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Revista Latino-Americana de História

Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial


© by PPGH-UNISINOS

Possibilidades de ensino de história sobre a ditadura civil-militar: o


documentário “Cidadão Boilesen” e a cumplicidade financeira dos
empresários na repressão política brasileira

Diego Oliveira de Souza*

Resumo: Este artigo trata de possibilidades do ensino de História, focado na cumplicidade


financeira de empresas durante a Ditadura Civil-Militar, por meio da utilização do
documentário “Cidadão Boilesen” (2009), do diretor Chaim Litewski. Adota-se a premissa de
que as empresas são responsáveis pelos atos que, omissiva, ou comissivamente, praticaram na
consecução ou apoio a atos de violação aos direitos humanos, na repressão política. Dividido
em dois eixos, este trabalho, preliminarmente, volta-se para os testemunhos históricos,
trazidos no documentário, visando delimitar a representação histórica de um “homem de
negócios”, engajado no projeto repressivo de 1964. Posteriormente, dedica-se aos nexos do
documentário e da história da repressão política, no Brasil, apontando elementos capazes de
propiciar o ensino de história, bem como indica medidas e possibilidades de Justiça
Transicional frente ao papel dos atores econômicos na prática sistemática de violações de
direitos humanos.
Palavras-chave: Ensino de História. Ditadura Civil-Militar. Cumplicidade financeira.
Repressão Política

Abstract: This article comes to possibilities of teaching of History, focused in the complicity
financial of companies during the Dictatorship Civil-Military, through the utilization of the
documentary "Citizen Boilesen" (2009), director Chaim Litewski. Adopts-if the premise that
enterprises are responsible by acts that, omissive, or comissivamente, practiced in achieving
or support to acts of violation human rights, in political repression. Divided into two axes, this
paper preliminarily turns to the historical evidence, brought the documentary in order to
delimit the pageant of a "business man", repressive engaged in the project in 1964.
Subsequently, dedicates-if to nexuses of the documentary and the history of political
repression, in Brazil, pointing elements capable of propitiating the teaching of history, well as
1211

indicates measures and possibilities of Transitional Justice opposite the role of the economical
in systematic practice of violations rights human.
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*
Licenciado e Bacharel em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestrando em História
pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Linha de Pesquisa Migrações e Trabalho.
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Keywords: Teaching of History. Civil-Military Dictatorship. Financial complicity. Political


Repression.

Introdução

Visando à compreensão da participação de empresas e empresários: no financiamento


da repressão política, durante a Ditadura Civil-Militar, é possível estabelecer significativas
relações entre o campo do conhecimento histórico e a representação proposta por Chaim
Litewski, em seu documentário “Cidadão Boilesen” (2009). A reflexão e o posicionamento,
dos alunos de história, pode ser bastante aguçada através do documentário acerca da repressão
política e da resistência à Ditadura Civil-Militar.
Nesse sentido, está se tratando da história do “nosso próprio tempo”, e
especificamente do presente como objeto de estudo do historiador. Na visão de Eric
Hobsbawm, aquela expressão supõe que uma experiência individual de vida também seja uma
experiência coletiva, pois
(…) Se a maioria de nós reconhece os principais marcos da história mundial
ou nacional em nosso tempo de vida, não é porque todos passamos por eles,
muito embora alguns de nós possam de fato tê-lo feito ou mesmo ter
percebido na época em que eram marcos. É por isso que aceitamos o
consenso de que são marcos (HOBSBAWM, 1998, p. 44).

Em relação ao acontecimentos históricos do século XX, há de se enfatizar que os


mesmos receberam o estigma de objeto de estudo problemático, e a legitimidade de sua
abordagem pela história foi constantemente questionada. A abertura para a aceitação dos
testemunhos diretos, e sua legitimidade de abordagem pela história, ocorrida durante o século
XX, trouxe benefícios para a produção do conhecimento histórico. Sendo assim, Marieta de
Moraes Ferreira ressalta a liberdade dos homens na construção de sua própria identidade,
quando a história é construídas através de testemunhos direitos:

Essa perspectiva que explora as relações entre memória e história, ao romper


com uma visão determinista que elimina a liberdade dos homens, coloca em
evidência a construção dos atores de sua própria identidade e reequaciona as
relações entre passado e presente, reconhecendo que o passado é construído
1212

segundo as necessidades do presente e chamando a atenção para os usos


políticos do passado (FERREIRA, 2000, p. 117)

O processo histórico, envolvido pelos anos 1964-1985, a cada dia que passa recebe
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novas possibilidades de interpretação, tendo em vista o aparecimento constante de


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documentos mantidos em sigilo durante décadas. Os arquivos da repressão da política


