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Resumo: Partindo de duas linguagens da arte – a literatura e o cinema – este artigo pretende
analisar as relações entre o futebol, de maneira especial a Copa do Mundo de 1970, e a ditadura
militar. A análise destas relações se dá a partir do romance Ana sem terra de Alcy Cheuiche e do
filme O ano em que meus pais saíram de férias, dirigido por Cao Hamburger. Para tanto, procura-se
compreender as estratégias publicitárias dos governos militares capazes de produzir a ideologia de
“Brasil Grande”, como a conquista da Copa, e a tentativa (insuficiente) de encobrir os anos violentos.
Abstract: Starting from two languages of art – the literature and the film – this article intends to
analyze the relationships between soccer, in a special way a World Cup of 1970, and the military
dictatorship. The analyze of these relationships is given from the novel “Landless Ana” by Alcy
Cheuiche and the film “The Year My Parents Went on Vacation”, directed by Cao Hamburger.
For such it is tried to figure out military governments advertising strategies capable to produce the
ideology of “Large Brazil”, as the World Soccer Championship winning, and the insufficient attempt of
covering up violent years.
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Graduada em Letras pela Faculdade Cenecista de Osório. Pós-graduada em Diálogos entre a
História e a Literatura do Rio Grande do Sul nesta mesma instituição.
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Cheuiche e o premiado filme brasileiro O ano em que meus pais saíram de férias,
dirigido por Cao Hamburger. Do primeiro, prevalece para a discussão o capítulo
Porto Alegre: inverno de 1970.
Optar pela inclusão do cinema neste trabalho é por considerá-lo como tradutor da
identidade brasileira, remontada sob a base ficcional. Desde a década de 30, o
cinema começou a ser visto como instrumento efetivo da política e da cultura
(GOLDMAN, 2000, p. 275), contribuindo para que a realidade brasileira pudesse ser
melhor compreendida e, dessa maneira, legitimando-se como arte nacional.
No Estado ditatorial, há os que apoiam e aderem à situação, os que são tidos como
suspeitos - a quem cabe controlar, reprimir e, eventualmente, eliminar - e, há ainda,
aqueles que ficam ou se dizem indiferentes. Nessa situação política, o povo é vítima,
uma vez que é mantido afastado de qualquer participação social, no silêncio e no
imobilismo e, ao mesmo tempo, suspeito, muitas vezes testemunha do regime, ainda
que de maneira indireta.
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O regime instituído em 1964 fora guiado pela Doutrina de Segurança Nacional. De
acordo com Silva (2004), esta doutrina associava segurança e desenvolvimento. O
combate ao comunismo se daria em várias esferas, inclusive militar, política,
econômica e psicossocial (p. 232), e era ponto de destaque no quesito segurança
nacional. Os militares tinham, então, uma linha de ação e não estiveram sozinhos,
mas foram parceiros de setores empresariais, tecnocratas e elites políticas.
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Esporte de massas, tanto como prática lúdica, quanto como espetáculo
(GUAZZELLI, 2010, p. 85), o futebol, pode ser considerado o maior elemento
brasileiro de nacionalidade, um exemplo disso é a capacidade de mobilização que
uma Copa do Mundo provoca no Brasil, colocando na mesma torcida pessoas de
sexo, religião ou orientação política diferente. A identificação do futebol como o
esporte mais popular do Brasil é indiscutível, afirma Guazzelli (2010), assim como a
Seleção Brasileira como a representação máxima da identidade nacional.
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Literatura e cinema: apresentação das narrativas que possibilitaram o diálogo
com a história
O livro Ana sem terra, pelo próprio título, já apresenta um intertexto com a obra de
Érico Veríssimo Ana Terra. Enquanto neste observa-se o apego e o pertencimento
de uma família à terra, aquele mostra o enfrentamento, a luta pela posse de um
pedaço de chão, pelo alcance da justiça, as andanças de uma família, ou melhor, de
filhos, já que mãe e pai faleceram. Willy é filho homem, guardião de suas irmãs Ana
e Heidi, juntamente com Gisela, a mais velha.
No início da narrativa, intitulada Litoral Sul do Brasil – Verão de 1958, Willy tem
apenas 12 anos e o desejo de seguir sua vocação: ser padre. Contrariado por
Gisela, dá “tempo ao tempo” antes de entrar no seminário. Antes disso serviu o
quartel, e fora até mesmo preso por carregar um retrato de suas irmãs. Conhecera
algumas pessoas com as quais se identificou, sobretudo Rafael e Marcela e o
sargento Bóris; este fora acolhido durante um tempo pelas irmãs de Willy na
pequenina cidade de Três Forquilhas, no litoral norte do Rio Grande do Sul.
