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Anais | VII Encontro Humanístico Multidisciplinar - EHM e VI Congresso Latino-

Americano de Estudos Humanísticos Multidisciplinares - CLAEHM


Dezembro de 2022, Online | claec.org/ehm
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A memória de um crime e o apagamento da identidade de suas


vítimas: o caso de Altair e Maria Paula 1

La memoria de un crimen y el apagamiento-ocultamiento de la identidade


de sus víctimas: el caso de Altair y Maria Paula

The memory of a crime and the erasure of the identity of the victims: the
case of Altair and Maria Paula

FERNANDES, Filipe Botelho Soares Dutra2

Resumo

Por muito tempo, a História se ocupou de contar a visão de fatos do passado sob a ótica dos dominantes, uma vez
que, via de regra, quem está no poder é quem detém condições de registrar os fatos a seu favor. Assim, muitas
vezes a memória e a identidade de atores do passado pôde ser manipulada em detrimento de uma visão histórica
a favor de quem escreve a história. Esta é a situação de Altair Gonçalves Nunes e Maria Paula, vítimas da
ditadura brasileira não apenas por terem sido mortos, em 1971, em uma ação do DOPS, no interior de São Paulo,
mas também por terem tido sua história deturpada, apagada e esquecida nos arquivos da Delegacia de Polícia de
Palmeira d‟Oeste, onde o inquérito policial das duas mortes, cheio de inconstâncias e dualidades, permanece
arquivado. Deste modo, com o presente trabalho, busca-se resgatar a memória do caso, a fim de que as
circunstâncias de suas mortes não sejam esquecidas.

Palavras-Chave: Altair Gonçalves Nunes; Ditadura militar; DOPS; Esquecimento; Memória; Palmeira d‟Oeste.

Resumen

Por mucho tiempo, la Historia se ocupó de contar los hechos del pasado sobre la óptica de los dominantes, una
vez que, por vía de regla, quien está en el poder es quien detenta las condiciones de registrar los hechos a su
favor. Así, muchas veces, la memoria y la identidad de los actores del pasado puede ser manipulada en
detrimento de una visión histórica a favor de quien escribe la historia. Esta es la situación de Altair Gonçalves
Nunes y Maria Paula, víctimas de la dictadura brasileña, no apenas por haber sido muertos, en 1971, a causa de
una acción del DOPS en el interior de San Pablo, más también por tener su historia tergiversada, apagada y
olvidada en los archivos de la Jefatura de Policía de Palmeira d‟Oeste, donde el relatorio policial de las dos

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Artigo apresentado no VII Encontro Humanístico
Multidisciplinar - EHM e VI Congresso Latino-Americano de Estudos Humanísticos Multidisciplinares, na
modalidade online, 2022.
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Doutorando em Ciência Política; Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); São Carlos, São Paulo, Brasil;
filipebsdf@yahoo.com.br.

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muertes, lleno de inconsistencias y duplicidades, permanece archivado. De este modo, el presente trabajo, busca
rescatar la memoria del caso, a fin de que las circunstancias de sus muertes no sean esquecidas.

Palabras claves: Altair Gonçalves Nunes; Dictadura militar; DOPS; Olvido; Memoria; Palmeira d‟Oeste

Abstract

For a long time, History told the vision of the past under the optic of the dominants, since, usually, who is in
power remains the conditions to register de facts in their favor. Many times, the memory and the identity of the
actors from past could be manipulated in detriment of a historic vision in favor of who writes the story. This is
the situation of Altair Gonçalves Nunes and Maria Paula, victims of the Brazilian dictatorship not only for have
being murdered, in 1971, in a DOPS action, in the countryside area of São Paulo, but also for having their
history perverted, erased and forgotten in the archives of the Police Station of Palmeira d‟Oeste, where the
inquiry of the two deaths, full of inconstancies and dualities, remains archived. In this way, with this paper, we
look for rescue the memory of the case, to the circumstance of their deaths don‟t be forgotten.

Keywords: Altair Gonçalves Nunes; Military dictatorship; DOPS; Oblivion; Memory; Palmeira d‟Oeste.

1. Introdução

“Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça.”


Carlos Gallo

Pesquisas e trabalhos que tenham como objeto de estudo casos ocorridos durante a
ditadura militar (1964-1985), muitas vezes esbarram em padrões de acontecimentos que se
verificam em mais de um episódio. Um destes padrões é a distorção dos casos relacionados a
crimes de tortura, violação de direitos humanos e assassinatos. Outro padrão frequente é a
tentativa de apagamento da identidade e da memória das vítimas. Estes dois padrões se
verificam no caso neste trabalho apresentado: o assassinato de Altair Gonçalves Nunes e
Maria Paula, ocorrido em agosto de 1971, no município de Palmeira d‟Oeste, no interior do
Estado de São Paulo.
As mortes de Altair e Maria Paula já foram analisadas pelo autor, em seu Trabalho
de Conclusão de Curso (TCC) do bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do
Rio Grande (FURG). O trabalho foi desenvolvido a partir da ótica da Arqueologia da
Repressão, subárea que se insere dentro da Arqueologia Histórica e trata, sob um viés
arqueológico, de questões relacionadas a contextos de repressão; no caso brasileiro, o período
da ditadura militar. Todavia, em um momento que apoiadores do então presidente, Jair
Bolsonaro, se recusando a aceitar sua derrota nas eleições de outubro de 2022, têm evocado os
acontecimentos da ditadura militar e clamado por uma intervenção militar, para que seu