possuem características específicas, marcadamente por ter seu âmbito envolvido nas esferas
do interesse coletivo e individual, por esse motivo: “Os arquivos em si não são guardiães da
'verdade', mas o resultado da acumulação de documentos produzidos ao longo das atividades
desenvolvidas por uma instituição, como instrumentos de seu funcionamento” (JOFFILY,
2012, p. 142).
O objetivo deste artigo é apresentar possibilidades para o ensino de história, em sala
de aula, por meio da utilização do documentário “Cidadão Boilesen”, a fim de tratar do
financiamento de atos de violações de direitos humanos, por parte de empresas durante a
Ditadura Civil-Militar. Ao abordar o tema da responsabilidade de corporações transnacionais
e outras empresas em relação aos direitos humanos, o professor de História está a colaborar
com o aprofundamento da democracia no Brasil.
Para atender o objetivo proposto, elaborou-se a seguinte questão: Como abordar a
cumplicidade financeira, ou o financiamento da repressão política, nas salas de aula de
história, tendo em vista que muito pouco do conhecimento histórico sobre a história da
Ditadura Civil-Militar é abordado nas aulas? (AQUINO, 2007, p. 39-43). Além disso, em que
medida o documentário “Cidadão Boilesen” colabora com o desenvolvimento do ensino de
História ao abordar a cumplicidade financeira, compreendida no financiamento da repressão
política, durante a Ditadura Civil-Militar?
O momento do acerto de contas da sociedade com as empresas que financiaram o
desenvolvimento do aparato repressivo, pode surgir através da seguinte questão: Como tratar
de casos em que a iniciativa privada está assumindo a posição de cúmplice na perpetração das
violações aos direitos humanos? Ademais, como bem lembra Martha Huggins a relação do
capital privado internacional e o desenvolvimento de práticas policiais excessivas no Brasil, já
no final da década de 1950, pode ser percebida através do surgimento das indústrias
automobilísticas (HUGGINS, 1998, p. 159).
De todo modo, neste estudo, parte-se da premissa de que as empresas são responsáveis
pelos atos que, omissiva, ou comissivamente, praticaram na consecução ou apoio a atos de
violação aos direitos humanos, especificamente na apoio financeiro a repressão política.1
1213

Para atender as pretensões deste artigo, parte-se, no primeiro momento, para os

1
Premissa desenvolvida pelo Procurador Regional da República, Marlon Weichert em recente artigo.
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Para maiores detalhes, ver: WEICHERT, Marlon. O financiamento de atos de violação de direitos humanos por
empresas durante a ditadura brasileira: Responsabilidade e Verdade. In: Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 2, p.
181-190, jul/dez 2008.
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testemunhos históricos trazidos no documentário “Cidadão Boilesen” visando delimitar a


representação histórica de um “homem de negócios” engajado em projetos repressivos após o
Golpe Civil-Militar de 1964. No segundo momento, dedica-se atenção aos nexos do
documentário e da história da repressão política, no Brasil, após 1964, visando apontar
elementos capazes de propiciar o ensino de história sobre a cumplicidade financeira dos
empresários na repressão política brasileira, bem como são indicadas medidas e possibilidades
de Justiça Transicional frente ao financiamento da prática sistemática de violações de direitos
humanos.

Um “homem de negócios” engajado no projeto repressivo do Golpe Civil-Militar de 1964

A relação dos historiadores e o cinema, embora seja marcada pela interpretação


incerta, é algo recorrente nos domínios da análise da sociedade. Marc Ferro analisa a
linguagem do cinema, como forma de compreender o significado do cinema para a história,
desse modo, assevera a proximidade entre a leitura dos sonhos e do cinema:
A 'linguagem' do cinema revela-se ininteligível e, como a dos sonhos, é de
interpretação incerta. Mas essa explicação não é satisfatória para quem
conhece o infatigável ardor dos historiadores, obcecados por descobrir novos
domínios, capazes de fazer falar até troncos de árvores, velhos esqueletos e
aptos para considerar essencial aquilo que até então julgavam
desinteressante. (FERRO, 2010, p. 25)

O estudo do desenvolvimento da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) deve levar


em consideração sua ligação com a cumplicidade financeira dos empresários, nacionais e
multinacionais, na implementação do Terror de Estado (TDE), no contexto amplo da América
Latina. Para Enrique Padrós, o surgimento da contrainsurgência trata-se de combinação de
fatores macro-estruturais associados aos fatores político, ideológico e estratégico, os quais
consolidam, a contrainsurgência diante dos focos de contestação ao status quo existente.
(PADRÓS, 2005, p. 57)..Os fatores macro-estruturais ganham evidência por meio da busca
pela hegemonia estadunidense, no bloco capitalista, a qual se reflete intensamente em sua
política externa voltada para as Ditaduras latino-americanas.
De outro lado, ao serviço do Estado estão aparelhos repressivos, os quais representam
1214

os mecanismos efetivos para a consecução de seus objetivos político-econômicos e sociais.

Ao serviço do Estado estão aparelhos repressivos fortemente treinados e


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armados, como as polícias e as forças militares. Na estruturação destes


aparelhos se apresenta uma organização burocrática com várias e complexas
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ramificações, um conjunto ideológico que justifica as suas ações, um forte


sentimento corporativo e uma racionalidade instrumental que perpassa todas
as suas instâncias (SILVA FILHO, 2011, p. 51).

O fortalecimento das Ditaduras necessita por determinado período de tempo de fontes


