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O jogo da memória: representações, na literatura e no cinema, da

ditadura militar “encoberta” pelo espetáculo esportivo


Letícia Boff Scheffer1

Escrever a história dos vencidos exige a aquisição de conhecimentos que


não constam nos livros da história oficial (...). O historiador (...) pretende
fazer emergir as esperanças não realizadas (no) passado e inscrever em
nosso presente seu apelo por um futuro diferente (...). O esforço (...) é não
deixar essa memória escapar, mas zelar pela sua conservação, contribuir
na reapropriação desse fragmento de história esquecido pela historiografia
dominante (Jeanne Marie Gagnebin).

Resumo: Partindo de duas linguagens da arte – a literatura e o cinema – este artigo pretende
analisar as relações entre o futebol, de maneira especial a Copa do Mundo de 1970, e a ditadura
militar. A análise destas relações se dá a partir do romance Ana sem terra de Alcy Cheuiche e do
filme O ano em que meus pais saíram de férias, dirigido por Cao Hamburger. Para tanto, procura-se
compreender as estratégias publicitárias dos governos militares capazes de produzir a ideologia de
“Brasil Grande”, como a conquista da Copa, e a tentativa (insuficiente) de encobrir os anos violentos.

Palavras-chave: Ditadura militar. Futebol. Literatura. Cinema. História.

Abstract: Starting from two languages of art – the literature and the film – this article intends to
analyze the relationships between soccer, in a special way a World Cup of 1970, and the military
dictatorship. The analyze of these relationships is given from the novel “Landless Ana” by Alcy
Cheuiche and the film “The Year My Parents Went on Vacation”, directed by Cao Hamburger.
For such it is tried to figure out military governments advertising strategies capable to produce the
ideology of “Large Brazil”, as the World Soccer Championship winning, and the insufficient attempt of
covering up violent years.

Keywords: Military dictatorship. Soccer. Literature. Cinema. History.

A produção literária contemporânea, em parcela significativa, invoca a necessidade


da compreensão do período ditatorial militar no Brasil, o qual compreendeu 21 anos
(1964-1985). Com ela, inquietações e reflexões parecem ser infinitas. O cinema,
outra linguagem da arte, também contribui na leitura e expressão desta época,
sobretudo servindo-se de histórias periféricas para mostrar o enfrentamento da
repressão política e, por outro lado, a sua falta.

Diante dessas alternativas e consideradas as possibilidades de leitura das relações


que se estabelecem entre a História e a Literatura como modalidades de um
exercício imaginário de reconstrução do mundo, como afirma Sandra Pesavento
(2003), procura-se estabelecer o diálogo entre duas produções artísticas, uma
literária e outra cinematográfica, a saber: o romance Ana sem terra do escritor Alcy

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Graduada em Letras pela Faculdade Cenecista de Osório. Pós-graduada em Diálogos entre a
História e a Literatura do Rio Grande do Sul nesta mesma instituição.

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Cheuiche e o premiado filme brasileiro O ano em que meus pais saíram de férias,
dirigido por Cao Hamburger. Do primeiro, prevalece para a discussão o capítulo
Porto Alegre: inverno de 1970.

Optar pela inclusão do cinema neste trabalho é por considerá-lo como tradutor da
identidade brasileira, remontada sob a base ficcional. Desde a década de 30, o
cinema começou a ser visto como instrumento efetivo da política e da cultura
(GOLDMAN, 2000, p. 275), contribuindo para que a realidade brasileira pudesse ser
melhor compreendida e, dessa maneira, legitimando-se como arte nacional.

Traduzir o Brasil no cinema, no entanto, não significa descrever costumes e


paisagens locais, alerta Goldman (2000). É preciso uma visão crítica da sociedade
brasileira e compreender as contradições do país. Assim, não apenas se constrói
uma identidade, mas faz-se possível problematizá-la.

As narrativas - cinematográfica e literária - escolhidas para análise compreendem as


décadas de 60 e 70 e representam e apresentam uma visão crítica de vários
aspectos da sociedade brasileira. Neste período, o regime político vigente adotou
normas de conduta, entre as quais a tortura, para impedir que seus opositores
políticos se manifestassem. Para tanto, foi necessário que se criassem leis brutais
capazes de silenciar a população. A tortura política começou a se abater sobre
segmentos da sociedade a partir do golpe militar em 1964 e de forma sistemática a
partir de 1968, quando instaurado o Ato Institucional número 5, e iniciado o período
mais repressivo da ditadura militar.

No Estado ditatorial, há os que apoiam e aderem à situação, os que são tidos como
suspeitos - a quem cabe controlar, reprimir e, eventualmente, eliminar - e, há ainda,
aqueles que ficam ou se dizem indiferentes. Nessa situação política, o povo é vítima,
uma vez que é mantido afastado de qualquer participação social, no silêncio e no
imobilismo e, ao mesmo tempo, suspeito, muitas vezes testemunha do regime, ainda
que de maneira indireta.

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O regime instituído em 1964 fora guiado pela Doutrina de Segurança Nacional. De
acordo com Silva (2004), esta doutrina associava segurança e desenvolvimento. O
combate ao comunismo se daria em várias esferas, inclusive militar, política,
econômica e psicossocial (p. 232), e era ponto de destaque no quesito segurança
nacional. Os militares tinham, então, uma linha de ação e não estiveram sozinhos,
mas foram parceiros de setores empresariais, tecnocratas e elites políticas.