Depois disso, a continuidade da história dá-se seis anos depois. Aliás, vale dizer que
o livro contempla de 1958 a 1990, e as sequências dos capítulos deixam muitos
intervalos. São nove capítulos e, consequentemente, nove anos descritos. Dessa
forma, de um capítulo para o outro, há um deslocamento dos personagens, novo
cenário, nova situação, mas mantendo um elo, uma ligação com o antes narrado.
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Amazônia, onde estaria Ana, irmã de Willy, num assentamento dominado por
colonos de origem alemã. Quem visita é Silvestre, avô de Rafael que servira no
quartel com Willy. Ao conversar com Ana é que fica sabendo da tortura sofrida pelo
irmão.
O ano em que meus pais saíram de férias, por sua vez, aborda a questão da
ditadura de maneira bem mais subjetiva. Mauro, um menino de 10, 11 anos, é
deixado pelos pais em frente à casa do avô, o barbeiro Mótel, para que ele o
cuidasse. De maneira bastante inesperada ele se separa dos pais, vítimas de
perseguição e repressão. Como desculpa, os pais afirmam estarem saindo de férias.
Porém, antes mesmo da chegada a casa, o avô já falecera. Mótel era judeu, como
grande parte da população que residia naquele bairro, o Bom Retiro, em São Paulo.
Devido à demora na volta dos pais para buscá-lo – conforme promessa do pai, até a
final da Copa – passa a ser cuidado, temporariamente, por um judeu, vizinho do avô,
chamado Shlomo. Afastado da família, conhece uma nova realidade, novas pessoas
e nova cultura, aguarda um telefonema dos pais e acompanha, pacientemente, os
jogos da seleção brasileira na Copa de 1970.
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O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), criado em 1924, foi o órgão do governo
brasileiro, utilizado principalmente durante o Estado Novo e mais tarde no Regime Militar de 1964,
cujo objetivo era controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder.
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Mauro também carrega o sonho de ser goleiro e esta é mais uma de suas esperas.
À medida que o tempo vai passando, a verdade vai se revelando para o menino,
transformando a inocência em dura realidade. Assim, metaforicamente, o filme
apresenta uma espécie de deslocamento das tensões históricas do momento. A
referência à ditadura não é explícita e é mostrada através do olhar de um menino,
que além de sofrer a ausência dos pais, ainda se angustia com a entrada numa nova
comunidade, sem falar na preocupação com a atuação do Brasil na Copa do Mundo.
Como Sandra Pesavento expõe: “[...] História e Literatura são formas distintas,
porém próximas, de dizer a realidade e de lhe atribuir/desvelar sentidos.” (2003: 32).
Em Ana sem terra, privilegia-se para análise o capítulo que trata especificamente de
julho de 1970, mês da partida final da Copa do Mundo realizada no México, onde se
enfrentavam Brasil e Itália. Em O ano em que meus pais saíram de férias, a narrativa
contempla um período um pouco maior. As primeiras cenas remetem a narrações
esportivas de 1969; posteriormente, se tem a espera pela Copa e a própria
competição.
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Em 1964, tem-se, então, a transição de um regime aparentemente democrático para
uma ditadura militar. O primeiro presidente da República do governo militar foi
Castelo Branco. O novo governo garantiu o poder político necessário para a
realização de reformas conservadoras e de um plano de estabilização econômica
(PRADO; EARP, 2003, p. 213), criando, no Brasil, as bases de um novo modelo de
crescimento.
Das reformas previstas, apenas a que se referia ao controle da inflação é que não foi
bem-sucedida. É importante ainda dizer que o conjunto de reformas deu-se em um
contexto de baixo crescimento econômico e de grande insatisfação popular com os
rumos da economia (PRADO; EARP, 2003, p. 217). Para apoiar o general Costa e
Silva em sua candidatura à Presidência da República, Castelo Branco exigiu,
portanto – e apenas -, compromisso com a política anti-inflacionária. Em março de
1967, o general assumiu o governo.