financeiras. Nessa direção, criam-se condições para o desenvolvimento da violência
sistemática, pois em busca de caminho para permanecer no poder, “(...) um regime tem que
ser capaz de enfrentar situações econômicas de modo a garantir um apoio político mínimo
e/ou permitir que a máquina burocrática (particularmente a militar) funcione de forma
eficiente para controlar e reprimir” (BOHOSLAVSKY; TORELLY, 2011, p. 32).
Ao refletir-se acerca da interpretação da história da violência, com base em apoio
financeiro de empresas, praticada por agentes de Estado, é possível aproximar-se da
indagação de Arlete Farge, a qual questiona-se diante do que deve ser dito dos momentos em
que a própria violência parece lacerar o simbólico e fazer de tal modo que a ordem que
seguirá seja forçosamente estraçalhada por essa experiência traumática? (FARGE, 2011, p.
32).
Além disso, ao se analisar-se a produção de filmes não se pode deixar de levar em
conta suas condições de reprodução. O alemão Walter Benjamin dedicando-se ao estudo da
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, deteve-se sobre a produção de filmes e
delineou o aspecto significativo para o filme contido em suas condições de reprodução:
“Nunca as obras de arte foram reprodutíveis tecnicamente, em tal escala e amplitude, como
nossos dias. O filme é uma forma cujo caráter artístico é em grande parte determinado por sua
reprodutibilidade”(BENJAMIN, 1994, p. 174).
Os estudos sobre a Ditadura Civil-Militar defrontam-se com visões ainda bastante
relacionadas ao período de repressão política. Consequentemente, há um choque de visões, o
qual gera tensão que é aumentada em grande medida porque parte significativa dos arquivos
da repressão permanece indisponível ao público. Diante disso, as memórias tornam-se recurso
histórico fundamental para a reconstrução de vários aspectos dos anos vividos sob a égide
militar, por esse motivo, “os discursos produzidos nas memórias constituem pistas para o
levantamento das ideias de um contexto histórico em que diferentes interesses e
1215

posicionamentos político ideológicos estão presentes” (MANCUSO, 2011, p. 178).


De todo modo, no documentário de Chaim Litewski, o industrial dinamarquês, de
Copenhague, nascido em 14 de fevereiro de 1916, era conformes as informações do Arquivo
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Municipal, da Cidade de Fredeikerke um “dos melhores escoteiros da Escandinávia”. Nas


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palavras de VEJA, Henning Boilesen seria “um bom exemplo do que os americanos
costumam definir como um self made men”, considerado “(...) um dos primeiros e mais
entusiasmados entre os homens de negócios a se engajarem em projetos do governo após a
Revolução de 1964” (VEJA, Edição 137, de 21 de abril de 1971, p. 23).
Após o justiçamento de Henning Albert Boilesen, o Município de São Paulo, através
da publicação de Decreto do Poder Executivo, de abril de 1973, promove homenagem a
colaboração de Henning Albert Boilensen com o desenvolvimento da cidade, nomeando uma
rua em com seu nome. A denominação da Rua Henning Albert Boilesen, empresário e
industrial, pouco efeito parece surgir hoje pois, conforme retrata Chaim Litewski, os
moradores da rua desconhecem quem foi o industrial dinamarquês naturalizado brasileiro.
Apontada a importância dos testemunhos históricos para a construção do
conhecimento histórico, passa-se a seguir destacar a contribuição do documentário “Cidadão
Boilesen”.O industrial Boilesen chegou ao Brasil em 1939, durante a Segunda Guerra
Mundial, e veio a empregar-se na Ultragás em 1952. Em 1967, tornou-se presidente da
Companhia Ultragás. As relações sociais do empresário Peri Ingel e o industrial dinamarquês,
são destacadas através da afirmação de que os mesmos consideravam-se como “irmão de
sangue de Boilesen”.
De outro lado, as palavras do Almirante Reinaldo Saldanha da Gama, pronunciadas
junto ao túmulo de Boilesen, reproduzidas por VEJA, ilustram o fato de que a preocupação de
resolver os grandes problemas nacionais teria levado Boilesen a criar uma associação de
combatentes da subversão na área empresarial; tornando-se a partir de sua morte o primeiro
herói desses novos combatentes (VEJA, Edição 137, de 21 de abril de 1971, p. 23).
No documentário de Litewski, o testemunho histórico de Dirceu Antônio, ex-agente da
Operação Bandeirante (OBAN), retrata Henning Boilesen como “um cara excepcional”,o qual
tratava todos os militares e civis que trabalhavam no aparelho repressivo de forma igual. Das
afirmações de Dirceu Antônio, destaca-se ainda sua possível participação na “fundação” da
OBAN, e o relato das mudanças ocorridas a partir da institucionalização do DOI/CODI/II
Exército, bem como a melhoria das “condições de trabalho”. Nesse mesmo sentido, as
palavras do Coronel Erasmo Dias, ex-Secretário da Segurança Pública de São Paulo do
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período da Ditadura Civil-Militar, ressaltam a afinidade do empresário Boilesen e o setor


militar, pois “ele pensava como a gente”.
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Os testemunhos históricos retratados no documentário também dão conta da relação