É da Doutrina de Segurança Nacional que surge também o conceito de inimigo


interno, já que o que estava sendo combatido era uma ideia. Assim, as Forças
Armadas passaram a intervir ainda mais na política interna e a fazer altos
investimentos na área de inteligência e segurança interna (SILVA, 2004, p. 232).
Diante disso, é preciso, sobretudo, tentar superar mitos acerca do período ditatorial,
tanto os cinicamente veiculados pelos grandes meios de comunicação, como os
elaborados por pessoas descompromissadas com a sociedade, os quais, muitas
vezes, defendem o período ignorando atos como os de tortura e perseguição ou os
defendendo como práticas de Segurança Nacional.

Conduzidos pelos êxitos econômicos, surgiam ideologias que representavam um


projeto salvacionista e concebiam o país como “Brasil Grande”. Neste contexto
intensifica-se, de maneira especial no ano de 1970, a paixão futebolística e o desejo
do tricampeonato da seleção brasileira na Copa do Mundo. Sabe-se que este
esporte, ainda hoje consagrado no país, entorpece seus torcedores. A discussão
pertinente aqui é a que revela o futebol como distanciamento político da população e
como tentativa – insuficiente - de encobrir os anos violentos.

Em primeiro lugar, este esporte é uma espécie de máscara da ditadura militar. O


governo Médici, assumido em 1969, o apoiava, ainda que indiretamente, visando o
desenvolvimento de uma ideologia de nação homogênea. Por outro lado, o futebol é
também a possiblidade de suscitar um sentimento de estranhamento da realidade,
mas isto depende de uma atitude individual, do sujeito constituído em relação ao
outro e disposto a não neutralizar-se perante os fatos.

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Esporte de massas, tanto como prática lúdica, quanto como espetáculo
(GUAZZELLI, 2010, p. 85), o futebol, pode ser considerado o maior elemento
brasileiro de nacionalidade, um exemplo disso é a capacidade de mobilização que
uma Copa do Mundo provoca no Brasil, colocando na mesma torcida pessoas de
sexo, religião ou orientação política diferente. A identificação do futebol como o
esporte mais popular do Brasil é indiscutível, afirma Guazzelli (2010), assim como a
Seleção Brasileira como a representação máxima da identidade nacional.

Neste sentido, Simoni Guedes (2006), argumenta que as sociedades modernas


tendem a multiplicar os rituais nacionais, como as competições esportivas, para que
se reforce e recrie a totalidade social. O futebol é o esporte privilegiado desta
representação da nação brasileira.

Em meio a ditadura militar e após o AI-5, junto ao uso indiscriminado da violência,


havia a preocupação em afirmar o regime de maneira positiva e, neste sentido, o
uso do futebol foi cuidadosamente pensado. O presidente Médici estava presente
nos estádios, os preparadores físicos eram ligados ao Exército Brasileiro, ou seja, os
jogadores foram acompanhados de perto pelo governo (GUAZZELLI, 2010, p. 87).

A partir do diálogo que se estabelece, como afirma Pesavento (2003), a História e a


Literatura oferecem o mundo como texto e o presente da escrita que inventa um
passado ou constrói um futuro, para melhor explicar-se. A abordagem deste artigo
reflete a necessidade de olhar para uma realidade ainda incômoda que é o período
ditatorial no Brasil.

O olhar de investigação desta pesquisa incide especialmente sobre dois


personagens das narrativas escolhidas, Willy e Mauro – respectivamente
correspondentes ao livro e ao filme -, imersos no contexto da ditadura militar. Com
relação ao primeiro, o futebol aparece para o leitor como anestesiante diante da
tortura sofrida; para o segundo, a Copa do Mundo é uma espécie de suporte para o
enfrentamento – ou a passividade – dos acontecimentos.

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Literatura e cinema: apresentação das narrativas que possibilitaram o diálogo
com a história

O livro Ana sem terra, pelo próprio título, já apresenta um intertexto com a obra de
Érico Veríssimo Ana Terra. Enquanto neste observa-se o apego e o pertencimento
de uma família à terra, aquele mostra o enfrentamento, a luta pela posse de um
pedaço de chão, pelo alcance da justiça, as andanças de uma família, ou melhor, de
filhos, já que mãe e pai faleceram. Willy é filho homem, guardião de suas irmãs Ana
e Heidi, juntamente com Gisela, a mais velha.

No início da narrativa, intitulada Litoral Sul do Brasil – Verão de 1958, Willy tem
apenas 12 anos e o desejo de seguir sua vocação: ser padre. Contrariado por
Gisela, dá “tempo ao tempo” antes de entrar no seminário. Antes disso serviu o
quartel, e fora até mesmo preso por carregar um retrato de suas irmãs. Conhecera
algumas pessoas com as quais se identificou, sobretudo Rafael e Marcela e o
sargento Bóris; este fora acolhido durante um tempo pelas irmãs de Willy na
pequenina cidade de Três Forquilhas, no litoral norte do Rio Grande do Sul.

É através de Bóris que se têm as primeiras referências à ditadura, visto estar


foragido devido à repressão do regime. Neste instante, o romance recai sobre Porto
Alegre – Inverno de 1970, ano da Copa do Mundo no México. Entre futebol e tortura,
o capítulo alterna a narrativa da final da Copa e a narrativa dos movimentos e do
sofrimento de Bóris e, especialmente, de Willy. Julgava-se que ambos estavam
envolvidos com o desaparecimento do Capitão Lamarca.

Depois disso, a continuidade da história dá-se seis anos depois. Aliás, vale dizer que
o livro contempla de 1958 a 1990, e as sequências dos capítulos deixam muitos
intervalos. São nove capítulos e, consequentemente, nove anos descritos. Dessa
forma, de um capítulo para o outro, há um deslocamento dos personagens, novo
cenário, nova situação, mas mantendo um elo, uma ligação com o antes narrado.

