Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
OS SANTOS DE CASA:
UM ESTUDO SOBRE FAMÍLIA, COMUNIDADE E RELIGIÃO NO MENOR
MUNICÍPIO BRASILEIRO
Marília
2013
OS SANTOS DE CASA:
UM ESTUDO SOBRE FAMÍLIA, COMUNIDADE E RELIGIÃO NO MENOR
MUNICÍPIO BRASILEIRO
Marília
2013
2
AGRADECIMENTOS
3
incentivar o desenvolvimento deste trabalho e pela paciência e amizade destes anos.
Agradeço especialmente a Joyce Aparecida Pires, pela amizade e compromisso com o
debate acadêmico e o fenômeno religioso, sua sutileza de aprendiz, sua amizade e
desejo de conhecer me ensinou muito durante o início da pesquisa.
Agradeço ao Renato, Silvia e Cidinha do ERI (Escritório de Pesquisa/Unesp) por
sempre nos auxiliar nos complexos processos de submissões de projetos, de relatórios,
de prestações de contas, etc., sem eles boa parte do trabalho não seria possível. Também
ao Prof. Dr. Paulo Eduardo Teixeira – meu primeiro orientador! – pela dedicação e
compromisso. As professoras Prof. Dr. Christina de Rezende Rubim, Nashieli Loera e
Prof. Dr. Lucia Arraes Morales pelas aulas inesquecíveis.
Sou grato a cidade de Borá e aos boraenses pela maneira comum que me
receberam. Este trabalho é resultado da relação construída entre mim e eles, o
pesquisador e seus interlocutores. Ainda que não tenha conhecido a todos e todas, ainda
que poucos venham recordar do jovem pesquisador que vivia “zanzando” pelas ruas da
cidade, por um momento nossas experiências se cruzaram e pude enfrentar o
empreendimento enervante de descrever alguns aspectos de suas vidas. Agradeço a
Valdirene Marconato pela generosidade em fornecer sua monografia para compor o
material da pesquisa e pela atenção que sempre colocou a minha disposição. Também
agradeço a dona Aparecida, dona Elizete e seu filho Marcos, por sempre me receberem
cordialmente em Borá.
Por fim, agradeço a minha família. Meu irmão Diego e minha sobrinha
Giovanna pelo carinho e cuidados. Ao meu pai, Antônio Carlos, pelo apoio, incentivo e
companheirismo durante o período do curso. Agradeço as queridas tias e primos pelo
apoio. Especialmente agradeço a Isabel, minha mãe, por ter sido meu refúgio durante
todo esse processo. E também a minha avó Maria Rita de Cássia, por permitir que em
meio às transformações contemporâneas seus netos conhecessem em seu modesto altar
os santos de casa.
4
RESUMO
5
ABSTRACT
6
SUMÁRIO
1. Introdução......................................................................................................9
7. Considerações finais.......................................................................................95
8. Referências Bibliográficas.............................................................................98
9. Fontes..........................................................................................................104
10. Anexos.........................................................................................................105
7
“[...] o próprio homem, tem dois polos ou duas faces: é significante, pode-se compreendê-lo de
dentro, e, ao mesmo tempo, a intensão pessoal encontra-se nele generalizada, amortecida,
tende para o processo, está, segundo a célebre expressão, mediatizada pelas coisas”.
Maurice Merleau-Ponty
(De Mauss à Claude Lévi-Strauss)
8
1. INTRODUÇÃO
9
conflitos enfrentados por qualquer habitante de uma metrópole. São, no entanto, as
particularidades de seu processo histórico que levamos em consideração como critério
para o lócus da pesquisa.
Estudar um determinado universo religioso partindo das imagens de santos
impõem desafios e propõem novas problematizações. Alba Zaluar (1983) considera que
na relação entre homens e deuses se expressa os códigos de condutas que orientam as
relações entre os próprios indivíduos. Então,
[...] Tomando-se o conjunto das crenças e dos rituais que elas tornam
necessários, percebemos que, nos rituais e na maneira de conceber as
relações entre os homens e os santos, está simbolicamente expresso o
código moral que rege as relações dos homens entre si (ZALUAR,
1983, p. 116-117).
1
Trata-se do conceito desenvolvido pelo antropólogo José Rogério Lopes. Dentre os inúmeros trabalhos
que constroem essa ideia (cf. Lopes, 2001; 2003; 2007; 2009), nos referimos especificamente ao seu livro
A Imagética da Devoção: a iconografia popular como mediação entre a consciência da realidade e o
ethos religioso (2010).
10
outros, aqueles que não se identificam, rejeitam ou simplesmente não prestam
homenagens, também estão envoltos no campo imagético que as imagens religiosas
produzem.
Na perspectiva de José Rogério Lopes (2010, p. 30), há “um campo de
codificações dialéticas entre imagens e representações aplicadas, ou seja, entre o
imaginário e suas figurações”. Neste sentido, a imagem só existe para ser vista por um
observador historicamente definido, ou seja, que disponha de certos dispositivos para
identificar e significar o que é observado. Assim,
Por meio desses dispositivos, as imagens são personificadas, fazendo-
se delas “fontes de processos, de afetos, de significações” (Aumont,
1995, p. 197), segundo combinações derivadas de seus valores
representativos ou expressivos (LOPES, 2010, p. 30).
11
Realizei cerca de vinte e cinco visitas entre 2011 e 2013, dividindo neste período
de pesquisa um ano de trabalho antes do financiamento da FAPESP (Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), e dois anos seguidos com o financiamento,
o que possibilitou maiores recursos para o desenvolvimento da mesma.
Como em Borá não há hospedarias ou pensionatos, em todas as visitas precisei
retornar à cidade vizinha de Paraguaçu Paulista e retomar o trabalho no dia seguinte. As
conversas informais foram registradas no caderno de campo, assim como os
depoimentos. As fotografias apresentadas no trabalho foram de nosso próprio registro e
compõem o material etnográfico da pesquisa.
Dividida em cinco partes, no primeiro capítulo Construção do objeto de
pesquisa, apresento os horizontes teóricos e a discussão bibliográfica sobre o campo
religioso brasileiro, as imagens religiosas materializadas, seus usos na história do
cristianismo, as particularidades da religiosidade doméstica e as situações de tensões e
conflitos entre as identidades religiosas e usos iconográficos.
No segundo capítulo Borá, São Paulo: contextualizando, discorro sobre os
principais momentos da história da cidade, relacionando-os com as questões atuais
registradas no trabalho de campo. No terceiro capítulo Revisitando os altares
domésticos: os usos dos espaços domésticos como parte da experiência religiosa,
examino a literatura sociológica, antropológica e historiográfica sobre os altares
religiosos no Brasil para em seguida apresentar fotografias de imagens e altares do
interior de residências de famílias católicas e discuto seus usos no cotidiano dos
devotos.
No quarto capítulo As noções de família e comunidade em um contexto religioso
plural, trago o depoimento de uma interlocutora católica sobre suas relações com a irmã
e vizinhas evangélicas, buscando repensar a tese de Weber sobre o conflito religioso na
esfera familiar e comunitária.
No capítulo A Festa de Santo Antônio de Borá: etnografia de uma festa
religiosa procuro demonstrar no momento coletivo mais significativo da cidade, como
as imagens religiosas, assim como a totalidade da festividade, apontam para mudanças
significativas entre os boraenses. Por fim, nas Considerações Finais, reitero alguns
argumentos desenvolvidos ao longo do texto e trago novos dados empíricos a partir da
noção de campo imagético desenvolvido por Lopes.
Em suma, esta monografia busca se inserir na discussão sobre as transformações
do campo religioso brasileiro contemporâneo trazendo uma contribuição original sobre
12
estas mudanças, partindo das imagens religiosas em suas distintas representações,
figurações, contextos e usos para investigar as relações entre religiosos com distintos
pertencimentos. Levando em consideração o contexto maior no qual se insere a
realidade empírica pesquisada, como por exemplo, a experiência das famílias boraenses
em relação às novas famílias que se estabelecem devido à busca de trabalho, o
crescimento populacional, o desenvolvimento econômico e o imaginário modernizante
que continuam a reificar o interior como “atrasado” e as novas modalidades de trocas
simbólicas entre as famílias em transformação pelas adesões religiosas.
13
2. CONSTRUINDO O OBJETO DE PESQUISA
A proposta inicial que guiou o trabalho foi compreender como familiares que
convivem na mesma residência e professam diferentes pertencimentos religiosos
desenvolvem suas relações. Mais especificamente, como as relações de tolerância e
intolerância ao uso de imagens religiosas entre católicos e evangélicos são
desenvolvidas no mesmo espaço.
Ao tratarmos do fenômeno religioso contemporâneo envolvendo católicos e
evangélicos no Brasil, precisamos ter em mente que o cenário atual é muito diferente
dos contextos históricos onde o catolicismo gozou da hegemonia religiosa. Hoje nos
deparamos com um mundo onde a pluralidade, a mobilidade, a flexibilidade, a
diversidade – dependendo da abordagem do autor (PIERUCCI 2006; ANTONIAZZI
2002; CAMURÇA 2006; PRANDI 1996; ALMEIDA 2004) – constrói um campo onde
inúmeros outros universos simbólicos se encontram e concorrem.
Levando em consideração os dados estatísticos fornecidos pelo IBGE (2010),
através do Censo das Religiões no Brasil, verificamos que as duas vertentes religiosas
que possuem o maior número de adeptos e que compartilham o primeiro e o segundo
lugar desta lista é o catolicismo e os segmentos evangélicos, respectivamente. Ambas
partem do mesmo tronco religioso, o cristianismo, contudo, se diferem na história por
inúmeros aspectos. No caso brasileiro, por exemplo, Pierre Sanchis (1999) afirma que,
As santidades indígenas (Vainfas, 1995). As tradições africanas – já
profundamente sincretizadas antes de chegar, e introduzidas aqui no
caldeirão de uma matriz viva, historicamente ativa e processadora das
diferenças: o catolicismo. Nem África pura, nem Catolicismo europeu.
Do ponto de vista religioso e do ponto de vista cultural (SANCHIS,
1999, p. 105).
14
Do ponto de vista do autor, o protestantismo não obteve o mesmo sucesso que o
catolicismo no que diz respeito aos mecanismos de assimilação e ressignificação da
pluralidade das culturas presentes no Brasil. Contudo, ao observarmos os números
atuais do crescimento evangélico2, fica evidente que estes segmentos passaram a
incorporar diferenciados elementos para se desenvolver no país. Inclusive, como afirma
o sociólogo Ricardo Mariano (1999):
Para sobreviver e crescer no Brasil de hoje, radicalmente avesso às
regras e imposições reguladoras da intimidade e do tempo de lazer e
reconhecidamente liberal no plano do comportamento privado, várias
igrejas pentecostais abriram mão de preceitos, valores, tradições, tabus
e verdades anacrônicos, disfuncionais e impopulares (MARIANO,
1999, p. 105-106).
2
Segundo o IBGE os segmentos protestantes/evangélicos cresceram nas seguintes proporções nos últimos
anos: 1991 os evangélicos representavam 9% da população; em 2000 representavam 16%; e no último
censo de 2010, representam 22, 2% da população. Foi, neste quadro, a religião que indicou o maior
crescimento nos últimos anos.
15
católicos e evangélicos por possuírem características que os aproximam e os distanciam
ao mesmo tempo, seja pela mesma matriz religiosa, seja pelas relações familiares ou na
vida comunitária.
O cenário de pluralidade religiosa abre caminho para verificarmos questões
como as de intolerância religiosa entre os adeptos destas duas religiões no Brasil. No
entanto, cabe considerar que as intolerâncias nem sempre são manifestas em ações ou
palavras de formas explicitas, mas coexistem com o jeitinho brasileiro e outras formas
de cordialidades (cf. BARBOSA, 1992; HOLANDA, 1995) que são capazes de
camuflar as tensões e conflitos destas relações. Levando em consideração que essas
formas culturais particulares podem possibilitar que o contato entre católicos e
evangélicos no Brasil de hoje, esteja gerando novas formas de sociabilidade, onde a
intolerância religiosa não se manifeste mais com seus aspectos convencionais, e onde
outros valores como família, comunidade, amizade, etc., sejam preconizados acima ou
na mesma medida que os valores religiosos.
Em A casa e a Rua (1985), Roberto Damatta compreende que no Brasil os
espaços são como “esferas de significação social – casa, rua e outro mundo – que fazem
mais do que separar contextos e configurar atitudes” (idem, p. 33), eles demarcam e
constroem visões de mundo e/ou éticas particulares. José Magnani (2003, p. 138),
identifica como pedaço, um espaço intermediário entre a casa e a rua, “onde se
desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares,
porém mais densa, significativa e estável, do que as relações formais e individualizadas
impostas pela sociedade”.
De acordo com esses autores em suas distintas concepções, são nos espaços
privados onde as relações sociais diferenciam-se dos outros espaços. Na casa tudo fica
mais intimo e profundo. Nas palavras de Damatta, é o lugar em que as visões de mundo
e éticas particulares são desenvolvidas e negociadas. No entanto, como apreender
empiricamente as relações entre familiares ou pessoas de diferentes pertenças religiosas
que convivem sob o mesmo teto?
Por se tratarem de religiões de raízes cristãs, católicos e evangélicos se
diferenciam historicamente por dogmas, liturgias, comportamentos, etc. Mas um dos
principais marcadores identitários que os distinguem são os usos da iconografia
religiosa. Enquanto católicos são identificados por portarem ou fazerem usos das
imagens, os segmentos protestantes dentro de suas diferentes vertentes rejeitam o uso de
imagens.
16
Sem cometer o risco de amplas generalizações, é preciso relativizar a ideia de
que nem todo católico faz uso de imagens de santos, assim como nem todo evangélico
rejeita o uso das imagens. Portanto, partimos das imagens de santos, embasado nos
apontamentos do antropólogo José Rogério Lopes (2010) sobre a dinâmica existente na
produção, reprodução e usos das imagens religiosas.
Nosso objetivo não se insere na discussão da semiótica, nem do plano
cognoscível e nem da arte sacra, nos interessa abordar os aspectos da materialidade da
imagem e da subjetividade que os usuários produzem sobre e ao redor delas. Isto é,
buscaremos compreender o processo que se inicia no imaginário religioso, ganha forma
e como estas imagens de santos incorporam sentidos múltiplos e tornam-se objetos de
devoção para alguns e despertam críticas em outros.
As imagens de santos oriundas do cristianismo – sejam elas de madeira, gesso,
quadros, fitas com motivos religiosos, dentre tantos outras formas que possuem uma
representação do sagrado –, são produtos de uma elaboração humana, onde o imaginário
arraigado em permanências tradicionais é capaz de construir narrativas e as materializa-
las.
Esta ideia parte das constatações do historiador italiano Carlo Ginzburg (2001, p.
120), de que o aparecimento e reaparecimento das imagens religiosas na tradição cristã
remontam a criação e recriação mítica do profetismo judaico. Na medida em que as
interpretações e traduções bíblicas ganharam vida, a subjetividade dos cristãos elaborou
uma narrativa a partir de tais mitos, dotando não apenas a experiência religiosa de um
sentido simbólico, mas também atingindo a produção material das imagens.