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“mito” seja reconduzido à Presidência da República, mesmo derrotado nas urnas, pareceu
oportuno resgatar o caso de Altair e Maria Paula e apresentá-lo em um Grupo de Trabalho
(GT) intitulado História, Memória e Identidade.
Esta evocação do fantasma da ditadura por uma parcela da população brasileira não é
um fenômeno recente. Ela esteve presente nas duas campanhas presidenciais de Jair
Bolsonaro e em atos de apoio durante todo seu governo (2019-2022). Mas antes mesmo, já se
verificada a existência de uma espécie de sentimento quase que saudosista da ditadura que
começou a ser externado, de modo mais forte, em manifestações ocorridas a partir de 2013,
contrárias à presidente Dilma Rousseff e movidas por um sentimento antipetista que se
instalou no país.
Foi comum nestas manifestações cartazes e faixas exaltando a ditadura e pregando o
fim do comunismo, embora este nunca tenha estado próximo de se estabelecer no país. Um
exemplo desta exaltação da ditadura é o cartaz contendo a foto do delegado aposentado Carlos
Alberto Augusto com os dizeres “Temos nosso HERÓI. Inimigo número 1 da esquerda
bandida. Vovô metralha” (Figura 1).

Figura 1: Manifestante com cartaz exaltando o passado de Carlos Alberto Augusto.


Fonte da imagem: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/48-anos-depois-repressor-da-
ditadura-carlinhos-metralha-e-condenado-por-sequestro-de-opositor.phtml. Acesso em: 03/01/2023.

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Em outro momento, Augusto aparece ele próprio nas manifestações segurando um


cartaz com os dizeres “Quero ser ouvido pela omissão da verdades” (grifo nosso) (Figura 2).
Augusto, que durante a ditadura trabalhou com Carlos Alberto Brilhante Ustra e Sérgio
Paranhos Fleury, dois dos principais nomes da repressão, foi condenado, em 2021, a dois anos
e onze meses de prisão pelo sequestro de Edgar de Aquino Duarte, desaparecido em 1973.

Figura 2: Carlos Alberto Augusto em manifestação contra Dilma e o PT.


Fonte da imagem: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/intervencionista-pede-respeito-a-ex-agente-do-
dops-dia-12,3b86d52bbbf9c410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html. Acesso em: 03/01/2023

Estes são apenas dois dos muitos exemplos de exaltação da ditadura que se vê em
manifestações pelo país desde 2013. Todavia, enquanto uma parcela da população pede aos
militares que instalem novamente uma ditadura, que seria chefiada por Jair Bolsonaro,
pesquisadores, professores, vítimas e familiares de pessoas mortas e desaparecidas durante a
ditadura seguem lutando para que o período não seja banalizado e relativizado. Deste modo,
contar a morte de Altair e Maria Paula serve não apenas como instrumento de resistência, mas
demonstra porque a ditadura militar deve ser rechaçada e não enaltecida. A história dos dois
foi deturpada, a memória do crime cometido caiu no esquecimento e, no caso de Maria Paula,
sua identidade foi completamente apagada.

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2. A fuga para o interior

O relato abaixo foi feito a partir de cinco notícias publicadas pelos jornais Folha de
São Paulo, Jornal do Brasil e Luta Democrática que, em 1971, noticiaram as mortes de Altair
e Maria Paula, além de ações ocorridas dias antes na cidade de São Paulo, que teriam levado
os dois a fugir para o interior do Estado. Também foram usadas como fonte para construção
da narrativa, fichas do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), mantidas pelo
Arquivo Público do Estado de São Paulo, além de depoimentos que constam no Inquérito
Policial das duas mortes, arquivado na Delegacia de Polícia de Palmeira d‟Oeste.
Conforme as fontes acima mencionadas, Altair Gonçalves Nunes era um jovem
gaúcho que vivia na cidade de São Paulo. Embora não se tenha conseguido fazer a ligação de
Altair com nenhum grupo político da época que combatia o regime militar, suas ações
indicam que ele participava de atividades radicais, ligadas a um grupo que realizava ações de
expropriação em bancos e estabelecimentos comerciais. Esta era uma das táticas utilizadas no
combate à repressão e uma boa forma de angariar recursos para a causa (MISSE, 2011).
O que levou a acreditar que as ações do grupo eram voltadas para o combate ao
regime militar foi o fato da ficha do DOPS de Odair Antonio Trindade, outro integrante do
grupo, trazer a informação de que ele era membro do Partido Operário Comunista (POC),
organização que praticava a chamada “luta armada” como meio de combate ao regime.
Segundo Misse, “a partir de 1968, organizações de esquerda que resistiam à ditadura
lançaram-se à luta armada, e o assalto a bancos passou a ser uma das formas de arrecadação
de recursos para a revolução” (MISSE, 2011, p. 18).
Assim sendo, Altair e Odair, acompanhados de Jorge Ivo de Oliveira e Sebastião
Rodrigues, em 05 de agosto de 1971, realizaram uma ação de expropriação no Supermercado
Morita, localizado na rua Tabapuã. No dia 07 de agosto outra ação deste tipo foi realizada no
Supermercado Peg-Pag, localizado na Avenida Santo Amaro. O dinheiro obtido seria para
financiar uma ação de libertação de dois presos que, um ano antes, haviam sido condenados
por assaltos ao Banco das Nações e ao Banco Itaú-América. O objetivo do grupo era
interceptar uma escolta que faria a apresentação dos presos no foro de Osasco.
Para se preparar para a ação, o grupo usou parte do dinheiro obtido nos
supermercados para comprar uma caminhonete Chevrolet C-14 e roubou um veículo Aero
Willys. O plano, entretanto, fracassou, pois os presos não foram apresentados e a escolta não