No início, as medidas usadas pelo novo presidente pareciam ser uma continuidade
das anteriores, em que a redução do papel do setor público e o aumento da
participação do setor privado eram aspectos considerados prioritários, afirma Prado
e Earp (2003, p. 219). Contudo, o crescimento de movimentos de oposição no
âmbito interno invocava maior preocupação com a retomada do crescimento.
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nº 5, novas cassações de adversários, a morte de Costa e Silva3, o início da luta
armada contra o regime, a posse de uma junta militar provisória e a escolha do novo
presidente (2003, p. 221).
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Costa e Silva faleceu no dia 17 de dezembro de 1969; contudo, começou a sentir os primeiros
sintomas da isquemia que o levaria à morte na noite de 25 de agosto do mesmo ano, quando foram
rejeitadas pelos militares suas propostas de derrubada do AI-5 e promulgação de uma nova
Constituição.
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É importante considerar a alternância no poder de tendências distintas das Forças Armadas, que
ocorrem entre moderados – “castelistas”/”Sorbonne” e a “linha-dura”. No período que vai de 1968 até
1974 o governo é controlado pela “linha-dura”; com a posse de Geisel, os “moderados” voltam ao
poder.
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subiram, novos empregos surgiram, as universidades federais - embora sob rigoroso
controle político - receberam verbas. A tentativa de tornar o Brasil uma potência
mundial sensibilizou muitos brasileiros que acabaram alistando-se fervorosamente
na defesa do regime (1988, p. 216).
Diante disso, Médici ficou conhecido como peça central na transformação do Brasil
em potência mundial, graças ao autoritarismo vigente. Em 1968, criara-se um único
centro de propaganda do governo, a Assessoria Especial de Relações Públicas
(AERP). No governo de Médici, transformara-se na operação de RP mais
profissional que o Brasil já vira (SKIDMORE, 1988, p. 221), produzindo, sobretudo,
frases de efeito como “Você constrói o Brasil!”, “Ninguém segura este país!” ou
“Brasil, conte comigo!”.
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Chefiada pelo coronel Octavio Costa5, as referidas mensagens objetivavam
fortalecer a mentalidade saudável de segurança nacional, indispensável para a
democracia e a garantia do esforço coletivo visando o desenvolvimento. O uso da
televisão nestas campanhas não surpreendia, afirma Skidmore (1988). O Brasil
emergia como mercado consumidor de TV devido, em parte, a planos de compra a
crédito, fazendo com que em 1970, 40% das residências já tivessem o aparelho em
casa. Além disso, a novidade era também a chegada da televisão em cores.
A denúncia foi rejeitada pelo governo, permitindo que a Rede Globo continuasse
crescendo. Segundo Skidmore, os críticos diziam que esta ascensão podia ser
explicada pela defesa dos interesses oficiais através da programação (...) durante o
governo Médici (1988, p. 222). É dessa época também a introdução da TV em cores
no Brasil, ocorrida oficialmente em 1972.
A emergência do Brasil como uma sociedade dinâmica original era o tema central da
AERP. Diante disso, uma das estratégias com bastante eficiência consistiu em
associar futebol, música popular, presidente Médici e progresso brasileiro
(SKIDMORE, 1988, p. 223). O general, aliás, era fanático por futebol. Nervoso com o
treinamento da seleção brasileira para o Campeonato Mundial de Futebol no México,
queixou-se à comissão nacional supervisora que demitiu imediatamente o técnico.
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Octavio Costa comandou a Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp) da presidência da
República entre os anos de 1969 a 1973. Nos artigos publicados no Jornal do Brasil defendia a
posição militar perante a necessidade do golpe de 64. Mesmo sem ter realizado nenhum curso de
Jornalismo ou Relações Públicas, recebeu como primeira tarefa redigir o discurso de posse de
Médici.
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Além disso, a vitória do Brasil foi prevista pelo presidente, para a felicidade da
população. Médici fora fotografado sorridente e feliz entre os membros da seleção e
admirando a taça. Cartazes também surgiram, mostrando Pelé em um salto e a frase
do governo: “Ninguém segura mais este país”.
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afirma que sob o efeito do milagre econômico e da vitória nos campos de futebol, o
regime militar parece consolidado e forte.
Logo no início do capítulo, intitulado Porto Alegre: inverno de 1970, o narrador já faz
referência ao futebol, afirmando que naquela manhã o noticiário era todo dedicado
ao futebol (p. 97). Sabe-se que há alguém numa lancha no rio Guaíba, em Porto
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CHAUÍ, Marilena. “O verdeamarelismo” em Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo,
Fundação Perseu Abramo, 2000.
