe. De forma
específica, buscamos contribuir para a educação escolar indígena, na medida em que nosso
trabalho ajude a compreender a complexidade da cultura e da língua Akwe. Este

entendimento poderá ajudar o próprio povo a decidir quais são as ações mais iminentes para
manter a cultura e a língua fortalecidas, evitando assim o seu deslocamento.

ABSTRACT: Phenomena can surface from the contact of the languages spoken by
people in situations of social and cultural contact and when there is
political and economic asymmetry between those involved. Borrowing
is one of these phenomena which will be discussed in this paper from
the point of view of ethnosyntactic or grammar symantic theory. For
this purpose, the data of created loans or semantic borrowings of
Xerente Akwe (Jê) in Mesquita (2009) was examined. This language is
spoken by approximately 3,600 indigenous people living in Tocantins,
Brazil. This analysis aims at showing how these loans, created with
elements of the indigenous language itself, reflect cultural traits which
are characteristic to the Xerente worldview, as well as having vestiges
of their contacts with majority society.

KEYWORDS: Languages in contact. Ethnosyntax. Xerente Akwe. Borrowings.

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Notas
*
Rodrigo Mesquita é doutorando em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail:
rodrigomesquitago@hotmail.com.
**
Silvia Lucia Bigonjal Braggio é doutora em Linguística pela University of New Mexico. É professora titular
da Faculdade de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de
Goiás (UFG).
1
Este artigo faz parte do Projeto LIBA: línguas indígenas brasileiras ameaçadas de extinção: documentação
(análise e descrição) e tipologias sociolinguísticas e do Grupo de Educação e Línguas Indígenas da UFG,
coordenados por Silvia Lucia Bigonjal Braggio.
2
Os Xerente são, em geral, bilíngues em Xerente – Português. Embora haja exceções, as crianças aprendem
primeiro a língua indígena e depois o Português, adquirido no contato com não-índios, na escola e, mais
recentemente, com a televisão.
3
Para uma visão mais ampla sobre a educação escolar xerente, veja Braggio (2000 e 2008) e Sousa Filho (2000).
4
Sempre que visitamos a reserva xerente, há notícia do surgimento de uma ou mais aldeias. Em agosto de 2011,
este número já chagava ao total de 58 aldeias, distribuídas nas duas áreas indígenas.
5
Há uma estimativa de que há mais de trezentos Xerente morando em Tocantínia, em casas próprias,
emprestadas ou alugadas. Há, inclusive, a formação de algumas “aldeias urbanas” (BAINES, 2001) às margens
da cidade, resultado da crescente migração para a cidade e da vontade de continuarem vivendo próximos uns dos
outros.
6
Sobre o assunto, veja Braggio (2008).
7
Segundo Sousa Filho (2007), o nominalizador (NMZ) Xerente -z, quando sufixado ao verbo, transforma a
estrutura verbal em nominal. Santos (2001) considera que esta é sua única função quando age sobre os verbos,
uma vez que este sufixo não possui semântica específica.
8
Vogal de ligação (SOUSA FILHO, 2007).
9
Para uma maior compreensão do funcionamento dos termos de classe ou classificadores nominais, veja
Siqueira (2010) e Sousa Filho (2007).
10
Dados coletados em campo, em agosto de 2011. Estes dados serão tratados em trabalhos futuros.

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