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ocorreu. Pelo que consta nos registros do DOPS, eles permaneceram na prisão pelo menos até
o ano de 1979.
Com o plano frustrado, no dia 10 de agosto de 1971, Altair se viu obrigado a fugir de
São Paulo. Isso porque no bairro de Vila Mariana, no Largo Ana Rosa, esquina com a rua
Professor Aristides de Macedo, vizinhos desconfiaram de um carro Aero Willys parado no
mesmo local desde as primeiras horas do dia e informaram a polícia de que o veículo estava
ali estacionado. As verificar que se tratava de um carro roubado, os policiais do DOPS
montaram um esquema de investigação. Segundo o Jornal do Brasil e o Jornal Luta
Democrática, este esquema de investigação teria sido chefiado pelo próprio chefe do DOPS, o
delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos principais nomes da repressão àquele tempo.
Após um dia inteiro de vigília da polícia, no fim da tarde, dois homens (Sebastião e
Odair) se aproximaram do veículo. Ao perceberem a movimentação perto do Aero Willys,
dois policiais se aproximaram e deram voz de prisão a Sebastião e Odair. Todavia, os policiais
foram pegos de surpresa quando a caminhonete Chevrolet C-14, dirigida por Altair, se
aproximou em alta velocidade, atropelando os policiais. Segundo os jornais, Altair e Jorge Ivo
estavam escondidos na caminhonete para cobrir a retaguarda de Sebastião e Odair.
Com o ocorrido, outros policiais que vigiavam o Aero Willys abriram fogo. Altair e
Jorge Ivo fugiram na caminhonete em alta velocidade, mas Sebastião foi atingido e morreu no
local. Odair foi preso e após interrogatório, acabou delatando a existência de um esconderijo
na Rua Bueno de Andrade.
Por volta das vinte e duas horas e quinze minutos, os agentes do DOPS se dirigiram
para o esconderijo e localizaram a caminhonete. Houve uma nova troca de tiros e Jorge Ivo
foi preso, mas Altair conseguiu fugir novamente, mas fora atingido na perna direita. Tendo
escapado duas vezes do polícia, Altair fugiu para o interior, indo se esconder na cidade de
Palmeira d‟Oeste, acompanhado de duas moças: Maria Paula, uma amiga, e Maria Luiza, sua
suposta namorada.

3. O tiroteio em Palmeira d’Oeste

O município de Palmeira d‟Oeste encontra-se localizado na região noroeste do


Estado de São Paulo, a cerca de 600 km de distância da capital estadual e próximo da divisa
com o Estado do Mato Grosso do Sul. Em 1971 a população, majoritariamente rural, era de