do empresário Boilesen e as atividades da Petrobras. Na época o então Presidente da
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Petrobras Hélio Beltrão, aparece no documentário falando sobre a relação entre a Ultragás e
sua sócia, a Petrobras. Já Paulo Egydio Martins, ex-governador de São Paulo, lembra que
Boilesen “era um homem público, idealista”, além disso, “possuía uma metralhadora que
carregava consigo”. Interessando observar a posição de São Paulo, no desenvolvimento das
atividades repressivas, no documentário, o Coronel Jarbas Passarinho ao lembrar que dois
hemisférios dividiam o mundo em 1964, o ocidental capitalista e o oriental, de influência
comunista; considerava a cidade de São Paulo como grande destaque para atuação das
esquerdas armadas, o contexto político era muito agitado tendo em vista a posição da cidade
na economia do país.
O ex-Delegado do DEOPS José Paulo Boncristiano, o qual trabalhou com o Delegado
Sérgio Paranhos Fleury, assegura que após o justiçamento do Capitão do Exército norte-
americano, Charles Chandler, o surgimento da Operação Bandeirante (OBAN) era uma
“necessidade militar”, tendo em vista a falta de preparo tanto do Exército, quanto das Polícias
Civis e Militares para reprimir a ação da esquerda armada. O jornalista Percival de Souza fala
sobre a amizade de Boilesen com o Delegado Fleury, a qual levou Fleury a transplantar o
modus operandi do Esquadrão da Morte (EM) para a repressão política. Já o coronel Carlos
Alberto Brilhante Ustra, na sua contribuição para o documentário, faz leitura de seus escritos;
afirmando que Henning Albert Boilesen esteve uma única vez na sede do DOI/CODI/II
Exército, no dia 29 de dezembro de 1970, para dar-lhe os cumprimentos pelo final do ano.
Os testemunhos históricos que apresentam o contraditório das memórias favoráveis à
representação do empresário Boilesen surgem a partir dos relatos de ex-militantes da
esquerda, captados por Chaim Litewski. Diante disso, a participação de Boilesen na
arrecadação de recursos financeiros para a repressão, bem como sua participação em sessões
de tortura surgem na fala de Carlos Eugênio Paz, o Comandante “Clemente”, da Ação
Libertadora Nacional (ALN). Ademais, Carlos Eugênio Paz também assevera a descoberta de
caminhões da Ultragaz, em locais em que os militantes de esquerda eram capturados pelos
agentes da repressão. No mesmo andar, Jacob Gorender acentua a participação de Boilesen
nas sessões de tortura. O jornalista Antônio Carlos Fon aponta detalhes do recolhimento da
caixinha por parte de Boilesen, para o financiamento da repressão, ainda relata a importação
1217

de equipamento de tortura pelo empresário da Ultragaz, a chamada“pianola Boilesen”. O ex-


membro do Ministério Público do Estado de São Paulo, Hélio Bicudo, também lembra que a
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morte de Boilesen trazia alerta para os empresários que financiavam a repressão política, pois
mesmo sob o aparato de segurança da Ditadura Civil-Militar, demonstrava-lhes que não
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estavam seguros.
Boilesen era agente da CIA? A questão é lançada pelo Diretor Litewski e não é
esclarecida no documentário. A possível documentação existente nos arquivos da inteligência
norte-americana, referentes a Henning Boilesen e ao financiamento da repressão política no
Brasil, são solicitados pelo Diretor que em reposta ao seu pedido, é informado que tais
documentos não estão disponíveis para a consulta, tendo em vista colocar em risco a
segurança nacional dos EUA. Outra questão abordada no documentário diz respeito à
distinção entre financiador a nível local e nacional da repressão política.
Trazidos os principais testemunhos históricos apresentados no documentário “Cidadão
Boilesen”, em relação ao documentário e o pensamento histórico, cabe a questão: Será que
algum filme conta como 'pensamento histórico' ou contribui para algo que possamos chamar
de entendimento histórico? Nessa direção, necessário perceber a influência das mídias visuais
sobre o mundo que vivemos, um dos temas que Robert Rosenstone desenvolve em seus
trabalhos. No entrelaçamento entre cinema e história, assegura Rosenstone que para se ver o
passado, “(...) parece mais sensato admitir que vivemos em um mundo moldado, mesmo em
sua consciência histórica, pelas mídias visuais e investigar exatamente como os filmes
trabalham para criar um mundo histórico” (ROSENSTONE, 2010, p. 29).
Contudo, a cumplicidade financeira dos empresários pode ser melhor compreendida a
partir da realização dos crimes do Estado, durante a Ditadura Civil-Militar. A prática
sistemática de violações de direitos humanos contra a dissidência política, a qual incluía a
prisão ilegal, a tortura física e psicológica, o desaparecimento forçado, a morte, bem como a
ocultação das reais causas da morte é peça chave para perceber-se o sentido da cumplicidade
no financiamento do aparato repressivo ditatorial.

O Documentário e a História da Repressão Política no Brasil

Para refletir acerca dos laços do Documentário “Cidadão Boilesen” e a história da


repressão política no Brasil, elaborou-se a seguinte questão: o documentário seria uma espécie
de responsabilização pela colaboração com as violações de direitos humanos, praticadas nas
dependências da Operação Bandeirante (OBAN) ou então, nas dependências do DOI/CODI/II
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Exército?
Inspirando-se na perspectiva proposta por Robert Rosenstone, busca-se a relação entre
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as mídias visuais, neste caso o documentário, e a construção de um mundo histórico. Nesse