Em Amazônia: período das águas de 1976, por exemplo, os personagens já


estavam longe do Rio Grande do Sul: haviam decolado em Brasília e viajado até a

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Amazônia, onde estaria Ana, irmã de Willy, num assentamento dominado por
colonos de origem alemã. Quem visita é Silvestre, avô de Rafael que servira no
quartel com Willy. Ao conversar com Ana é que fica sabendo da tortura sofrida pelo
irmão.

No diálogo entre eles, novas informações acerca do período ditatorial são


encontradas: Willy fora torturado junto com Bóris no DOPS2 (Departamento de
Ordem Política e Social) em Porto Alegre e agora estava exilado na França; a família
toda seria torturada se não fosse avisada por Hans, marido de Heidi, mas houve
tempo para fugir, no primeiro momento para Santa Catarina.

Questões referentes à luta pela terra, às incoerências produtivas – importar leite em


pó possuindo o maior rebanho bovino do mundo, por exemplo, ou ainda importar
alimentos que a nossa terra produz com facilidade -, à dominação, à ganância e à
importância de conhecer o passado para compreender o presente são ainda
contempladas em Ana sem terra.

O ano em que meus pais saíram de férias, por sua vez, aborda a questão da
ditadura de maneira bem mais subjetiva. Mauro, um menino de 10, 11 anos, é
deixado pelos pais em frente à casa do avô, o barbeiro Mótel, para que ele o
cuidasse. De maneira bastante inesperada ele se separa dos pais, vítimas de
perseguição e repressão. Como desculpa, os pais afirmam estarem saindo de férias.

Porém, antes mesmo da chegada a casa, o avô já falecera. Mótel era judeu, como
grande parte da população que residia naquele bairro, o Bom Retiro, em São Paulo.
Devido à demora na volta dos pais para buscá-lo – conforme promessa do pai, até a
final da Copa – passa a ser cuidado, temporariamente, por um judeu, vizinho do avô,
chamado Shlomo. Afastado da família, conhece uma nova realidade, novas pessoas
e nova cultura, aguarda um telefonema dos pais e acompanha, pacientemente, os
jogos da seleção brasileira na Copa de 1970.

2
O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), criado em 1924, foi o órgão do governo
brasileiro, utilizado principalmente durante o Estado Novo e mais tarde no Regime Militar de 1964,
cujo objetivo era controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder.

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Mauro também carrega o sonho de ser goleiro e esta é mais uma de suas esperas.
À medida que o tempo vai passando, a verdade vai se revelando para o menino,
transformando a inocência em dura realidade. Assim, metaforicamente, o filme
apresenta uma espécie de deslocamento das tensões históricas do momento. A
referência à ditadura não é explícita e é mostrada através do olhar de um menino,
que além de sofrer a ausência dos pais, ainda se angustia com a entrada numa nova
comunidade, sem falar na preocupação com a atuação do Brasil na Copa do Mundo.

Como Sandra Pesavento expõe: “[...] História e Literatura são formas distintas,
porém próximas, de dizer a realidade e de lhe atribuir/desvelar sentidos.” (2003: 32).
Em Ana sem terra, privilegia-se para análise o capítulo que trata especificamente de
julho de 1970, mês da partida final da Copa do Mundo realizada no México, onde se
enfrentavam Brasil e Itália. Em O ano em que meus pais saíram de férias, a narrativa
contempla um período um pouco maior. As primeiras cenas remetem a narrações
esportivas de 1969; posteriormente, se tem a espera pela Copa e a própria
competição.

Os militares no poder: um olhar sobre a “história oficial” e a face autoritária de


Médici

A ditadura militar no Brasil abrangeu de 1964 a 1985; o Ato Institucional número


cinco (AI-5), promulgado em 1968 e que institucionalizou a repressão, a violência e o
terror, requer grande importância, visto suas implicações sociais e abordagem nas
obras.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que a economia brasileira viveu um período


de acelerado crescimento econômico, findado nos primeiros anos da década de 60.
Entre 1963 e 1967, no entanto, o crescimento caiu pela metade, o que gerou um
acirrado debate sobre a natureza das reformas econômicas necessárias para
retomar as taxas históricas de expansão da economia (PRADO; EARP, 2003, p
209). Dentre as questões que surgiam, emergia uma referente às mudanças
políticas e reformas institucionais capazes de viabilizar a continuidade do processo
de desenvolvimento brasileiro.

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Em 1964, tem-se, então, a transição de um regime aparentemente democrático para
uma ditadura militar. O primeiro presidente da República do governo militar foi
Castelo Branco. O novo governo garantiu o poder político necessário para a
realização de reformas conservadoras e de um plano de estabilização econômica
(PRADO; EARP, 2003, p. 213), criando, no Brasil, as bases de um novo modelo de
crescimento.

Das reformas previstas, apenas a que se referia ao controle da inflação é que não foi
bem-sucedida. É importante ainda dizer que o conjunto de reformas deu-se em um
contexto de baixo crescimento econômico e de grande insatisfação popular com os
rumos da economia (PRADO; EARP, 2003, p. 217). Para apoiar o general Costa e
Silva em sua candidatura à Presidência da República, Castelo Branco exigiu,
portanto – e apenas -, compromisso com a política anti-inflacionária. Em março de
1967, o general assumiu o governo.