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aproximadamente quinze mil habitantes. Foi lá que Altair, Maria Paula e Maria Luiza foram
se esconder. O local parecia seguro, pois se encontrava distante da agitação dos grandes
centros e a população vivia uma vida pacata.
Em 15 de agosto de 1971, o grupo chegou na zona rural do município e foi para a
residência da família Gomes. João Gomes, primo de Maria Luiza, os recebeu e hospedou.
Altair se apresentou como Jarbas e Maria Paula apenas como Paula. Tudo indica que Palmeira
d‟Oeste era um local provisório, pois o grupo disse que iria embora ao fim da semana.
Entretanto, Maria Luiza ficou apenas dois dias na casa e viajou de volta para São Paulo,
deixando os amigos como hóspedes na casa do primo.
Foi neste instante que a propensa segurança que o interior proporcionaria, se
dissipou. Maria Luiza não chegou a São Paulo; ela foi reconhecida e presa na cidade de
Estrela d‟Oeste, a cinquenta km de distância de Palmeira d‟Oeste, e acabou por revelar onde
se encontravam escondidos Altair e Maria Paula.
Nos dias seguintes à saída de Maria Paula da casa, Altair e Maria Luiza pouco
falavam com os demais moradores, limitando-se a conversar entre si e passear pelo pomar e
arredores do sítio. Ao notar que ele mancava da perna direita, João Gomes inquiriu-o sobre o
que havia acontecido e Altair disse-lhe que havia se machucado jogando futebol – que tinha
tomado um calço e, ao cair, encravou a perna em um arame.
A infecção causada pelo ferimento na perna aumentava e, sabendo que João Gomes
iria até a cidade, Altair lhe pediu que trouxesse uma injeção antitetânica e comprimidos de
Tetrex. João Gomes, que sabia aplicar injeções, acabou aplicando o medicamento em seu
hóspede; entretanto, este nunca lhe pediu auxílio para fazer os curativos.
A rotina da casa não foi alterada pela presença dos dois. Como de costume na zona
rural, praticava-se um padrão há muito estabelecido: os homens iam trabalhar no campo e as
mulheres ficavam cuidando da casa. Na manhã do dia 19 de agosto, João Gomes saiu para a
roça levando comida para seus quatro filhos que já estavam na lida. Essa rotina, porém, seria
bruscamente interrompida. Por volta das onze horas, a senhora Aparecida Gomes encontrava-
se na cozinha e sua filha, também chamada Aparecida Gomes, na sala, limpando os móveis.
Foi neste momento que a polícia chegou ao local e dividiu-se em dois grupos, cercando a
residência.
Ao chegar no sítio, os policiais viram que Altair e Maria Paula estavam sentados
debaixo de uma mangueira. Neste momento, a Sr.ª Aparecida Gomes contou em depoimento

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que ouviu quando os dois disseram que a polícia estava ali. Altair, então, correu e entrou na
casa, passando pela jovem Aparecida Gomes, que se encontrava abaixada limpando os
móveis.
Mãe e filha contaram que no momento em que Altair chegou ao quarto, ouviram um
disparo, seguido de vários outros tiros. Assustadas, correram para se esconder na despensa,
enquanto ouviam a polícia perguntar onde estava Altair. Segundo consta no Inquérito Policial,
mãe e filha nada viram, apenas ouviram.
Um dos soldados do município que participou da ação também contou que ouviu os
disparos mas que, do local em que estava, não conseguiu ver o momento em que Altair foi
alvejado. Disse o soldado que os policiais estavam armados e procurando se defender, para
que os disparos não os atingissem.
Segundo consta no inquérito, Altair, ao perceber a chegada da polícia, correu para
dentro da casa, pegou sua arma e, de dentro do quarto, atirou em Maria Paula, no pomar,
acertando-lhe o tiro na cabeça. Depois disso, correu para frente da casa e atirou contra os
policiais que, para se defenderem, revidaram os tiros e Altair acabou morto. Cessado o
tiroteio, Maria Paula foi socorrida e levada, ainda com vida para o hospital da cidade, mas
faleceu enquanto recebia socorros médicos.
Pouco depois do tiroteio, por volta das onze horas, o senhor João Gomes chegou em
sua casa e a encontrou cheia de policiais e sua esposa e filha assustadas com o ocorrido. A Sr.ª
Aparecida Gomes contou em depoimento que ouviu quando os policiais disseram que era
necessário limpar o sangue do chão para que ela e a filha não ficassem impressionadas.
Decorrida a ação, os policiais voltaram para a Delegacia de Polícia de Palmeira
d‟Oeste e para lá conduziram o corpo de Altair, que posteriormente foi levado para o
necrotério do Hospital São Francisco, onde já se encontrava o corpo de Maria Paula, para que
fossem feitos os exames necroscópicos.
A forma como Altair foi morto é característica do grupo de extermínio que ficou
conhecido como Esquadrão da Morte. E isto não passou despercebido à imprensa. “Esquadrão
da morte mata mais um” e “Policiais paulistas matam outro à moda do Esquadrão” foram as
manchetes do jornal Luta Democrática e do Jornal do Brasil, respectivamente.
O jurista Hélio Bicudo, enquanto Procurador de Justiça do Estado de São Paulo, se
destacou por sua atuação no combate ao Esquadrão da Morte e falava de um padrão de
extermínio. Esse padrão foi verificado no caso de Altair e sua morte traz semelhanças com a

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de Antônio de Souza Campos, conhecido como “Nego Sete”, ocorrida em Guarulhos, em


1968: “Um instante de silêncio, e, logo em seguida, uma intensa fuzilaria de armas de fogo”
(BICUDO, 2002, p. 25).
A semelhança na abordagem policial nos dois casos é inegável. No caso de Altair, a
polícia, ao chegar no sítio, dividiu-se em dois grupos, cercando a casa e, logo em seguida
ocorreu a saraivada de tiros que lhe tirou a vida. Já no caso de “Nego Sete”, a polícia tomou
de assalto a casa em que este morava e impediu que o proprietário e sua esposa, que alugavam
um quarto para “Nego Sete” e sua companheira, de lá saírem.

