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JOSÉ DE SOUZA MARTINS.

ORGANIZADOR

HENRI LEFEBVRE
E O RETORNO À DIALÉTICA

ANA CRISTINA ARANTES NASSER


ANA FANI ALESSANDRI CARLOS
BERNADETE A. C. DE CASTRO OLIVEIRA
CARMEN SYLVIA VIDIGAL MORAES
ETHEL V. KOSMINSKY
EULINA PACHECO LUTFI
JORGE HAJIME OSEKI
LUCIANO MARINA
MARGARIDA M. DE ANDRADE
MARILIA PONTES SPOSITO
MARLENE FUMAGALLI
ODETTE CARVALHO DE LIMA SEABRA
SUZANNA SOCHACZWESKI
TERESA CABRAL JAHNEL

EDITORA HUCITEC
São Paulo, 1996
Apresentação______________________________________________

R ENIMOS aqui os textos das exposições feitas no colóquio A Aventura Intelectual


de Henri Lefebvre, realizado no dia 14 de maio de 1993 no Departamento de
Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo. O nosso objetivo foi o de homenagear a memória desse grande
intelectual francês, recentemente falecido. Ele representou, melhor do que ninguém, o
inquieto pensamento dos inconformados com todos os dogmatisrnos e com todas
as opressões. Lefebvre trouxe Marx para o nosso tempo criticamente como era
próprio do pensamento marxiano. Não foi um vulgarizador de conceitos, essa
verdadeira praga que abateu o pensamento marxista reduzindo-o a uma coleção de
ineficientes fórmulas feitas. Lefebvre retomou o que de mais importante havia em
Marx — seu método e sua concepção de que a relação entre a teoria e a prática,
entre o pensar e o viver, é uma relação vital (e datada) na grande aventura de fazer
do homem protagonista de sua própria História.
Nosso objetivo foi, também, o de contribuir para que seja reparada a grave
injustiça de que Lefebvre foi vítima -- a de ser ignorado justamente por aqueles que,
pelas posições políticas e acadêmicas que ocupavam, mais precisavam de suas
contribuições interpretativas e de suas descobertas luminosas. Já nos anos trinta,
ele discorria sobre a força das formas, a mistificação da consciência e a terrível
possibilidade de sua manipulação — pela direita e também pela esquerda. E no fim da
vida, produziu uma obra monumental sobre a crise do Estado (socialista e
capitalista), sua desagregação em conseqüência mesmo do seu poder de impor
vontades e de manipular consciências — seu poder, enfim, de cegar até os que se
crêem privilegiados demiurgos da História. Em seus

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dias derradeiros, às vésperas da morte, já na galopante crise dos estados comunistas.
Lefebvre ainda falou pela última vez sobre esses temas de que tratara
profeticamente em seus cerca de setenta livros. No centro dessa vasta obra estão
seus livros fundamentais sobre o espaço, o urbano, a vida cotidiana, sobre a
crescente importância do imediato e do reprodutivo na história do homem
contemporâneo, mas também a crescente importância do vivido, da transgressão,
da insurreição que no silêncio dos subterrâneos da sociedade convulsiona a vida
moderna capilarmente, nos detalhes da vida social. Seus estudos e descobertas
sugerem que a Esperança e a Utopia ganham novas formas e novas possibilidades.
O nosso colóquio nasceu de madura reflexão de vários anos sobre a obra de Henri
Lefebvre. De fato, organizei em 1976 um seminário semanal sobre a obra de Karl
Marx. O Departamento de Sociologia fora marcado profundamente pela repressão
política, que levara ao afastamento compulsório, por ato da ditadura militar, de
alguns de seus melhores professores. Essa fratura na vida da Faculdade de Filosofia da
USP, como ocorrera em outros lugares, abriu espaço para a invasão do pensamento
acadêmico por parte dos vulgarizadores do marxismo e seus manuais quase sempre
deformadores e nocivos à formação das novas gerações. Um marxismo, enfim, em
colisão com o pensamento marxiano e suas melhores contribuições ao
desenvolvimento de uma ciência social fundada na dialética. No nosso seminário
matutino das sextas-feiras foi lida, durante doze anos, quase toda a obra de Marx.
Encerrada essa etapa, decidimos em conjunto que ela deveria ter desdobramento e
continuidade na leitura de um marxista contemporâneo de envergadura clássica. O
autor que melhor corresponde a essa expectativa é Lefebvre. Foi assim que nestes
últimos anos os autores aqui reunidos se dedicaram à leitura e debate de uma boa
coleção de alguns dos mais importantes textos desse autor competente e correto.
O colóquio A Aventura Intelectual de Henri Lefebvre constituiu-se no ponto alto dessa
experiência de dezoito anos do nosso seminário, que com ele se encerrou.
Desejávamos pôr ao alcance dos que não tiveram a oportunidade de participar
dessa experiência única o nosso trabalho coletivo e persistente. Todos nós aprendemos
muito com ela e com ela crescemos. O que começou como um seminário de
estudantes de pós-graduação terminou como um seminário de professores
universitários. Foi a nossa resposta e também o nosso modo de enfrentar o desafio
representado pela violência que alcançou a