Como sinônimo do boom econômico observado desde 1968 e como instrumento de


propaganda de governo, a expressão “milagre brasileiro” passou a ser usada. Dentre
as características do “milagre”, estão as elevadas taxas de crescimento, menores
índices da taxa de inflação e comércio exterior multiplicando-se. Num cenário
conturbado, desejava-se obter a legitimação pela eficácia, medida alcançada pela
reversão de uma situação caótica, por reformas e pelo sucesso desenvolvimentista
(PRADO; EARP, 2003).

No início, as medidas usadas pelo novo presidente pareciam ser uma continuidade
das anteriores, em que a redução do papel do setor público e o aumento da
participação do setor privado eram aspectos considerados prioritários, afirma Prado
e Earp (2003, p. 219). Contudo, o crescimento de movimentos de oposição no
âmbito interno invocava maior preocupação com a retomada do crescimento.

Em 1968, por exemplo, irrompeu o movimento estudantil, cuja luta catalisou a


insatisfação de outros segmentos da sociedade. Rapidamente, conforme Prado e
Earp, sucederam-se a repressão ao movimento oposicionista (...), o Ato Institucional

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nº 5, novas cassações de adversários, a morte de Costa e Silva3, o início da luta
armada contra o regime, a posse de uma junta militar provisória e a escolha do novo
presidente (2003, p. 221).

Em 1969, quem assumiu a presidência foi o general Emílio Garrastazu Médici,


desconhecido publicamente. Aceitou o posto porque era o único general de quatro
estrelas que podia impedir o aprofundamento da divisão que lavrava no Exército,
afirma Thomas Skidmore (1988, p. 211). O próprio Médici afirmara em discurso que
era capaz de manter as Forças Armadas e trabalhando para alcançar os ideais da
Revolução de 19644.

Na escolha dos ministros, apresentava-se como imune a pressões de ordens


diversas, pois afirmava ter compromisso apenas com sua consciência do futuro do
país. Esta postura “não política” era o que mais agradava aos militares (SKIDMORE,
1988, p. 213). Além disso, procura passar uma ideia de neutralidade, que coloca as
Forças Armadas como avessas à “politicagem” que tanto teria prejudicado no
passado o Brasil. O começo do seu governo era um momento sombrio, já que dez
meses antes o país estava subjugado à repressão. Marchas estudantis, piquetes de
trabalhadores em greve ou comícios de oratória demagógica não aconteceram (ou,
pelo menos, o grande público não viu ou soube). O clima parecia de tranquilidade,
mas a repressão e a censura do governo eram a razão principal (SKIDMORE, 1988,
p. 215). Tida, então, como possibilidade de conter as subversões e produzir
desenvolvimento, esta rígida forma de controle precisava continuar.

Vale destacar que não é somente a repressão que caracterizava o governo de


Médici. Segundo Skidmore (1988, p. 215), brasileiros situados no vértice da pirâmide
salarial – os profissionais, os tecnocratas, os administradores de empresas – foram
beneficiados com o rápido desenvolvimento econômico. Além disso, salários

3
Costa e Silva faleceu no dia 17 de dezembro de 1969; contudo, começou a sentir os primeiros
sintomas da isquemia que o levaria à morte na noite de 25 de agosto do mesmo ano, quando foram
rejeitadas pelos militares suas propostas de derrubada do AI-5 e promulgação de uma nova
Constituição.
4
É importante considerar a alternância no poder de tendências distintas das Forças Armadas, que
ocorrem entre moderados – “castelistas”/”Sorbonne” e a “linha-dura”. No período que vai de 1968 até
1974 o governo é controlado pela “linha-dura”; com a posse de Geisel, os “moderados” voltam ao
poder.

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subiram, novos empregos surgiram, as universidades federais - embora sob rigoroso
controle político - receberam verbas. A tentativa de tornar o Brasil uma potência
mundial sensibilizou muitos brasileiros que acabaram alistando-se fervorosamente
na defesa do regime (1988, p. 216).

É a chamada “modernização conservadora”. O Brasil, ao contrário de outros países


comandados quase na mesma época por ditaduras militares, como o Chile e a
Argentina, teve um Estado que bancou, na base de muito dinheiro vindo do exterior,
uma modernização de cunho nacionalista, isso ocorreu em grande parte por conta
de uma ideologia muito presente no exército.

Nem todos estavam satisfeitos, logicamente. Mas o rigoroso sistema autoritário


tornou possível a “estabilidade” política, definida como a ausência de qualquer
oposição ou crítica séria. Tal filosofia política era aceita, ainda que implicitamente,
porque possibilitava a continuidade e coerência na formulação das políticas
econômicas, visto o notável progresso.

Para as classes média e alta, a política econômica estava seguindo o rumo


desejado, dando, para uma minoria, uma boa oportunidade de consumir bens
nacionais e internacionais. Nas palavras de Prado e Earp (2003), a ideia de que
estava em processo a construção de um “Brasil Potência” passou a constituir a base
da propaganda do governo e o fundamento de sua legitimidade. A legitimidade do
governo no plano político é dada, assim, pelo sucesso do plano econômico, cujo
crescimento era contínuo e acelerado.

Diante disso, Médici ficou conhecido como peça central na transformação do Brasil
em potência mundial, graças ao autoritarismo vigente. Em 1968, criara-se um único
centro de propaganda do governo, a Assessoria Especial de Relações Públicas
(AERP). No governo de Médici, transformara-se na operação de RP mais
profissional que o Brasil já vira (SKIDMORE, 1988, p. 221), produzindo, sobretudo,
frases de efeito como “Você constrói o Brasil!”, “Ninguém segura este país!” ou
“Brasil, conte comigo!”.

