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APONTAMENTOS SOBRE O "SUJEITO DA AÇÃO POLÍTICA" EM HENRI LEFEBVRE

Prof. Odair da Cruz Paiva.

Ensaio produzido para encontro sobre


percepções do sujeito da ação política em
diferentes vertentes do marxismo no século
XX, organizado por discentes do curso de
Ciências Sociais - da FFC - Campus de
Marília - UNESP e realizado em 24 de abril
de 2007.

A dificuldade consiste em que é preciso mostrar que os fragmentos


não se dispersam e não se isolam, mas convergem num projeto de
transformação do mundo. Esse projeto se liga a um trabalho sobre
o pensamento de Marx, trabalho que de outro lado busca
prolongá-lo e desenvolvê-lo em função do que há de novo depois
de um século de mundo moderno. Carta de Henri Lefebvre a José
de Souza Martins (28/11/1977). 1

Henri Lefebvre, filósofo e sociólogo francês, foi um dos muitos pensadores que
durante o século XX mantiveram-se alinhados ao pensamento marxiano. Produtor de uma
extensa obra 2 iniciada em 1925, Lefebvre passou grande parte de seus 90 anos de vida
refletindo sobre e defendendo a necessidade de retomada e atualização do pensamento
marxiano para os desafios do fazer revolucionário no século XX.

Nascido em 1901 em Hagetmau, graduou-se em 1920 em Filosofia na


Universidade de Paris. Nos anos 20, aproximou-se das idéias que estavam no em torno
da Revolução Russa e em 1928, ingressou no Partido Comunista Francês. Durante a
década de 1930 e como tradutor de Marx, seguiu um caminho particular que o distanciaria
cada vez mais do marxismo oficial do período.

1
In: MARTINS, José de Souza (Org.) Henri Lefebvre e o Retorno à Dialética. São Paulo: Hucitec,
1996.
2
Lefebvre produziu no total 42 trabalhos sendo vários deles em co-autoria.

1
Os humores stalinistas dentro e fora do PCF - no período pré e pós II Guerra
Mundial - fizeram com que fosse expulso do Partido em 1958. 3
Entre 1941 e 1944
participou da resistência francesa e a partir dos anos 1960, já como professor de Filosofia
em Nanterre, travou vários embates com o pensamento estruturalista produzido na
França.

Lefebvre retornou ao PCF em 1978 considerando que naquele momento, o Partido


voltava a ser um espaço de maior liberdade de pensamento. Reflexões sobre a cidade, a
vida cotidiana e a modernidade constituíram os eixos principais de seu trabalho. Escreveu
obras em francês, inglês e alemão. Morreu em 28 de junho de 1991 em Navarrenx, nos
Pirineus e sua produção, ainda hoje, tem mais notoriedade fora da França. Apropriadas
pela Sociologia, História, Geografia e Urbanismo, as obras de Lefebvre são um convite
instigante para as ciências humanas atualmente, particularmente por sua ortodoxia
heterodoxa com relação ao pensamento marxiano.

Para iniciar podemos afirmar, em linhas muito amplas, que a sociedade burguesa
durante o século XX desenvolveu processos sociais, econômicos, políticos, culturais e
ideológicos que se puseram com força à serviço da permanência e consolidação do
capitalismo. Evidentemente, houve importantes revoluções socialistas neste grande
século, mas também a produção de forças poderosas de controle social que promoveram
uma aceleração do tempo histórico nunca presenciada por outra sociedade. Esta
aceleração fez com que, um distanciamento irresistível entre o século XX e o século XIX
se pusesse em curso, tornando mais complexo o exercício de atualização das categorias
do pensamento marxiano para o tempo presente.

Lefebvre, como Gramsci, Luckács, Althusser e tantos outros, faz parte de um


grupo de intelectuais e militantes que puseram mãos-à-obra ao esforço de atualização do
pensamento de Marx por considerarem que, por mais que as transformações ocorridas no
século XX pudessem colocá-lo como um século não paradigmático, as questões e
condições fundamentais para a crítica à sociedade burguesa e fundamentalmente para a
3
Neste mesmo ano publicou Problemas Atuais do Marxismo. A quarta edição foi produzida pela
P.U.F e data de 1970. A tradução para o português é de 1977, editado pela Editora Ulmeiro,
Lisboa. No prólogo à 1ª edição desta obra, Lefebvre apontou que boa parte de seu teor residia na
crítica ao stalinismo: Acrescentamos todavia, para evitar na medida do possível os mal entendidos,
que as críticas aqui trazidas das teses do marxismo "oficial" representam o que Lenine chamava de
critica de esquerda. E nunca uma "crítica de direita" como alguns acreditarão ou fingirão acreditar...
p.p.7

2
revolução, continuam presentes e, neste sentido, o resgate e atualização da crítica
marxiana à sociedade burguesa permanecem válidas.