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Universidade mais profundamente do que se pensa. A apresentação final dos
textos aqui reunidos somente se tornou possível graças a beneditina dedicação de
Ana Cristina Arantes Nasser, Jorge Hajimi Oseki, Margarida M. de Andrade,
Marilia Pontes Sposito e Suzanna Sochaczweski. Eles se reuniram inúmeras vezes,
durante longas horas, para fazer a revisão critica e o enquadramento formal de
cada contribuição apresentada no colóquio, de modo a dar aos textos uma feição
final que os tornasse adequados à publicação em livro. Todos nós lhes somos de-
vedores por esse imprescindível, generoso e paciente serviço.

José de Souza Martins

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AS TEMPORALIDADES DA HISTÓRIA NA
DIALÉTICA DE LEFEBVRE

JOSÉ DE SOUZA MARTINS

"... a dificuldade consiste cm que é preciso mostrar que os fragmentos não se


dispersam e não se isolam, mas convergem num projeto de transformação do
mundo. Esse projeto se liga a um trabalho sobre o pensamento de Marx,
trabalho que de um lado busca restituir esse pensamento à sua integralidade
c que de outro lado busca prolongá-lo c desenvolve-10 em função do que há dc
novo depois de um século no mundo moderno."

Carta de Henri Lefebvre a José de Souza Martins (23.11.1977)

O retorno a Marx

NAS PALAVRAS em epígrafe, em carta ao autor, Lefebvre sintetiza o projeto


que unifica sua extensa obra, de mais de 70 volumes: o retorno a Marx, o retorno à
dialética. Mas um retorno crítico, isto é, retorno a um Marx datado, situado no
tempo e na História. O Marx de uma obra inacabada, por isso mesmo cheia de
preciosos fios desatados, que era e é preciso retomar.
Esse retorno difere, portanto, da concepção corrente de "ir a Marx", que
pressupõe um Marx acabado, concluído — um sistema, como diz Lefebvre. Um
poderio, um instrumento de poder, ele poderia ter dito.
Lefebvre tem presente, e recusa, um Marx falsamente acabado, postiçamente
concluído, fetichizado. Na verdade, capturado pelo poder, na necessidade de
apresentá-lo como inventor de um sistema — um Marx marxista, adepto e justificador
do marxismo oficial, do marxismo de Estado. Mas, não marxiano. Isto é, não um
Marx de sua própria época, que, além de pensar, de produzir idéias, vivia, se envolvia
numa...