Este aspecto material da imagem traz consigo a qualidade de um produto mental,
num processo onde o imaginário ganha vida através da ação humana. Esta prerrogativa
compõe algumas reflexões filosóficas sobre a dialética entre o mundo ideal e o mundo
material. Para Gaston Bachelard (1991),
[...] a matéria existe imediatamente sob sua mão obrante. Ela é pedra,
ardósia, madeira, cobre, zinco... O próprio papel, com seu grão e sua
fibra, provoca a mão sonhadora para uma rivalidade da delicadeza. A
matéria é, assim, o primeiro adversário do poeta da mão. Possui todas
as multiplicidades do mundo hostil, do mundo a dominar. O
verdadeiro gravador começa sua obra num devaneio da vontade. É um
trabalhador. Um artesão. Possui toda a glória do operário
(BACHELARD, 1991, p. 52).
17
sagrada, seus entalhes, suas cores e nos usos que os devotos fazem delas, contém
trabalho humano investido e correspondem a uma considerável parcela da construção da
própria subjetividade religiosa.
Como em toda produção ela (a imagem) possui um valor, seja um valor
monetário ou um valor moral estimado. O objeto que outrora era um produto mental
fruto de narrativas passadas, quando materializada agrega em si valores. Estes valores
podem ser calculados a partir de seu processo de produção, isto é, desde sua concepção
até sua conclusão, a técnica, o emprego de força, o entalhe, o consumo e os usos estão
impregnados de trabalho. Em sua concepção de produção da mercadoria Karl Marx
(2010) descreve tanto os aspectos fisiológicos quanto os subjetivos acionados pelo ser
humano na confecção de qualquer elemento material.
[...] o trabalho humano do alfaiate e do tecelão, embora atividades
produtivas qualitativamente diferentes, são ambos dispêndio humano
produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos etc., e, desse modo, são
ambos trabalho humano (MARX, 2010, p. 66).
18
O debate sobre a exteriorização, materialização e reprodução daquilo que é
produto do imaginário ou de subjetividades religiosas e/ou mágicas, percorre as diversas
correntes teóricas possíveis para sua abordagem, e se enraíza numa discussão que
antecede o cristianismo.
Na Grécia, entre Platão e Aristóteles há uma profunda discordância sobre a ação
do homem na reprodução de alguma coisa. Para Platão, a arte é a imitação de uma
realidade que está separada da realidade verdadeira, nunca adquire um caráter
totalmente real, mas apenas um reflexo – nisto consiste sua Ideia Transcendente. Para
Aristóteles, o homem é capaz de imitar o real, mas um real que está presente, num
movimento em que matéria penetrada pela forma a constitui em realidade (cf.
BESAÇON, 1997, p. 67-68; MACHADO, 2001, p. 9).
Se tratando do longo processo histórico do cristianismo, a aceitação do uso das
imagens passou por inúmeras discussões e Concílios para definir ou redefinir seu
caráter dentro desta tradição. De acordo com Alain Besaçon (1997, p. 179), foi
lentamente que o desenvolvimento da arte cristã se realizou. Iniciada durante os
primeiros séculos do cristianismo nas paredes das catacumbas marcadas com grafitos,
esboços, sinais e símbolos para iniciados no cristianismo, não sendo consideradas ainda
como imagens de culto, eram apenas lembretes de passagens do Cristo ou da Virgem. O
autor também aponta que somente após a conversão de Constantino (325 a. C.) que a
arte e a produção das imagens sagradas passaram a ser produzidas:
Tendo em vista que, as imagens que eram produzidas anteriormente
eram pagãs, havendo sansões aos artistas que confeccionavam estas
imagens, apenas com a conversão do imperador Constantino ao
cristianismo os artistas puderam trabalhar livremente na produção das
imagens que exaltariam a nova fé (BESAÇON, 1997, p. 180).
19
V, Constantino VI e Leão V. A doutrina dilacerou o lado oriental do
antigo império Romano durante mais de um século e provocou uma
sangrenta guerra civil, que só terminaria em 843, com a restauração do
culto aos ícones na catedral de Santa Sofia, em Constantinopla, atual
Istambul (MACHADO, 2001, p. 10).
Esta experiência evoca variados sentidos para os sujeitos, por isso, Lopes (idem,
p. 24) considera que não se trata somente de ícones, mensagens ou representações, mas
são representações codificadas em códigos inteligíveis e partilhadas socialmente,
construindo redes de sentidos que interligam os sujeitos e movimentam as trocas sócio
religiosas que realizam. Esses códigos confluem para estabelecer um campo de
interesses socialmente partilhados pelo grupo, e este campo o autor define como campo
imagético (idem, p. 28).
Para fundamentar sua noção de campo imagético, Lopes recorre o pensamento
de Gilles Deleuze (1988) sobre a diferença e a repetição, ponderando que:
[...] como afirma Deleuze (1988), que os registros da consciência que
se movem em torno das representações da repetição e da diferença que
estabelecemos sobre e com os fenômenos, como registros de nossa
20
própria consciência de continuidade e de mudança, são inscritos nas
imagens e podem ser assim investigados sob algumas abordagens
(LOPES, 2010, p. 75).
Numa breve síntese, sua concepção sugere que, “o objeto (leia-se imagem) que
se repete não muda, mas muda alguma coisa no espírito que a contempla” (idem, p. 75);
dessa forma o espectador da imagem é compreendido como produtor de sentidos por
receber um conteúdo e transformá-lo a partir da codificação realizada em seu
imaginário. Contudo, o espectador da imagem, num contexto religioso considerado
plural, não necessariamente é o único que faz uso desta imagem, preste devoção ou se
relacione diretamente com ela.
Na proposta de Lopes – ao qual assumimos como norte metodológico de nossa
pesquisa –, é pela contemplação da imagem que alguma coisa se transforma no
indivíduo por meio dos registros da consciência que reativam memórias e experiências
coletivas e individuais. Em nossa pesquisa partimos deste pressuposto, mas inserimos os
indivíduos que não utilizam as imagens de santos, mas que de alguma maneira se
relacionam com elas e com seus usuários dentro de um campo imagético plural
determinado (idem, p. 139).
O autor distingue dois tipos de abordagens centrais nas investigações sobre
imagens religiosas. A primeira considera a relações devocionais constituídas em torno
de uma imagem, a segunda considera as devoções religiosas em suas relações com um
campo imagético plural. Nossa proposta se insere na segunda abordagem, onde se
desloca o sentido das imagens de seu significado particular (que é adjetivador), para um
significado (substantivador), onde se visualiza o conjunto de relações e redes
desenvolvidas pelo devoto. Lopes considera, e concordamos com ele, que,
[...] Ocorre que no estudo de uma devoção particular é, muitas vezes
insuficiente para abranger a dinâmica de uma memória popular
devocional [...]. O que considero como dificuldade central de tal
abordagem é o fato de que as mediações que se operam nesse
entrelaçamento são de ordem da memória, e lembre-se que a memória,
que é o fundamento do tempo, inverte a relação entre geral e particular
(LOPES, 2010, p. 139).
21
pessoas) e dentro dos universos religiosos que compõem3 (particular, suas devoções e
práticas religiosas).
3
Danièle Hervieu-Léger (2008, p. 73) entende que, as experiências que correspondem às necessidades
emocionais, de integração comunitária, de preservação da cultura religiosa, podem constituir o ponto de
partida de uma elaboração identitária singular, que os indivíduos na Modernidade religiosa ‘colorem’ de
maneira única.
22
3. BORÁ, SÃO PAULO: CONTEXTUALIZANDO
23
Fonte: Ilustração do autor
24
do transporte da população pelas cidades vizinhas, um estádio municipal (um grande
campo de futebol, com arquibancadas, em que os times regionais marcam seus torneios
e onde o rodeio é realizado anualmente).
Embora diminuto, o comércio é bastante ativo, quando os moradores não
encontram os produtos que procuram se dirigem para Paraguaçu Paulista (com cerca de
40 mil habitantes), que oferece uma maior variedade de consumo e lazer. Os bares que
mencionei, são frequentados por homens que ali encontram colegas e passam horas em
longas conversas. Notei no decorrer do trabalho, que estes bares são locais de intensa
fonte de informações por agregarem muitas pessoas e por estarem localizados na rua de
entrada da cidade. É possível estar em um dos bares e notar qualquer pessoa que adentra
a cidade, permitindo estar ciente das diferentes movimentações durante todo o dia.
O que mais é consumido pelos frequentadores dos bares são cerveja e cachaça –
cabe salientar que não presenciamos mulheres que frequentassem os bares, apenas iam
até eles para comprar utilidades, mas somente os homens ali permaneciam. Em ambos
os bares existem mesas de sinuca, onde os clientes jogam em disputas amistosas. Às
vezes algum frequentador estaciona o carro em frente ao bar e liga o aparelho de som
para o desfrute dos demais.
*
No que diz respeito à religiosidade dos boraenses, observei que como nos
diferentes aspectos de suas vidas, estão intimamente relacionados aos laços familiares.
Antes de entrar especificamente no perímetro urbano de Borá, os sítios e fazendas que a
cercam foram batizadas com nome de santos, como por exemplo, Sítio Nossa Senhora
da Graça, Fazenda Nossa Senhora Aparecida, Sítio Santo Antônio e Sítio São José. Em
um trecho de seu trabalho Valdirene Marconato (1997)5 rememora a experiência
religiosa de sua infância e do contato familiar que se desenvolvia nestes sítios:
A igreja onde tive as primeiras instruções em relação a Deus, espera
todo ano pela festa de Santo Antônio, o padroeiro. [...] As ruas mais
afastadas oferecem os horizontes, verdes sítios que deixaram outras
saudades. Das estripulias de criança e broncas das avós, do certo e do
errado (MARCONATO, 1997, p. 29).
5
Nascida e criada em Borá, Valdirene Marconato em sua monografia Borá: fragmentos do recanto
(1997) elaborou um livro-reportagem sobre a história da cidade. Coletou entrevistas, verificou arquivos e
com pessoalidade construiu um importante material sobre o desenvolvimento de Borá desde a chegada de
seus primeiros habitantes até o final da década de noventa.
25
No trecho citado e em todo o trabalho de Marconato, é possível identificar que o
desenvolvimento da cidade e as biografias de muitos dos habitantes estão relacionados
com o convívio familiar e comunitário. Como, por exemplo, alguns sobrenomes como
das famílias Vedovatti, Bregolato, Leovezete, Marconato e Furniel, são recorrentes nos
importantes momentos de Borá. Desde a abertura das matas para a construção da então
“Vila Borá”, passando pela construção da capela, pelo desenvolvimento do comércio
agropecuário, pela sua emancipação a município em 1964 e suas primeiras eleições, até
os dias de hoje, os boraenses desde crianças estão envoltos em relações consanguíneas
ou por laços vicinais.
Na primeira visita que realizei a Borá, ao percorrer as ruas, me deparei com uma
casa de madeira, de portões e muros pequenos, que estava com a porta da sala aberta,
onde pude ver algumas imagens de santos católicos pelas paredes. Resolvi interpelar os
moradores da residência para saber um pouco mais sobre a cidade e questionar sobre a
devoção aos santos.
A casa pertence à dona Germina6, 89 anos, descendente direta de uma das
famílias portuguesas que colonizaram a localidade. No momento estava acompanhada
de sua filha, que há anos mora na capital de São Paulo, mas passou parte de sua vida em
Borá. Em nossa conversa, dona Germina contou que viu a cidade nascer. Lembra, ainda
hoje, de seus pais e das demais famílias abrindo as matas, construindo suas casas, dos
bailes que eram realizados entre os jovens, da igreja sendo construída, dentre tantas
outras memórias. Como relata Marconato (1997, p. 7), em entrevista com dona Germina
em 1997, os casamentos antigamente eram realizados entre as famílias que ali
conviviam. Membros de uma família casavam-se com os de outra, assim, quase todos
na cidade são parentes próximos ou distantes.
Ao questionar sobre as imagens de santos que possuía em sua sala, me convidou
para entrar e vê-las de perto. Em uma das paredes havia um grande crucifixo de madeira
pendurado, portando cerca de uns 50 cm, o crucifixo estava rodeado de imagens: um
quadro de tamanho grande da Santa Ceia, um anjo de metal, à direita e à esquerda
haviam retratos dos pais já falecidos.
A trajetória pessoal de dona Germina, como de alguns remanescentes diretos das
famílias precursoras está intimamente ligada à história da cidade, pois, como ela mesma
disse “ajudou a arrancar a mata para que a cidade fosse construída”. Devido a este
6
O nome de dona Germina é citado sem pseudônimo por ser uma referência direta ao trabalho de
Marconato.
26
importante vínculo familiar forjado desde o início da cidade, uma das falas de dona
Germina apontou diretamente para o que mais tarde eu iria compreender com maior
exatidão sobre as transformações na cidade de Borá7. Nas palavras de nossa
interlocutora,
Antes a gente conhecia todo mundo que passava pela rua. Agora já
não se sabe mais quem é quem. (Dona Germina, 89 anos, boraense).
7
Refiro-me a presença dos trabalhadores migrantes. No início do trabalho, não levei em consideração que
na fala de dona Germina, estava contida a percepção das recentes transformações em Borá. Por mais que
houvesse notado alguns trabalhadores rurais transitando pela cidade, somente nas visitas seguintes soube
da usina de cana de açúcar e do fluxo migratório que sua reativação ocasiona.
27
onde se dava a parada do trem da Alta Sorocabana, para comercializar produtos
alimentícios. Três anos mais tarde, em 1921, com a chegada de famílias portuguesas,
fizeram de residência os acampamentos dos engenhos – acampamentos estes que
haviam sido utilizados pelas expedições organizadas pelo Governo do Estado no inicio
do século para desbravar as terras do então “sertão desconhecido” –, localizados na
fazenda de Dionísio Zirondi.
Em seguida, outras famílias, desta vez de imigrantes italianos, chegaram e se
assentaram no acampamento. Juntamente com as outras famílias, abriram as primeiras
picadas – as atuais estradas que ligam Borá ao distrito de Sapezal e a cidade de
Paraguaçu Paulista. A primeira medida foi a derrubada da mata para plantio, que
automaticamente, também abriria um caminho maior para as estradas e facilitaria o
comércio nas épocas de safra.
Em fins de 1923 e inicio de 1924, essas famílias, todas de orientação religiosa
católica, tomaram por iniciativa construir uma capela para realizar suas orações, missas,
batizados dos filhos, etc. De imediato, foi levantado um cruzeiro de madeira, onde eram
realizadas as missas. Pouco tempo depois as famílias se reuniram para tratarem da
escolha de um local adequado para a edificação da capela. O local escolhido, por fim,
foi no sítio de José da Costa Pinto, por serem terras que estavam no centro das demais
propriedades.
Como relata Marconato (1997, p. 4), com tamanha honraria, Costa Pinto doou
um alqueire de terras para a construção da capela. Em mutirão as famílias auxiliaram na
sua edificação toda de madeira. Alguns derrubaram árvores de perobas, outros
transportaram as madeiras em carros de boi, e numa cooperação mútua nasceu a Capela.
O santo padroeiro escolhido foi Santo Antônio, e no mesmo período da construção foi
instituída a Vila Borá.
As junções das famílias imigrantes e das demais famílias brasileiras que se
encontraram na região deram origem a um tipo de sociabilidade que pode ser
compreendido na síntese de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973, p. 3), que devido às
grandes transformações pelas quais passou o Estado de São Paulo desde o final do
século XIX, com a entrada de grande massa de imigrantes europeus e pela coexistência
de diferentes grupos no espaço rural, promoveu-se um tipo de sociabilidade comunal,
onde a família e os parentes formavam a base desta estrutura comunitária.