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Chefiada pelo coronel Octavio Costa5, as referidas mensagens objetivavam
fortalecer a mentalidade saudável de segurança nacional, indispensável para a
democracia e a garantia do esforço coletivo visando o desenvolvimento. O uso da
televisão nestas campanhas não surpreendia, afirma Skidmore (1988). O Brasil
emergia como mercado consumidor de TV devido, em parte, a planos de compra a
crédito, fazendo com que em 1970, 40% das residências já tivessem o aparelho em
casa. Além disso, a novidade era também a chegada da televisão em cores.

Quando Médici assumiu a Presidência, o Brasil tinha 45 emissoras de TV


licenciadas. Seu governo concedeu mais 20 licenças e nesse processo ajudou
consideravelmente o crescimento da Rede Globo (SKIDMORE, 1988, p. 222). Esta
emissora, vale ressaltar, fora alvo de críticas desde o financiamento inicial, uma vez
que violavam a lei brasileira de telecomunicações por ter surgido com investimento
de um grupo americano chamado Time-Life. A Constituição proibia qualquer pessoa
ou empresa estrangeira de possuir participação em uma empresa brasileira de
comunicação.

A denúncia foi rejeitada pelo governo, permitindo que a Rede Globo continuasse
crescendo. Segundo Skidmore, os críticos diziam que esta ascensão podia ser
explicada pela defesa dos interesses oficiais através da programação (...) durante o
governo Médici (1988, p. 222). É dessa época também a introdução da TV em cores
no Brasil, ocorrida oficialmente em 1972.

A emergência do Brasil como uma sociedade dinâmica original era o tema central da
AERP. Diante disso, uma das estratégias com bastante eficiência consistiu em
associar futebol, música popular, presidente Médici e progresso brasileiro
(SKIDMORE, 1988, p. 223). O general, aliás, era fanático por futebol. Nervoso com o
treinamento da seleção brasileira para o Campeonato Mundial de Futebol no México,
queixou-se à comissão nacional supervisora que demitiu imediatamente o técnico.

5
Octavio Costa comandou a Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp) da presidência da
República entre os anos de 1969 a 1973. Nos artigos publicados no Jornal do Brasil defendia a
posição militar perante a necessidade do golpe de 64. Mesmo sem ter realizado nenhum curso de
Jornalismo ou Relações Públicas, recebeu como primeira tarefa redigir o discurso de posse de
Médici.

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Além disso, a vitória do Brasil foi prevista pelo presidente, para a felicidade da
população. Médici fora fotografado sorridente e feliz entre os membros da seleção e
admirando a taça. Cartazes também surgiram, mostrando Pelé em um salto e a frase
do governo: “Ninguém segura mais este país”.

Diante de tamanhas conquistas, o ano de 1970 foi cheio de “sucessos”. A


concentração de riquezas, de acordo com Edgard Luiz de Barros (1991), estava nas
mãos de 25% da população; a classe média emergente começou a usufruir de um
promissor mercado consumidor. O “milagre” se espalhou pelo país e começaram a
surgir grandes supermercados e shopping centers, o nível de renda da família
permitia a compra de bens duráveis e até mesmo da casa própria.

Posando de pai, protetor severo e jovial, o general procurava representar-se como o


compreensivo líder de todos os “bons brasileiros”, afirma Barros (1991). Todos
aqueles que questionavam e criticavam o regime estabelecido, colocavam em risco
a segurança nacional, ou seja, eram os inimigos internos e precisavam ser
combatidos.

O tricampeonato da Copa do Mundo enlouqueceu o país, aliando a ideia de que os


campeões eram nativos de um país brilhante e dinâmico. A população identificava o
autoritarismo com as realizações esportivas e econômicas. No retorno dos
jogadores, foi decretado até feriado nacional para que a população pudesse
comemorar a vitória. Aos jogadores, o prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, deu um
automóvel a cada um, usando de verbas públicas. Médici, no palácio presidencial,
entregou a eles prêmios em dinheiro no valor de milhares de dólares (BARROS:
1991, p. 61). Nota-se, a estratégia publicitária dava excelentes resultados.

Surge, então, o nacionalismo ufanista do “Brasil Grande”, a realização da vocação


nacional a ser grande potência e o tratamento de todos os críticos da política
econômica (...) como traidores (SILVA: 1990, p. 373). A propaganda nacionalista é
incentivada pelo governo em torno do slogan: “Brasil: ame-o ou deixe-o”, utilizado
nas comemorações oficiais da vitória da Seleção Brasileira. Francisco Silva (1990)

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afirma que sob o efeito do milagre econômico e da vitória nos campos de futebol, o
regime militar parece consolidado e forte.

Marques (2011), referindo-se ao caráter alienante do futebol no Brasil, usa a


expressão “verdeamarelismo”, usada por Marilena Chauí6. Tal expressão parte da
ideia de que o uso da bandeira brasileira foi uma imposição do regime militar, muito
presente nas comemorações do Tricampeonato da Seleção na Copa de 1970. A
bandeira, então, usada nas festividades, identificava a vitória da seleção como uma
ação do Estado.

As pessoas desligam-se de questões que atravessam o seu cotidiano, pondera


Simoni Guedes (2006), e o envolvimento emocional, muitas vezes caracterizado
como paixão, é uma das justificativas para o caráter alienante do futebol. No futebol
era possível enxergar uma possibilidade de redenção das desigualdades sociais.
Contudo, apesar de aparentemente ser elemento agregador da sociedade, capaz de
reunir toda a população ao redor de uma televisão ou um rádio, havia outra verdade
nestes dias de Copa do Mundo. A literatura e o cinema, em suas representações,
contribuem nesta leitura.