A amásia de “Nego Sete” fora trancafiada no quarto ocupado pelo casal. Então
distribuíram-se com armas pesadas pelo corredor de acesso ao cômodo, escondendo-
se atrás dos muros e subindo a uma caixa d´água que ficava a cavaleiro do mesmo
quarto (BICUDO, 2002, p. 26).

“Nego Sete” morreu logo ao chegar na casa: “ouviu o grito Polícia! Não teve tempo
de esboçar um só gesto: abateram-no ali mesmo no corredor com uma chuva de balas”
(BICUDO, 2002, p. 26).
Ainda segundo Bicuco

Logo em seguida, o cadáver foi enrolado num cobertor e carregado para uma das
peruas. À dona da casa deram ordem de lavar o sangue que escorrera pelo chão.
Quanto à amásia de „Nego Sete‟, foi levada também – e dela jamais teve alguém a
mínima notícia ou rastro do seu destino (BICUDO, 2002, p. 26).

Vê-se então que a prática de limpar a cena e as evidências do crime era algo que se
repetia em casos que envolviam o Esquadrão da Morte. Assim, em caso de uma possível
investigação ou apuração dos fatos, as evidências estariam alteradas e/ou destruídas, de modo
a facilitar o encobrimento dos fatos.
Todavia, existe uma diferença na forma como a polícia procedeu com a limpeza do
sangue. Enquanto na ação em Osasco os policiais mandaram que a dona da casa limpasse
tudo, em Palmeira d‟Oeste a polícia disse ser necessária limpar o sangue para que mãe e filha
não ficassem impressionadas; às moradoras não foi ordenado limpar o local. Tal diferenciação
talvez se explique pelo fato de crimes de homicídio ocorrerem de forma mais comum em
grandes cidades, ao passo que, em pequenas cidades, estas ações não fazem parte do cotidiano
da população, que geralmente é gente simples e humilde.

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4. O esquecimento do caso e a deturpação dos fatos

Segundo Maurice Halbwachs, “todo quadro tem uma moldura, mas não há nenhuma
relação necessária e estreita entre um e outra, e a moldura não tem como evocar o quadro”
(HALBWACHS, 2003, p. 171). Ao tomar as mortes de Altair e Maria Paula como quadro e o
local e contexto em que estas aconteceram, como moldura, a analogia de Halbwachs torna-se
bastante pertinente, uma vez que parece não haver nenhuma relação entre o caso e o local das
mortes. As vítimas eram vindas da capital e a Palmeira d‟Oeste da década de 1970 vivia
muito distante dos acontecimentos da ditadura, que fervilhavam nas grandes cidades, em uma
situação semelhante ao processo anterior à politização da vida privada, descrito por Philippe
Ariès (2013), quando não se esperava das pessoas um posicionamento frente às questões que
permeavam o cotidiano das sociedades.
De acordo com Hélio Bicudo (2002), o Esquadrão da Morte seguia um padrão de
livrar-se dos cadáveres e limpar o local após suas execuções, numa tentativa de apagar seus
rastros, uma vez que eles compõem o que Ricoeur (2007) chama de ameaça do esquecimento.
No caso de Altair e Maria Paula, livrar-se dos corpos foi fácil. Não sendo eles do local,
dificilmente alguém reclamaria os corpos e o caso cairia no esquecimento, de modo que
ambos foram enterrados como indigentes no cemitério local. De modo que o DOPS, neste
caso, seguiu os trâmites legais e procedeu com o enterramento dos dois.
Todavia, as mortes vieram a público e, cerca de uma semana depois, jornais de
circulação nacional veicularam a notícia de que o Esquadrão da Morte havia feito novas
vítimas. Entretanto, frente ao cenário que o país vivenciava no momento, a morte de dois
alegados subversivos parece ter chamado pouca atenção, embora elas tenham afetado o
cotidiano e a calmaria da pequena Palmeira d‟Oeste.
Entretanto, o fato das vítimas serem de fora do município, parece ter contribuído para
que o caso caísse no esquecimento, tendo a atual proprietária do imóvel dito que o ocorrido lá,
nada representa para ela e sua família. Embora hoje o sítio não guarde mais as marcas do
tiroteio, tais marcas estiveram lá presentes até cerca de dez anos atrás, quando os atuais
proprietários fizeram uma reforma, cobrindo as marcas dos tiros na parede da frente da casa e
substituindo a porta cravejada de balas. Vivendo na casa por aproximadamente trinta anos, os