28
Na medida em que as inúmeras transformações decorrentes do processo de
urbanização, somado a ideia de progresso, dos fatores tecnológicos e econômicos
atingem os antigos padrões de vida do campo, além de alterarem a paisagem local, o
cotidiano dos habitantes passa a ser afetado diretamente. De acordo com Eunice Durhan
(1973),
A mudança desse modo de vida tradicional não pode ser
compreendida exclusivamente em termos de organização interna
dessas comunidades mas como resultado de pressões que emanam da
sociedade global na qual se inserem. É a relação entre essas forças
externas e o equipamento sociocultural tradicional que nos permite
analisar a direção da transformação que se processa e as possibilidades
de ajustamento dos indivíduos a nova ordem social em emergência
(DURHAN, 1973, p. 96).
8
“Arrastados” é o termo como alguns boraenses chamam os migrantes trabalhadores da usina. Devido ao
sotaque que trazem de suas regiões, acabaram por ser diferenciados por este termo.
29
Para alguns boraenses a usina foi a “salvação da cidade”, trouxe emprego,
melhoria de renda, etc. Atualmente foi realizada uma parceria entre o Governo do
Estado, a Prefeitura e a Usina Ibéria, para a construção de um conjunto habitacional de
101 casas. Estas casas são destinadas a dois tipos de habitantes9: a) para trabalhadores
da usina que permanecem na cidade sem retornarem aos seus estados de origem; b) para
aqueles que moram a mais de três anos na cidade e não são trabalhadores da usina e que
não possuem residência fixa.
Segundo uma interlocutora, casada, funcionária na escola municipal, mas que
reside em outra cidade, à preferência na aquisição das casas é dos trabalhadores da
usina. Estes trabalhadores em seu período de estadia moram no alojamento fornecido
pela usina. Mas, devido às possibilidades de emprego fixo, com registro permanente na
carteira de trabalho, muitos destes trabalhadores acabam por manifestar o interesse em
definitivamente morar na região e trazer suas famílias.
Alguns antigos moradores de Borá, que hoje residem em Paraguaçu Paulista e
em outras cidades vizinhas – os quais tive a oportunidade de conhecer através das
caronas para realizar a pesquisa – disseram que se a usina houvesse sido reativada há
mais tempo, não teriam ido embora da cidade, somente deixaram Borá devido à falta de
trabalho. Até a reativação, em 2004, a prefeitura era a principal fonte de renda da
população, que trabalhavam no hospital, ou na escola, ou no fundo de solidariedade, etc.
Poucos se deslocavam para trabalhar nas cidades vizinhas. Somado a isto, a baixa oferta
de trabalho e com o aumento da população jovem, as possibilidades de trabalho que a
usina passou a oferecer fez com que obtivesse aprovação de parte da população.
Já para outra parcela dos boraenses a usina foi a “desgraça da cidade”, trouxe
pessoas estranhas, aumentou a preocupação com casos de abuso sexual e pedofilia,
levantou rumores sobre prostituição, etc. Devido a estas opiniões muitos dos migrantes
acabam não sendo incorporados à comunidade, como disse outra interlocutora desta vez
boraense: “tem muita gente que não gosta deles, mas eu tenho muitos amigos
alagoanos”.
É possível entender estes fatos como um tipo de rejeição implícita nos discursos,
que por sua vez tem suas origens nas críticas à reativação da usina. Isto acaba por
9
Segundo dados do IBGE, Borá possui 187 residências. De acordo com dados de nossa pesquisa, onde
entrevistamos 52 residências, as famílias são compostas por uma média de três ou quatro membros. Com
a inauguração das novas casas serão 287 residências, se todas forem habitadas, seja pelos migrantes ou
por outras pessoas que apenas trabalham em Borá, e se a média de pessoas por residência for semelhante
a atual, acreditamos que no próximo Censo Demográfico Borá não será a menor cidade do país em termos
populacionais.
30
estabelecer categorias sociais internas de diferenciações sobre os trabalhadores
migrantes. A este fenômeno identitário Erving Goffman (1988, p. 138-139) denomina
como intrusibilidade; isto significa que os de fora por não compartilharem dos mesmos
códigos e normas sociais do grupo estabelecido, acabam por ser classificados como
diferentes e consequentemente são sobrecarregados de estigmas. Tal evidência está no
termo “arrastado” que distingue os migrantes a partir da forma falar e de seus sotaques
de origem.
Somando a isto, existem os argumentos políticos sobre as questões que
envolvem a reativação da usina. Devido à grande evidência que Borá ganhou por ser o
menor município brasileiro em termos populacionais, com 805 habitantes segundo o
Censo Populacional (IBGE, 2010)10, as antigas discussões políticas sobre inserir Borá
na modernidade e no progresso se acirraram11. De um lado o argumento de que é
preciso investir em infraestrutura para proporcionar o aumento da população, trazer
mais indústrias para a localidade a fim de gerar emprego, ampliar o comércio e
melhorar a qualidade de vida da população.
Do outro lado, os interesses que prezam pela manutenção de Borá como é: a
menor cidade do Brasil, um local tranquilo, onde pessoas deixam suas vidas
conturbadas dos grandes centros metropolitanos e escolhem para morar ou passar finais
de semana12. Um local turístico, com festas tradicionais, com um balneário para os dias
quentes, enfim, um local idílico para muitas pessoas. São, portanto, estas duas posições
opostas que os políticos boraenses inserem em suas agendas discursivas. Do mesmo
modo, a população se divide entre elas. Os jovens que não conseguem emprego na usina
ou noutro ramo deixam a cidade em busca de condições diferenciadas de vida. As
10
Outro elemento que conturbou a cidade foi à invasão midiática que tomou Borá após a divulgação do
Censo em 2010. Reportagens de jornais online e impressos escreveram sobre a pequena cidade em tons
nem sempre respeitosos. Programas de televisão produziram reportagens em rede nacional. Empresas
privadas realizaram propagandas vinculando em seus produtos o seu tamanho. Uma série de especulações
aconteceu desde então, a mais recente foi à exposição de que “Borá é uma cidade 100% conectada na rede
social Facebook”.
11
Segundo informações do estudo de Marconato (1997, p. 14), Borá teve sua população reduzida no
decorrer dos anos. Em 1950 eram 3.515 habitantes, em 1960 eram 2.812, em 1970 a queda da população
correspondeu a 1.270. Esta redução permaneceu 1980 e 1991, com o registro de 858 e 751 habitantes
respectivamente. Esta queda populacional e as poucas fontes de renda disponíveis acabaram por se tornar
uma discussão política sobre o futuro da cidade.
12
Em uma conversa informal com o dono de dos mais significativos comércios da cidade, me disse que
havia deixado a cidade de São Paulo há anos atrás. Por estar viúvo, aposentado, com os filhos criados e
com algum capital para investir, após conhecer Borá em visita ao interior do estado resolveu mudar-se
para lá definitivamente deixando “a vida estressada da capital”. É importante salientar que esse relato é
fruto de uma experiência anterior a divulgação do Censo Populacional de 2010.
31
pessoas em idades adultas e idosas ou estão empregados ou aposentados, não pensam
em deixar a cidade.
*
Para obtermos um panorama geral sobre o campo religioso em Borá,
consultamos o Censo das Religiões no Brasil (IBGE, 2010), onde os dados apontam
para as seguintes pertenças e declarações religiosas:
Católicos 68,76%
Evangélicos 27,07%
Espíritas 0,0%
Candomblé e Umbanda 0,0%
Sem religião 0,0%
Fonte: IBGE 2010.13
13
http://www.ibge.gov.br/cidadesat/xtras/temas.php?codmun=350720&idtema=91&search=saopaulo|bora|
censo-demografico-2010:-resultados-da-amostra-religiao-
14
Apontamos também que as demais cidades que estão ao redor de Borá apresentam um quantitativo
diminuto ou desaparecem quando verificamos a proporção de espíritas, de umbandistas, de
candomblecistas e de sem religião. Somente as cidades de Quatá e de Paraguaçu aparecem, porém, com
um quantitativo reduzido de: Quatá: espíritas com 0,04%, sem religião com 5, 75%, umbanda e
candomblé não são encontradas. Paraguaçu: espíritas com 1,28%, sem religião com 7,42%, umbanda e
candomblé com 0,120%.
15
http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1
16
http://www.ibge.gov.br/cidadesat/xtras/temas.php?codmun=350720&idtema=91&search=saopaulo|bora|
censo-demografico-2010:-resultados-da-amostra-religiao-
32
População residente, religião evangélica de missão 3 pessoas
População residente, religião evangélica de missão – Igreja Evangélica Adventista 3 pessoas
População residente, religião evangélicas de origem pentecostal 113 pessoas
População residente, religião evangélicas de origem pentecostal – Igreja 67 pessoas
Assembleia de Deus
População residente, religião evangélicas de origem pentecostal – Igreja 6 pessoas
Congregação Cristã do Brasil
População residente, religião evangélicas de origem pentecostal – Igreja 34 pessoas
Evangelho Quadrangular
População residente, religião evangélicas de origem pentecostal – outras 6 pessoas
População residente, religião evangélica não determinada 101 pessoas
População residente, religião Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias 13 pessoas
Fonte: IBGE 201017.
17
http://www.ibge.gov.br/cidadesat/xtras/temas.php?codmun=350720&idtema=91&search=saopaulo|bora
|censo-demografico-2010:-resultados-da-amostra-religiao-
18
Que apresentaremos a seguir como foi elaborado e quais foram os resultados obtidos.
33
Antônio era seu marido, que havia ganhado de presente de um parente. Esta senhora,
mesmo declarando-se católica, não tem seu universo de crença afetado pela participação
dos cultos evangélicos.
Todavia, a capacidade de assimilação de outros referenciais simbólicos sempre
fora uma das principais características da prática do catolicismo. Na colocação de
Alphonse Dupront (1995),
[...] Por um lado, o que se denomina “catolicismo” não se limita, na
honestidade das palavras, à religião católica como tal. Como o sufixo
traduz numa penumbra propícia e fecunda, é preciso entender no
conteúdo existencial de “catolicismo”, tanto um sistema de
pensamento como uma atitude diante do mundo e da vida
(DUPRONT, 1995, p. 10).
34
Retomando os números do Censo sobre Borá, fica nítido que declarantes
católicos e evangélicos são predominantes na cidade. No caso dos católicos, por serem
maioria, configura o quadro histórico da própria formação e tradição da cidade. Os
evangélicos são resultado da inserção das igrejas evangélicas em Borá desde a década
de oitenta. Atualmente estão presentes igrejas protestantes que podem ser caracterizadas
como pentecostais clássicas de primeira e segunda onda, conforme as tipologias
propostas por Paul Freston (1993). São elas: Igreja Assembleia de Deus (Ministério do
Ferreira), Igreja Assembleia de Deus (Ministério de Belém), Igreja Congregação Cristã
do Brasil e Igreja do Evangelho Quadrangular.
Segundo Mariano (2012, p. 23), a Congregação Cristã e a Assembleia de Deus,
fundadas no Brasil respectivamente em 1910 e 1911, sempre apresentaram claras
distinções eclesiásticas e doutrinarias, mas com o passar do tempo, geraram formas e
estratégias evangelísticas e de inserção social bem distintas. No caso da Igreja do
Evangelho Quadrangular, presente no país a partir da década de cinquenta, teve em sua
gênese formativa os fragmentos denominais do pentecostalismo, diversificando seu
aparato institucional, e que acabou por atingir suas doutrinas e derivou suas ênfases
proselitistas (idem).
A notoriedade do crescimento dos evangélicos em Borá pode ser notada quando
confrontamos os dados do Censo conforme apresentamos anteriormente com os dados
obtidos em nossa pesquisa. Foram constatados na pesquisa casos de pluralidade
religiosa intrafamiliar, ou seja, famílias que em sua composição encontram-se católicos
e evangélicos convivendo sob o mesmo teto. Também identificamos famílias que se
declararam “sem religião” e espíritas, mesmo não havendo um centro para as reuniões
na cidade, acabavam por ir às cidades próximas, inclusive, estes mesmos declarantes
espíritas residem com familiares católicos.
Ao aplicarmos um questionário19 semiestruturado em 52 residências para
verificar a composição familiar e as pertenças religiosas, obtivemos os seguintes dados:
19
O questionário foi composto pelas seguintes questões: 1) Possui religião? 2) Qual religião? 3)
Frequenta alguma igreja? 4) Quantas pessoas residem na mesma casa? 5) Quais as idades das pessoas que
moram na mesma casa? 6) Todas as pessoas da casa pertencem a mesma religião? 7)Alguém da casa
possui algum santo de devoção? 8) Algum membro da residência possui imagens de santo dentro da casa?
Mais adiante abordaremos com maior clareza como o questionário foi construído, quais foram às
prerrogativas para auferimos tais questionamentos e quais foram os resultados obtidos.
35
Total de Famílias entrevistadas 52
Famílias que se declararam totalmente católicas 31
Famílias que se declararam totalmente evangélicas 4
Famílias que se declararam sem religião 1
Famílias que apresentaram pluralidade religiosa (católicos, evangélicos, espíritas e de 16
múltiplas pertenças)
Fonte: Elaboração própria a partir do material etnográfico da pesquisa
20
As discussões sobre pluralidade religiosa concentram-se nos espaços urbanos metropolitanos (cf.
CAMURÇA, 2003; GIUMBELLI, 2008; MERLO, 2008; NEGRÃO, 2009). Outra perspectiva adotada
são os estudos da pluralidade religiosa dentro do núcleo familiar por meio do viés psicológico (cf.
OSORIO, 1996; BRUSGAGIM, 2004). Poucos trabalhos adotam uma perspectiva antropológica para a
compressão deste fenômeno, porém, cabe ressaltar neste quesito os trabalhos realizados por Maria
Barbosa (1983), Maria das Dores do Campo Machado (1996), Edlaine Gomes (2006) e por Silvana
Sobreira de Matos (2008).
21
Entrevista concedida à Revista do Instituto Humanitas Unisinos em 16/12/2010.
36
identitário para os religiosos. Nesse sentido, Marcelo Camurça (2009), pondera que no
caso brasileiro, o encontro do catolicismo e das outras religiões em certos espaços,
como no espaço privado da casa, não se dão em um simples processo de assimilação e
concórdia, mas são permeados por diversas situações como conflitos, tensões e
enfrentamento. Como coloca o autor:
[...] as fricções e interfaces existentes entre as distintas religiões que
convivem em solo brasileiro obedecem a linhas de forças que as
colocam ora em situações de trocas, interpenetrações e comunicações,
ora em situações de diferenciação, competição e enfrentamento
(CAMURÇA, 2009, p. 174).
37
formativas, isto é, sua história e como as relações familiares e comunitárias foram
configuradas, a afirmativa de Weber pode ser constatada empiricamente?
Traçando considerações sobre a Modernidade religiosa, Hervieu-Léger (2008, p.
58), entende que “é a mutação da família, instituição de socialização por excelência, que
revela mais diretamente a extensão das implicações sociais como também psicológicas”
sobre os indivíduos. Nisto, segundo a socióloga, na Modernidade religiosa estaria
havendo uma “crise da transmissão” intensificada, isto é, na constituição dos indivíduos
no núcleo familiar, os valores mais básicos experimentados e transmitidos no dia a dia
pelos pais aos filhos, não estão sendo tão internalizados como no modelo familiar de
outrora.