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prática de transformação da sociedade, ao mesmo tempo envolvido pe los processos
de reprodução dessa mesma sociedade'.
Lefebvre no fundo retorna ao residual desse Marx, ao irredutível de sua pessoa e
de seu tempo. A um Marx da História, personagem, pensador, homem de luta, de
incertezas e não de certezas. E não a um Marx acima da História, supra -histórico.
O Marx que Lefebvre encontra em sua minuciosa busca é um Marx mortal, como
qualquer um de nós.
Esse Marx humano está no centro do retorno e no centro das indagações de
Lefebvre. É um Marx inconcluso, que não se pôs a tarefa de pensar sozinho as
rupturas da História e a transformação do mundo no sentido do avanço da
universalidade do homem. Não é um Marx messiânico, embora seja utópico e
profético. Diferente dos monumentos do marxismo oficial, esse Marx era mortal
porque não tinha poder. Nesse Marx, Lefebvre encontra o homem que começou a
construir e sintetizar as indagações historicamente fundamentais de seu tempo, as
perguntas não respondidas e as questões não resolvidas da época que com ele se
inicia.
Lefebvre não retorna, simplesmente, aos conceitos de Marx, mas à relação entre
um modo de pensar e uma prática, isto é, a um projeto na práxis que define o
trajeto de uma vida. O método dialético está no centro desse retorno. Mas o
método que se foi definindo ao longo da obra de Marx, que combina os momentos
do método de investigação e do método de explicação; e que culmina com a análise
inacabada sobre as classes sociais, isto é, sobre a primeira tríade: trabalho, terra e
capital, ou seja, salário, renda e lucro. O pensamento de Marx não era binário,
como o fez mais tarde o marxismo vulgar, e sim triádico2.
Engels se refere aos intuitos pedagógicos de algumas reduções e simplificações na sua
obra com Marx. Cita as conseqüências interpretativas, sobretudo no que se refere ao
tempo histórico e ao ritmo da história. Num dos primeiros trabalhos, mais de
cientista que de militante, também Lênin teve que explicar que sua concepção da
História e das transformações sociais não seguia o curso linear e evolucionista que
lhe imputavam seus leitores.

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1 Cf. a rica coletânea de textos de Marx e documentos sobre ele organizada por Eugene Karnenka, The Portable
Marx, Harmondsworth: Penguin, 1983.
2 Cf. Henri Lefebvre, Une pensée devenue monde, Paris: Fayard, 1980, p. 179 e ss.; Henri Lefebvre, Hegel, Marx,

Nietzsche, trad. Mauro Armiño, México: Siglo Veinteuno, 1976, p. 1-69.

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No núcleo dessas preocupações, a questão central da constituição da humanidade do
homem, na relação entre o homem e a natureza. Mas Lefebvre não encontra, cem
anos depois de Marx, o homem saciado em suas necessidades, embora encontre as
forças produtivas desenvolvidas além do real e do imediato. Nesse desencontro,
entre o real e o possível, uma nova pobreza, completamente diversa da pobreza
daqueles tempos, que se definia por carências materiais imediatas, mais do que por
outras carências. A natureza mediadora da constituição do humano também foi
capturada: hoje está posto o problema da natureza segunda', criada pelo próprio
homem, voltada contra ele — uma natureza que não se humaniza nem liberta o
homem de limitações e reduções.

A noção de formação econômico-social

No retorno a Marx, o retorno ao núcleo explicativo do processo his tórico: a


relação entre o homem e a natureza; o homem que, na atividade por meio da qual
atua sobre a natureza para saciar-se, para atender suas necessidades, modifica a
natureza e modifica suas próprias condições de vida, modificando ao mesmo tempo
sua relação com a natureza. Deixando, portanto, de ser repetitivo e reativo.
Desafiado a imaginar e criar, modificando suas condições de vida e modificando-se
ao mesmo tempo, constituindo-se como humano, humanizando-se. Lefebvre des-
cobriu que essa tese de A Ideologia Alemã ganha consistência numa noção mal
formulada na obra de Marx, a de formação econômico-social 4. Trata-se de uma
idéia que aparece ocasionalmente na obra marxiana, apenas indicada, para dar
conta da sedimentação dos momentos da história humana, da história da
constituição da humanidade do homem, da história da práxis. Essa noção já carrega
consigo, na descoberta de Lefebvre, o intuito de datação das relações sociais, a
indicação de que as r e l a ç õ e s s o c a i s , n ã o s ã o u n i f o r m e s n e m t e m a
m e s m a i d a d e . N a r e a l i d a d e coexistem relações sociais que têm datas diferentes e
que estão, portanto numa re l a ç ã o d e d e s c o m p a s s o _ e desencontro. Nem todas as
relações sociais têm a mesma origem. Todas sobrevivem de diferentes momentos e
circunstancias históricas.

