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SE A LÍNGUA É UM FACTOR DE IDENTIFICAÇÃO

CULTURAL, COMO SE COMPREENDE QUE


A MESMA LÍNGUA IDENTIFIQUE
CULTURAS DIFERENTES?*
Maria Helena Mira Mateus1

Resumo afirmação perante a constatação de que uma só língua iden-


O artigo questiona a afirmação de que a “língua é tifica, frequentemente, culturas distintas. Assim sucede com
um fator de identificação cultural”, a partir da revisão de o Inglês, o Espanhol, o Português ou as línguas faladas pe-
diferentes abordagens das relações entre língua e cultura. los Apaches e Navahos, no sudoeste dos Estados Unidos,
Nessa perspectiva, discute-se o caso do Português como idênticas às línguas do Atabasca, no norte do Canadá e no
exemplo de uma língua que identifica diferentes culturas e Alasca (Titiev, 1963:324).
os fatores que provocaram o afastamento das variedades Ao questionar a afirmação com que iniciei este arti-
portuguesa e brasileira, para concluir que a língua é um go fui levada a rever diferentes perspectivas sobre as rela-
fator de identificação cultural, mas só no uso e pelo uso ções entre língua e cultura, começando por um dos primei-
que dela faz o individuo e não apenas por pertencer a uma ros filósofos que longamente discorreu sobre esta questão:
das várias comunidades que a utilizam como materna. Wilhelm von Humboldt. Um dos seus mais interessantes
escritos tem o elucidativo título de Sobre a origem das for-
Palavras-chave: Língua; identificação; fator; português. mas gramaticais e sobre a sua influência no desenvolvi-
mento das ideias.
Résumé Para Humboldt, as palavras são como “objectos reais”
L’article discute l’affirmation dont “la langue est e as relações gramaticais servem apenas de nexo; mas o discur-
un facteur d’identification culturelle” à partir de la révision so só é possível com o concurso de ambas (...) As relações
de différentes approches des rapports entre langue et gramaticais (...) podem ser introduzidas na língua pelo pensa-
culture. Nous discutons alors le cas du Portugais comme mento dos que a falam, e a estrutura da língua pode ser de tal
exemple d’une langue qui identifie de différentes cultures natureza que possa evitar, com este sistema, pelo menos em
et les facteurs qui ont provoque l’écart entre les variétés grande parte, a incerteza e a confusão” (p. 14). Assim, o que
portugaise et brésilienne pour conclure que la langue est caracteriza o mérito de uma língua são as suas formas gramati-
un facteur d’identification culturelle, mais seulement dans cais, que permitem a representação do pensamento abstracto.
l’usage et par l’usage dont se sert l’individu et pas seulement São as características da forma que possibilitam o reconheci-
parce qu’il appartient à l’une des plusieurs communautés mento da “acção do pensamento”, e deste modo
qui se servert de cette langue en tant que langue maternelle.
uma língua nunca alcançará uma excelente consti-
Mots-clés: Langue; identification; facteur; portugais. tuição gramatical se não tiver o feliz privilégio de ser
falada, pelo menos uma vez, por uma nação de inteli-
gência viva ou de pensamento profundo (p. 33).

1. O PROBLEMA Humboldt afirma ainda que o nível superior de uma


língua não está condicionado apenas pelo mérito da nação
Ainda que seja habitual afirmar-se que a língua é um que a fala. Essa mesma língua contribui para o desenvolvi-
factor de identificação cultural, é lícito questionar esta mento do pensamento através da forma gramatical que

*Esta conferência contém as ideias fundamentais que desenvolvi em artigo a ser incluído num livro em preparação no Brasil.
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Professora Titular da Faculdade de Letras Universidade de Lisboa