O ideal de uma transmissão de valores dos pais aos filhos nunca foi realizado de
forma total em nenhuma sociedade, onde os filhos se tornassem a imagem e semelhança
dos pais, pois, a mudança cultural é dinâmica e seu movimento constante não cessa de
agir. Deste modo, toda e qualquer reprodução cultural (ou transmissão, nos termos de
Hervieu-Léger), está implicada em crises, em transformações na forma e no conteúdo da
dos valores. Neste sentido, transformações não querem dizer mudanças drásticas ou
esvaziamento total de uma forma primária de sentidos, apenas se refere a novas
modalidades de pensamento e conduta sobre o mundo que é assimilado e ressignificado
pelos indivíduos.
Em Borá notei que a identidade católica está presente nas formações familiares a
ponto de promoverem uma organização do tempo pessoal, do tempo de dedicação
familiar e das relações sociais. Ao ser interpelada pelo questionário, uma senhora,
casada, 58 anos, pernambucana, moradora de Borá há anos, fez questão de ressaltar
alguns pontos sobre suas atividades religiosas e cotidianas:
...a missa era às sete e meia [da noite], agora mudou pras oito, então,
por causa do serviço de casa não dava tempo de ir. Mas, agora, graças
a Deus, vai dar pra ir. Já fiz meu pão pra minha filha que mora em
outra cidade e que vai vir passar o final de semana aqui. Agora só vou
terminar umas coisinhas em casa e ir na santa missa a noite... (mulher,
casada, 58 anos).
38
relacionada diretamente com a vida coletiva da cidade. O caso desta senhora demonstra
a forma como organiza seu tempo. Um tempo que se organiza a partir do espaço
doméstico e que se desdobra para o contexto mais amplo da comunidade.
Em contraposição a esta ideia de tempo, podemos apresentar o caso empírico
analisado por Renata Menezes (2004), no seu estudo sobre a devoção a Santo Antônio,
no convento franciscano do Largo da Carioca, na cidade do Rio de Janeiro, RJ. Segundo
a autora, em cidades como a do Rio de Janeiro, o tempo da devoção, por exemplo, já
deve incorporar certa racionalidade, ou como ela coloca, “estratégias de arranjo de
tempo”. De acordo com a antropóloga:
Há diversas estratégias de arranjo do tempo, ou melhor, da vida
cotidiana, para garantir a ida ao convento. Dentre os diversos arranjos
possíveis, destaca-se um que garante a manutenção de devoção das
pessoas que não podem vir ao convento às terças-feiras: ir a qualquer
outra igreja onde haja a imagem de Santo Antônio, e fazer sua oração
ou dar sua oferenda (MENEZES, 2004, p. 33).
39
símbolos e imagens religiosas católicas ocupam ainda hoje espaços públicos, como o
Cristo na entrada da cidade, ou a imagem de gesso de Santo Antônio na praça.
No entanto, a presença das igrejas evangélicas e da recente reativação da usina,
inseriram novas situações para os boraenses. Agora não há mais uma hegemonia
católica, nem mesmo é possível conhecer todos que andam pelas ruas, tudo se
transforma na pequena Borá. Estimamos que no próximo Censo Populacional, Borá não
seja mais o menor município brasileiro em termos populacionais, assim como o número
de evangélicos tende a aumentar na cidade devido aos trabalhos evangelísticos realizado
pelas igrejas. Porém, o catolicismo aparenta que irá permanecer com seu quantitativo
em vantagem, e através das investidas dos grupos carismáticos provavelmente a
circulação de imagens venham aumentar e se proliferar pela cidade, adquirindo e/ou
agregando novos sentidos em um contexto dinâmico e em constante movimento.
40
4. REVISITANDO OS ALTARES DOMÉSTICOS: OS USOS DOS
ESPAÇOS DOMÉSTICOS COMO PARTE DA EXPERIÊNCIA
RELIGIOSA.
Neste capítulo proponho analisar os usos que os religiosos fazem das imagens e
dos altares domésticos em suas residências. Inicialmente discuto com a literatura
especializada sobre as devoções aos santos e a constituição da religiosidade doméstica
no Brasil. Em seguida, utilizo os dados construídos a partir do questionário aplicado às
31 famílias que se declararam totalmente católicas, sem familiares na mesma residência
que sejam evangélicos e/ou de outras religiões. Também utilizo fotografias tiradas das
imagens e altares presentes em suas residências para contextualizar os espaços e
situações apresentadas.
Ao final dos questionários, perguntávamos22 se os entrevistados possuíam
imagens de santos em casa ou não. A maioria das famílias entrevistadas abriram suas
portas e nos receberam para fotografarmos as imagens. Alguns com muito orgulho
contavam histórias sobre as imagens, nos guiavam pelos cômodos da casa para mostrar
a tão orgulhosa imagem que havia herdado dos pais ou avós, ou então, que foram
ganhas de presente por parentes que haviam ido a romarias a Aparecida do Norte e
noutras peregrinações pelo país.
Dois casos, em especial, chamaram a atenção, um deles foi de uma senhora que
não nos permitiu entrar em sua casa para fotografar as imagens, mas pediu que a filha
fosse até o altar e fotografasse, no decorrer do capítulo discuto esta situação. Outro caso
foi o de outra senhora que também não permitiu que entrássemos na casa para fotografar
suas imagens, de início resistiu à solicitação que fizemos, mas depois buscou uma
imagem de Nossa Senhora de Aparecida e trouxe até o portão, onde estávamos no
momento da entrevista para poder fotografá-la.
Estes fatos apresentaram-se como demarcadores de espaços sociais. Isto é, não
poderíamos transpô-los imediatamente. No momento, o que estava ao alcance como
dado empírico, não era somente registro fotográfico da imagem ou as respostas da
interlocutora, mas sim a situação de campo vivenciada entre pesquisador e pesquisado.
Todavia, quem permitiria a um estranho entrar em sua casa e fotografar livremente o
22
Durante a aplicação do questionário estava na companhia da colega de curso Joyce Pires a quem
agradeço pela imprescindível companhia neste momento da pesquisa.
41
que quiser? Num esforço relativista, qual de nós daria livre acesso aos nossos quartos
para alguém que nos aborda com questões sobre religião e família?
Mariza Peirano (1990, p. 6) afirma que não há como ensinar a fazer pesquisa de
campo, por mais que haja professores e instituições bem intencionadas este é um
processo que depende da experiência pessoal do pesquisador. Esta experiência, segundo
a autora, depende, entre outras coisas, da biografia, das opções teóricas do pesquisador e
do contexto mais amplo que o cerca e, “não menos, das imprevisíveis situações que se
configuram no dia a dia, no próprio local de pesquisa entre pesquisador e pesquisados”
(idem, p. 6-7). Relato esta breve experiência embasado num obiter dictum de James
Clifford (2008, p. 21), onde a etnografia enquanto dado empírico está imersa na escrita,
dessa forma, “inclui, no mínimo, uma tradução da experiência para a forma textual”.
Foram selecionadas, portanto, dez fotografias para revisitarmos os usos que os
religiosos fazem dos altares domésticos e das imagens de santos. Nossa discussão
alternará na exposição das fotografias e suas análises.
42
4.1.UM BRASIL DE SANTOS E ALTARES
23
Pierre Sanchis (2008, p. 82) considera que o catolicismo é uma fé em forma de religião. Por isso, “sua
auto concepção como uma ‘totalidade’, ‘a católica’, o predispõe a essa estratégia, pois ele tem mais
vocação de fagocitose do que de exclusão”.
43
Principalmente o catolicismo leigo, que – nesta perspectiva – se diferencia do
catolicismo clerical, eclesiástico, que é marcadamente sacramental (principalmente
depois do processo de romanização do catolicismo brasileiro, que ocorreu a partir do
final do século XIX e que se estende aos dias de hoje (CAVA, 1985)).
Esses dois espaços de práticas religiosas – o público e o privado – não são,
contudo, dois espaços antagônicos, separados, dentro dos quais o fiel vivencia
experiências religiosas fundamentalmente distintas. Aparentemente há uma
continuidade na mentalidade religiosa entre estes espaços, a partir de suas experiências
(práticas, crenças, valores e interações), são acionados mecanismos que permitem
articular e vincular os espaços às suas crenças, tanto quanto suas crenças aos espaços
nos quais transita.
Neste catolicismo, comumente classificado como popular24, do tipo leigo, o
estilo devocional na relação com os santos, produziu um ethos religioso singular. Santos
esses que se materializam nos mais diferentes suportes (como as imagens de gesso,
madeira, barro, “santinhos”, escapulários), nas diferentes modelos e formas
iconográficas. Tanto nos espaços privado-domésticos, quanto nos públicos, podemos
presenciar essa proximidade do devoto com seus santos, com suas divindades, com sua
ideia material do sagrado.
Os santos, além de sacralizar a vida brasileira e lhe conferir estatuto
de cristandade, revelaram a formação do Brasil nos seus caminhos
reais. Ora, esta formação foi dialética, houve forças contrárias em
jogo, não existiu um movimento só, senão o conflito de dois
movimentos: um em benefício de Portugal e em detrimento dos
indígenas, africanos e seus descendentes, outro em benefício da
dignidade dos que foram oprimidos pelos portugueses colonizadores
(HOONAERT, 1983, p. 351 apud LOPES, 2010, p. 92).
24
Nos apoiamos na discussão de Renata Menezes em A dinâmica do sagrado: rituais, sociabilidade e
santidade num convento do Rio de Janeiro (2004), quando em sua introdução a autora aborda através de
uma extensa revisão da literatura especializada sobre o conceito de catolicismo popular e suas
implicações.
44
identidade e confiança, e ainda, rompendo barreiras e estimulando o
diálogo em primeira pessoa com a divindade (RUSSO, 2010, p. 397-
398).
45
Mas a igreja que age na formação brasileira, articulando-a, não é a
catedral com o seu bispo a que se vão queixar os desenganados da
justiça secular: nem a igreja isolada e só, ou de mosteiro ou abadia,
onde se vão acoitar criminosos e prover-se de pão e restos de comidas
mendigos e desamparados. É a capela de engenho (FREYRE, 1954,
p.363-364).
46
encontramos indícios desta relação próxima com as entidades divinas. Freyre (1954)
coloca que,
[...] Santos e mortos eram afinal parte da família. Nas cantigas de
acalanto portuguesas e brasileiras, as mães não hesitaram nunca em
fazer dos seus filhinhos uns irmãos mais moços de Jesus, com os
mesmos direitos aos cuidados de Maria, às vigílias de José, às
patetices de vovó de Sant’Ana. A São José encarrega-se com a maior
sem cerimonia de embalar o berço ou a rede da criança (FREYRE,
1954, p. 29).
Holanda (1995) aponta para outro elemento típico daquilo que define como
“cordialidade brasileira”, o hábito se dirigir a pessoas, a objetos e aos santos pelo
diminutivo, demonstra-se como um recurso linguístico para validar a ideia de
intimidade ou familiaridade. Assim,
A terminação “inho”, aposta às palavras, serve para nos familiarizar
mais com as pessoas ou objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar
relevo. É a maneira de fazê-los mais acessíveis aos sentidos e também
aproxima-los do coração (HOLANDA, 1995, p.148).
47
A literatura aponta para diversos motivos que fazem com que os religiosos
desenvolvam uma relação de familiaridade com os santos. Ainda que muito tenha se
transformado entre o catolicismo colonial e o catolicismo brasileiro contemporâneo, os
santos ainda estão presentes. Mesmo se não estamos mais tratando do catolicismo
devocional do período colonial e de casas coloniais, ainda se mantém forte e presente na
nossa sociedade toda uma iconografia taumatúrgica, a materializar o sagrado, a
possibilitar apropriações, mediações e negociações. Do mesmo modo, a ideia da
imagem do santo está ligada a sua produção plástica e material. Os ornamentos e
aparatos religiosos, como quadros, crucifixos, rosários, imagens de santos, oratórios,
são as bases da cultura material que ainda se faz presente no cotidiano de muitos
religiosos.
Entendendo o processo histórico pelo qual se constituiu o catolicismo brasileiro,
suas atuais configurações e também as recentes discussões sobre as identidades
religiosas que ganham cada vez mais espaço na agenda pública, partimos da ideia de
que,
Os santos podem assim contribuir à redefinição de um campo
religioso em que os agentes não sejam mais as igrejas instituídas
(nem, diga-se de passagem, os indivíduos empíricos), mas todos esses
objetos ativos que povoam nossas descrições do que entendemos por
religião, em que a atividade religiosa não seja mais um epifenômeno
ideológico da sua luta pela legitimidade, mas o conjunto de tudo
aquilo que os nativos envolvem na sua ação religiosa (SÁEZ, 2009, p.
211-212).
Os estudos dos santos, de suas imagens, das devoções, do imaginário social que
produzem e das reações de intolerância que acionam, apontam para a afirmativa de José
Rogério Lopes (2010), em que,
Se o fato fundador da religião dá à mesma seu mistério, são os santos
aqueles que traduzem tal mistério em referências que permitem os
reconhecimentos necessários para a definição da identidade e da ética
católicas. Por isso, a primeira forma mais delineada do catolicismo
ficou conhecida como “culto aos santos”, daí, também, forma-se em
torno dos santos “uma esfera englobante e sobrenatural, uma rede de
proteções, seletivas e especializadas, derramadas mediante todas as
atividades humanas, das relações sociais, das partes do corpo”
(Sanchis, 1994, p. 72) (LOPES, 2010, p. 72).
48
organizam seu tempo e seu espaço, em suas ambivalências, nas certezas e dúvidas que
comportam sua fé, em como se relacionam entre si, com os seus pares, com os de outras
religiões, com a própria instituição religiosa, em suma, com os múltiplos aspectos de
suas vidas.
49
4.2. O ALTAR NO QUARTO
Figura 1
50
íntimas da casa, um estranho não poderia adentrar, demarcando as fronteiras que
existem entre os que são da casa e aqueles que são da rua25 (DAMATTA, 1985, p. 21).
Em Borá a relação dicotômica entre o espaço da casa e da rua, conforme sugere Roberto
Damatta (1985), não são, por assim dizer, tão dicotômicas. A sociabilidade dos
habitantes está firmada nas relações familiares ou de amizades, todos se conhecem e
mantém relações próximas nos locais de trabalho, pelas ruas e em suas próprias casas,
por isso, a casa e a rua em Borá ganham outras dimensões.
É interessante pensar o quarto a partir da reflexão de Norbert Elias (2011) e de
Pierre Bourdieu (1990). Para Elias (2011, p. 157), o modo como a sociogênese
Ocidental foi configurada a partir de um processo contínuo de adaptações e adequações
dos valores, estabelecendo um modo específico de perceber e sentir o mundo. O quarto,
portanto, passou a representar um local de mínima penetração social, como se fosse o
máximo divisor de águas entre o público e o privado, concentrando nele todo um
resguardo pessoal.
O espaço demarcado pelo quarto entre o público e o privado e os tipos de
comportamentos nos outros cômodos, também influenciam nas demais relações que se
estabelece no resto da casa. Ao estudar a casa kabila, Bourdieu (1990, p. 99-102) atenta
para levar em conta que os espaços da casa de moradia não estão a todo o momento
dividindo ou somando as relações sociais, ao mesmo tempo em que interagem
dialogicamente, se opõem e se sobrepõem, de maneira que os cômodos com suas
respectivas funções sociais estão produzindo e reproduzindo nossos sentidos e
percepções. No entanto, é preciso considerar a capacidade que os agentes possuem em
transitar entre os espaços, acionando mecanismos que os tornam participantes ativos
tanto da produção quanto dos usos destes espaços.