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sentido, nada mais oportuno do que lembrar das palavras de Marc Bloch, em relação ao ofício
de historiador. Para o historiador francês, o objeto da história é, por natureza, o homem:
(...) Digamos melhor: os homens. Mais que o o singular, favorável à
abstração, o plural, que é o modo gramatical da relatividade, convém a uma
ciência da diversidade. Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem,
[os artefatos ou as máquinas,] por trás dos escritos aparentemente mais
insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas daqueles que as
criaram, são os homens que a história quer capturar (BLOCH, 2002, p. 54).
Sendo assim, o documentário de Chaim Litewski ao contemplar a temática do
financiamento da repressão da Ditadura Civil-Militar, propicia aos alunos de história
perceberem a importância da experiência histórica socialmente acumulada na dinâmica do
processo ditatorial, especialmente nas suas manifestações mais violentas, compreendidas na
prática sistemática de violações de direitos humanos.
De forma geral, o contexto histórico anterior àquele retratado no documentário
possibilita seja provocado o reconhecimento da existência de articulações entre as diferentes
dimensões (local, regional e mundial), e o seu inter-relacionamento entre a História da
Repressão Política no Brasil e na América Latina. Desse modo, pode-se abordar a conjuntura
internacional e seu reflexo sobre o período considerado “populista” no Brasil, em especial o
governo de João Goulart (1961-1964). A crise do “Populismo” e o Golpe Civil-Militar de
1964 são necessários a uma abordagem inicial do documentário de Chaim Litewski em sala
de aula.
A História da República brasileira, após 1964, é marcada pela adoção de novo modelo
político e econômico, voltado tanto para os interesses internacionais, em especial, os norte-
americanos, como também apresenta um viés nacionalista, como diz respeito as primeiras
ações do governo de Castelo Branco, destinadas para a substituição das concessionárias
estrangeiras de eletricidade. (Ata da 24ª Sessão do Conselho de Segurança Nacional. 21 de
agosto de 1964. Arquivo Nacional)
De outro lado, em seu trabalho frente a Comissão Nacional da Verdade, Claudio
Fonteles, trouxe a público significativas informações extraídas de documentos sigilosos,
oriundos dos acervos do Arquivo Nacional. Daquela documentação, o ex-comissionado
Fonteles ressaltou a união industrial-militar, celebrada desde 31 de Março de 1964,
1219

representada por diversos atores, dos quais

A evidência de que a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo –


FIESP – por seu Grupo Permanente de Mobilização Industrial – GPMI –
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efetivamente em sua composição reservou assento para militares de alta


patente resta cristalina pelo conteúdo da Portaria nº 944-GM1, publicada no
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Diário Oficial – seção I – parte I – de 28 de dezembro de 1965 – pg. 43, pelo


qual o Brigadeiro do Ar Agemar da Rocha Santos foi autorizado pelo
Ministro da Aeronáutica 'a se ausentar do País, no período de 8 a 13 de
dezembro de 1965, a fim de visitar os Estados Unidos, como integrante do
Grupo Permanente de Mobilização Industrial, a convite do Governo
daquele País, sem ônus para os cofres públicos'.2
De toda maneira, há de se ressaltar que a participação de grupos de empresários no
financiamento da estrutura repressiva da Ditadura Civil-Militar, já fora apontada bem antes do
documentário. Pois, como bem lembra o jornalista Antônio Carlos Fon, a participação dos
empresários no desenvolvimento do sistema de repressão brasileiro, preocupação central dos
militares, ocorreu a partir do Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI). Formado
nos primeiros dias após o Golpe Civil-Militar de 1964, o GPMI reunia não só empresários
interessados na possibilidade de abertura de um novo campo para a iniciativa privada, mas
também cidadãos como o industrial Henning Albert Boilensen, o qual em 1969:
colocou aos industriais ligados ao GPMI a questão da participação do
empresariado na luta pela manutenção da segurança interna. A ideia era
de que, como a guerra externa, a luta anti-subversiva era também uma tarefa
de defesa da segurança nacional, da qual deveriam participar todos os setores
da sociedade, incluindo-se aí os empresários (FON, 1980, p. 54-55).
Antes, ainda é importante notar que a Carta Constituinte, outorgada em 1967,
considerada a institucionalização do Golpe Civil-Militar de 1964, ao tempo em que havia
estabelecido a eleição indireta para presidente da República, também tornou a Segurança
Nacional responsabilidade de todos os cidadãos, conforme seu artigo 89: “Toda pessoa natural
ou jurídica é responsável pela segurança nacional, nos limites definidos em lei”. De toda
forma, segundo as memórias do General Sylvio Frota, Ministro do Exército do Governo
Geisel, havia assédio dos industriais ao Comando do II Exército, em São Paulo, tendo em
vista que:
o Comando do II Exército era procurado, diariamente, por industriais e
pessoas da mais alta categoria social, que lançavam insistentes apelos para
que o Exército interviesse na situação, proporcionando, deste modo,
segurança e tranquilidade ao laborioso povo paulistano (FROTA, 2006, p.
216).
Neste sentido, o documentário possibilita o detalhamento do Aparato Repressivo da
Ditadura Civil-Militar através da criação da Operação Bandeirante (OBAN), no primeiro
momento, e posteriormente, a partir do desenvolvimento dos DOI/CODI (Destacamento de
1220

2
Sobre as últimas investigações acerca do Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI), cabe
referir o texto do atual membro da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o ex-Procurador Geral da República,
Cláudio Fonteles, constituído a partir de pesquisas junto ao Arquivo Nacional, em documentos confidenciais
Página

produzidos pelo Serviço Nacional de Informações – SNI. Em especial ver: FONTELES, Claudio. A união
industrial militar. Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/index.php/publicacoes/177-textos-de-claudio-
fonteles>. Acesso em 18 de fevereiro de 2013, grifos nossos.
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Operações de Informações, do Centro de Operações de Defesa Interna) em nível nacional.