Para os limites desse nosso encontro, a proposta foi uma leitura na diagonal de
algumas das obras de Lefebvre a cerca do sujeito da ação política. Dessa forma, ao
elegermos uma leitura particular de sua produção e, portanto, ao escolhermos uma
presença muitos outros elementos de sua obra estarão sendo deixados no campo das
ausências. Fazer escolhas nunca é um processo fácil, mas ousar é preciso.

Em 1975, Lefebvre publicou Hegel, Marx y Nietzsche.4 Nesta obra, encontramos a


seguinte idéia:

Se é certo que o pensamento hegeliano se concentra em uma


palavra, em um conceito: o Estado; se é certo que o pensamento
marxista insiste no social e na sociedade, e se é certo, por último
que Nietzsche tem meditado sobre a civilização e os valores, o
paradoxo permite vislumbrar um sentido que há que se descobrir:
uma determinação tríplice do mundo moderno, que implica
conflitos múltiplos e quiçá inacabados no seio da “realidade”
denominada humana.5

Lefebvre apontava, neste trabalho, um dos desafios para a compreensão sobre os


descaminhos da revolução no século XX. Sua tese é a de que o século XIX terminou
inconcluso, ao menos do ponto de vista do diálogo filosófico. Se houve um diálogo Marx-
Hegel e, assim, uma apropriação crítica do pensamento marxiano de uma maiores forças
da filosofia naquele século, o diálogo Marx-Nietzsche não se realizou. O pensamento
crítico sobre o Estado, sobre a economia e sobre a ideologia, presentes no pensamento
marxiano não teve condições de absorver aquilo que Nietzsche desenvolveu de maneira
bastante pertinente: as questões da cultura, do desejo, do corpo.

Em A Sociologia de Marx, escrito em 1968, Lefebvre apontava para as


dificuldades da prática revolucionária que não levava em consideração as questões
postas por Nietzsche, para ele:
4
LEFEBVRE, Henri. Hegel, Marx y Nietzsche (o el reino de las sombras) Madri: Siglo XXI, 1986.
5
LEFEBVRE, Henri. Hegel, Marx y Nietzsche... Op. Cit. pg. 04.

3
"(...) descobrimos o duplo fundamento de toda práxis: o sensível,
de um lado, e, do outro, a atividade criadora, estimulada pela
necessidade que ela transforma. Esse fenômeno total
(necessidade, trabalho, gozo sensível do objeto sensível) se
encontra em todos os níveis. (...). A história inteira pode
caracterizar-se pelo crescimento e desenvolvimento das
necessidades (através dos artifícios . das perversões, das
alienações). O comunismo apenas explicita a necessidade
humana, levando-a a seu termo e libertando-a de suas
alienações".6

Assim, a ação humana se dá, também por outros códigos, interesses e


subjetividades. O pensamento sobre a revolução com e a partir de Marx não teve
condições de agregar um sentido fundamental da ação revolucionária presente em seu
próprio tempo na medida em que, no plano do conhecimento sobre essa ação, outras
dimensões do humano não foram consideradas.

Durante o século XX, a complexificação da sociedade burguesa, tanto do ponto de


vista das relações econômicas, quanto com relação às questões da cultura, do espaço, do
consumo das mercadorias ou dos meios de comunicação, fizeram com que as relações
das classes com a superestrutura (Estado) e com a base material (economia) ganhassem
contornos particulares cuja realização do projeto revolucionário, segundo a proposição
marxiana no século XIX fosse inviabilizada.