__________
3 Idem, La revolución urbana, Trad. Mario Nolla, Madrid: Alianza, p. 32.
4
Idem, La pensée de Lénine, Paris: Bordas, 1957; p. 207.

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Essa noção, num primeiro momento, era apenas recurso metafórico para apoiar
uma concepção interpretativa. Marx utilizou-se seguidamente de metáforas para
expressar suas idéias, como constatou o venezuelano Ludovico Silva em excelente
trabalho sobre o seu estilo literário5. As considerações desse autor podem ser alargadas.
Muitas designações metafóricas contidas na obra de Marx foram fetichizadas pelos seus
vulgarizadores e transformadas em conceitos. O mais notório deles, o de modo de
produção, é utilizado pelo próprio Marx de modo elástico e, às vezes, impreciso.
Quando se trata do modo de produção capitalista, ora refere-se ao processo de
trabalho, ora ao processo de valorização, ora tem uma certa conotação antropológica,
referindo-se a um modo de fazer, mais no sentido de um procedimento cultural do
que no de uma referência estrutural.
O reencontro da noção, de formação econômico-social por Lefebvre tem amplas
implicações, pois é noção que tem uma significação pro- funda e dupla:
metodológica e teórica6. Ela fora retomada e aprofundada por Lênin em alguns de seus
estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo, nos anos de sua juventude. Lênin,
ao estudar o desenvolvimento do capitalismo na Rússia, não tinha diante de si todo o
conjunto das obras de Marx. Não tinha, também, acesso aos textos que viriam a ser
publicados nos anos trinta e que foram os esboços para redação do livro fundamental
de Marx. O primeiro volume de O Capital, porém, trata do desenvolvimento igual do
capitalismo, como observou Lefebvre. Isso lhe criava dificuldades para expor e explicar a
realidade histórica da Rússia atrasada, que combinava relações sociais capitalistas com
relações sociais e instituições que ainda não haviam sido profundamente alcançadas pela
disseminação e desenvolvimento do capital. Recorreu Lênin à noção de formação
econômico-social discretamente presente em alguns trabalhos de Marx. Ela lhe
permitia alargar a concepção de capitalismo, além dos limites da noção de modo de
produção, abrangendo as relações apoiadas na produção mercantil simples7.

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5
Cf. Ludovico Silva, El estilo literario de Marx, 4.ª ed., México: Siglo Veinteuno, 1980, p. 52 e ss.
6
Cf. Henri Lefebvre, La pensée de Lénine, cit., p. 208.
7
Cf. V. Lénine, "A propos de la question dite des marchés", in Oeuvres, tome 1, Paris-Moscou; Éditions
Sociales-Editions du Progrès, 1966; V. Lénine, "Ce que sont les ‘Amis Du peuple’ et comment ils luttent
contre les social-démocrates", in Oeuvres, tome 1, cit.; V. 1 Lenin, El desarrollo del capitalismo en Rusia, trad.
José Lain Entralgo, Barcelona: Ariel, 1974.