Estabelecendo um diálogo entre as obras e a história

No livro Ana sem terra, apesar de se ter referências à perseguição política do


período ditatorial militar através do personagem Bóris num capítulo que abarca o
ano de 1968, é no capítulo seguinte a este que a análise recai. Em primeiro lugar
porque privilegia a narração do jogo da final da Copa do Mundo e, em segundo,
porque descreve a tortura sofrida pelo personagem Bóris e, sobretudo, a sofrida por
Willy.

Logo no início do capítulo, intitulado Porto Alegre: inverno de 1970, o narrador já faz
referência ao futebol, afirmando que naquela manhã o noticiário era todo dedicado
ao futebol (p. 97). Sabe-se que há alguém numa lancha no rio Guaíba, em Porto

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CHAUÍ, Marilena. “O verdeamarelismo” em Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo,
Fundação Perseu Abramo, 2000.

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Alegre e que mais alguém insiste no volume do rádio para que possa ouvir melhor,
afinal, trata-se da grande final contra a Itália.

Os comentários e narrações do rádio são transcritos no livro entre aspas. Num


primeiro momento, vale destacar a afirmação de que Everaldo e seus companheiros
vêm dando muitas alegrias ao povo brasileiro e, ainda, a observação de que nota-se
nas ruas, nos bares, em todas as entrevistas com populares uma tendência geral em
torcer pelo Brasil. Qualquer criança sabe de cor a escalação da seleção brasileira (p.
97-98). Adiante, aparece o nome do presidente Médici, pelo fato de haver mandado
uma mensagem que fora recebida com seriedade pelos jogadores e dirigentes.

Enquanto no livro, um delegado diz que num dia como aquele ninguém devia
trabalhar (p. 101), o filme O ano em que meus pais saíram de férias parece ser
justamente o retrato desta expressão: nos dias de jogo as ruas ficam completamente
vazias. Observa-se que casas de comércios estão fechadas ou sendo fechadas, as
ruas enfeitadas. Mauro, que esperava pelos pais até o início da Copa, prega a tabela
dos jogos na parede e afirma: Até que não demorou tanto assim. E o grande dia
tinha chegado. O Brasil parou para ver o jogo.

Para o menino, era um grande dia por dois motivos: Todo mundo estava esperando
o grande momento. E eu estava o esperando o grande momento e os meus pais!
Não sai de casa naquele dia porque precisa esperar pelos pais. Veste o uniforme da
seleção, olha para as ruas vazias e espera...

Ambas as narrativas são marcadas pelo envolvimento com o futebol. Logo no início
do filme, percebe-se a tensão e apreensão dos pais no telefone, na decisão das
“férias” comunicada ao filho e numa cena bastante interessante na qual o casal –
Miriam e Daniel - avista um caminhão do Exército. Eles se entreolham, o semblante
do pai fica sério; ambos carregados de preocupação, ao passarem pelo caminhão,
expressam alívio. No livro, proporcionalmente ao tamanho do capítulo, demora-se
mais a fazer referência à ditadura.

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No entanto, em Ana sem terra, o leitor é, de certa forma, tomado de surpresa na sua
leitura, pois apesar do tratamento um tanto grosseiro entre os personagens, não se
espera que a ação narrada culminará na tortura dos personagens, muito menos que
essa seja sofrida por Bóris e Willy.

Bóris, diferente de Willy, não passou por interrogatório. O diálogo deste com um
assistente do Diretor do DOPS parecia tranquilo, até porque era intercalado pelo
assunto do dia, o futebol. Quando Willy afirma que sua religião não combate as
pessoas dos ricos, mas sim os mecanismos políticos, a ditadura, que fabrica mais
ricos à custa dos pobres (p. 106), logo é associado ao marxismo e à admiração por
Che Guevara. E ele completa: da mesma forma que admiro o Padre Camilo Torres,
assassinado na Colômbia pela mesma gente que aqui nos prende e tortura (p. 106).

O delegado se defende afirmando que nunca torturou ninguém e que para eles a lei
maior é a Segurança Nacional. Contudo, o mais interessante e que soa como
argumento do que declarara, é a fala: Nós ainda temos a consciência da Pátria,
ainda pensamos em verde e amarelo. E se o senhor vier até a janela, verá que o
povo está conosco. O futebol conseguiu despertar o patriotismo do povo (p. 106).
Nestas palavras, a paixão do povo pelo futebol representa a ideologia de uma nação
homogênea, como se todos compartilhassem das mesmas ideias.
O diálogo que segue reflete ainda mais o papel do futebol neste contexto:

- O futebol é o ópio do povo... Se o Brasil vencer o jogo desta tarde, o


General Garrastazu Médici vai consolidar seu poder.
- O que será ótimo para o Brasil! Imagine se o povo descobre que vocês
terroristas querem que a seleção perca o tricampeonato. Invadiriam a
cadeia para linchá-los um por um (p. 107).

O tricampeonato representava exatamente a consolidação de Médici, o “Brasil


Grande”, a máscara pacificadora da ditadura militar. No filme, uma pequena cena
apresenta algo semelhante. Ítalo, estudante de esquerda e que está junto de outros
estudantes que estão na frente de uma TV ainda desligada – como quem não adere
ao fanatismo provocado pelo governo – afirma: Se a Tchecoslováquia ganha, é uma
vitória socialista e é aplaudido pelos demais. Tratava-se do primeiro jogo da Copa,
justamente entre Brasil e Tchecoslováquia. No primeiro gol, que não é brasileiro,
estes estudantes comemoram.