Em outros termos, o embate fundamental para a revolução, tal qual proposto por
Marx, ou seja: a luta do proletariado contra a burguesia, ao não realizar-se em seu tempo,
liberou forças de renovação do capitalismo e da sociedade burguesa cujos
desdobramentos influenciaram as atitudes políticas e ideológicas dos setores que, em
tese, deveriam agir de forma transformadora. De certa forma, isto já estava apontado no
final do século XIX quando do surgimento do nacionalismo, como ideologia encampada
pela direita 7 e cujas derivações, dentre tantas outras, estiveram no apoio do PSD alemão
ao esforço de guerra do Reich no contexto da I Guerra Mundial.
6
LEFEBVRE, Henri - Sociologia de Marx - trad. Carlos Roberto Alves Dias, RJ, Forense
Universitária, 1979, 2a. ed. p.p.32/33

4
Para Lefebvre, processos sociais, culturais, econômicos e políticos ocorridos no
século XX fizeram com que a classe operária perdesse a primazia sobre os rumos da
revolução. O ideal de revolução proposto por Marx, ao não se realizar em seu tempo,
precisava ser repensado. Ideologias poderosas como o nacionalismo, a universalização
da instrução das classes trabalhadoras em escolas públicas (do Estado), o alargamento
da participação democrática, dentre outros fatores, criavam condições objetivas e
subjetivas para que a ação política das massas fosse reorientada num sentido inclusivo
ao mundo burguês e não na perspectiva de sua radical destruição.

A não realização da revolução centrica do e no século XIX e a apropriação - ao


menos em grande parte - da ação política da classe trabalhadora pelos poderes da
conservação produziram no século XX fenômenos como o nazi-fascismo. O surgimento
de formas de ação política como a das massas a partir do pós I Guerra Mundial já era,
segundo Lefebvre, uma expressão infeliz, mas importante, da existência de novas formas
de ação de sujeitos sociais, cuja presença na cena do século XIX não havia sido sentida
com tanta intensidade. Ouso dizer que a presença e ação das massas esteve no
horizonte das preocupações de Lênin e Rosa Luxemburgo como uma chave ainda a ser
decodificada.

Do ponto de vista teórico, o século XX produziu o fracionamento do centro único


das contradições sociais, qual seja: o proletariado, o mundo da fábrica e o urbano. O
proletariado perdeu a universalidade da proposta da revolução. Ainda na primeira metade
do século XX, a Revolução Bolchevique, por exemplo, apontava a necessidade em se

7
Lefebvre também fez a crítica à apropriação do nacionalismo pela "esquerda oficial". Em La
Conscience Mystifiée, encontramos: As dificuldades e os obstáculos diante do pensamento teórico
eram desde então imensos. A reflexão teórica desaparecia, recoberta já por uma ideologia
apresentada como ciência. No ano de 1934, a II Internacional havia mudado bruscamente sua
tática. Da palavra de ordem “classe contra classe” passava-se à “defesa da democracia” e mesmo
à “união das forças democráticas”. Do internacionalismo voltou-se ao patriotismo e da ditadura do
proletariado ao espírito democrático. Esta virada política supunha uma análise e uma avaliação do
fascismo que se negligenciava e que não aparecia em parte alguma. Os comunistas continuavam a
se dizer antimilitaristas e a agir em conseqüência disto; quando em 1935 Stalin declarou
bruscamente ao ministro francês Laval, que a França devia assegurar sua defesa militar contra o
hitlerismo, será um estupor, o pânico; depois a mudança operar-se-á sem deixar maiores vestígios
que uma doença; o hábito da passividade chegou sem qualquer cerimônia, a qual desapareceria
rapidamente diante da “disciplina”, “do espírito de partido” e da ausência de pensamento político.
La Conscience Mystifiée. Paris: Le Sycomore, 1979, p.p.01

5
considerar a ação política do campesinato russo como agente importante no processo
revolucionário dado incorporado por importantes teóricos como Gramsci.

A inviabilidade transformadora a partir do centro único revelava, por outro lado,


toda uma policentralidade que devia ser considerada na ação política e na prática
revolucionária. Se ao proletariado não poderia mais recair a responsabilidade sobre a
consecução da revolução, na medida da pluralidade de agentes, igualmente, os espaços
da contradição eram múltiplos e variados. Ao mundo da fábrica, somavam-se as periferias
das cidades e seus centros, o mundo rural e estudantil, o cotidiano e a cultura, as
diferenças entre os sexos e os diferentes vividos históricos, as diferentes culturas e os
diferentes espaços e territórios.