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Alegre e que mais alguém insiste no volume do rádio para que possa ouvir melhor,
afinal, trata-se da grande final contra a Itália.
Enquanto no livro, um delegado diz que num dia como aquele ninguém devia
trabalhar (p. 101), o filme O ano em que meus pais saíram de férias parece ser
justamente o retrato desta expressão: nos dias de jogo as ruas ficam completamente
vazias. Observa-se que casas de comércios estão fechadas ou sendo fechadas, as
ruas enfeitadas. Mauro, que esperava pelos pais até o início da Copa, prega a tabela
dos jogos na parede e afirma: Até que não demorou tanto assim. E o grande dia
tinha chegado. O Brasil parou para ver o jogo.
Para o menino, era um grande dia por dois motivos: Todo mundo estava esperando
o grande momento. E eu estava o esperando o grande momento e os meus pais!
Não sai de casa naquele dia porque precisa esperar pelos pais. Veste o uniforme da
seleção, olha para as ruas vazias e espera...
Ambas as narrativas são marcadas pelo envolvimento com o futebol. Logo no início
do filme, percebe-se a tensão e apreensão dos pais no telefone, na decisão das
“férias” comunicada ao filho e numa cena bastante interessante na qual o casal –
Miriam e Daniel - avista um caminhão do Exército. Eles se entreolham, o semblante
do pai fica sério; ambos carregados de preocupação, ao passarem pelo caminhão,
expressam alívio. No livro, proporcionalmente ao tamanho do capítulo, demora-se
mais a fazer referência à ditadura.
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No entanto, em Ana sem terra, o leitor é, de certa forma, tomado de surpresa na sua
leitura, pois apesar do tratamento um tanto grosseiro entre os personagens, não se
espera que a ação narrada culminará na tortura dos personagens, muito menos que
essa seja sofrida por Bóris e Willy.
Bóris, diferente de Willy, não passou por interrogatório. O diálogo deste com um
assistente do Diretor do DOPS parecia tranquilo, até porque era intercalado pelo
assunto do dia, o futebol. Quando Willy afirma que sua religião não combate as
pessoas dos ricos, mas sim os mecanismos políticos, a ditadura, que fabrica mais
ricos à custa dos pobres (p. 106), logo é associado ao marxismo e à admiração por
Che Guevara. E ele completa: da mesma forma que admiro o Padre Camilo Torres,
assassinado na Colômbia pela mesma gente que aqui nos prende e tortura (p. 106).
O delegado se defende afirmando que nunca torturou ninguém e que para eles a lei
maior é a Segurança Nacional. Contudo, o mais interessante e que soa como
argumento do que declarara, é a fala: Nós ainda temos a consciência da Pátria,
ainda pensamos em verde e amarelo. E se o senhor vier até a janela, verá que o
povo está conosco. O futebol conseguiu despertar o patriotismo do povo (p. 106).
Nestas palavras, a paixão do povo pelo futebol representa a ideologia de uma nação
homogênea, como se todos compartilhassem das mesmas ideias.
O diálogo que segue reflete ainda mais o papel do futebol neste contexto:
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Todavia, no momento em que a seleção brasileira marca seu primeiro gol, o
ambiente do Centro Acadêmico volta a aparecer e, dessa vez, a vibração é intensa.
Por sinal, a cada gol, a vibração e a comemoração aumentam. Na disparidade
destes dois momentos, um dos dilemas da esquerda naquela época: a dificuldade
de torcer contra o Brasil.
No livro, quando o delegado tenta fazer uma ligação e não obtém sucesso, queixa-
se que as pessoas da companhia de telefone devem estar todas em casa esperando
pelo futebol. Ao convidar um colega para o almoço, este recusa, visto já ter cumprido
seu horário de serviço e desejar voltar para casa, pois a televisão nova já chegou (p.
110).