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atuais moradores conviveram bastante tempo com essas marcas, mas estas nunca os
incomodaram.
O caso chama atenção ainda para algumas incongruências que o Inquérito Policial
apresenta, como a maquiagem dos fatos, prática comum durante o regime militar. Assim, o
único documento que serve de base para a versão oficial dos fatos é um inquérito bastante
questionável, a começar pelo fato da investigação ter sido aberta e encerrada no mesmo dia.
Conforme conta no laudo necroscópico de Altair, foram retiradas de seu corpo, treze projéteis
e, ainda assim, as autoridades não se preocuparam em aprofundar as investigações. Todas as
medidas legais cessaram neste inquérito. Em pesquisa no Fórum de Palmeira d‟Oeste,
verificou-se que não foi aberto nenhum processo sobre o caso. Cabe então apontar algumas
características do Inquérito Policial para demonstrar como foi construída a versão oficial dos
fatos.
Das oito testemunhas do caso, cinco são militares; as três testemunhas civis, não são
testemunhas oculares, de modo que duas delas, mãe e filha, contam apenas o que ouviram; e a
terceira, João Gomes, sequer estava presente no local dos fatos, no momento da ação, tendo
chegado após o tiroteio. Nesse sentido, o fato das testemunhas civis não terem visto nada, foi
favorável ao apagamento do caso, com as demais testemunhas sendo todas policiais militares.
Desse modo, é de se imaginar que, ao garantir que todas as testemunhas fossem moradoras
locais, o fato ficaria restrito ao município, sem os agentes do DOPS serem implicados no
caso, uma vez que, embora mencionada a sua participação na ação, nenhum deles foi
identificado no Inquérito Policial.
Dessa forma, a veracidade dos fatos narrados no referido inquérito é posta em xeque.
O registro no inquérito de que Altair atirou em Maria Paula e, posteriormente, correu para a
frente da casa, para enfrentar a polícia, parece ser uma distorção do fato real, uma vez que
somente uma testemunha militar, diz ter visto o momento em que Maria Paula caiu, após ser
baleada. Mas, o disparo em si não foi visto por ninguém. Desse modo, questiona-se se não
teria a polícia matado os dois.
Diante dos fatos, vê-se que crimes como a execução de Altair, não apenas deixaram
de ter uma devida investigação, como a Lei de Anistia veio a “perdoá-los” posteriormente.
Segundo Cecília Coimbra,

A anistia brasileira se caracterizou, no contexto latino-americano, por ser a mais


atrasada, a mais retrógrada. O Brasil que, nos anos 60, exportou know-how de

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tortura e a triste figura do desaparecido político para as recém-instaladas ditaduras


da América Latina, nos anos 90, vergonhosamente, é o país mais atrasado não só
quanto aos direitos de todos os que foram atingidos pelos diferentes atos de exceção,
como também pelo resgate de nossa história recente (COIMBRA, 2004, pp. 33-34).
Nesse sentido, o Estado Brasileiro fechou seus olhos para muitas das ações ocorridas
durante o regime militar, não apenas durante o regime em si, mas também depois de ter sido
reinstaurada a democracia.
Destarte as falhas do Estado, no que se refere ao período, seja durante, ou depois
dele, cabe ressaltar que o inusitado, no caso em questão, está, não na ação da polícia para
eliminar um chamado “subversivo”, mas, sim, no local onde tudo se passou: uma pequena
localidade no interior do Estado de São Paulo, em uma região majoritariamente rural, quase
na divisa com o Estado de Mato Grosso do Sul.
E até hoje Altair e Maria Paula seguem sepultados no cemitério local, com seus
túmulos levando a mais questionamentos sobre a verdade de suas mortes. Algumas das
características dos dois sepultamentos são intrigantes e ajudam, recordando Halbwachs, a
adequar o quadro em questão à sua moldura.
O enterro dos dois ficou a cargo da Delegacia de Polícia de Palmeira d‟Oeste, como
se pode ver nas guias de receita do cemitério (Figura 3).

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Figura 3 – Guias de receita do cemitério de Palmeira d'Oeste.


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Fonte
pois, segundo as práticas
do Esquadrão da Morte, é de se esperar que os corpos fossem levados e desovados em alguma
vala ou local ermo no meio do percurso. Parece que proceder com o enterramento na própria
Palmeira d‟Oeste seria mais favorável para o caso não obter repercussão, o que não ocorreu,
pois como se viu, os jornais noticiaram tudo poucos dias depois.
Pela imagem das guias do cemitério, vê-se que a polícia não pagou valor nenhum
pelas duas sepulturas e que Altair e Maria Paula foram identificados como indigentes. Assim,
cabe questionar como seriam enterrados dois indigentes no cemitério local. A localização das
sepulturas, onde provavelmente eram os fundos do cemitério em 1971, indica que esta era a
parte menos nobre do local. Embora existam algumas sepulturas mais ornamentadas, o
predomínio é de túmulos iguais aos de Altair e Maria Paula (Figura 4).

Figura 4 – Panorama da área em que se encontram os túmulos, com o de Altair à frente e o de Maria Paula
atrás.
Ano: 2019
Autor: Filipe Botelho Soares Dutra Fernandes

Analisando os túmulos, percebe-se que eles pouco diferem da maioria dos demais –
são sepulturas simples, construídas com piso cerâmico e assentadas em argamassa e com
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pouca ornamentação. Todavia, existem alguns detalhes que podem passar despercebidos por
quem visita o local. Um destes detalhes é um dos mais intrigantes de toda a história.