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Todavia, no momento em que a seleção brasileira marca seu primeiro gol, o
ambiente do Centro Acadêmico volta a aparecer e, dessa vez, a vibração é intensa.
Por sinal, a cada gol, a vibração e a comemoração aumentam. Na disparidade
destes dois momentos, um dos dilemas da esquerda naquela época: a dificuldade
de torcer contra o Brasil.

No livro, quando o delegado tenta fazer uma ligação e não obtém sucesso, queixa-
se que as pessoas da companhia de telefone devem estar todas em casa esperando
pelo futebol. Ao convidar um colega para o almoço, este recusa, visto já ter cumprido
seu horário de serviço e desejar voltar para casa, pois a televisão nova já chegou (p.
110).

Em seguida, após a descrição do estado físico de Bóris, mandam buscar Willy.


Nesse momento, há uma longa narração do futebol, falando da organização dos
times e do início da partida. O esporte, aí, é uma espécie de fuga, de desvio de
atenção do leitor, anestesiando-o da tortura anteriormente citada.

Deste momento em diante, uma vez que Willy entra na sala, contempla o estado
miserável de Bóris e começa a ser torturado fisicamente, a narrativa alterna
momentos tensos relacionados ao personagem e ao próprio jogo:

- Isto aqui é brinquedo de homem (...)! Tirem a roupa desse padre e


ponham na cadeira do dragão... Vamos ver se uns choques na bunda não
fazem ele cantá.
- E... e o jogo, seu Pedro?
- Tu pode fica perto do rádio escutando baixinho. Se tiver perigo de gol, tu
levanta o volume.
(...)
Com as mãos espalmadas, bateu-lhe com toda a força nos ouvidos. O
jovem caiu de joelhos. O delegado deu-lhe um pontapé nas costelas. O
padre caiu de boca no chão.
(...)
- Tem falta para o Brasil.
(...)”...e falhou a defesa italiana! E uma falta ma-ra-vi-lho-sa para o Brasil!”

Assim o diálogo vai se constituindo, misturando gritos de dor e de gol. Enquanto os


torturadores pulavam, Willy respirava com dificuldade, tinha os olhos arregalados e
uma fumaça azul brotando dos cabelos (p. 113). Cada nova situação imposta a Willy
era seguida por uma situação de jogo, na tentativa de amenizar o sofrimento do
personagem e fizesse também o leitor desviar-se do que se passava.

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No entanto, nem para o leitor, nem para o narrador é possível ignorar os fatos. Isso
se consolida no final da narrativa, quando entre aspas, o que parecia ser apenas
referência à partida de futebol, se mistura ao sofrimento de Willy:

(...) faltam quinze segundos para terminar a partida, o prisioneiro afrouxa os


esfíncteres, o cheiro é insuportável, as bandeiras estão tremulando, Gerson
mostra o cronômetro para o juiz, ele não quer terminar, o prisioneiro não
confessou, os torturadores berram e pulam em volta do pau-de-arara, é
Brasil quatro Itália um, o prisioneiro agoniza na cela, o médico foi
comemorar em casa, é o futebol brasileiro, minha gente (...). Agora ninguém
segura mais este país! (p. 121-122).

Em O ano em que meus pais saíram de férias, no bairro onde está o menino Mauro,
todos se reúnem e se unem diante da televisão. Em contrapartida, há imagens de
muros pichados com denúncias contra a violência e declarações contra a ditadura
pelos quais as pessoas passam sem dar a menor importância, como quem ignorava
tal situação. Isto mostra que a história da ditadura se serviu também daqueles que a
testemunharam indiretamente, ainda que isso se refletisse apenas num olhar para
um muro. Há, inclusive, uma imagem que primeiro mostra a frase “Abaixo a ditadura”
e funde para a bandeira do Brasil.

Outro deslocamento de tensões presente no filme centra-se novamente em Mauro e


seu desejo de ser goleiro. Trata-se um drama íntimo do menino, cuja posição no
time do bairro traduzia sua dor da incerteza e da espera. Somando-se às outras, já
são três esperas: esperar no gol, esperar pelos pais, esperar a vitória da seleção. E
a cada jogo da seleção, a intensificação do abandono, ou ainda, do efeito cruel da
ditadura na vida do menino.

Ainda que de maneira subjetiva, a história de Mauro nos aproxima muito do contexto
da ditadura militar. Ele é um ser até então inocente e que estava à margem da
História, assim como muita gente, e sofriam consequências. O menino, além de
tudo, era vítima da ditadura do próprio Shlomo que impunha sua cultura e seus
costumes. Dessa maneira, pode-se dizer que o conflito deste personagem permeava
tanto o drama do contexto político brasileiro quanto o drama étnico. Por fim, o dia da
vitória da seleção brasileira é um dia de tristeza na vida de Mauro, já que
representava a queda de uma família idealizada.

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Considerações finais

O futebol, aparentemente, nada teria a ver com questões políticas. Contudo, tanto
no contexto da ditadura militar brasileira, quanto hoje em dia, este esporte interfere
de maneira mais incisiva na vida de muitas pessoas do que a própria violência da
opressão política. Assim, atuava ora como suporte de enfrentamento, ora como
passividade nos acontecimentos.

A passividade é representada tanto no livro Ana sem terra quanto no filme O ano em
que meus pais saíram de férias. Nas duas narrativas, o rádio e a televisão são
centros de interesse e encontro do povo brasileiro em dia de jogo da seleção. O
assunto, a decoração das ruas, a preocupação parece ser uma só. O futebol e, de
maneira especial, as Copas do Mundo, são espaços celebrativos da brasilidade,
construção simbólica da unidade nacional. As diferenças e desigualdades que
permeiam a estrutura social são “suspensas” (GUEDES, 2006).