Agregando-se a este fato, a possibilidade de se elucidar a participação de civis (não só de
industriais, mas também de empresas jornalísticas, como no caso da Folha de São Paulo) na
condução dos rumos da repressão política. Trata-se, portanto, de evidenciar o elemento “civil”
da Ditadura, justificando, dentre outras razões, o uso do termo Ditadura Civil-Militar.
Manifestando o caráter autoritário da repressão difundida pelo Estado brasileiro, é
oportuno salientar que para a constituição do Aparato Repressivo da Ditadura Civil-Militar foi
fundamental elaborar uma base jurídico-filosófica para justificar qualquer ato, tornando lícito
o que era intrinsecamente ilícito. Com isso, foi desenvolvida durante três anos, de
prolongados debates na Escola Superior de Guerra (ESG) e encontrava-se já cristalizada em
meados de 1968, a filosofia do “prender, torturar, matar, tudo é permitido para defender a
segurança nacional”, fundamentada na transposição para o âmbito das relações internas, entre
o Estado e os indivíduos, de alguns princípios do Direito Internacional Público que tratam das
relações entre Estados beligerantes (FON, 1980, p. 27).
Ademais, do ponto de vista dos militares, o combate à dissidência política, isso é, a
resistência à Ditadura Civil-Militar, antes da criação da Operação Bandeirante (OBAN), em
São Paulo, encontrava muitas limitações, tendo em vista que havia dispersão de esforços e
ilusão no intercâmbio de informações, pois como enfatiza Sylvio Frota “(...) não havia,
contudo, a mínima coordenação nas atividades de repressão. Cada organização agia por
orientação própria e só eventualmente estabelecia ligações com as demais (…)” (FROTA,
2006, p. 216).
Partindo da premissa da falta de concentração de esforços e de centralização das
informações, de forma pioneira, numa conjugação de esforços civis-militares acaba por
originar-se a instalação da Operação Bandeirante (OBAN) em São Paulo. Contando com os
esforços reunidos pelo Exército brasileiro, em especial àqueles do II Exército, a criação da
OBAN, ficou a cargo do comandante do II Exército, o General José Canavarro Pereira, pois
(...) como responsável legal pela segurança, de sua jurisdição, decidiu
enfeixar, em suas mãos, todos os elementos destinados à segurança, que
deveriam atuar sob diretrizes suas. Fez elaborar, com esta finalidade pela 2ª
Seção do II Exército, minucioso planejamento, do qual nasceu, consoante já
1221

se disse, a Operação Bandeirante (OBAN) (FROTA, 2006, p. 216).


Detalhando de forma mais clara o que se passa no documentário “Cidadão Boilesen”,
tem-se que a partir da Diretriz para Política de Segurança Interna, do Governo Costa e Silva,
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de Julho de 1969, foi necessário realizar esforços mútuos para concretizar as pretensões
contidas naquele documento. Com isso, o surgimento da Operação Bandeirante (OBAN) traz
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a união de forças para combater à dissidência política, em São Paulo. Portanto, cabe destacar
que os esforços realizados, para combater os opositores da Ditadura Civil-Militar, contaram
com a participação do prefeito da cidade, Paulo Maluf, do governador do Estado de São
Paulo, Roberto Costa de Abreu Sodré e de grandes grupos comerciais e industriais paulistas,
nas palavras do jornalista Elio Gaspari:
A reestruturação da PE paulista e a Operação Bandeirante foram socorridas
por uma 'caixinha' a que compareceu o empresariado paulista. A banca
achegou-se no segundo semestre de 1969, reunida com Delfim num almoço
no palacete do clube São Paulo, velha casa de dona Veridiana Prado. O
encontro foi organizado por Gastão Vidigal, dono do Mercantil de São Paulo
e uma espécie de paradigma do gênero. Sentaram-se à mesa cerca de quinze
pessoas. Representavam os grandes bancos brasileiros. Delfim explicou que
as Forças Armadas não tinham equipamentos nem verbas para enfrentar a
subversão. Precisava de bastante dinheiro (GASPARI, 2009, p. 61-62).
Desse modo, após detalhar a criação da Operação Bandeirante, o documentário
também permite que se explore o surgimento dos Destacamentos de Operações de
Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), como decorrência do
aperfeiçoamento do Aparato Repressivo ditatorial. Sendo assim, o que se observa no
surgimento da Operação Bandeirante (OBAN), a partir da Diretriz para Política de Segurança
Interna, do governo Costa e Silva, em Julho de 1969, e posteriormente na edição da Diretriz
Presidencial de Segurança Interna, elaborada no governo Emílio Garrastazu Médici, em
setembro 1970, é a nova orientação para o combate à dissidência política no Brasil.
Após tratar do aperfeiçoamento do Aparato Repressivo da Ditadura Civil-Militar, entre
1969-1970, também pode-se abordar o aspecto da resistência daqueles que se opunham aos
rumos da empreitada autoritária civil-militar. Sendo assim, oportuniza-se o momento de
enfatizar a necessidade do ato de reconhecimento ao direito de resistência. As razões
fundamentais da tradição do direito à resistência, como lembra Norberto Bobbio, remonta aos
primeiros estudos contratualistas e acompanha-nos até a atualidade. Duas são as linhas de
sustentação daquele direito, sendo que uma delas vincula-se à obediência irrestrita ao
soberano, e a outra defende o direito de resistência a ele em nome de uma causa maior – como
a república ou a democracia. Com isso,em relação a tais linhas de sustentação esclarece o
filósofo italiano :
1222