O século XX propôs um novo desafio à filosofia e à consciência que se propõe


transformadora, qual seja: superar-se. Para tal, era necessário considerar os vários
possíveis e níveis que percorrem a consciência humana, na busca da pluralidade de
elementos que movem as ações dos homens. Em La Conscience Mystifiée, publicada em
1936, Lefebvre afirmava que:

(...) A filosofia não é toda a consciência, ela não é mais do que


uma abstração. Abaixo e além dela se estende uma consciência
mais imediata que é sua fonte secreta. Teorias, soluções práticas
e políticas, sonhos individuais, sentimentos, verdades particulares
e subjetivas dos homens, suas características - tudo isto entrou
parcialmente no sistema filosófico. É esta consciência que agora
deve-se analisar em sua expressão cultural, literatura, crítica,
atitudes quotidianas e práticas” Nos podemos distinguir nisto dois
elementos fundamentais: a consciência do fórum, ou seja, a
consciência social, as “representações coletivas”; e a consciência
individual, a consciência privada. 8

No século XX, o agente da revolução se mostrou múltiplo e diverso, habita


espaços físicos variados, transita sobre espaços mentais (da consciência) plurais. Em
1971, após os eventos do Maio de 1968 em Paris, Lefebvre escreve o Manifesto

8
LEFEBVRE, Henri. La Conscience Mystifiée op.cit. p.p.41

6
9
Diferencialista. , nesta obra, procurou explicitar melhor sua compreensão do que
denominou como policentralidade. Tratava-se de mais um esforço em apreender, no
plano filosófico, a complexidade da nova forma pela qual a revolução no século XX
potencialmente apresentava ou ao menos, propunha. Se Marx vislumbrou, no fracasso
dos eventos de 1848, a necessidade da produção do Manifesto do Partido Comunista, no
qual, como todos sabemos, buscou orientar as forças revolucionárias difusas e dispersas
no em torno de um programa cujo chamamento igualmente todos conhecemos:
Proletários do Mundo Uni-vos. Lefebvre, vislumbrou nos eventos de 1968 um momento
de crise revolucionária.

Tão efêmero quanto 1848, 1968 foi igualmente um rastilho de pólvora. As


semelhanças entre ambos os eventos são instigantes: amplitude geográfica,
multiplicidade de demandas, compreensões variadas sobre a idéia de revolução.
Igualmente a 1848, os eventos de 68 congregaram agentes sociais múltiplos e diversos.
Estudantes, trabalhadores fabris, donas de casa, negros, homossexuais, intelectuais,
militares.... Entretanto, diferentemente de 1848 quando Marx vislumbrou na centralidade
do movimento social de trabalhadores urbanos a potencialidade da derrocada do poder da
burguesia, Lefebvre, tendo vivido o fracasso dessa propositura, recolocou a positividade
da pluralidade.

Na sua apreensão sobre 1968, bem como na da maioria daqueles que viveram
esse evento ou escreveram sobre ele, 1968 deixou como legado a mensagem de que não
era possível mais falar em revolução sem que fossem abordados temas variados. Não há
revolução real que despreze a discriminação racial, que não considere os problemas
específicos na sociedade atual, que não encare a repressão sexual. Revolução para
valer, tem que alterar o cotidiano e atingir todas as dimensões da vida.

Ao pensamento tradicional sobre as revoluções, acrescentava-se a necessidade


das liberdades individuais, que o totalitarismo dos partidos únicos não havia resolvido e
que a sociedade capitalista e democrática igualmente não havia incorporado. 1968
colocou uma questão central para a compreensão da modernidade. A policentralidade, a
ação dos resíduos, a crítica à vida cotidiana. 1968 surgiu como possibilidade de
reorganizar a agenda da revolução.

9
LEFEBVRE, Henri. El Manifesto Diferencialista. Madrid: Siglo XXI, 1972

7
Desde seu projeto inicial que propunha a formulação de uma marxismo humanista,
até os eventos de Maio de 1968, Lefebvre construiu uma reflexão cuja centralidade foi a
decodificação do novo que constituía a modernidade capitalista no século XX. Nesta
trajetória e no que se refere ao tema desse nosso encontro de hoje, as contradições entre
o capital e o trabalho, a alienação e a utopia da revolução mantiveram-se presentes. O
desafio consistia em uma atualização/revisão das categorias marxianas que fizeram a
crítica radical a esses temas.