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A noção de formação econômico-social em Marx e Lênin tem duas dimensões: ela
designa tanto um_segmento do processo histórico formação - econômico-social
capitalista - quanto o conjunto do processo histórico. Mais do que uma imprecisão,
essa duplicidade nos remete ao princípio explicativo de totalidade e, ao mesmo
tempo, de unidade do diverso. Muitos vulgarizadores da obra de Marx entenderam
que o diverso dessa unidade é apenas o diferente e que os termos da contradição,
portanto, são contemporâneos. No exame da gênese e do percurso da noção,
Lefebvre descobre, porém, que o diverso não é - ou não é. necessariamente —
contemporâneo: "A noção de formação econômio-social retomada e aprofundada por Lênin
engloba a de desenvolvimento desigual, como engloba a de, sobrevivências, na estrutura
capitalista de formações e estruturas anteriores."8 O Capital, em particular o primeiro
tomo, esconde justamente esse aspecto rico da interpretação marxiana, na medida em
que ali o desenvolvimento do capitalismo aparece como se fosse um desenvolvimento
igual, isto é, o desenvolvimento em que as contradições sociais são analisadas como se
as relações que delas decorrem fossem relações de mesma data e, portanto,
contemporâneas.
Porém, a lei da formação econômico-social é a lei do desenvolvimento desigual: "Ela
significa que as forças produtivas, as re1ações socais, as superestruturas (políticas,
culturais) não_avançam_igualmente, simultaneamente, no mesmo ritmo
histórico.”9 Essa idéia, porém, já estava claramente presente na obra de Marx e é
certamente um dos aspectos menos debatidos e conhecidos de seu trabalho. Nas
referências aos países coloniais e às sociedades periféricas à economia inglesa, Marx
aponta a mediação que dá sentido ao próprio desenvolvimento político da Inglaterra.
Nos estudos sobre a Irlanda, a referência ao liame entre o destino político da aristocracia
inglesa e a realidade dos arrendatários irlandeses: "A Irlanda é o baluarte da aristocracia
fundiária inglesa. A exploração daquele país não é apenas uma das fontes principais
do bem-estar material dessa aristocracia, mas também a sua maior força moral. Isso re-
presenta, de fato, o domínio da Inglaterra sobre a Irlanda. A Irlanda é pois o
principal instrumento da conservação da hegemonia da aristocracia inglesa na própria
Inglaterra. (...) O aniquilamento da aristocracia...

___________
8 Cf Henri Lefebvre, La pensée de Lbáne, cit., p..231. Ibidem, p. 248.
9 Ibidem, p. 248.

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fundiária inglesa é infinitamente mais fácil na Irlanda do que na Inglaterra, porque
na Irlanda a questão da terra se tornou a única expressão da questão social, porque
ela é uma questão de sobrevivência, de vida e de morte, para a imensa maioria do
povo irlandês, e porque ela é ao mesmo tempo inseparável da questão nacional."10
Nessa retomada, há também urna certa concepção da relação entre o espacial e o
temporal, entre o espaço e a História. A questão do âmbito dos processos sociais,
isto é, da sua referência espacial, está reiteradamente sugerida na obra de Marx e
reaparece densamente na obra de Lefebvre. Se por um lado Marx, na redação de
sua obra fundamental, elegeu Londres como um observatório privilegiado e
estratégico, por outro lado reconheceu plenamente a necessidade teórica e
interpretativa de desvendar o que nesse posto estratégico se engendrava e ganhava
sentido, no desdobramento de seus processos na Irlanda, na Espanha, na Índia, na
Rússia, nos Estados Unidos, na América Latina. Um grande equívoco de
interpretação fez com que a dimensão espacial e geográfica dos pro cessos
históricos considerados por Marx fosse tratada como mero local de disseminação e
repetição dos processos sociais característicos que ganhavam e ganham corpo e
visibilidade típica em certos lugares, como os países metropolitanos. Marx tinha que
explicar como o mesmo processo de reprodução ampliada do capital assumia formas
sociais diversificadas em lugares tão diferentes como a América escravista, a Irlanda e a
Rússia camponesas, a Índia de antiga civilização mas subjugada, com seu siste ma de
castas integrado na lógica capitalista do lucro e da razão.
Mesmo aí, a lei do desenvolvimento desigual foi interpretada na perspectiva
economicista que reduziu a qualidade das contradições que integram e opõem
diferentes sociedades à mera gradação de riqueza, na dicotomia insuficiente de
desenvolvimento e subdesenvolvimento. Na verdade, "a lei do desenvolvimento
desigual tem uma multiplicidade de sentidos e de aplicações" 11. Na interpretação de
Lefebvre, "ela significa que as forças produtivas, as relações sociais, as superestruturas
(políticas, culturais) não avançam igualmente, simultâneas, no mesmo ri tmo his-
tórico" 12.

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10 Cf. Karl Marx e Friedrich Engels, L'Irlanda e la questione irlandese, Mosca: Progress, 1975, p. 277.
11
Cf. Henri Lefebvre, La pensée de Lénine, cit., p. 247.
12
Ibidem, p. 248.