Em contrapartida, enquanto se celebram as vitórias da Copa de 1970, no livro há a


tortura dos personagens Bóris e Willy, que diante de tamanho sofrimento, são os
únicos que não aderem à torcida e, por conta disso, são ainda mais agredidos. No
filme, também não consideramos como torcedores durante a Copa os pais de
Mauro, Miriam e Daniel, perseguidos pela ditadura. Entretanto, nas primeiras cenas,
Daniel junto ao filho mostra seu envolvimento com o futebol por meio da valorização
da bola que o filho não poderia esquecer, a parceria no futebol de botão e os
comentários tecidos acerca da escalação da seleção.

No Brasil, o futebol fora promovido pelos regimes ditatoriais militares na tentativa de


mascará-los. Por outro lado, numa estratégia individual, é este esporte que
possibilita para o menino Mauro o estranhamento da realidade. A espera pela volta
dos pais até o início da Copa e, posteriormente, alimentado pela esperança, até a
final da Copa, o faz amadurecer e perceber que também se tornara um exilado. As
palavras finais do menino expressam essa percepção: “E mesmo sem querer, nem
entender direito, eu acabei virando uma coisa chamada exilado. Eu acho que exilado

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quer dizer quem tem um pai tão atrasado, mas tão atrasado que acaba nunca mais
voltando pra casa”.

Tanto a narrativa literária Ana sem terra quanto a fílmica O ano em que meus pais
saíram de férias apresentam narradores que não julgam os fatos vividos, mas
apenas os vivenciam. Além disso, são a partir de fatos do cotidiano que as
narrativas revelam a opressão do regime militar. Tais vivências tendem a se
aproximar às de muitas pessoas que viveram no período ditatorial militar no Brasil.

Por isso, o diálogo estabelecido entre as linguagens artísticas aqui apresentadas e a


História permite às pessoas não apenas rememorar um período, mas atentar às
ideologias. Em primeiro lugar, é importante dizer que a identificação do sucesso
econômico com a aprovação do regime militar, na década de 1970, era tão grande
que dificilmente se faria uma análise serena das condições econômicas do país
(PRADO; EARP, 2003). A ideia da legitimação pela eficácia que permeava o
imaginário dos militares e seus aliados e o nacionalismo das Forças Armadas que
fizeram opção pelo crescimento, sem se preocupar com a melhoria das condições
de vida da população, exceto quando pudesse afetar a segurança do regime.

O sucesso econômico do país aliado ao sucesso da seleção foi uma das mais
eficazes alternativas de “encobrir” a ditadura militar. Uma vez que “o Brasil inteiro
parou” durante os jogos da Copa, observa-se a capacidade de mobilizar a população
e desviá-la das tensões do momento. A vitória da seleção instigou ainda mais a
equipe de Relações Públicas, produzindo cartazes e disseminando as marchinhas
ufanistas.

Nas duas narrativas, há ainda um contraste que não pode ser ignorado: a vitória do
Brasil e o sofrimento dos personagens. No momento em que a seleção brasileira
torna-se tricampeã, Willy e Mauro estão em seus piores momentos. O clima final é
de melancolia. Willy ensanguentado no pau-de-arara e Mauro caminhando solitário
pelas ruas. Nestas cenas, a representação de que nem todo o Brasil parou e que o
futebol, apesar de brilhante estratégia, escapa ao fanatismo de alguns.

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Esse era o Brasil em que vivíamos. E, nestes personagens e suas vivências, a
impossibilidade de se acreditar na propaganda ideológica do sucesso político
brasileiro através do futebol, uma vez que as vitórias brasileiras contrastavam com a
dura realidade do país.

Referências

BARROS, Edgard Luiz de. Os governos militares. São Paulo: Contexto, 1991.

CHEUICHE, Alcy. Ana sem terra. 5. ed. Porto Alegre: Sulina, 1994.

GOLDMAN, Flávio. O Brasil traduzido no cinema. In: MADENA e VELOSO.


Descobertas do Brasil. Brasília: UNB, 2000.

GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. Futebol em tempos de ditadura: o Rio


Grande do Sul contra o Brasil. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/auro
ra/article/view/3756/2456. Acesso em: 20 dez. 2011.

GUEDES, Simoni Lahud. O Brasil nas copas do mundo: tempo “suspenso” e


história. Disponível em: http://www.aquinate.net/revista/e; dicao%20atual/Estudos/
Estudos-3-edicao/estudo-simoni-copa.pdf. Aquinate, n. 3: 2006. Acesso em: 20 dez.
2011.

MARQUES, José Carlos. “Todos juntos, vamos”: a superação do


“verdeamarelismo” da ditadura militar na conquista do mundial de futebol de 2002.
Disponível em: http://www.cbce.org.br/cd/resumos/028.pdf. Acesso em: 20 dez.
2011.

O ano em que meus pais saíram de férias. Direção: Cao Hamburguer. Brasil:
Buena Vista International, 2006, dvd (110min.).

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PESAVENTO, Sandra Jatahy. O mundo como texto: leituras da história e da
literatura. In: História da educação. ASPHE/FaE/UFPel. n. 14. Pelotas:
setembro/2003.

PRADO, L.C.D.; EARP, F.S. O “milagre” brasileiro: crescimento acelerado,


integração internacional e concentração de renda (1967-1973). In: FERREIRA e
DELGADO. O Brasil republicano: o tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (Org.). Enciclopédia de guerras e revoluções


do século XX: as grandes transformações do mundo contemporâneo. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2004.

______. A modernização autoritária: do golpe militar à redemocratização 1964/1984.


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