No entanto, tratando-se de indivíduos que declaram suas pertenças religiosas
como sendo todos católicos na família (plano consciente), compreendemos que suas
condições mentais, isto é, os significados simbólicos que elaboram, produzem e
reproduzem através do mito e a crença bíblica sobre como se relacionar com Deus e
com os outros, sugere que existem aspectos de uma aprendizagem internalizada desde a
infância, que são elementos significativos da presença da tradição católica (plano
inconsciente).
25
Aqui me refiro a minha situação enquanto pesquisador como alguém de fora, do mundo da rua. Este
fato ocorreu no início do trabalho de campo, onde conhecia poucos moradores e acabava por gerar algum
desconforto ao receberem um estranho em casa.
51
E esta relação entre o espaço habitado (no caso o quarto) e a visão de mundo
religiosa, pode ser exemplificada pela possível influência gerada pela passagem bíblica
do livro de São Mateus, que diz: “Mas tu, quando orares, entra no teu aposento e,
fechando a tua porta, ora a teu Pai, que vê o que está oculto; e teu Pai, que vê o que está
oculto, te recompensará” (MATEUS, cap. 6, vs. 6).
No mesmo sentido, se levarmos a cabo as considerações de Carlo Ginzburg
(2001) sobre alguns fatos bíblicos e como funciona a reprodução cultural dos cultos e
crenças cristãs, estaríamos presenciando ainda hoje através dos cristãos, uma contínua
reconstrução mítica que elabora tendências, maneiras diferentes, por meio das quais os
religiosos se relacionam com o mundo. No caso citado pelo historiador, temos a
seguinte constatação:
[...] Como se terá notado, supus que a leitura messiânica de Isaías
7:14, mediada pela distorção (provavelmente deliberada) dos Setenta,
tenha produzido Mateus 1:22 e Lucas 1:26 seg., ou seja, os trechos
relativos à concepção virginal de Jesus. [...] A conexão entre a
referência, patente ou tácita, a Isaías 7:14 e o nascimento de Jesus em
Belém parece pressupor um testimonium que também abrange 1
Samuel 16:1 e Isaías 11:1 seg. Nesse caso, uma ou mais cadeias de
citações organizadas tematicamente teriam, não digo influenciado,
mas gerado uma narração (GINZBURG, 2001, p. 106-107).
O altar no quarto representaria então o local mais sagrado da casa – e porque não
do mundo, para o devoto –, uma vez que ali estariam aglomerados sentimentos de
26
Sobre este argumento cabe situar o papel da memória, que segundo Lopes (2010, p. 103), é de atuar
“como o filtro da consciência, selecionando os aspectos presentes numa dada realidade, sobre os quais o
sujeito pode arbitrar”.
52
proteção familiar e divina, de conforto, de tranquilidade. No entanto, essa sacralidade do
ambiente não seria rompida por determinadas formas de profanações, como por
exemplo, o sexo entre o casal? Cabe, porém, questionar também como as noções de
sagrado e de profano são ressignificados no pensamento e na ação nos religiosos.
Para questões dessa natureza, Bourdieu (1990) considera que existem maneiras
inusitadas de lidar com as regras de um jogo. Isto é, as formas que os dogmas religiosos
assumem na interpretação dos fieis não deixam de serem dogmas institucionais, mas a
maneira como o fiel viverá tal dogma, como se comportará mediante as divisões ideais
do sagrado e do profano, não pode ser previsto. Seja por ações conscientes ou
inconscientes, existe uma apreensão da realidade por parte do religioso, isto Bourdieu
chama de estratégias, um
[...] produto do senso prático como sentido do jogo, de um jogo social
particular, historicamente definido, que se adquire desde a infância,
participando das atividades sociais [...]. O bom jogador, que é de
algum modo o jogo feito homem, faz a todo instante o que deve ser
feito, o que o jogo demanda e exige. Isso supõe uma invenção
permanente, indispensável para se adaptar às situações
indefinidamente variadas, nunca perfeitamente idênticas. [...] Mas essa
liberdade de intervenção, de improvisação, que permite produzir a
infinidade de lances possibilitados pelo jogo (como no xadrez), tem os
mesmos limites do jogo (BOURDIEU, 1990, p. 81-82).
53
exclusões da vida mundana para viver uma vida consagrada e devota, mas são acionadas
combinações e negociações constantes capazes de aferir outros sentidos a determinadas
práticas.
54
4.3. AS IMAGENS COMO DEMARCADORES E CÓDIGOS SOCIAIS
Figura 2
55
Na Figura 2, são umbrais de portas de diferentes casas. Na primeira imagem um
quadro com a representação de Jesus orando; na segunda, um crucifixo de madeira
estilizado; na terceira e última, outro crucifixo de madeira simples. Nas três fotografias
o local escolhido para portar as imagens são os corredores, que levam à cozinha das
residências. Após as portas, é possível ver modelos típicos de cozinhas com cadeiras,
mesas, armários e outras coisas nos entornos que denotam este espaço.
Assumindo algumas ideias propostas por Lopes (2010, p. 24), as imagens
religiosas se não se configuram como representações icônicas, nem como
representações verbais, mas como representações codificadas. A noção de
“representação codificada”, segundo o autor, implica que,
[...] o pensamento possui uma capacidade de imaginar (e codificar as
imagens) em uma escala intersticial os códigos socialmente arbitrados
e cotidianamente intercambiados. Todavia, sinto regularmente o peso
da cultura, que condiciona minha visão de mundo, impelindo-me a
traduzir essas representações codificadas em códigos inteligíveis e
partilháveis socialmente (LOPES, 2010, p. 24).
27
Quatro igrejas e um quantitativo de 27, 07% de evangélicos, segundo o IBGE, 2010.
56
ícones que remetem a trajetória e divindade do santo, servem também para sustentar
suas pertenças religiosas e funcionam para inserir publicamente a suposta força que o
catolicismo ainda goza na cidade. As imagens de santos aparecem nesse caso, como
ferramentas simbólicas operadas pelos católicos dentro de um campo de forças contra os
evangélicos, como uma disputa travada através de referenciais simbólicos.
Portanto, sejam interpretadas como códigos ou/e demarcadores sociais
direcionados para determinados fins, este caso em específico confirma a prerrogativa de
Lopes de que, em um campo religioso plural, tanto na diversidade de imagens, de
símbolos, e também de imaginários e pertencimentos religiosos, as imagens “não se
esvaziam de sentido; ao contrário, ficam carregadas de sentidos” (2010, p. 15).
57
4.4.OS SANTOS E AS IMAGENS NO COTIDIANO
Figura 3
58
novamente. No lado direito, uma imagem de Jesus Cristo, um rádio portátil, algumas
louças e outros adereços sobre uma toalha.
A imagem de Padre Cícero Romão Batista, me fez questionar a entrevista, dona
da casa, sobre o motivo da preferência e devoção pelo santo. Disse que é pernambucana,
veio pra São Paulo há muitos anos com o marido e filhos, fixando residência em Borá.
Este dado remete ao fluxo migratório que a cidade vem experimentando nos últimos
anos. Devido às possibilidades de emprego gerado pela usina de cana de açúcar próxima
a Borá, muitos migrantes se dirigem para a região. Noutra residência também havia um
casal com as mesmas características – declarando serem migrantes cearenses, possuindo
também uma imagem de Padre Cícero –, indicando a influência da presença migrante e
as transformações na cidade.
Sobre a devoção ao Padre Cícero é importante compreender a devoção a um
santo popular partindo das atribuições daqueles que conferem tal classificação
(BRAGA, 2008, p. 388). O caso de Padre Cícero e do uso de sua imagem no ambiente
doméstico nos permite entrever as peculiaridades do catolicismo brasileiro, pois, um
santo que não é reconhecido pela Igreja Católica e que tem sua produção imagética em
grande escala e recorrente uso pelos devotos, teria por sinal indícios de ações
combinatórias que corresponde às necessidades, crenças, rituais e outros mais sentidos
que possibilitam os agentes prestarem suas devoções ao Padre, ainda que o debate sobre
sua canonização não possua um desfecho por parte da Igreja.
Da mesma forma ocorre com outros santos populares, como o caso de Padre
Libério (GOMES, 2011) e de João Relojoeiro (CORREIA, 2003) em Minas Gerais. Os
casos do venerado Pé de Veludo (VERDI, 2010) e de Santa Izildinha (SANTOS, 1997),
ambos no interior do estado de São Paulo. Fica evidente que por mais que sejam
realizadas sérias críticas por parte do clero, em vista de minar estas devoções, o culto ou
a devoção ao santo que é realizado em no espaço da casa está condicionado ao sentido
privado, onde há uma margem de liberdade de pensamento e de ação em que nem
mesmo a Igreja com suas regras eclesiais são capazes de controlar todas as práticas dos
religiosos28.
Retornando à nossa análise, as alocações das imagens na cozinha revelam
algumas estratégias de relação com o sagrado, sendo que ao abordá-la, esta senhora
28
Renata Menezes argumenta que “é a crença de um grupo nos poderes de um santo que de fato o
“canonizam”, e é essa fé compartilhada que interessa aos cientistas sociais, não a verdade biográfica de
um personagem histórico” (2009, p. 191).
59
estava limpando seu quintal, numa tarde de sábado, “terminando os serviços de casa
para a noite ir na santa missa”, como relatou. Sua fala mostra uma preocupação em
manter tudo ajeitado em casa para depois realizar suas devoções, mas, além disso,
indica uma mulher que tem diversos afazeres diários e, que provavelmente, passa boa
parte do seu dia na cozinha cumprindo estes afazeres.
Consideramos um tipo de consumo da imagem a colocação dos santos na
cozinha devido ao contato maior que o religioso poderá ter com elas. No caso
abordado, uma vez que a maior parte de seu dia a entrevistada está lidando com os
afazeres domésticos na cozinha, nossa argumentação se pauta na observação de que em
sua sala não havia imagens de santos como encontramos na casa dos outros católicos.
Este dado pode indicar que sua organização pessoal, do tempo para lidar com os
afazeres diários, na distribuição dos adereços, no próprio designer e alocação dos
móveis estão relacionados com a vida religiosa através do contato visual constante com
as imagens.
Dessa maneira as imagens realizam sua finalidade: “tornam-se visíveis”
(LOPES, 2010, p. 29). Ao mesmo tempo em que trabalha na cozinha, nossa
interlocutora pode visualizar os mediadores que a conectam ao sagrado. De alguma
maneira a ideia relacional na construção da devoção, onde o devoto se relaciona e se
identifica com as características pessoais, biográficas ou milagrosas dos santos29, e de
que seu imaginário religioso corrobora para auferir ao santo sua significância,
dependem, em determinadas situações, da visualização ou do contato com imagem
materializada do santo. Lopes (2010, p. 36) compreende que “o objeto figurativo é
geralmente permanente ao olhar”, enquanto que a palavra ou o imaginário não podem
ser tocados, é com a imagem do santo que o religioso dialoga, não com o real, mas o
diálogo é desenvolvido “tomando esse objeto em sua dinâmica experiencial e social”.
29
Como já mencionamos na interpretação de Menezes (2004, p. 236) as devoções emergem também das
características comuns que os religiosos se identificam com os santos.
60
4.5. A DISPOSIÇÃO DAS IMAGENS COMO “REPRESENTAÇÕES
COLETIVAS”
Figura 4
61
Fonte: Compõe o material etnográfico da pesquisa.
62
Em seu trabalho Lopes (2010) pondera que nos estudos da Antropologia
diversos caminhos foram tomados na discussão sobre as imagens e sobre o imaginário.
Contudo, ressalta o autor que,
Neste percurso, a noção de representações coletivas tem sido
substituída pelas de “princípio estruturantes”, “símbolos sociais” e
“mentalidades”, entre outras, mais tais mudanças conceituais não
implicaram profundas mudanças nos procedimentos de investigação
que tratam de apropriar-se das imagens através de dados figurativos
(LOPES, 2010, p. 26).
Neste sentido, nos remetemos a algumas propostas feitas por Émile Durkheim
(2008) para compreendermos o mundo social através do fenômeno religioso. Na
interpretação de Márcio de Oliveira (2012), para Durkheim, o fenômeno religioso
[...] apresenta-se como um conjunto socialmente definido de
prescrições de caráter obrigatório e também como um “sistema de
representações”. Em outras palavras, trata-se de fenômeno de alguma
forma mental, definido na ordem da sociedade (OLIVEIRA, 2012,
p.69).
63
imagens. Ou seja, não é um acaso as imagens estarem ao lado das fotografias dos
familiares, são representações coletivas que correspondem a associações entre as
concepções de parentesco e família com a ideia de sagrado.
64
4.6. AS IMAGENS DE SANTOS HERDADAS
Figura 5
65
acordo com a mãe, a imagem era de Santa Bárbara. Embora houvesse outras imagens
pela casa, todas remetiam a padrões comuns, com santos populares do catolicismo
fáceis de serem identificados como São João, Santo Antônio, Nossa Senhora de
Aparecida, dentre outros. O tamanho da imagem, sua alocação na sala e alguns detalhes
que pontuaremos aqui, nos levaram a dedicar maior atenção para sua análise.
Ao realizarmos uma breve pesquisa consultando via internet sites sobre Santa
Bárbara ou que possuíssem imagens com sua representação, encontramos algumas
incongruências. A primeira é de que a imagem da santa sempre é representada portando
um cálice e uma espada. O segundo fator são as correspondências sincréticas produzidas
pelas religiões afro-brasileiras ressignificando a imagem de Iansã na figura de Santa
Bárbara.
Como é possível ver, no primeiro caso, a imagem não porta nem o cálice nem a
espada. Não encontramos nenhuma outra santa que se assemelhasse, contudo, a
ondulação do cabelo, as vestes vermelhas, o ramo de flores sobre a cabeça e o tom de
pele branca, se aproximam da imagem de Santa Bárbara. Essa característica de difícil
classificação da santa através de sua imagem pode ser explicada pelo fato de que a
produção plástica da imagem só pode ser compreendida na contextualização histórica
pelo qual o catolicismo passou no Brasil. De acordo com Lopes (2010),
As apropriações das imagens religiosas pelos segmentos populares,
com vistas à produção do consumo, não são um fator recente na
cultura católica brasileira. Desde a colônia é possível perceber, como
afirma Hoonaert (1983, p. 293), que “também os oprimidos
exprimiram sua experiência em imagens, ou, mais sutilmente, deram
um significado próprio às imagens que os opressores trouxeram
consigo” (LOPES, 2010, p. 89).
66
No caso dos estudos sobre grupos africanos trazidos para o Brasil, é preciso
levar em conta que o catolicismo estava presente de maneira muito forte em
determinados lugares da África desde os séculos XVI, expandindo-se pelos séculos
XVII e XVIII. Como afirma a autora,
Ao terem que construir novas instituições, os grupos heterogêneos de
africanos escravizados recorreram não apenas aos saberes trazidos por
determinados indivíduos, mas também ao que havia de comum aos
sistemas cognitivos das pessoas pertencentes a grupos étnicos
diversos. Nessa dinâmica entre uma “gramática da cultura” que serviu
de base às novas formações e à ação de pessoas particulares,
portadoras de conhecimentos adquiridos em suas terras natais [...]. Por
outro lado, ao terem que se inserir numa sociedade dominada pelo
colonizador cristão, que impunha sua religião, traduziram-na para seus
próprios termos, atribuindo aos santos significados inacessíveis
àqueles que não partilham seus códigos culturais. Dessa forma, os
elementos da cultura dominante de origem europeia, ao serem
incorporados pelas comunidades afrodescendentes, receberam
sentidos por elas criados (SOUZA, 2002, p. 146).