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Lefebvre entende que a desigualdade dos ritmos do desenvolvimento histórico
decorre do desencontro que na práxis faz do homem produtor de sua própria história
ao mesmo tempo, o divorcia dela, não o torna senhor do que faz. Sua obra ganha
vida própria, torna-se objeto e - objetivação que subjuga em renovada sujeição o
sujeito. A formação é econômica e social porque abrange simultaneamente esses
dois âmbitos da práxis: a natureza (o econômico) e a sociedade (o social). O
homem age sobre a natureza na atividade social de atender suas necessi dades.
Constrói relações sociais e concepções, idéias, interpretações que dão sentido àquilo
que faz e àquilo de que carece. Reproduz, mas também produz — isto é, modifica,
revoluciona — a sociedade, base de sua atuação sobre a natureza, inclusive a sua
própria natureza. Ele se modifica, edifica a sua humanidade, agindo sobre as
condições naturais e sociais da sua existência, as condições propriamente econômicas.
Justamente aí o desencontro entre o econômico e o social na sociedade capitalista
expressa o avanço do econômico em relação ao social, este atrasado em relação àquele.
O econômico anuncia possibilidades que a sociedade não realiza ou realiza com atraso.
Marx já indicara como contradição fundamental da sociedade capitalista a contradição
entre a produção social e a apropriação privada dos resultados da produção, o modo de
produzir a riqueza e as condições de vida do homem. Com o capitalismo, se
organizam em bases sociais avançadas, isto é, segundo um modo de viver e de ser,
segundo uma sociabilidade que implica que cada homem se reconheça no outro,
agente e mediação da humanização de todos. O fato de que a humanidade do
homem se objetive nas realidades que ele cria e que ele se crie na mediação de tais
objetivações abre um abismo entre ele e sua obra, condição da demora entre a criação
da possibilidade da sua humanização crescente e essa mesma humanização. A
pobreza, nessa reinterpretação de Lefebvre, ganha um significado bem diverso da
concepção limitada de pobreza material que era característica da época de Marx. A
pobreza é pobreza de realização das possibilidades criadas pelo próprio homem para sua
libertação das carências que o colocam aquém do possível. Numa sociedade e num
tempo de abundâncias possíveis, inclusive e especialmente abundância de tempo para
desfrute das condições de humanização do homem, em que a necessidade de tempo
de trabalho é imensamente menor do que era há um século, uma das grandes
pobrezas é a pobreza de tempo.

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A noção de formação econômico-social é retomada por Lefebvre no preciso sentido
da coexistência dos tempos históricos. E também no sentido de que nessa
coexistência se encerram não o passado e o presente, mas também o futuro, o
possível 13. Quais são as raízes estruturais dessa coexistência? O atraso do real em
relação ao possível, o social em relação ao econômico. A própria exploração do
trabalho, do homem pelo homem, se incumbe de sonegar ao homem, a todo homem ,
inclusive ao que explora, as condições materiais do seu desenvolvimento .
Elas existem, mas desviadas da destinação de fazer do homem objetivo do próprio
hoem, empregadas com outras finalidades que não o próprio homem. A
coisificação das relações sociais promove a alienação do homem em relação à sua obra,
faz com que apareça como coisa e objeto, e não sujeito de sua própria obra, de que
apareça como objeto e não como objetivo do que faz. –Num de seus estudos mais
interessantes, sobre o cibernantropo, Lefebvre mostra que as imensas
possibilidades tecnológicas e científicas do nosso tempo chegam à vida cotidiana das
pessoas como chuvas residuais daquilo que foi prioritariamente destinado à
constituição e alimentação dos sistemas de poder, e não ao próprio homem14.

O método regressivo-progressivo

As implicações metodológicas do reencontro em Marx da noção de formação


econômico-social estão expostas em dois artigos que Lefebvre publicou nos Cahiers
Internationaux de Sociologie, em 1949 e 1953 15. Sartre, com quem Lefebvre polemizou
durante boa parte de sua vida, reconheceu com precisão a importância de sua
interpretação sobre o método: "... é um marxista, Henri Lefebvre, quem deu um
método que no meu modo de ver é simples e irrepreensível para integrar a sociologia...