O primeiro ponto de vista é o de quem se posiciona como conselheiro do


príncipe, presume ou finge ser o porta-voz dos interesses nacionais, fala em
nome do Estado presente; o segundo ponto de vista é o de quem fala em
nome do antiestado ou do Estado que será. Toda a história do pensamento
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político pode ser distinguida conforme se tenha posto o acento, como os


primeiros, no dever da obediência ou, como os segundos, no direito à
resistência (ou a revolução) (BOBBIO, 2004, p. 151).
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Diante disso, a premissa que serve para situar as ações dos grupos armados diante dos
desmandos ditatoriais, quando reflete-se sobre o tema da resistência à opressão, é aquela do
segundo ponto de vista referido por Norberto Bobbio. Assim, aqueles que se opunham à
Ditadura Civil-Militar, de forma organizada, em especial através dos usos de armas, estavam a
exercer o “direito à resistência”, falando eles, portanto, em nome do “novo Estado”, ou
mesmo do “antiestado”, como alertava Norberto Bobbio.
A experiência daqueles sujeitos que ousaram exercer o direito de resistência a um
Estado autoritário necessita ser vista como exemplo de conduta política. Nas palavras de Jean
Chesneaux, o discurso histórico, por vezes, apresenta uma armadilha política. Nesse sentido,
o passado ao mesmo tempo é lastro e armadilha, mas antes de tudo é direito, por isso, deve-se
fazer tábula rasa do passado contra as referências-armadilhas à história, compreendendo o
passado como amarração de luta vestida de exemplos e não de modelos (CHESNEAUX,
1995, p. 185-200).
Especificamente sobre o documentário de Litewski, é possível perceber que o mesmo
acerta em dois aspectos principais: em primeiro, por ao fazer a biografia de Henning Boilesen,
através de pessoas que de alguma forma conviveram com o empresário dinamarquês,
políticos, como Paulo Egídio Martins e Jarbas Passarinho, os quais dão depoimentos
favoráveis a Boilesen; e em segundo lugar, ao trazer depoimentos de militantes políticos da
Ação Libertadora Nacional (ALN) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), os
quais confirmam a atuação do empresário, no financiamento do Aparato Repressivo da
Ditadura Civil-Militar e no acompanhamento de sessões de tortura.
De toda maneira, sobre as ações de resistência armada, compreendidas em sentido
amplo, remontando aos primeiros estudos contratualistas e as concepções de relação entre
Estado e Sociedade Civil, cabe mencionar a versão oficial, acerca das circunstâncias da morte
do industrial Henning Boilesen, chancelada pelos facilitadores da violência e os operadores
direto da violência (HUGGINS et. al. 2006). A ação foi executada pelo Comando
Revolucionário, composto de integrantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) e do
Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), sendo um dos seus motivos a morte de
Devanir José de Carvalho ("Henrique", "Justino", "Heitor"), líder do MRT:
1223

No dia seguinte, 15 de abril de 1971, novamente o Comando Revolucionário


tomou posição. Dessa vez, pontual, Boilesen saiu da casa de seus filhos, às
0910 horas. O planejamento, no entanto, não fora bem feito. Ao entrarem na
[Rua] Estados Unidos, os terroristas observaram, surpresos, que o Ford
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Gálaxie do industrial já virava à direita, tomando a Rua Peixoto Gomide.


Após alguns segundos de hesitação, decidiram agir assim mesmo e saíram
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em perseguição ao carro. Para evitar uma feira livre, Boilesen entrou na Rua
Professor Azevedo Amaral e pegou a Barão de Capanema. Na esquina da
Alameda Casa Branca, parou para entrar à esquerda. Nesse momento, os
dois carros emparelharam com o dele. Pela esquerda, Yuri, colocando o fuzil
para fora da janela, disparou um tiro que raspou a cabeça de Boilesen. Este
saiu do Gálaxie e tentou correr em direção contrária aos carros. Foi inútil.
José Milton descarregou a metralhadora em suas costas e Yuri desfechou-lhe
mais três tiros de fuzil. Cambaleando, Boilesen arrastou-se por mais alguns
metros, indo cair na sarjeta, junto de um outro Volkswagen. 3
Em relação ao fato motivador da morte do industrial Boilesen, não parece correto
afirmar apenas a existência de uma causa única. Bem, pelo contrário a possibilidade de se
pensar em causas é o que melhor nos parece. Isto porque, o efeito da atuação repressiva do
Estado, principalmente, sobre a resistência dos trabalhadores e da sociedade de forma geral,
foi capaz de mobilizar um grupo de cidadãos decididos a fazer valer o direito de resistência.
Em tempo, a tortura como política socialmente aceita é tema que deve ser discutido,
acima de qualquer espécie de revanchismo. A forma como ocorreu o desenvolvimento do
aparato repressivo da Ditadura Civil-Militar e a utilização da tortura como método para
obtenção de informações é algo tão importante quanto a promoção do julgamento dos
responsáveis por tais práticas. No pensamento de Daniel Aarão Reis, a questão da tortura e
sua relação com a sociedade é bastante ampla, posto que

De uma ampla discussão sobre esta questão sinistra, talvez pudéssemos


chegar ao julgamento dos torturadores. Caberia aí uma penúltima questão:
julgar os torturadores hoje não configuraria mesquinho revanchismo? Por
considerar que a tortura foi uma política de Estado repugna-me a caça a
bodes expiatórios, inclusive porque estes, uma vez imolados, poderiam
ocultar o debate mais importante e decisivo, sobre a tortura e seu contexto
histórico, sobre a tortura como política socialmente aceita (REIS, 2010, p.
180).

Ainda poderá ser abordado, nas salas de aula de história, distintas possibilidades e
medidas capazes de serem adotadas, pelo Estado, para tratar da cumplicidade financeira,
disponíveis na ordem legal corrente brasileira. Ao se refletir sobre as medidas e as
possibilidades de tratar do Dever de Memória, Verdade e Justiça do Estado brasileiro, parte-se
do conceito de Justiça Transicional, a qual de acordo com Jon Elster: “é composta pelos
processos de juízos, expurgos e reparações que têm lugar no período de transição de um
1224

regime político para outro” (ELSTER, 2006, p. 15).