67
Na residência onde registramos a fotografia moram uma senhora de idade
bastante avançada que depende dos cuidados da filha (dona da casa), e uma das netas
(filha da dona da casa). São, portanto, três gerações de mulheres católicas que mantém
imagens religiosas pela casa, incorporando diferentes sentidos e significados nos seus
usos. A opção por colocarem a imagem num local como sala, de onde pela rua, através
da janela é possível ver a imagem, conduz a ideia de uma concepção diferenciada de um
lugar reservado e restrito para o santo.
Outro elemento que podemos considerar como aspectos deste campo de objetos
repletos de sentidos é a imagem sobreposta à própria imagem. Vejamos a fotografia
aproximada e em tamanho maior:
A primeira fotografia permite uma visão ampla do contexto espacial no qual está
a imagem. Agora, com esta aproximação, é possível notar que há um cordão dourado,
com a imagem de uma outra santa em seu brasão, posta ao redor do pescoço da imagem.
Teríamos então uma imagem sobre outra imagem. Provavelmente, a ideia de uma
aglutinação do sagrado seja um dos aspectos mais claros da história dos altares
domésticos e da presença do panteão de santos no Brasil. De maneira geral, um altar
68
religioso nuca porta somente a imagem de um santo, ele sempre está acompanhado de
outros santos, ou por imagens de anjos, ou inscrições bíblicas, ou fitas e motivos
religiosos.
Levando em conta a qualidade hibrida do contexto e da imagem em questão,
concordamos com Souza (2002, p. 130-131) de que os códigos culturais que foram
ressignificados são compartilhados pelo grupo no qual as estruturas de formação estão
aptas para codifica-las. Portanto, sendo uma família católica, suas atribuições
valorativas, isto é, os significados que atribuem à imagem, estão ligados ao catolicismo
devocional. Ainda que interajam com a imagem ressignificada de Iansã, suas mentes
estão voltadas para Santa Bárbara. Nisto, a possibilidade que fica no estudo das imagens
religiosas utilizadas pelos católicos, é o questionamento sobre o conteúdo e a forma, até
onde as disposições estéticas da criação da imagem, em sua qualidade materializada,
atinge o conteúdo das devoções no decorrer de gerações.
69
4.7. FECHANDO APONTAMENTOS: SANTOS E ALTARES
Assim, o campo imagético que se desenvolve em torno das imagens articula uma
diversidade incalculável da maneira como os devotos sentem, simbolizam e significam
suas práticas religiosas e de como compartilham estes sentidos nos espaços onde as
imagens de santos estão presentes. Esta qualidade mediadora que Sáez (2009) confere
aos santos e que Lopes (2010) confere as imagens religiosas corresponde à ideia de um
sistema elaborado de crenças e de práticas simbólicas dentro do catolicismo,
confirmando a síntese de Carlos Steil (2001, p. 124) de que, a “experiência religiosa
hoje parece apontar para um processo de recuperação dos sentidos como linguagem
significativa”. Neste sentido, as imagens de santos nos espaços públicos ou privados
caracterizam-se por comunicar mensagens e propagar sentidos de um catolicismo
silenciosamente presente no cotidiano dos mais diversos receptores, católicos ou não.
70
5. AS NOÇÕES DE FAMÍLIA E COMUNIDADE EM UM CONTEXTO
RELIGIOSO PLURAL30
30
Uma abordagem mais ampla sobre este capítulo poderão ser conferidas em artigos aceitos para
publicação nas revistas Habitus-UFRJ e na revista Ciencias Sociales y Religion/Ciências Sociais e
Religião, ambos no prelo.
31
Utilizamos pseudônimos no lugar do nome real da entrevistada, procurando preservar sua privacidade.
32
Por diversas vezes durante as visitas que realizei a Borá, dona Lucia estava no balcão de seu
estabelecimento com uma Bíblia aberta com um rosário ao meio.
33
O trabalho de campo neste período coincidiu com a divulgação pela mídia do Mapa das Religiões do
Brasil pelo IBGE em 2012.
71
Em seguida, relatou o caso de sua irmã, que após se converter a uma igreja
evangélica parecia que haviam feito “lavagem cerebral nela”. Disse que a irmã passou a
frequentar a igreja quase todos os dias, até parou de trabalhar para realizar trabalhos da
igreja. Depois de sua conversão quando a irmã a visitava em casa sempre falava para
jogar fora as imagens de santos. Dona Lucia replicava e dizia para “deixar em paz seus
santinhos”. Certa vez, ao visitar a irmã, e como de costume esperava que fosse recebida
com um café. Mas, em suas próprias palavras,
...ela não tinha nem café em casa... Eu fui na casa dela e ela falou que
o resto de café que tinha, fez pros irmãos da igreja que tinham ido
visitar ela mais cedo.
(Dona Lucia, 42 anos)
Dona Lucia também contou que há algum tempo era vizinha de uma pastora e de
uma irmã frequentadoras de uma das igrejas evangélicas da cidade. Estas, sempre lhe
convidavam para ir ao culto, mas dona Lucia sempre alegava que não poderia deixar o
comércio sozinho. Embora, segundo ela, não tinha problemas com as vizinhas, nem
mesmo com os evangélicos, até recebia orações das vizinhas e gostava bastante,
acreditando que as orações sempre faziam bem. Mas num certo dia, apareceram as duas
no estabelecimento e disseram “hoje você vai!”. Seguraram-na pelos braços e a levaram
para a igreja. Como todos se conhecem em Borá, ela disse para um dos clientes tomar
conta do comércio enquanto estaria fora. Ao chegarem à igreja, ao iniciar o culto, dona
Lucia disse: “quando elas se ajoelharam pra orar, vi que elas se distraíram, virei às
costas e saí de lá, nunca mais voltei!”.
Ao questioná-la sobre o desfecho de ambas as situações, contou que não discutiu
com a irmã, mesmo não concordando com suas novas atitudes. Ao ver a situação
financeira da irmã, que no momento estava desempregada, comprou cestas básicas para
que pudesse se manter. No caso das vizinhas, disse que “ficaram meio estranhas, mas
depois voltaram ao normal, somos amigas até hoje, só que nunca mais me chamaram
pra ir à igreja”.
Na perspectiva de Weber (1982, p. 377), ao se converter e passar a pertencer a
uma comunidade religiosa distinta da tradição herdada ou da família, a primeira força
com que o fiel entra em conflito é com o clã ou grupo natural, noutras palavras, a
família. O núcleo familiar, portanto, seria afligido pelas distintas visões de mundo dos
membros, contudo, esta afirmativa sociológica poderia ser constata também em Borá?
Seu grau de generalização sociológica, mediante as mudanças que o campo religioso
contemporâneo apresenta, pode ser testado e comprovado no caso empírico estudado?
72
Além dos casos narrados que envolvem relações entre católicos e evangélicos,
familiares e vizinhos, outro caso que presenciamos foi o de uma família evangélica
composta por pai, mãe e dois filhos, a filha mais velha, na época da entrevista com 13
anos de idade, havia se convertido recentemente ao catolicismo, passando a frequentar
as missas e a catequese. A mãe disse que em casa a opção religiosa da filha era
respeitada, ainda que não concordassem precisavam aceitar sua escolha. No total de 15
residências compostas por quatro a cinco membros que apresentaram pluralidade
religiosa não possuíam imagens de santos, apenas uma residência onde católicos e
evangélicos dividiam o mesmo espaço de convivência possuía imagens.
Estes casos sugerem que no caso de Borá as noções de família e comunidade
interagem e desenvolvem reações distintas das clássicas reações conflituosas existentes
nas diferentes adesões religiosas na esfera familiar (cf. MACHADO, 1996). Abordagens
como os de Silvana Sobreira de Matos (2008), que pesquisou grupos católicos e
evangélicos em suas relações familiares34, propõe a compreensão do fenômeno da
pluralidade religiosa familiar sob o prisma da tolerância e intolerância religiosa, de
modo que a autora compreender que,
A tolerância é uma palavra densa e estratificada que se opõem, muitas
vezes, ao fanatismo, ao ódio, ao fundamentalismo e etimologicamente
deriva do latim tolerare, de tolere ‘tirar’ no sentido de suportar.
Assim, tolerância foi identificada com os significados de concessão,
compreensão, indulgência, moderação e conciliação, ou seja,
imediatamente vem a nossa mente que quem tolera está em princípio
numa suposição de superioridade em relação àquele que é tolerado. O
conceito radicaria então numa aceitação assimétrica de poder
(MATOS, 2008, p. 83).
34
Matos também parte da perspectiva de Max Weber, a mesma citação utilizada no início do trabalho
guia sua pesquisa.
73
embora não sobreponham os princípios religiosos, elas inserem a possibilidade de
negociação e de mediação entre os diferentes indivíduos e visões de mundo, gerando
por vezes no mesmo espaço de convivência um mosaico religioso que concorre e
compartilha simultaneamente dos mesmos códigos.
74
6. A FESTA DE SANTO ANTÕNIO DE BORÁ: ETNOGRAFIA DE UMA
FESTA RELIGIOSA
A principal tradição que atinge a esfera pública de Borá ainda hoje é a Festa de
Santo Antônio. O santo comumente conhecido como o “santo casamenteiro”, também é
o padroeiro dos amputados, dos animais, dos estéreis, dos barqueiros, dos velhos, das
grávidas, dos pescadores, dos agricultores, dos pobres, dos oprimidos, dos viajantes e
dos marinheiros. Incluem-se também sob sua guarda e proteção os cavalos e os burros.
Santo Antônio é o padroeiro oficial de Portugal, talvez isso explique a opção pela
escolha do santo, uma vez que as famílias portuguesas que iniciaram a ocupação da
localidade elegeram o santo como seu patrono.
De acordo com Marconato (1997, p. 4), após a edificação da capela, logo deram
início a comemoração anual da festa em homenagem ao santo. Embora a data oficial
instituído pela Igreja Católica para sua comemoração seja em 13 de junho, compondo o
quadro das diversas comemorações juninas, em Borá a festa é realizada entre os dias 14
e 15 de julho35, sendo alternada a partir do calendário anual. Essa diferença se deve a
uma maior facilidade na organização e participação da população citadina e das cidades
vizinhas de Borá.
Os preparativos da festa iniciam-se dias antes, por volta de 7 de junho, começam
a reunir as pessoas interessadas para dividirem os trabalhos – a maioria são pessoas
ligadas a Igreja de Santo Antônio. Mesmo antes desta data, cerca de um mês, por volta
de maio, os cartazes são enviados a gráfica – de Paraguaçu Paulista – para que sejam
impressos e haja ampla divulgação. No ano de 2012, onde realizamos a primeira
participação na festa, o cartaz trazia as seguintes informações:
35
Esta data pode ser alterada conforme o calendário anual, mas comumente é realizada na segunda
semana do mês de julho.
75
Fonte: Cartaz de divulgação da Festa em homenagem a Santo Antônio. Extraído da internet. 2012.
76
Em sua organização os principais atores são os festeiros. Em todo ano são
selecionados quatro pessoas responsáveis por direcionarem os rumos da festa, cuidarem
da organização e realizarem as narrativas do leilão das leitoas. Essa oportunidade em ser
um (a) festeiro (a) é acatada como uma honraria, sendo sempre delegado a pessoas mais
velhas, não necessariamente idosas, mas são pessoas que já experimentaram outras
festas e possuem um capital cultural para mantê-la viva conforme a tradição. Quem nos
contou esses detalhes foi dona Quitéria36, uma senhora de 64 anos, nascida e criada em
Borá, pertencente a uma das famílias tradicionais da cidade. Ela que já foi festeira por
muitos anos é uma figura importante na organização e celebração da festa, ainda que
não atue mais como festeira, devido a enorme responsabilidade, auxilia nos demais
preparativos seja na cozinha, seja nos louvores durante a missa ou na posição de
ministra da igreja.
Por volta do início do mês de maio de 2012, combinei com dona Quitéria que
estaria indo para conhecer a festa, mas também gostaria de participar da preparação
juntamente com os outros boraenses. Então, convidou-me para ir até a cidade no início
de julho, pois seria um período de intensos trabalhos para que os preparativos não se
atrasassem.
Devido a compromissos, consegui chegar a Borá apenas no dia 13 de junho, dia
que precede o inicio da festa. Ao chegar fui em direção a casa de dona Quitéria, logo me
disseram que ela estava na igreja. Dirigi-me para a igreja, quando a dois quarteirões de
distância, pude ouvir altas conversas e risadas, principalmente de vozes femininas. Ao
me aproximar dos fundos da igreja, encontrei cerca de 10 homens e 15 mulheres
trabalhando ativamente na limpeza dos francos e das leitoas, e nos últimos preparativos
do barracão. Dona Quitéria veio em minha direção e com ar de descontração me disse
que eu estava atrasado, deveria ter chego dias antes. Desculpei-me pelo atraso e
justifiquei os motivos, relevando toda a situação com grande humor e simpatia me
apresentou aos demais e conforme o combinado eu ajudaria no que fosse necessário.
Logo, me encaminharam para trabalhos juntamente com os outros homens.
Ocorre uma divisão espacial e de gênero nas tarefas. Nos fundos da Igreja, onde
há um pequeno barracão as mulheres trabalhavam na limpeza dos frangos. Uma ao lado
da outra davam a volta em torno de um grande tangue, formando uma circunferência.
Na parte de dentro do barracão os homens se encarregam da limpeza final das leitoas.
36
Optamos por utilizar um pseudônimo, a fim de não comprometer a integridade de nossa informante.
77
Em cada grupo as conversas e expressões se diferenciavam. Dentre o grupo das
mulheres, os poucos minutos que ali permaneci, notei que eram conversas espontâneas,
sem muitas preocupações, onde havia espaço para gargalhadas e afrontas amistosas
entre elas.
No grupo dos homens, onde permaneci por mais tempo, notei que as conversas
eram um pouco mais centradas em reclamações sobre a organização da festa, outras
vezes era sobre a qualidade que só a Festa de Santo Antônio de Borá possui, também
falavam de política e de futebol. Neste espaço, embora amistoso, não haviam as mesmas
conversas descontraídas e gargalhadas, porém, era possível notar entre os homens um
enorme sentimento de companheirismo.
Estas relações e divisões de trabalho e dos espaços nos remeteram a casa kabila
descrita por Pierre Bourdieu (2002) em seu trabalho de campo no norte da Argélia.
Segundo o sociólogo, há uma divisão binária estrutural entre os espaços e afazeres entre
homens e mulheres na sociedade kabila. A parte baixa e escura opõe-se à parte alta,
assim como o feminino se opõe ao masculino. Deste modo, entre os kabila,
[...] confiar à mulher o encargo da maior parte dos objetos da casa, o
transporte da água, da lenha e do defumador, por exemplo, a oposição
entre a parte alta e a parte baixa reproduz no interior do espaço da casa
aquela estabelecida entre o dentro e o fora, entre o espaço feminino, a
casa e o jardim, lugar por excelência do haram, isto é, do sagrado e do
interdito, e o espaço masculino. [...] Podemos aqui estabelecer mais
diretamente a relação que junta a fecundidade dos homens e do campo
à parte escura da casa, caso privilegiado da relação de equivalência
entre fecundidade e obscuro, o cheio (ou túrgido) e o úmido,
comprovada pelo conjunto do sistema mítico-ritual (BOURDIEU,
2002, p. 95-96).