Neste esforço, Lefebvre propôs três noções 10


explicativas da modernidade no
tocante aos desafios propostos para a revolução. O centro móvel, a teoria dos resíduos e
a utopia experimental. O centro móvel, na verdade, deriva da noção de policentralidade.
E se refere, em nossa discussão de hoje, ao que foi exposto anteriormente, ou seja: a
revolução no século XX perdeu sua fixidez e centralidade em uma única classe. As
contradições e forças radicais de crítica à sociedade burguesa emergem de vários
espaços sociais e são portadoras de representações igualmente policêntricas do devir
revolucionário.

A teoria dos resíduos,11 por sua vez, buscava compreender, dentre as múltiplas
insurgências, quais poderiam portar uma crítica radical à realidade. Obviamente, Lefebvre
não era ingênuo a ponto de acreditar que quaisquer críticas ou ações oriundas das
classes populares portassem, apenas por sua gênese social, uma crítica radical.
Particularmente após o término da II Guerra Mundial, vários movimentos sociais tanto na
Europa quanto nos Estados Unidos emergiram à cena social e política numa perspectiva
inclusiva ao Estado, à democracia e ao modelo econômico hegemônico. Nesse contexto,
o Estado de Bem Estar Social teve condições de incluir dentro do status quo burguês e

10
Lefebvre preferia utilizar o termo noção ao invés de conceito. Para ele, o conceito foi
tradicionalmente apropriado como totalidade fechada o que levou muitos a compreenderem que
ele deveria ser aplicado na realidade. Lefebvre, como muitos no século XX, refutaram a idéia de
que nas ciências humanas o conhecimento possa ser aplicado; defendia a idéia na qual o
conhecimento serve como base para analisarmos o real. O conhecimento pode ser operativo na
análise dos fenômenos sociais e aplicado; neste sentido, a noção representa uma totalidade aberta
e enquanto tal, fluída, diversa e mutável, ou seja: histórica e não aplicável.
11
A noção de resíduo foi trabalhada por Lefebvre em várias de suas obras, dentre elas: El
Manifesto...Op. Cit.; Hegel, Marx y Nietzshe...Op. Cit. e O Direito à Cidade. São Paulo: Moraes,
1991 (escrito originalmente em 1968); La Révolution Urbaine. Paris: Gallimard, 1970 e La Présence
et L´absence. Paris: Casterman, 1980.

8
capitalista muitas demandas sociais, criando uma orientação ao movimento social que
poderíamos chamar em grossas linhas de includente.

Para Lefebvre, os resíduos são os irredutíveis. O resíduo se realiza quando sua


presença é impossível de ser eliminada ou, se preferirmos, de ser apropriada pela lógica
do capital. O resíduo pode estar no homem de rua que se recusa a um vivido mais
confortável dentro de quatro paredes; o resíduo pode se expressar na forma efêmera da
rebelião dos estudantes parisienses em Maio de 1968; o resíduo pode estar na negação
de uma estética formalizada da arte. Trata-se de uma proposição filosófica complexa, na
medida em que Lefebvre atribui ao resíduo e à sua presença a potencialidade da crítica
radical à sociedade.

José de Souza Martins, no último parágrafo de um capítulo intitulado As


Temporalidades da História na Dialética de Lefebvre, escreve:

Nos resíduos e no virtual estão as necessidades radicais,


necessidades que não podem ser resolvidas sem mudar a
sociedade, necessidades insuportáveis, que agem em favor das
transformações sociais, que anunciam as possibilidades contidas
nas utopias, no tempo que ainda não é, mas pode ser. Para isso é
preciso juntar os fragmentos, dar sentido ao residual, descobrir o
que ele contém como possibilidade não realizada. Nesse sentido é
que ele encerra um projeto de uma ação, de uma estratégia: a
reunião dos resíduos, sua coalizão para criar poieticamente, na
práxis, um universo mais real e mais verdadeiro ( mais universal)
do que os mundos dos poderes especializados. 12

Dos resíduos, podem derivar ações residuais individuais ou coletivas. Eles não
são, em tese uma força revolucionária nos moldes a que estamos acostumados. Os
resíduos necessariamente não se agrupam em partidos ou sindicatos; não seguem
obrigatoriamente uma carta programa; por sua natureza, não possuem um projeto único
de revolução. Resíduos ou ações residuais apropriadas pela lógica do sistema não são