Figura 5 – Detalhe da sepultura de Maria Paula.


Ano: 2018
Autor: Filipe Botelho Soares Dutra Fernandes

“Com 48 anos” diz a placa de ferro pregada à cruz na sepultura de Maria Paula. A
menção da idade da pessoa é algo bem comum em lápides de cemitérios. Desta forma, a idade
de Maria Paula não chamaria atenção se não fosse o fato dela não possuir documentos.
No decorrer de todo o Inquérito Policial, Maria Paula não tem seu sobrenome
identificado. O atestado de óbito e as matérias de jornal também apresentam apenas os dois
nomes. Enquanto os autos de arrecadação do inquérito listam, entre os bens de Altair, uma
carteira de trabalho, um registro de nascimento, um certificado de reservista e um título de
eleitor, entre os bens de Maria Paula não há nenhum documento listado. Assim, é estranho
pensar que alguém faria uma viagem tão longe sem portar nenhum documento, uma vez que
este é necessário para embarques em meios de transporte coletivos. Chama atenção também a
menção da idade e como tal inferência foi feita sem nenhum documento.
Segundo Soraia Ansara,

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[...] tornando-se públicos, os arquivos da repressão servirão de chave


para a memória das vítimas – na medida em que contribui para
recompor identidades e responsabilizar os que cometeram
arbitrariedades e violações dos direitos humanos; no plano jurídico
são provas concretas de atos violentos [...] (ANSARA, 2009, p. 132).

E é justamente este o ponto aqui, uma vez que Maria Paula teve sua identidade
apagada. Cabe questionar então, na esteira do pensamento de Ricoeur, no que tange ao
“esquecimento por apagamento dos rastros” (RICOEUR, 2007, p. 448), se teria ela deixado
algum rastro que fez com que a aparato repressor tivesse que apagar sua identidade, ou se este
apagamento se deu única e exclusivamente por seu gênero, pois como afirma Ana Maria
Colling, que estudou a resistência de mulheres ao regime militar no Brasil, “a história das
mulheres é uma história oral, recuperável somente pela memória, já que a história oficial é
feita pelos homens” (COLLING, 1997, p. 13).
Outro elemento que chama atenção nos túmulos e levante um questionamento acerca
das práticas da polícia para enterrar os dois é a identificação das sepulturas como “perpétuas”
(Figuras 6 e 7).

Figura 6 – Detalhe da sepultura de Figura 7 – Detalhe da sepultura de Maria Paula.


Altair. Ano: 2018 Ano: 2018
Autor: Filipe Botelho Soares Dutra Fernandes Autor: Filipe Botelho Soares Dutra Fernandes.

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Como já dito, a documentação mostra que Altair e Maria Paula foram sepultados
como indigentes e que a Delegacia de Polícia foi responsável pelo sepultamento, não tendo
sigo cobrado nenhum valor pela administração do cemitério, uma vez que no campo “valor”,
vê-se escrita a palavra “isento”.
A legislação brasileira prevê como particular o direito de se enterrar um morto em
um cemitério, de modo que

Quando o Poder Público legitima o particular de usar o bem público, significa que a
pessoa passa a ter a permissão de ter o direito sobre a sepultura. Ela é dada a título
precatório, não envolvendo qualquer direito do particular contra a Administração
pública. É um ato administrativo unilateral, e nesse caso a utilização do bem público
sepultura é perpétua ou temporária (com prazo estabelecido) (BRAVO).

Segundo Guioullard (apud BRAVO), para o particular ocupar solo público, de forma
perpétua e exclusiva, é necessário que seja feita uma concessão, pois de outra forma não
haveria qualquer direito do particular perante este solo. Todavia, a Delegacia de Polícia de
Palmeira d‟Oeste, embora seja um órgão público, e não particular, atuou como particular na
aquisição da concessão de uso para as covas de Altair e Maria Paula. Deste modo, em simples
palavras, a delegacia é “dona” das sepulturas em questão, uma vez que, segundo consta nos
registros da Prefeitura Municipal, que é quem administra o cemitério, foi a delegacia quem
adquiriu o direito de uso das referidas sepulturas. Assim, cabe aqui questionar porque dois
indigentes, um alegado subversivo, acusado de terrorismo e incurso na Lei de Segurança
Nacional, foram enterrados pela Delegacia de Polícia em sepulturas perpétuas, uma vez que a
cova rasa, ou as valas coletivas, foi o destino da maioria das vítimas do regime militar,
estando muitas delas ainda desaparecidas.