No cenário da promoção de medidas de Justiça Transicional, especificamente em
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Ver detalhes em: http://www.ternuma.com.br/boilesen.htm, acesso em 15/06/2010.
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relação à cumplicidade financeira de empresários no financiamento da repressão política,


conforme Juan Bohoslavsky e Marcelo Torelly, no eixo tocante às reparações, destaca-se duas
medidas, disponíveis na ordem legal vigente: a promoção de ações judiciais regressivas dos
valores pagos, pelo Estado brasileiro, por reparação a vítimas da Ditadura Civil-Militar, bem
como ações compensadoras movidas diretamente pelas vítimas contra emprestadores e
administradores de empresas envolvidas na repressão política (BOHOSLAVSKY; TORELLY,
2011, p. 101).
Além disso, também podem ser adotadas medidas no eixo da verdade e memória, para
tratar do financiamento da violações de direitos humanos durante a Ditadura Civil-Militar.
Nesse eixo, destacam-se três possibilidades em torno de projetos de memória e
memorialização de locais, também propostas por Juan Bohoslavsky e Marcelo Torelly. A
primeira diz respeito às iniciativas culturais e históricas específicas que poderiam ser
implementadas para lembrar o papel de instituições financeiras e atores privados na repressão
política. A segunda trata de mudanças nos programas educacionais (especificamente em
história). A terceira aponta a necessidade de identificação pública dos locais onde
funcionavam fábricas e organizações que cooperaram com a repressão (BOHOSLAVSKY;
TORELLY, 2011, p. 104).
No tocante às reformas institucionais, voltadas para as medidas de Justiça
Transicional, direcionadas ao tratamento da cumplicidade financeira dos empresários na
repressão política, indica-se duas medidas específicas. O Estado brasileiro poderá
providenciar o acesso a documentos relevantes nas ligações entre finanças, a Ditadura e seus
crimes, ao tempo em que também poderá promover o financiamento de projetos específicos
sobre responsabilidade financeira e corporativa no Sistema Interamericano de Direitos
Humanos (BOHOSLAVSKY; TORELLY, 2011, p. 106-107).
Por fim, também poderão ser adotadas medidas voltadas para a Justiça e o Estado de
Direito, frente à responsabilização dos agentes envolvidos no financiamento da repressão
política. Sobre as ações judiciais civis possíveis, no sistema legal atual, enfatiza-se três
formas. A primeira aborda as ações baseadas no direito à verdade, para saber os detalhes do
papel desempenhado pelos emprestadores. As demais tratam da responsabilidade econômica
1225

dos emprestadores e administradores por cumplicidade financeira, além das ações contra
emprestadores e empresas para recuperar parte do dinheiro do Estado gasto nas reparações a
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vítimas (BOHOSLAVSKY; TORELLY, 2011, p. 110).


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Conclusão

Dos desdobramentos deste artigo, tem-se que o documentário “Cidadão Boilesen”


instiga o pensamento em torno da responsabilização pela cumplicidade financeira dos
empresários, no financiamento da repressão política durante a Ditadura Civil-Militar. Ao
mesmo tempo em que coloca o desafio de se pensar de que maneira poderá ocorrer tal
responsabilização e mesmo quais poderão ser as iniciativas de reparação adotadas diante da
colaboração com a prática sistemática de violações de direitos humanos.
Em complemento, nas salas de aula de história, é possível evidenciar a relação do Ato
Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, e o acirramento do combate à dissidência
política. O diretor Chaim Litewski, ao longo do documentário, através dos testemunhos
históricos trazidos permite que se perceba o aumento do uso da violência, no momento da
institucionalização do Aparato Repressivo, ocorrido na federalização dos Destacamentos de
Operações e Informações (DOI), do Centro de Operações Defesa Interna (CODI), durante
1970.
Além disso, a opacidade dos crimes da Ditadura Civil-Militar, no pós-1985, em
especial diante da cumplicidade financeira da repressão política, por parte de empresas e
corporações, é tema de atual relevância para o futuro da produção do conhecimento histórico.
Somente o maior acesso aos registros de informações do período, possibilitará o aumento da
compreensão do passado de violações de direitos humanos, compreendidos entre 1964-1985,
bem como apontará caminhos para a responsabilização cível ou criminal por cumplicidade
nas violações aos direitos humanos. Claro, necessário frisar que Boilesen não foi o único
empresário a contribuir com os militares e a utilização da tortura como método de obtenção
das informações.
Por fim, importa mencionar a contribuição do documentário “Cidadão Boilesen” para
a construção dos esclarecimentos das violações de Direitos Humanos, praticadas de forma
sistemática durante a Ditadura Civil-Militar (1964-1985). Ao tempo em que o documentário
desenvolve o conhecimento acerca do financiamento empresarial da prática estatal repressiva,
também aumenta a empatia social em torno dos crimes da Ditadura Civil-Militar, favorecendo
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a possibilidade de se efetivar o fim da impunidade, através do julgamento penal dos agentes


estatais e seus colaboradores.
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Fontes Pesquisadas
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CIDADÃO BOILESEN. Direção: Chaim Litewski. Palmares Produções Cinematográficas,


2009. DVD (92 min), NTSC, color.
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