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mesmo quando não dirigimos voluntariamente a aten- independentes. Ora recorde-se que data de 1905 o artigo de
ção sobre ela, produz e deixa a impressão de uma Einstein que revolucionou a física newtoniana criando a teo-
forma, e deste modo favorece o desenvolvimento do ria da relatividade restrita, que vem propor que o espaço e o
pensamento abstracto (p.37).
tempo não sejam independentes entre si mas relativos, for-
Existe portanto, entre língua e pensamento mando a conexão espaço-tempo.
caracterizador de uma nação (entenda-se também, cultura), Fascinado com o paralelismo entre a forma de ex-
uma dialética impulsionadora da elevação do pensamento pressão do tempo e do espaço na língua dos Hopi e uma das
abstracto, que tem como motor inicial a superioridade da mais relevantes descobertas da teoria da relatividade, Whorf
comunidade nacional. concluiu que a apreensão da realidade decorre das formas
Humboldt é um verdadeiro epígone do Romantismo que a língua põe à nossa disposição. A dificuldade em tra-
alemão, herdeiro de Herder e defensor de que o espírito de duzir com exactidão uma frase, mesmo entre línguas próxi-
uma nação está contido na língua que fala. Esta obra Sobre mas como as indo-europeias ocidentais, é um argumento para
a origem das formas gramaticais e sobre a sua influência no reforçar a teoria do relativismo linguístico, já que essa difi-
desenvolvimento das ideias, que data de 1822, é uma ex- culdade (ou impossibilidade) provaria que as línguas
pressão interessantíssima dessa perspectiva. Era o tempo da reflectem uma diversa apreensão da realidade.
consolidação da nação alemã concebida por Bismark e con- Retomando a questão da integração do tempo e do
cretizada na pessoa do imperador Guilherme I, caracteri- espaço em línguas como o Hopi, e no que toca a este aspec-
zando-se as nações a partir das respectivas dimensões cul- to específico, diz Whorf:
turais, uma das quais, a língua, surgia como relevante e
aglutinadora. Does the Hopi language show here a higher plane of
thinking, a more rational analysis of situations than
Na segunda parte do século XIX, as especulações de
our vaunted English? Of course it does. In this field
filósofos e linguistas prospectivavam o progresso das lín- and in various others, English compared to Hopi is
guas e das culturas sob a influência da teoria evolucionista like a bludgeon compared to a rapier. (Whorf,
de Darwin enquanto na América do Norte se ia descobrindo 1956:85).
o maravilhoso mundo das culturas indígenas. Foi já nas pri-
meiras décadas do século XX que linguistas e antropólogos Outras profundas diferenças verificadas entre línguas
norte-americanos, confrontados com a análise de línguas como o Inglês, o Sânscrito, o Chinês, o Japonês, o Maia ou
pouco ou nada conhecidas, nomeadamente as línguas as línguas Algonquim levam-no à conclusão de que
ameríndias, defenderam uma perspectiva das relações lín-
gua-cultura e língua-pensamento que denominamos hoje every language is a vast pattern-system, different from
others, in which are culturally ordained the forms and
“relativismo linguístico”. De entre esses linguistas cabe pôr
categories by which the personality not only
em relevo Benjamin Lee Whorf e Edward Sapir. Vejamos communicates, but also analyses nature, notices or
em que se funda a concepção relativista das suas obras. neglects types of relationship and phenomena,
Whorf era por formação profissional um engenheiro channels his reasoning, and builds the house of his
químico especializado na prevenção de incêndios, e por in- consciousness (ibid. p. 252).
teresse e paixão um antropólogo e um linguista. O contacto
e a análise de línguas índias da América – que estudou orien- É na sequência desta perspectiva que se compreende
tado e apoiado por Edward Sapir –, sobretudo da língua dos a seguinte frase:
Hopi, foram a base da teoria que desenvolveu durante os
anos 30 sobre as relações entre língua e pensamento, com The statement that “thinking is a matter of language”
extensão para a interdependência língua-cultura. Estava-se is an incorrect generalization of the more nearly
correct idea that “thinking is a matter of different
então na época em que os intelectuais norte-americanos defen-
tongues” (Whorf, 1956: 239)
diam com veemência que os povos não industrializados tinham
sistemas linguísticos, culturais e de pensamento tão complexos
A personalidade fascinante de Whorf e a novidade das
e válidos como os povos considerados mais avançados, pers-
suas teorias marcaram fortemente, na época, a relação entre a
pectiva que se opunha ao determinismo biológico que amarra-
linguística e as ciências exactas, a filosofia, a psico-sociolo-
va os povos a uma hierarquia sócio-político-económica decor-
gia e a religião. Por todas estas áreas Whorf se interessou
rente das respectivas características genéticas.
com paixão e com uma poderosa e inteligente curiosidade.
Em consequência de algumas análises de línguas
Alguns anos mais tarde, a antropologia cultural ainda se re-
ameríndias, Whorf registou diferenças estruturais entre essas
conhece na sua teoria, como se pode ver em Titiev (1963):
línguas e as indo-europeias ocidentais, pondo em destaque,
nomeadamente, o facto de a língua Hopi poder transmitir numa O falecido Benjamin Whorf declarou claramente que
única expressão o espaço e o tempo, diferentemente das lín- um padrão socialmente aceite de emprego de pala-
guas em que as duas noções se verbalizam em expressões vras é frequentemente anterior a certas formas cultu-