5. Conclusões

Segundo Beatriz Vicentini (2014), atos como a devolução simbólica do mandato de


Jango e avanços obtidos com a Comissão da Verdade servem de oportunidade para se analisar
os tempos da ditadura e verificar como ela afetou cidades do interior. Embora ações longe dos
grandes centros sejam pouco analisadas, até por conta da falta de documentos, elas ocorreram,

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sendo Palmeira d‟Oeste um exemplo disso. Todavia, o caso caiu no esquecimento local. Os
únicos vestígios que restam são o inquérito policial e as duas sepulturas.
Sendo enterrados como indigentes, o inquérito policial das mortes apresenta muitas
incongruências e sinais evidentes da deturpação comum em documentos que trataram de
assassinatos praticados pelo aparato repressor do Estado durante o regime militar. A memória
do caso foi toda construída com base na versão oficial dos fatos; e por versão oficial entende-
se um inquérito bastante questionável. No caso de Maria Paula, a situação é ainda pior, pois
sua identidade foi completamente apagada de todos os registros, sendo ela enquadrada na
premissa de Ana Maria Colling de que a história das mulheres é uma história oral, recuperável
somente através da memória (COLLING, 1997). Esta ausência de identidade parece passar
despercebida aos olhos de quem vê sua sepultura pois, segundo Ricoeur (2007), quando uma
memória não faz parte do grupo no qual a lembrança se conserva, a própria memória se esvai,
por falta de apoio externo. Assim, se pensarmos que Maria Paula não pertencia a Palmeira
d‟Oeste, sua memória desapareceu, se é que um dia ela ali existiu, uma vez que “se a
memória desaparece é porque os grupos que dela guardavam a lembrança desapareceram ou
deixaram de manter viva essa memória” (ANSARA, 2009, p. 72).
Assim sendo, com este trabalho objetivamos dar visibilidade ao caso, na esperança
de que possamos recontar a história de Altair e Maria Paula, não se atendo à versão oficial dos
fatos, que pode ser questionada por qualquer estudante no início do curso de Direito. Não é
nosso intento aqui fazer justiça, até porque muitos dos envolvidos no caso já se encontram
mortos e os agentes do DOPS, que provavelmente são quem possuíam condições e
treinamento para eliminar opositores, sequer são nomeados no Inquérito Policial; além de que
a Lei de Anistia não permitiria isso.
Todavia a discussão de casos relacionados à ditadura se faz cada vez mais essencial,
para não cairmos na tendência de querer repetir erros do passado, como tem-se ventilado por
um parcela da população, que segue enaltecendo o período. Que as mortes de Altair e Maria
Paula sirvam como exemplo de que, apesar de ser falha, a democracia segue sendo a melhor
das formas de governo. Que esta democracia nos permita, então, que a memória do caso de
Altair e Maria Paula não caia no ostracismo.

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Referências

ANSARA, Soraia. Memória política, repressão e ditadura no Brasil. 1ª ed. (ano 2008), 1ª
reimpr. Curitiba: Juruá, 2009.
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Altair Gonçalves Nunes.
Nomenclaturas: DEOPSSPA008134 e DEOPSSANTOSN00915.
. Jorge Ivo de Oliveira. Nomenclaturas: BR_SPAPESP_DEOPSSPOSFTEXSN
O000847, DEOPSSPJ011313 e DOPSSANTOSO00601.
. Odair Antonio Trindade. Nomenclaturas: BR_SPAPESP_DEOPSSPOSFTEX
NSO000042, BR_SPAPESP_DEOPSSPOSFTEXSNT001230, BR_SPAPESP_DEO
PSSPOSFICONSO000044, DEOPSSPO000280 e DOPSSANTOST00859.
. Sebastião Rodrigues. Nomenclaturas: DOPSSANTOSR01766, DOPSSANTO
SR01767, BR_SPAPESP_DEOPSSPOSFTEXSNR002115, BR_SPAPESP_DEOPS
SPOSFICONSS000861 e DEOPSSPS003532.
BICUDO, Hélio Pereira. Meu Depoimento Sobre o Esquadrão da Morte. 10ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
BRAVO, Thiago. Direito Funerário – Cemitérios. Disponível em: < https://thibravo.jusbr
asil.com.br/artigos/169156416/direito-funerario-cemiterios>. Acesso em: 15/01/2019.
COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Entrevista explosiva. Qual anistia? N. 92, 2004
COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.
FOLHA DE SÃO PAULO. Edição 15.397, de 12 de agosto de 1971.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.
JORNAL DO BRASIL. Edição 107, de 11 de agosto de 1971.
. Edição 108, de 12 de agosto de 1971.
. Edição 118, de 24 de agosto de 1971.
LUTA DEMOCRÁTICA. Edição 5426, de 25 de agosto de 1971.
MISSE, Michel. Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e
afinidades. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 40, 2011. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/rsocp/a/78Yc5DQfpnMV8QGhjTCnkcM/?lang=pt#:~:text=Na%20%
C3%A1rea%20sob%20controle%20do,a%20cidade%20como%20um%20todo. Acesso em:
10/01/2023.

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PALMEIRA D‟OESTE, Delegacia de Polícia. Inquérito Policial das mortes de Altair


Gonçalves Nunes e Maria Paula, de 19 de agosto de 1971.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp,
2007.
VICENTINI, Beatriz Helena. Piracicaba, 1964: o golpe militar no interior. Piracicaba:
Editora UNIMEP, 2014.

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