Deste momento em diante, uma vez que Willy entra na sala, contempla o estado
miserável de Bóris e começa a ser torturado fisicamente, a narrativa alterna
momentos tensos relacionados ao personagem e ao próprio jogo:
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No entanto, nem para o leitor, nem para o narrador é possível ignorar os fatos. Isso
se consolida no final da narrativa, quando entre aspas, o que parecia ser apenas
referência à partida de futebol, se mistura ao sofrimento de Willy:
Em O ano em que meus pais saíram de férias, no bairro onde está o menino Mauro,
todos se reúnem e se unem diante da televisão. Em contrapartida, há imagens de
muros pichados com denúncias contra a violência e declarações contra a ditadura
pelos quais as pessoas passam sem dar a menor importância, como quem ignorava
tal situação. Isto mostra que a história da ditadura se serviu também daqueles que a
testemunharam indiretamente, ainda que isso se refletisse apenas num olhar para
um muro. Há, inclusive, uma imagem que primeiro mostra a frase “Abaixo a ditadura”
e funde para a bandeira do Brasil.
Ainda que de maneira subjetiva, a história de Mauro nos aproxima muito do contexto
da ditadura militar. Ele é um ser até então inocente e que estava à margem da
História, assim como muita gente, e sofriam consequências. O menino, além de
tudo, era vítima da ditadura do próprio Shlomo que impunha sua cultura e seus
costumes. Dessa maneira, pode-se dizer que o conflito deste personagem permeava
tanto o drama do contexto político brasileiro quanto o drama étnico. Por fim, o dia da
vitória da seleção brasileira é um dia de tristeza na vida de Mauro, já que
representava a queda de uma família idealizada.
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Considerações finais
O futebol, aparentemente, nada teria a ver com questões políticas. Contudo, tanto
no contexto da ditadura militar brasileira, quanto hoje em dia, este esporte interfere
de maneira mais incisiva na vida de muitas pessoas do que a própria violência da
opressão política. Assim, atuava ora como suporte de enfrentamento, ora como
passividade nos acontecimentos.
A passividade é representada tanto no livro Ana sem terra quanto no filme O ano em
que meus pais saíram de férias. Nas duas narrativas, o rádio e a televisão são
centros de interesse e encontro do povo brasileiro em dia de jogo da seleção. O
assunto, a decoração das ruas, a preocupação parece ser uma só. O futebol e, de
maneira especial, as Copas do Mundo, são espaços celebrativos da brasilidade,
construção simbólica da unidade nacional. As diferenças e desigualdades que
permeiam a estrutura social são “suspensas” (GUEDES, 2006).
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quer dizer quem tem um pai tão atrasado, mas tão atrasado que acaba nunca mais
voltando pra casa”.
Tanto a narrativa literária Ana sem terra quanto a fílmica O ano em que meus pais
saíram de férias apresentam narradores que não julgam os fatos vividos, mas
apenas os vivenciam. Além disso, são a partir de fatos do cotidiano que as
narrativas revelam a opressão do regime militar. Tais vivências tendem a se
aproximar às de muitas pessoas que viveram no período ditatorial militar no Brasil.
O sucesso econômico do país aliado ao sucesso da seleção foi uma das mais
eficazes alternativas de “encobrir” a ditadura militar. Uma vez que “o Brasil inteiro
parou” durante os jogos da Copa, observa-se a capacidade de mobilizar a população
e desviá-la das tensões do momento. A vitória da seleção instigou ainda mais a
equipe de Relações Públicas, produzindo cartazes e disseminando as marchinhas
ufanistas.
Nas duas narrativas, há ainda um contraste que não pode ser ignorado: a vitória do
Brasil e o sofrimento dos personagens. No momento em que a seleção brasileira
torna-se tricampeã, Willy e Mauro estão em seus piores momentos. O clima final é
de melancolia. Willy ensanguentado no pau-de-arara e Mauro caminhando solitário
pelas ruas. Nestas cenas, a representação de que nem todo o Brasil parou e que o
futebol, apesar de brilhante estratégia, escapa ao fanatismo de alguns.
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Esse era o Brasil em que vivíamos. E, nestes personagens e suas vivências, a
impossibilidade de se acreditar na propaganda ideológica do sucesso político
brasileiro através do futebol, uma vez que as vitórias brasileiras contrastavam com a
dura realidade do país.
Referências
BARROS, Edgard Luiz de. Os governos militares. São Paulo: Contexto, 1991.
CHEUICHE, Alcy. Ana sem terra. 5. ed. Porto Alegre: Sulina, 1994.
O ano em que meus pais saíram de férias. Direção: Cao Hamburguer. Brasil:
Buena Vista International, 2006, dvd (110min.).
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PESAVENTO, Sandra Jatahy. O mundo como texto: leituras da história e da
literatura. In: História da educação. ASPHE/FaE/UFPel. n. 14. Pelotas:
setembro/2003.
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