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ralmente aprovadas de pensamento e de comporta- no paradigma da cognição de par com o espectacular
mento (Titiev, 1963:326). aprofundamento no conhecimento do cérebro humano. Neste
percurso, a ciência da linguagem tem sido orientada, desde
O contacto de Whorf com Sapir, e a admiração que meados dos anos 50, pela teoria desenvolvida por Chomsky
este brilhante linguista lhe dedicava, fez com que as posi- que recusou logo de início uma análise das línguas pura-
ções dos dois fossem agregadas no que se denomina a hipó- mente descritiva. A linguística preocupa-se, desde então, com
tese de Sapir-Whorf. Na realidade, porém, existem bastan- questões da origem e conhecimento da competência
tes diferenças na perspectiva de ambos sobre a relação entre linguística, e tem como principal objectivo a procura dos
língua e cultura. princípios da gramática universal. Neste contexto, todo o
Na obra de Sapir surgida em 1921 – publicada em relevo foi atribuído à descoberta dos princípios da faculda-
1954 em língua portuguesa na tradução de Mattoso Câmara de da linguagem que contribuem para a construção deste
– a relação entre língua, raça e cultura não implica uma sistema cognitivo particular.
interdependência: Estamos, portanto, afastados da análise da diver-
Nada mais fácil que provar que um grupo de línguas sidade das línguas com o fim de demonstrar que todas
não tem qualquer correspondência necessária com um elas provam o nível idêntico de complexidade cultural
grupo racial ou uma área cultural. Pode-se até mos- atingido pelas comunidades que as falam, pese embora a
trar que uma só língua não raro intercepta linhas de sua diversa maneira de interpretar a realidade (Whorf).
raça e cultura (p.206-07). Assim, a partir dos anos 60, a linguística denominada
generativa procura utilizar os factos das línguas particu-
E acrescenta
lares para identificar os princípios da gramática univer-
O que se dá com a raça, dá-se com a cultura (...) Lín-
sal (Chomsky, 1966: 182).
guas sem qualquer parentesco partilham de uma só Enformada por uma perspectiva que colheu em Des-
cultura; línguas intimamente cognatas - quando não cartes algumas ideias básicas, a teoria linguística marcante
uma língua única - pertencem a círculos de cultura dos anos 60 e 70 radica na convicção de que o homem pos-
distintos (p. 210-11). sui uma faculdade particular, um tipo de organização inte-
lectual única (...) que se manifesta no que podemos chamar
Não há assim, para o linguista americano, qualquer o “aspecto criador” da utilização normal da linguagem (ibid.:
relação de causa a efeito entre língua e cultura. Ou seja: 20). Esse aspecto criador é demonstração da especificidade
todas as tentativas para estabelecer conexão entre ti-
racional do homem – a sua capacidade de pensar – e é, ao
pos de morfologia linguística e certas fases correlatas mesmo tempo, decorrente dessa capacidade.
de desenvolvimento cultural são vãs (p. 215). Tendo em conta que o objecto da investigação