37
Sobre a discussão destes espaços, entre categorias de gêneros e formas alternativas de ação, conferir o
trabalho de Alba Zaluar (1983).
78
desdobram-se e estendem-se através do motivo religioso, assim compadres, comadres,
amigos, parentes e chegados independente do sexo, elaboram e organizam muito mais
sob a orientação leiga do que clerical, a festa religiosa oficial da comunidade.
Assim, em Borá, quando as mulheres e os homens lidam com os preparativos
dos alimentos o que os diferenciam são noções de habilidades específicas. No caso da
limpeza dos frangos, por exemplo, são animais menores, que demandam certos
cuidados para seu preparo. Quanto às leitoas, os homens ficam encarregados do
abatimento, limpeza e preparo.
Tive a oportunidade de auxiliar um dos festeiros na limpeza interna de algumas
das leitoas. Em nossas conversas, me disse que os suínos haviam sido abatidos há
quinze dias e conservados. No momento que os auxiliei, estávamos em três pessoas,
dois homens e eu. Pediram para que eu segurasse as patas das leitoas enquanto eles
retiravam as ínguas de dentro delas. Segundo seus conhecimentos, a íngua é a parte que
deixa a carne amarga e estraga todo o resto, se não for retirada com cuidado a carne
pode ficar machucada e comprometer sua qualidade. Como disse um dos meus
instrutores, “não é em toda festa que se limpa direito, aqui a gente faz a coisa certa
sempre”.
Durante todo momento da limpeza das leitoas, por diversas vezes, os homens se
gabavam de saberem limpar a leitoa como ninguém. Isto é parte da tradição, que
aprenderam com seus pais e avós. Para uma limpeza correta da leitoa era necessária
muita habilidade, segundo o festeiro que me acompanhava. A faca, não podia ser muito
grande, tinha que ser pequena e afiada. No momento do corte, que se dava na região do
pescoço do suíno e na região que poderíamos denominar como o quadril do animal não
poderia ser realizado com muita força, a fim de não machucar o couro nem a carne,
tinham que ser precisos e atingir exatamente as ínguas.
Esta tarefa é considerada como de grande dificuldade, e não pode ser exercida
por qualquer um, porque não há uma visão nítida de onde estão às ínguas. Somente
aqueles que passaram por muitas festas e aprenderam com os pais e avós podem
cumprir esta função. O suíno é aberto ao meio após seu abate. Então, quando ocorre a
limpeza final, é preciso tatear com as pontas dos dedos por dentro do animal para
encontrar a íngua que deve ser retirada. O trabalho realizado por estes homens, todos
com mais de 40 anos de idade, era considerado por eles e pelos outros como um
trabalho que poucos saberiam realizar. Apenas um jovem estava presenciando o
trabalho. Como um deles mesmo disse “essa mulecada precisa ir aprendendo isso”.
79
Por cerca de duas horas, segurei as leitoas para que pudessem limpá-las,
enquanto conversávamos sobre vários assuntos. O que mais me chamou a atenção, de
fato, foi o trato que conferiam ao preparo das leitoas. No total foram 80 leitoas, todas
doadas por sitiantes da região. Dias antes, como já apontamos, as leitoas são abatidas e
é realizada uma primeira limpeza, após isso, são temperadas e conservadas em 10
freezers industriais. Destas 80, 10 são separadas para o leilão que ocorre na tarde de
domingo. As 70 leitoas são preparadas dias antes da festa, ficam apenas as 10 reservadas
para o leilão a serem preparadas no dia anterior da festa, isto também compõem parte do
ritual, porque, o preparo cuidadoso e o tempero fresco, conferem outro sabor,
aumentando o valor simbólico no momento do leilão.
O leilão inicia com o valor estimado de R$180,00. A pretensão é que a disputa
fique acirrada para que o leiloeiro possa ir aumentando o valor. Alguns relatam que já
viram leitoas serem arrematadas por R$500,00. Antes do leilão são vendidas fichas no
valor de R$2,00. Estas se destinam ao sorteio. Uma roleta de tamanho grande fica
exposta no centro do barracão de festas, as leitoas que não são vendidas no leilão são
sorteadas, gerando um clima de grande euforia e apreensão durante o sorteio. As 70
leitoas restantes ou são compradas por outros valores ou quando há uma grande sobra
por não adquirirem a venda, são fatiadas em pedaços para a venda por um preço mais
barato do que a peça completa. Outra parte destas 70 leitoas é separada para o consumo
gratuito das pessoas que trabalham e atuam na organização da festa. Toda a renda
adquirida com a venda das comidas e bebidas é destinada para a manutenção e reforma
da igreja.
Da parte interna do barracão da Igreja até as extremidades, são estendidas lonas
pretas para abrigarem as mesas que serão postas ao lado de fora. Por mais que o
barracão possua um tamanho adequado para comportar as festividades nele realizada, a
festa atrai a população das cidades vizinhas e também dos migrantes trabalhadores da
usina. Com tamanha presença é necessário que hajam outros espaços para que os
participantes possam almoçar com as famílias e amigos no domingo. Como tive a
oportunidade de chegar um dia antes do início da festa, pude ver os caminhões que
traziam as bebidas e encomendas, também pude observar as barracas de doces e
guloseimas sendo montadas ao lado de fora do barracão e em frente à igreja. As
fotografias a seguir ilustram o contexto descrito.
80
Fonte: Compõe o material etnográfico da pesquisa
81
momento extraordinário que se conforma na ritualização anual da celebração do santo
padroeiro, mantém aspectos contingentes de sua própria existência, a saber, a
organização, os festeiros, o período do ano, o início e o término da festividade. Porém,
os novos estilos musicais que permeiam a festa, os migrantes que buscam na festa
alguma descontração, a arrecadação financeira e a maneira como a festa passa a ser
experimentada pelas novas gerações, engendram a dinâmica de uma contínua mudança.
82
6.2.A MISSA
Perto das 09h30min, outras pessoas foram chegando, tomando seus lugares,
fazendo suas orações em silêncio. No altar da igreja figuravam cinco imagens: o
83
Sagrado Coração de Jesus, a Virgem Maria, São Benedito, Santo Antônio e Nossa
Senhora Aparecida38.
Aos poucos a pequena igreja ficou cheia. Estimo que cerca de 100 pessoas
compareceram. No momento auge da missa as duas fileiras de bancos estavam
completos, haviam pessoas em pé ao fundo da igreja, assim como nas entrada das portas
laterais e da porta principal.
38
A fotografia corrobora com a descrição, permitindo ao leitor uma maior compreensão sobre a
organização e configuração da parte interna da Igreja de Santo Antônio.
84
Logo no início da missa o padre39 enfatizou que o motivo da celebração era para
agradecer a Santo Antônio pelas bênçãos recebidas. Houveram cânticos e em seguida o
padre trouxe a mensagem intitulada “Vocação e Missão Profética do Povo de Deus”.
Suas palavras foram em direção às famílias, articulando questões sobre a
desestruturação dos lares apontando que “hoje em dia qualquer coisa é família”.
Também exortou os fiéis sobre a frequência nas missas, por diversas vezes ressaltou que
o fato da igreja estar cheia no domingo era reflexo da comemoração a Santo Antônio,
pois nos outros finais de semana a presença dos fieis eram poucas nas reuniões.
Segundo ele, “na maioria das missas comparecem poucas pessoas, e é necessário que as
famílias estejam sempre presentes”. Após a mensagem encerrou a missa dando início à
procissão.
39
O padre não é morador de Borá. Ele reside em Paraguaçu Paulista, cidade vizinha. Todo o domingo vai
até Borá para realizar a missa e os demais compromissos na cidade. No decorrer da semana quem
administra a igreja e as reuniões de catecismo, de irmãs, etc., é dona Quitéria.
85
6.3. A PROCISSÃO
A procissão parte da Igreja de Santo Antônio, os participantes fazem o cortejo
das imagens de São Benedito, de Nossa Senhora de Aparecida e de Santo Antônio
seguindo em torno da praça onde fica a igreja. As imagens de santos que figuravam no
altar são carregadas em suportes de madeira enfeirado por flores. Em torno de quatro a
cinco pessoas são incumbidas em carrega-las durante o trajeto. Na frente do grupo que
irá carregar a primeira imagem, um senhor se adianta com um grande crucifixo.
86
Fonte: Compõe o material etnográfico da pesquisa
87
A primeira imagem que sai da igreja é a de São Benedito, carregada pelos
homens. Em seguida é a imagem de Nossa Senhora de Aparecida, carregada por
mulheres. A terceira imagem a sair da igreja é a do homenageado Santo Antônio. Esta é
carregada por homens e mulheres.
Os participantes aguardam as três imagens saírem da igreja para iniciarem a
procissão com todos juntos. Forma-se um extenso corredor atrás e ao redor das imagens
onde prosseguem ao redor da praça. Durante o cortejo são entoados cânticos e rezas
com o Pai Nosso. Há grande comoção entre os participantes. Comerciantes,
trabalhadores rurais e da usina, políticos e famílias inteiras estavam presentes na
procissão. Crianças, adultos e idosos aglomeravam-se e prosseguiam pelo pequeno
trajeto em celebração aos santos homenageados.
Ainda que alguns sejam selecionados para carregar as imagens, todos buscam
manter uma proximidade com a imagem. De maneira similar, Lopes (2011) ao observar
o as tentativas dos devotos em se aproximarem para tocar a imagem de Nossa Senhora
de Nazaré, em sua tradicional festa do Círio40 no Estado do Pará, afirma que,
[...] esse caráter de proximidade da imagem com os devotos se
mantém em toda a festa, nas procissões, nas missas, nos locais em que
ela ficou exposta, evidenciando um sentido de pertencimento aberto
ao toque, ao afeto, que é característico da própria história da devoção
(Alves 1980; Rocque 1981; Amaral 1998; Maués 2009), e a
singulariza como um encontro onde o sagrado e os devotos se
objetivam [...] (LOPES, 2011, p. 158).
Neste espaço o devoto pode estabelecer uma relação com a santa e também com
sua imagem oficial – a qual confere o status de mediadora. Ainda que a imagem oficial
40
Sobre a Festa do Círio de Nazaré ver O carnaval devoto (1980) de Isidoro Alves.
88
não esteja presente na sala os religiosos constroem uma extensão simbólica que permite
o seu contato com a santa.
Para além deste tipo de objetivação, em Portugal, no concelho de Arco de
Valdevez, os devotos não se contentam em rezar junto a imagem de S. Bente do Cando,
o contato com o santo precisa ser simbolizado e comunicado socialmente pelo próprio
fiel. De acordo com José Pinto (2010),
Os devotos dedicam algum do seu tempo a rezar junto da imagem de
S. Bento do Cando. Mas, por vezes, não é suficiente o simples
contacto com ela, e a maioria dos devotos que se deslocam a S. Bento
do Cando, enquanto dá voltas em torno do recinto da capela, em
sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, consoante a promessa
realizada, reza em surdina, de pé ou de joelhos, e, por vezes, percorre
longas distâncias para pagar as suas promessas (PINTO, 2010, p. 186).
Em São Luiz do Paraitinga, São Paulo, Lopes (2010) sinaliza outro gesto
bastante comum nos momentos rituais ou de devoções. O beijo que o devoto dá na
imagem do santo ou da santa em imagem de gesso ou numa bandeira, simboliza outra
maneira do religioso caracterizar o tipo de relação que estabelece com a divindade
através da sua imagem.
Espalham-se pela praça da igreja matriz grupos de Moçambiques e
Congadas, de Folias-de-Reis e violeiros, todos em torno de bandeiras
e estandartes que ostentam imagens de São Benedito, Nossa Senhora
do Rosário, dos Reis Magos e do Divino Espírito Santo, em torno dos
quais os sujeitos da festa agora gravitam, concorrendo para beijarem
as fitas e as bandeiras dos santos padroeiros dos grupos (LOPES,
2010, p. 112).
89
em alto tom, bebidas e comidas), não são partes opostas ou que contrapõem o conjunto
do ritual, mas como na observação de Carlos Steil (1996, p. 139) sobre a peregrinação a
Bom Jesus da Lapa na Bahia, estes fenômenos devem ser vistos como “acontecimentos
de uma sociedade secular onde não se coloca um sagrado a ser violado”, pois todas as
ações estão inscritas dentro de um sistema organizado que compreendem aquilo que
poderia ser classificado como profano como componente do processo ritual.
O próprio barracão de festas ao lado da igreja, onde as bebidas alcoólicas são
vendidas, não configuram um espaço demarcado entre o sagrado e o profano, tanto para
os organizadores da festa quanto para os frequentadores. Nisto, é possível pensar que a
festa do santo é também a festa do povo, noutras palavras, o motivo religioso e as
motivações de outras esferas da vida social conformam uma mesma totalidade tanto nos
momentos ordinários como nos extraordinários, implicando nisto uma extensão social
das formas e práticas religiosas realizadas dentro de casa.
90
Fonte: Compõe o material etnográfico da pesquisa
91
Fonte: Compõe o material etnográfico da pesquisa
92
Fonte: Compõe o material etnográfico da pesquisa
93
6.4. TRANSFORMAÇÕES NA FESTA
Partindo dos dados obtidos no trabalho de campo em Borá durante o período que
antecede a festa e sua própria realização, recorremos a etnografias que tratassem da
temática a fim de traçar comparativos que nos auxiliassem a pensar as dinâmicas das
devoções e também das transformações presentes na Festa de Santo Antônio.
Ao estudar as festas e romarias portuguesas, o antropólogo Pierre Sanchis
(1983), verificou que as pequenas freguesias também passavam por transformações, e
seus conflitos estavam enraizados na ambiguidade provocada pelo contato da tradição e
da modernidade. O autor considera que o
Fenômeno vindo do fundo da tradição, sempre “decadente” face ao
“progresso” e sempre em nova e plena exuberância, carregado da
nostalgia e esperança de uns, da decepção e desprezo de outros – por
vezes os mesmos –, enformado, através dos tempos e na diversidade
das regiões, por uma permanência estrutural que confina à
uniformidade, mas, no entanto, matizado ao sabor do enraizamento
geográfico e modulado no decurso dos anos que passam, o mundo da
festa, em Portugal, está vivo (SANCHIS, 1983, p. 17).
94
de fenômenos residuais, mas podem representar na contemporaneidade, um jogo de
continuidade e mudanças entre formas, conteúdos e significados de práticas culturais.
Esta perspectiva insere a possibilidade de compreender estes fenômenos não mais como
“continuidades modificadas”, mas sim como significados diferentes sendo incorporados
a práticas já consagradas. Num movimento e numa dinâmica que estaria reconfigurando
modelos de crenças e de práticas, gerando novas experiências com o sagrado.
Levando em consideração estes apontamentos, o conteúdo e a forma da festa
também perpassam pela experiência da transformação ao longo do tempo. Como
insistimos neste trabalho, a presença crescente dos evangélicos, a reativação da usina e
sua consequente ampliação de empregos e de renda para a população e a presença dos
migrantes, forjam um quadro semelhante aos descritos por Sanchis e Zaluar.
Os mais antigos, que já participaram de várias edições da festa, ao mesmo tempo
em que se regozijavam ao celebrarem um momento de extrema importância para o
município, também demonstravam seus descontentamentos com o andar das coisas.