__________
13
Cf. Henri Lefebvre, Une pensée devenue monde, cit., p. 32.
14
Idem, Hacia el cibernantropo, trad. Serafina Warschaver, Barcelona: Gedisa, 1980, p. 13-5.
15
Idem, "Problèmes de sociologie rurale", in Cahiers Internationaux de Sociologie, volume VI, Paris: Seuil,
1949, p. 78-100; e Henri Lefebvre, "Perspectives de sociologie ruralen,ln Cahiers Internationaux de Sociologie,
volume XIV, Paris: Seuil, 1953, p. 122-40. Esses dois artigos foram traduzidos e incluídos na coletânea de José
de Souza Martins (org.), Introdução crítica à sociologia rural, São Paulo: Hucitec, 1981.

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e a história na perspectiva dialética materialista. (...) Nada temos a acrescentar a esse
texto tão claro e tão rico..."16.
Nesses dois pequenos textos Lefebvre começa pelo reconhecimento de uma dupla
complexidade da realidade social: horizontal e vertical . Em sua obra essa dupla
complexidade se manifesta com mais vigor na eleição do mundo rural como
referência inicial mais rica nas implicações metodológicas, pois é o que encerra
maior diversidade e maior tensão de tempos históricos e de relações sociais datadas.
Não é por isso surpreendente que, filósofo, Lefebvre tenha justamente elaborado
uma tese de doutorado em sociologia rural 17. E que aí tenha feito a reconstituição
de mil anos da história de uma aldeia dos Pireneus franceses para reencontrar nela
persistências revolucionárias e o sentido de confrontos políticos centenários,
concepções da vida e da História apoiadas em extensões de tempo que não seriam
identificadas a partir de procedimentos decorrentes da idéia de etapas e sucessões de
etapas históricas.
Essa dupla complexidade desdobra-se em procedimentos metodológicos que
identificam e recuperam temporalidades desencontradas e coexistentes. A
complexidade horizontal da vida social pode e deve ser reconhecida na descrição do
visível. Cabe ao pesquisador reconstituir, a partir de um olhar teoricamen te a
diversidade das relações sociais identificando e descrevendo o que vê. Esse é o
momento descritivo do método. Nele, o tempo de cada relação social ainda não está
identificado. O pesquisador procede mais como etnógrafo. O segundo momento é
analítico-regressivo. Por meio dele mergulhamos na complexidade vertical da vida
social, a da coexistência de relações sociais que tem datas desiguais. Nele a realidade é
analisada, decomposta. É quando o pesquisador deve fazer um esforço para datá-la
exatamente. Cada relação social tem sua idade esua data, cada elemento da cultura
material e espiritual também tem a sua data. O que no primeiro momento parecia
simultâneo e contemporâneo é descoberto agora como remanescente de época
específica-: De modo que no vivido se faz de fato a combinação prática de coisas ,
relações e concepções que de fato não são contemporâneas. Nesse momento, fica a
importância do domínio das dis-

___________
16
Cf. Jean-Paul Sartre, Critica de la razón dialéctica, trad. Manue1 Lamana, 2ª ed., tomo I, Buenos Aires: Losada,
1963, p. 49-50.
17
Cf. Henri Lefebvre, La Vallée de Campan (Étude de sociologia rurale), Paris: Presses Universitaires de France,
1963.