Não obstante a clara afirmação da separação entre deixou de ser o estudo do comportamento linguístico
língua, raça e cultura, Sapir foi um lingüista “mentalista” ou os produtos desse comportamento para passar a
ser os estados da mente/cérebro que fazem parte de
(por oposição ao mecanicismo reinante na época na
tal comportamento (Chomsky, 1986: 23),
linguística norte-americana) preocupado com a face oculta
da língua, ancorada no subconsciente do homem. Também é compreensível que as características particulares do com-
neste aspecto Sapir difere do relativismo lingüístico portamento de uma sociedade, habitualmente denominadas
whorfiano. A relação que estabelece entre língua e pensa- cultura, tenham sido afastadas dos interesses dos linguistas.
mento funda-se no conceito de que existe um nível abstracto Estamos, portanto, longe de um relativismo psico-
e “profundo” do sistema linguístico subjacente à superfície linguístico – ou seja, o homem é um produto da cultura
apreensível. Este conceito está patente, por exemplo, nas
envolvente, logo, as diferenças culturais espelham-se nas
reflexões sobre os “valores” fonéticos de uma língua:
diferentes línguas que por sua vez denunciam formas dife-
por trás do sistema de sons puramente objectivo, pe- rentes de estar no mundo – e mais longe ainda da perspecti-
culiar a uma língua e a que só se chega por laboriosa va romântica que entendia a língua como um produto da
análise fonética, há um sistema mais restrito, ‘íntimo’ cultura de um povo.
ou ‘ideal’, que, igualmente inconsciente talvez como O espaço de discussão sobre as relações entre língua
sistema aos homens em geral, pode muito mais facil- e identificação cultural tem sido progressivamente preen-
mente ser trazido para o campo da consciência, à ma-
neira de um padrão definido, de um mecanismo psi- chido pelas preocupações dos sócio-linguistas no que res-
cológico (p. 63). peita às questões da variação linguística. A grande impor-
tância atribuída à variação das línguas, em interacção com a
A perspectiva da linguística mentalista inflectiu, nos variação das sociedades, abriu campo para o estudo dos
últimos quarenta anos, para o desenvolvimento da linguística factores intervenientes nessa variação, internos e externos,

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históricos e resultantes do contacto entre línguas, e para o diana se fazia na língua geral de origem ameríndia. Desde
desenvolvimento das perspectivas teóricas nesta área. cedo, porém, e até ao século XIX, os barcos de traficantes de
Bilinguismo e multilinguismo, alternância de códigos, lín- escravos não cessaram de deixar na costa brasileira incontáveis
guas mistas e línguas crioulas supõem, evidentemente, ca- grupos de negros cujo número veio a ultrapassar rapidamente
pacidades cognitivas e programas inatos, mas não estabele- o dos primitivos habitantes da terra.
cem com essas capacidades e programas uma relação de Por outro lado, no início do século XVII, a emigra-
causa a efeito. Ou seja, a variação das línguas não resulta ção de Portugal para o Brasil começou a intensificar-se, pri-
apenas das capacidades cognitivas do homem, mas da meiro pelo encaminhamento para as terras americanas de
interacção dos factores estritamente linguísticos e dos milhares de casais açorianos, depois pela atracção que a ri-
factores sociológicos. queza da colónia exercia sobre todas as classes sociais (so-
O título desta conferência é transversal às questões bretudo durante o século XVIII) e, finalmente, com a trans-
até agora abordadas. E se o Português é um bom exemplo ferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, no século
de uma língua falada como materna por comunidades de XIX. Todas estas circunstâncias forçaram a utilização do
diferentes culturas, uma análise de alguns factores que leva- português e a sua extensão progressiva aos falantes das lín-
ram ao afastamento das variedades portuguesa e brasileira guas gerais, mantendo-se apenas as línguas que hoje perdu-