Ouvi um dos festeiros dizer que este seria seu último ano na atuação da festa, segundo
ele, não aguentava mais a falta de participação das pessoas na organização. Os
idealizadores da festa ainda que sintam fortemente as rupturas com o modo tradicional
de realizar a festa, e queixem de que “não é mais como era antes”, estão ativamente
participando da organização e das festividades.
Devido as relações de trabalho decorrentes do sistema de horários e safras
colocados pela usina, não é mais possível contar com grande número de pessoas para
auxiliar na organização da festa, muitos trabalham nos finais de semana ou durante as
madrugadas, isto acaba por impedir suas participações.
Os patrocínios para a realização da festa melhoraram, a Prefeitura reformou a
praça central onde a festa é realizada, também houve apoio de diversos empresários da
cidade e da região, o progresso econômico dos últimos anos é sentido na qualidade e na
promoção da festa. Consideramos este aspecto central, porque em uma de minhas
visitas, ao pegar um moto taxi de Paraguaçu até Borá, o motoqueiro falou por diversas
vezes da “grande Festa que de Borá”. Nesta conversa meu interlocutor falou da boa
comida que é servida na festa, da cerveja a um preço razoável, do ambiente agradável
onde todos os amigos da região se encontram , etc. Isto indica além de uma divulgação
ampla e respaldada por diversos comerciantes das cidades vizinhas, uma agenda
coletiva onde diversas pessoas na região esperam pela festa e a frequentam todo ano.
95
No caso dos evangélicos, por mais que não compartilhem da mesma celebração
e homenagem ao santo padroeiro, prestigiam a festa. Como não há em Borá muitas
alternativas de lazer, o momento da festa é uma ocasião de comunhão e descontração.
Ao conversar com alguns evangélicos verifiquei que não consomem nada da festa. O
máximo que fazem é irem até a praça. Não adentram o barracão da festa e ficam
conversando com amigos e colegas aos derredores.
Os migrantes que possuem distintos pertencimentos religiosos, mas em sua
maioria são católicos, se entusiasmam com a oportunidade de descontração. Arrumam-
se, usam chapéus, cintos e botinas. Permanecem a maior parte do tempo nas rodas com
os colegas de trabalho, consomem cervejas e dançam sozinhos ou acompanhados de
alguma moça ao som das músicas sertanejas tocadas pelos violeiros ou através dos alto
falantes.
Em suma, estas transformações seriam ocasionadas por fatores externos e
internos. Como fatores externos, podemos considerar como as mudanças gerais do país,
da reconfiguração religiosa que o catolicismo experimenta nos últimos anos, nas
questões econômicas e sociais mais amplas. Os fatores internos seriam a maneira como
os indivíduos reagem a estas influências externas, isto é, como internalizam as grandes
mudanças e a partir de seus contextos externalizam novas respostas para prosseguirem
com a tradição da festa.
De modo geral, consideramos que o momento ritual da festa que inicia meses
antes e tem seu clímax nos dias de sua realização, evidenciam as transformações que
presenciamos no cotidiano religioso, social e familiar de nossos interlocutores. Desta
forma, a Festa de Santo Antônio de Borá revela além um complexo sistema ritual, uma
expressão das permanências, das rupturas e das transformações experimentadas pelos
seus habitantes nos últimos anos.
96
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
41
Como atentou E. E. Evans-Pritchard (2005, p. 245), “Eu não tinha interesse por bruxaria quando fui
para o país zande, mas os Azande tinham; e assim tive de me deixar guiar por eles. Não me interessava
particularmente por vacas quando fui aos Nuer, mas os Nuer sim; e assim tive aos poucos, querendo ou
não, que me tornar um especialista em gado”.
97
transformações sociais e do campo religioso como uma totalidade, do que explorar uma
temática publicitária.
Os motivos que nos levaram a Borá e a seus habitantes foram vários. No que diz
respeito ao universo religioso podemos listar as igrejas evangélicas presentes a pouco
mais de trinta anos na cidade reconfiguram e dinamizam os pertencimentos religiosos,
do mesmo modo que altera as relações familiares ora gerando tensões, ora produzindo
negociações, sempre em torno do significado de família e de comunidade. Embora os
dados do IBGE (2010) e de nosso estudo comprovem a maioria católica na cidade, o
número de famílias com pluralidade religiosa tende a crescer. O enfoque do discurso
proselitista é o tema da família, indicando que as alterações do campo religioso podem
ser melhor sentida dentro desta instituição social. Contudo, a família não é alvo de um
proselitismo de ordem evangélica apenas, como descrevemos na missa que assistimos
em Borá, a pregação era voltada para as famílias.
Outro aspecto a ser considerado dentro desta transformação do campo religioso
são as próprias práticas religiosas que também mudam. No caso dos católicos que
possuem imagens de santos em casa, com a pluralidade religiosa presente na família
passa a alterar suas práticas devocionais. A imagem de santo que antes figurava na sala
precisa ocupar um lugar mais discreto, menos visível, buscando preservar assim a
harmonia familiar. Esta dinâmica de ressignificar espaços e práticas também estão
presentes nos católicos que não convivem diretamente com a pluralidade religiosa
dentro de suas casas. Como as relações entre vizinhos ou são de parentesco ou bastantes
próximas, e o espaço público da cidade conforma um ambiente proximidade, acabam
por experimentar este contato, alterando também suas práticas devocionais.
No que tange as transformações sociais e econômicas de Borá, podemos
considerar que a partir da construção do novo conjunto habitacional o quantitativo
populacional da cidade irá aumentar. Provavelmente no próximo Censo Populacional a
cidade não seja a “menor cidade brasileira”, embora seja difícil estimar um número
aproximado, o que podemos sugerir como um dos principais impulsos para este
crescimento seja a presença fixa dos trabalhadores migrantes. O aumento populacional
irá gerar novas mudanças no campo religioso, na configuração familiar e econômica da
cidade.
Uma série de eventualidades (SAHLINS, 1999) podem ser listadas como
motores destas transformações. Transformações estas que estão relacionadas com as
mudanças na sensibilidade e percepção dos próprios indivíduos, na maneira como
98
experimentam suas crenças e práticas religiosas, isto é, a própria constituição de suas
identidades em meio aquilo que Danièle Hervieu-Léger (2008, p. 57-58) chamou de
“crise de transmissão”.
A maneira como os boraenses experimentam as relações entre parentes e
amigos, na família e na comunidade, apontam para o tipo de cristianismo patrimonial
(HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 76), onde há uma intensificação emocional do sentimento
de pertença comunitária e também da ideia da possessão de uma herança cultural que
estabelece uma separação radical entre o grupo dos “herdeiros” e “os outros”. Isto é,
ainda que a experiência religiosa se individualize e intensifique seu processo de
subjetivação, noções que estão relacionadas à experiência religiosa coletiva resgatada
pelos rituais e pela narrativa histórica, parecem estar produzindo novas formas de
sociabilidade em determinados contextos orientados pelo cristianismo, ao menos isto
está presente no caso empírico estudado.
Desta forma, as noções de família e de comunidade estão intimamente
relacionadas com a experiência religiosa de nossos interlocutores. Seja nos espaços
privados ou públicos, as manifestações de suas identidades religiosas estão inseridas na
lógica das próprias relações na cidade. O envolvimento emocional que a experiência
religiosa na modernidade possibilita, ganha força nas redes de relações de parentesco e
nas identidades sociais desenvolvidas pela localidade, pelas alianças e por uma infinita
soma de valores que propiciam negociações comumente não notadas.
Esses valores, entendidos como capazes de orientar ações, quando estão em jogo
em meio às transformações mais gerais no município, interagem com os eventos
históricos que reestruturam categorias de pensamento, isto é, em Borá, o contexto de
pluralismo religioso experimentado através das relações de parentesco e comunitárias
aponta para o movimento da própria cultura, não apenas para o campo da família ou da
religião, de uma forma ampla, este estudo possibilitou compreender um envolto de
relações sociais e visões de mundo imbricado no cotidiano.
99
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
_______. Dez anos do 'chute na santa': a intolerância com a diferença. In: SILVA,
Vagner G. da. (org.). Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo
religioso afro-brasileiro. São Paulo: Edusp, 2007.
______. A poética do espaço. In: Bachelard. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
(Coleção Os Pensadores).
BARBOSA, Lívia. O Jeitinho Brasileiro: a arte de ser mais igual do que os outros. Rio
de Janeiro, Campus, 1992.
BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: A economia das trocas
simbólicas. 5ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.
______. Das regras às estratégias. In: Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense, 1990.
100
mar/maio, 2009. Disponível em: www.revistausp.sibi.usp.br/pdf/revusp/n81/15.pdf.
Acesso em: 2 out. 2011.
______. A realidade das religiões no Brasil no Censo do IBGE – 2000. In: TEIXEIRA,
F.; MENEZES, R. (orgs). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis:
Vozes, 2006.
CAVA, Ralph Della. Milagre em Joaseiro. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil.
Rio de Janeiro: Guanabara, 1985.
101
FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil. Tese de doutorado apresentado ao
Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas de
Campinas, Unicamp, 1993.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. vol 1. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio Editora, 1954.
GINZBURG, Carlo. Ecce: sobre as raízes da imagem de culto cristã. In: Olhos de
madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
GOMES, Lilian Alves. Entre famílias, lugares e objetos: uma etnografia da santidade de
Padre Libério. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Programa de Pós-Graduação
em Antropologia, Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro –
PPGAS/Museu Nacional, 2011
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 Ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
LATOUR, Bruno. O que é iconoclash? Ou, há um mundo além das guerras de imagem?
Horiz. Antropol. [Online]. Vol. 14, n. 29, 2008. p. 111-149. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010471832008000100006 .
Acessado em: 15 jan. 2012.
______. Devoções, ciberespaço e imaginário religioso; uma análise dos altares virtuais.
Civitas (Porto Alegre), v. 9, p. 224-242, 2009.
102
______. Imagens e devoções no catolicismo brasileiro: fundamentos metodológicos e
perspectivas de investigação. Rever, n. 3, p. 1-29, 2003. Disponível em:
<http://www.iesb.br/sipec/revista>. Acesso em: 18 dez. 2011.
MARX, Karl. A mercadoria. In: O capital: crítica da economia política. 27ª Ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
103
MATOS, Silvana Sobreira. Tolerância e intolerância entre carismáticos e evangélicos
em Campina Grande – PB. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Programa de
Pós-Graduação em Antropologia, Recife, Universidade Federal de Pernambuco –
PPGA/UFPE, 2008.
MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA,
Laura de Melo e (org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada
na América portuguesa. vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
OSORIO, Luiz Carlos. Família hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
PIERUCCI, Antônio Flávio. Religião como solvente: uma aula. Novos Estudos -
CEBRAP, Jul 2006, no.75, p.111-127.
PINTO, José; VIEIRA, Sandra S. Bento do Cando: uma festa serrana do concelho de
Arcos de Valdevez. Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 50, 179-192.
PRANDI, Reginaldo. Religião paga, conversão e serviço. In: PIERUCCI, F.; PRANDI,
R. (orgs.). A realidade das religiões no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2001.
104
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Bairros rurais paulistas. São Paulo: Livraria duas
Cidades, 1973.
SÁEZ, Oscar Calavia. O que os santos podem fazer pela antropologia? Religião e
Sociedade, Rio de Janeiro, pp. 29 (2): pp. 198-219, 2009.
SAHLINS, Marshall. 1999. Ilhas de História. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor.
______. O campo religioso será ainda hoje o campo das religiões? Revista do Instituto
Humanitas Unisinos, dez. 2010. Disponível
em:<http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&i
d=673&secao=208.>. Acessado em: 06/03/2011.
SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana, Rio de Janeiro,
v. 11, n. 2, Oct. 2005 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0104-93132005000200010&lng=en&nrm=iso>. Acessado em:
04. Oct. 2011.
105
SOUZA, Marina de Mello e. Catolicismo negro no Brasil: santos eminskisi. Uma
reflexão sobre miscigenação cultural. Afro-Ásia (Red de Revistas Cientificas de
América Latina y el Caribe, España y Portugal), Bahía, Brasil, n. 028, pp. 125-146.
2002. Disponível em: <
http://redalyc.uaemex.mx/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=77002805>. Acessado em:
18/03/2013.
ZALUAR, Alba. Os homens de Deus: um estudo dos santos e das festas no catolicismo
popular. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
9. FONTES
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Censo Populacional 2010. Disponível
em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1 . Acessado em: 25 jan. 2011.
106
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Censo Religiões – Mapa das Religiões
no Brasil 2010, 2012 (divulgação). Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/cidadesat/index.php. Acessado em: 02/07/2013.
10. ANEXOS
A cidade
107
Entrada principal de Borá. Imagem de Jesus Cristo e nome da cidade (2011)
108
Estabelecimentos comerciais e públicos (2011)
109
Residências (2011)
Residências (2011)
110
Praça de Santo Antônio (2011)
111
Igreja de Santo Antônio (2011)
112
Imagem de Santo Antônio após a reforma da praça (2013)
113
Conjunto habitacional de 101 casas (2013)
114
Conjunto habitacional em construção (2013)
115
O campo religioso em Borá
42
Esta figura foi elaborada a partir da localização das igrejas na cidade. Em vermelho, no centro, está a
Igreja de Santo Antônio, única igreja católica da cidade. Em amarelo estão as igrejas evangélicas, situadas
em diferentes regiões de Borá.
116
Igreja Assembleia de Deus – Ministério do Ferreira (2012)
117
Igreja Assembleia de Deus – Ministério de Belém (2012)
118
Ruas de Borá ao entardecer (2013)
119
Altares e imagens de santos43
43
As fotografias exibidas em anexo compõem o material etnográfico da pesquisa. Estas fotografias não
foram objeto de análise na pesquisa, contudo, serviram como bases comparativas para as reflexões
apresentadas na sessão Revisitando os altares domésticos: os usos dos espaços domésticos como parte da
experiência religiosa.
120
Parede com três quadros com imagens. Da esquerda para a direita estão Anjos, São Pedro e
Santa Luzia.
Cômoda com a imagem de Santo Antônio e Nossa Senhora de Aparecida ao lado de fotografias
de familiares.
121
Festa de Santo Antônio de Borá
122
Sábado, 14 de julho, 2012, praça e Igreja de Santo Antônio ao anoitecer.
123
Sábado, 14 de julho, 2012, praça e Igreja de Santo Antônio ao anoitecer.
124
Missa em homenagem a Santo Antônio, domingo, 15 de julho pela manhã (2012).
125
Missa em homenagem a Santo Antônio, domingo, 15 de julho pela manhã (2012).
Início da procissão. Saída pela porta principal da Igreja de Santo Antônio (2012).
126
Início da procissão. Saída pela porta principal da Igreja de Santo Antônio (2012).
Imagem de São Benedito cortejada por um grupo de homens a frente da procissão (2012).
127
Imagem de Nossa Senhora de Aparecida cortejada por um grupo de mulheres precedendo a
imagem de Santo Antônio, ao fundo da fotografia (2012).
128
Procissão, saída pela praça (2012).
Procissão (2012).
129
Percurso da procissão ao redor da praça (2012).
130
Percurso da procissão ao redor da praça (2012).
131
Encerramento da procissão (2012).
132
Retorno a Igreja, encerramento da procissão (2012).
133
Criança brincando ao redor da praça durante as celebrações do domingo a tarde (2012).
134