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ciplinas especiais — a sociologia, a antropologia, a história, a economia, a estatística,
etc. Sem as quais a reconstituição feita permaneceria indefinida, aprisionada pela
impossibilidade de datação de seus diferentes componentes.
O terceiro momento do método da dialética de Lefebvre é histórico-genético. Nele,
deve o pesquisador - procurar o reencontro do presente, "mas elucidado,
compreendido, explicado". A volta à superfície fenomênica da realidade social
elucida o percebido pelo concebido teoricamente e define as condições e
possibilidades do vivido. Nesse momento regressivo-progressivo é possível
descobrir que as contradições sociais são históricas e não se reduzem a confrontos
de interesses entre diferentes categorias sociais. Ao contrário, na concepção
lefebvriana de contradição, os desencontros são também desencontros de tempos
e, portanto, de possibilidades. Na descoberta da gênese contraditória de relações e
concepções que persistem está a descoberta de contradições não resolvidas, de
alternativas não consumadas, necessidades insuficientemente atendidas,
virtualidades não realizadas 18. Na gênese dessas contradições está de fato a
gestação de virtualidades e possibilidades que ainda não se cumpriram. Porque é -o
desencontro das temporalidades dessas relações que faz de uma relação social em
oposição a outra a indicação de que um possível está adiante do real realizado.
Essa dupla complexidade não é exterior ao homem e a cada ser humano. Falas,
gestos, entonações, modos de relacionamento, desencontros entre o falado, o
percebido e o feito, tudo enfim tem que ser concretamente vivido, ainda que no
limiar do percebido. São esses desencontros que dão sentido à práxis, fazendo-a
repetitiva, mimética ou inovadora, no mesmo ato, no mesmo movimento 19. Por
isso, fazer História não está apenas no ato intencional de criar o novo e destruir o
velho. Uma História assim é, no fundo, uma história sem tensões, sem vida,
falsa História. No vivido, a práxis é contraditória. Ela reproduz relações sociais.
Mas, Lefebvre observa, não há reprodução de relações sociais sem uma certa
produção de relações 20, não há repetição sem uma certa inovação.

___________
18
Idem, Une pensée devenue monde, cit., p. 101.
19 Idem, Sociologie de Marx, Paris: Presses Universitaires de France, 1966, esp. p. 20-48.
20
Idem, La survie du capitalisme (La reproduction des rapports de production), Paris: Anthropos, 1973, p. 14.

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No interior da sociedade e no interior de cada um agita-se .a efervescência dessa
coexistência de modos, mundos, relações, concepções, que não são contemporâneos.
Ou, a contemporaneidade da superfície não corresponde à idade do que coexiste. É
dessa tensão que nasce a possibilidade da práxis revolucionária. Práxis que se funda
no resgate e na unificação política dos resíduos — concepções e relações residuais
que não foram capturadas pelo poder, que permaneceram nos subterrâneos da vida
social, virtualidades bloqueadas 21. Alternativas do processo de humanização do
homem imobilizadas pelo bloqueio do poder que domina a superfície — o
espaço, mas também o percebido, o horizontalizado, uniformizado, racionalizado
pelas equivalências que resultam das trocas e do igualitarismo abstrato do contrato social
e da razão.
Nos resíduos e no virtual estão as necessidades radicais 22, necessidades que não
podem ser resolvidas sem mudar a sociedade, necessidades insuportáveis, que agem em
favor das transformações sociais 23, que anunciam as possibilidades contidas nas
utopias, no tempo que ainda não é, mas pode ser. Para isso é preciso juntar os
fragmentos, dar sentido ao residual, descobrir o que ele contém como possibilidade
não realizada. Nesse sentido é que ele encerra um projeto de transformação do mundo:
"Terminaremos pela decisão fundadora de uma ação, de uma estratégia: a reunião
dos 'resíduos', sua coalizão para criar poieticamente, na práxis, um universo mais
real e mais verdadeiro (mais universal) do que os mundos dos poderios
especializados"24.

___________
.
21 Idem, La proclamation de la Commune, Paris: Gallimard, 1965, p. 36. "O passado se torna
presente em função da realização dos possíveis implicados objetivamente nesse passado." Cf.
Henri Lefebvre, Au-delà du structuralisme, Paris: Anthropos, 1971, p. 86.
22
Idem, La proclamation de la Commune, cit., p. 20.
23
Cf. Agnes Heller, La théorie des besoins chez Marx, trad. Martine Morales, Paris: Union Générale
d'Éditions, 1978, p. 107 c ss.
24
Cf. Henri Lefebvre, Métaphilosophie, Paris: Seuil, 1965, p. 18.

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