pode ajudar-nos a compreender uma aparente contradição. ram como maternas em comunidades índias.
Do contacto do português com as línguas dos nati-
2. PORTUGUÊS EUROPEU, PORTUGUÊS vos e com os crioulos africanos resultaram, naturalmente,
BRASILEIRO influências várias na língua dos colonizadores. Releve-se
também o contacto do português com os largos grupos de
2.1. Encontro de línguas emigrantes, europeus e asiáticos, que se fixaram no centro e
O início da colonização do Brasil pôs em contacto o sul do Brasil e que mantêm, em muitas circunstâncias, a sua
português europeu do século XVI com a língua falada pelos própria língua no interior das respectivas comunidades.
habitantes da terra recém-descoberta. Na altura, os índios Estamos, portanto, diante de um interessante quadro multi-
eram em número muito superior aos portugueses que, du- linguístico, paralelo ao que podemos encontrar noutras áre-
rante largos anos, se viram obrigados a aprender a nova lín- as da América, e que confirma a importância do contacto
gua. Em 1561, escrevia do Brasil o Padre Manuel da Nóbrega entre línguas para a compreensão das vertentes variacionais.
que, “para lá”, a língua da terra era a “mais principal ciên-
cia”. A missionação dos jesuítas reforçou a necessidade de 2.2. Uma só língua, diferentes culturas
aprendizagem da língua dos índios falada ao longo do lito- Se a influência de factores exógenos no português
ral – uma das chamadas ‘línguas gerais’ –, utilizada pelos brasileiro pode reconstituir-se com fundamento documen-
catequizados simultaneamente com o português. tal e conhecimento histórico, a influência dos mesmos
Poucos anos passados sobre a descoberta do Brasil, factores no desenvolvimento do português europeu desde a
iniciou-se o tráfico de escravos negros para a América. Pro- sua origem torna-se mais problemática para a explicação da
vindos de várias regiões e de várias etnias, é provável que já variação dentro das fronteiras políticas de Portugal. É certo
falassem, com afirma Serafim da Silva Neto, um dialecto que o contacto com os povos recém-descobertos, com as
crioulo-português, dado que o português foi língua geral invasões do território por estrangeiros, e com as estreitas
nas costas de África durante os séculos XV, XVI e XVII. relações com outras nações europeias influiram, inevitavel-
Aliás, a existência desse crioulo, ou de um estado de mente, na variação do português europeu. Contudo, o facto
crioulização do português no Brasil, tem sido motivo de de as fronteiras políticas de Portugal serem as mais antigas
polémica, conquanto não esteja atestado documentalmente. da Europa contrariou uma variação mais profunda provocada
Pesquisas recentes em regiões do estado da Bahia reforça- por factores exteriores, a qual foi sobrelevada pela acção de
ram os argumentos dos defensores de uma possível origem factores internos à própria língua.
crioula do português brasileiro, ainda que a discussão do Tendo presentes as circunstâncias que marcaram a
problema se mantenha em aberto. variação do português europeu e do português brasileiro, lem-
Na hipótese de ter existido um crioulo permitindo a brem-se, a título exemplificativo, certas características co-
comunicação entre africanos de várias origens e entre estes e muns às duas variedades frente às restantes línguas români-
os portugueses, podemos interrogar-nos porque não se fixou cas, e alguns aspectos que com evidência as distinguem.
esse crioulo como língua materna das gerações seguintes. As Notem-se, por exemplo, em todas as variedades, os
circunstâncias históricas da colonização brasileira tal não numerosos ditongos nasais e orais, o infinitivo flexionado,
permitiram. Vejamos: nos primeiros tempos da colonização a construção dos tempos compostos com o verbo ter, a
os índios sobrelevavam em número qualquer outra popula- harmonização vocálica nos verbos, a localização do acento
ção, razão porque a missionação e muita comunicação quoti- tónico, a utilização, na resposta, do verbo da pergunta.