12
MARTINS, José de Souza (Org.) Henri Lefebvre... Op. Cit. p.p.23

9
resíduos, são simulacros deles. A insatisfação pessoal realizada no mundo do Shopping
Center não é um resíduo, é um simulacro.13

A modernidade no século XX tornou, na perspectiva de Lefebvre, mais complexa a


proposição da revolução. Do centro único ao centro móvel; da classe aos resíduos e à
ação residual; do programa do Partido à multiplicidade de subjetividades, desejos e
subversões radicais. Não quero propor aqui que Lefebvre nega a ação das classes ou a
existência da luta de classes nos moldes como a conhecemos. A luta de classes, o papel
do Partido, a Carta Programa devem ser incluídos no conjunto de outras forças e assim,
devemos reconsiderar seu papel na modernidade.

Neste contexto, sua noção de utopia experimental emerge na perspectiva de dar


um sentido mais atual ao novo revolucionário. Nas utopias do século XIX, a sociedade
comunista ou a sociedade sem Estado, para os anarquistas eram fruto de proposições
igualmente centricas nas quais a classe, como vimos, era portadora da universalidade do
projeto que agregaria todos os outros setores sociais.

Na medida de sua não realização, Lefebvre apontou para a necessidade de uma


revisão do projeto utópico revolucionário. Uma questão se pôs! O mundo novo, oriundo da
policentralidade e das ações residuais pode ser pensado, programado ou idealizado por
um único indivíduo?; por um único coletivo? Não! É a resposta mais óbvia! Se assim o é,
a revolução se realiza no fazer-se experimental das formas radicais, nas ações residuais -
sejam elas individuais ou coletivas - na complementaridade entre os diferentes centros.
Em certo sentido, vislumbrar como seria o mundo novo revolucionário já havia sido
negado pelo próprio Marx na medida da consciência que tinha de sua inserção histórica.
Em Marx, o comunismo era, em seu tempo, um projeto filosófico. Como um homem que
vivia no reino da necessidade poderia dizer como seria o mundo da abundância, da
humanização plena do humano?

Lefebvre agrega ao impasse filosófico que já havia sido proposto por Marx o
sentido de uma práxis experimental revolucionária. Sua proposição vem no sentido de
aniquilar os desvios produzidos durante o século XX pelas revoluções socialistas, e pelas

13
Há uma bela reflexão sobre este tema na obra A Vida Cotidiana no Mundo Moderno. São
Paulo: Ática, 1991 e particularmente no capítulo intitulado A sociedade burocrática de consumo
dirigido.

10
utopias de direita, como o nazi-fascismo. A utopia experimental serviria como um
sentinela que nos alerta contra a pretensa hegemonia do pensamento único tanto de
direita quanto de esquerda no que tange aos rumos da revolução.

Para finalizar, vale ainda a proposição de duas questões. Por que esse nosso
encontro hoje? Por que esse tema? Creio que a resposta à primeira questão é por que
acreditamos que a não superação da sociedade burguesa no século XX repõe a
necessidade da retomada do pensamento crítico mais fértil que se debruçou sobre ela,
qual seja: o pensamento de Marx. Ele continua sendo uma das bases mais seguras para
compreendermos a modernidade; isto no entanto, não nos autoriza a compreendê-lo
como dogma. O que Lefebvre - e os outros que estão sendo apresentados hoje em nosso
encontro - nos aponta é para a necessidade de repensarmos e atualizarmos o
pensamento marxiano. Neste sentido, resgata o vigor, a originalidade e a potencialidade
crítica de uma reflexão que se nos apresenta profundamente atual.

Por último, estamos aqui também para pensarmos como expoentes importantes do
pensamento marxista trataram a questão do sujeito da ação política. Mas por que
estamos aqui mesmo? Por uma mera questão de diletantismo acadêmico? Apenas para
mostrarmos e discutirmos nossas posições teóricas? Para provar que estamos certos e
que o errado é o outro? Não! Estamos aqui por que ainda acreditamos que a revolução é
possível. Estamos aqui por que ainda nos incomodamos com essa quase insuportável
vitalidade do capitalismo e da sociedade burguesa. Estamos aqui, por que, em algum
momento de nossos pensamentos, práticas e utopias, resíduos e ações residuais ainda
lutam para não serem apropriadas pela lógica dessa sociedade.

Muito Obrigado!

11

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