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Repare-se, por outro lado, nas diferenças que no influência das línguas que estiveram em contacto com o
nível de superfície exibem as duas variedades, como a enor- português na constituição da variedade brasileira tem como
me redução das átonas no português europeu, ou a africação corolário a interpenetração das referências culturais dos
das oclusivas /t/ e /d/ antes de [i] ou a supressão do [R] povos que as falavam na constituição do povo brasileiro.
final de palavra em muitos dialectos do Brasil, ou a já clás- Igual caminho de inter-influências culturais percorreram os
sica colocação diversa dos pronomes clíticos e, ainda, as portugueses. Religião, música, artes plásticas e literárias,
formas de tratamento, complicadíssimas em Portugal, relações sociais e parentais, etnicidade, referências de género
simplificadas no Brasil. e de juventude desvendam formas específicas de estar no
Finalmente, o léxico brasileiro é um repositório de mundo que, tal como a língua, variam no tempo e no espa-
memórias da convivência entre diferentes povos, e contém, ço, mas distinguem de modo evidente e global, as socieda-
como seria de esperar, inúmeros vocábulos de origem des dos dois lados do Atlântico.
ameríndia, como guri; capim; pipoca; mingau, e africana, Estamos portanto diante de duas formas do comporta-
como caçula; moleque; senzala. mento – a linguística e a que genericamente denominamos cul-
As diferenças que acima sumariei, num apanhado tural –que resultam da interacção das capacidades cognitivas e
superficial, são detectáveis por falantes portugueses, bra- emocionais do homem e das orientações comportamentais que
sileiros e estrangeiros. Mais: o português do Brasil é lhe são transmitidas pelo contexto social.
indubitavelmente mais fácil de compreender, a nível oral, A actividade linguística tem uma só natureza – reali-
por falantes de outras línguas devido sobretudo à za-se pela fala – e tem um nome: ‘língua portuguesa’, ‘lín-
audibilidade das vogais. Ocorre então perguntar: perante gua francesa’, ‘língua japonesa’, ou outra. Mas esse nome
as diferenças indicadas, perante uma diversa atitude exte- cobre uma abstracção se não o concretizarmos na produção
rior em face das duas variedades, estaremos nós diante de linguística de cada indivíduo. E é porque cobre uma
duas línguas ou deveremos manter a mesma designação abstracção que a língua pode servir uma opção política e
para as duas formas de falar? sócio-económica.
De um ponto de vista estritamente linguístico, não De igual modo, o termo ‘cultura’ cobre uma
há como provar que as diferenças inventariadas entre duas abstracção, mas a sua concretização distribui-se por diver-
formas de falar próximas obrigam a que essas formas de sas formas de comportamento cujas fronteiras são menos
falar passem a ser consideradas como duas línguas distin- definidas. Daí que o seu poder simbólico tenha menor im-
tas. As únicas línguas a que, nos tempos recentes, foi reco- pacto num contexto plurinacional.
nhecido o estatuto de línguas independentes são os criou- Se a concretização da língua se faz através da pro-
los cuja emergência como línguas, ainda que ancorada em dução linguística individual, utilizada de acordo com o
bases linguísticas, ocorreu num contexto histórico acentu- dialecto, o sociolecto e o próprio registo do indivíduo, tam-
adamente político. bém a identificação cultural é a realização, para cada pes-
Assim, sem possibilidade de inequívoca demonstra- soa, de uma determinada cultura abstractamente considera-
ção linguística para a separação, em línguas distintas, das da. Assim, essa realização está intimamente ligada aos
variedades de uma língua “pelo mundo em pedaços reparti- hábitos, crenças e actividades artísticas do meio restrito em
da”, a manutenção dessas variedades no enquadramento do que o indivíduo está inserido. Não pode, portanto, entender-
que se denomina uma língua é, em última análise, uma op- se que a identificação cultural tenha, como referentes, as for-
ção política. Ou seja, o termo “Português”, que cobre as mas variantes que assumem essas vertentes culturais em todo
variedades sociolectais, dialectais e nacionais que convivem o espaço onde se falam as diferentes variedades de uma mes-
em Portugal e no Brasil, deve ser entendido como impor- ma língua.
tante instrumento de coesão entre povos e como afirmação Em resumo, a actividade linguística de cada indiví-
política e económica num contexto envolvente transnacional. duo contribui poderosamente para se reconhecer a si pró-
A presença nestes ambientes de grupos de interesses unidos prio e para ser reconhecido pelo outro. É na realidade um
por falarem “a mesma língua” potencia a tomada de posição factor de identificação cultural, mas no uso, e pelo uso, que
desses grupos, sobretudo quando se trata de comunidades dela faz o indivíduo e não apenas por pertencer a uma das
de menor força no campo económico. várias comunidades que a utilizam como materna.
Estarei, portanto, a sugerir que a língua é tão só um Para terminar, passeemos um pouco em torno da fra-
factor de importância politico-económica? Não será ela tam- se de Fernando Pessoa mil vezes repetida e glosada: “A
bém o tal factor de identificação cultural de que no início se minha pátria é a língua portuguesa”. Será que esse homem,
falou? Como conjugar esta última definição com o facto ób- que falava uma língua dispersa por vários continentes, pre-
vio de a mesma língua ser falada, como língua materna, por feria tal dispersão à envolvência material de fronteiras físi-
povos com diferentes referências culturais? cas limitadoras? Ou será que, dividido o poeta entre várias
Até este momento esteve implícita a diversidade de pátrias que podia chamar suas mas a que se não sentia
culturas entre Portugal e o Brasil. O que foi dito sobre a visceralmente ligado, só na língua que falava encontrava a

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sua identificação? Talvez por isso pôde explodir, dentro de so (orgs.) Descartes, Laibniz e a Modernidade. Lisboa:
si mesmo, numa constelação de personagens libertas da obri- Colibri, pp. 547-561.
gação de viver. Porque a linguagem humana lhe ofereceu a FARIA, Luisa Leal de (1999). Estudos culturais contempo-
possibilidade de não pertencer a nenhuma pátria. râneos: construção, desconstrução e uma síntese possí-
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