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RENATO ORTIZ / CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL

[1985] (1986)
ALIENAÇÃO E CULTURA: O ISEB
1- Categorias como “aculturação” são pouco a pouco substituídas por outras como
“transplantação cultural”, “cultura alienada”, etc. Seguindo os passos da sociologia e da
filosofia alemã, Manheim e Hegel, por exemplo, os idebianos dirão que cultura significa
as objetivações de espírito humano. Mas eles insistirão sobretudo no fato de que a
cultura significa um vir a ser (p. 45).
2- [...] eles privilegiarão a história que está por ser feita, a ação social, e não os estudos
históricos; por isso, temas como projeto social, intelectuais, se revestem para eles de
uma dimensão fundamental (p. 46).
3- Se de fato o Estado desenvolvimentista procurou uma legitimação ideológica junto a
um determinado grupo de intelectuais, não é menos verdade que os avatares desta
ideologia caminharam em um sentido oposto ao do Estado brasileiro (p. 46).
Aventuras e desventuras das ideias
4- O que chama a atenção nos escritos de Fanon e do ISEB é que ambos se estruturam a
partir dos mesmos conceitos fundamentais: o de alienação e o de situação colonial. As
fontes originárias são também, nos dois casos, idênticas: Hegel, o jovem Marx, Sartre e
Balandier (p. 50).
5- A crítica de Fanon da ideologia do embranquecimento se insere dentro desta
perspectiva de uma procura de uma identidade própria, desalienada do contexto social
no qual foi engendrada. A cultura define portanto um espaço privilegiado onde se
processa a tomada de consciência dos indivíduos e se trava a luta política (p. 56).
6- Ao tratarem a situação colonial em termos de alienação, imediatamente eles podem
conceber a sua contrapartida, o processo de desalienação do mundo colonizado (p. 59).
As ideias e seus reflexos
7- Para Fanon, a violência é o fundamento do colonialismo. Ela se expressa no nível
econômico, político, administrativo, e até mesmo psíquico (p. 61).
8- [...] a situação colonial se caracteriza pela ausência de uma sociedade civil (p. 62).
9- A zona intermediária que existe nas sociedades ocidentais, e que serve para amortecer
os conflitos, inexiste nas sociedades coloniais. Dentro desse quadro não há
possibilidades para que a luta ideológica se institua, o embate é aberto e violento, e leva
necessariamente à revolução (p. 62).
10- Nada mais distante do pensamento do ISEB do que uma reflexão sobre a violência
ou a revolução (p. 62).
11- Ao se colocarem como representantes legítimos do “povo”, o que eles [isebianos] de
fato estão procurando realizar é dar às classes médias um papel político que elas não
possuíam até então. Neste sentido a proposta política só pode ser reformista, nunca
revolucionária (p. 64).
DA CULTURA DESALIENADA À CULTURA POPULAR: O CPC DA UNE
12- O que é interessante na experiência do CPC é que ela está teoricamente vinculada à
filosofia isebiana, muito embora seja uma radicalização à esquerda dessa perspectiva.
Por exemplo, o conceito de alienação terá em Marx e Lukács, e não mais em Hegel,
seus representantes principais (p. 68).
Folclore e cultura popular
13- Enquanto o folclore é interpretado como sendo as manifestações culturais de cunho
tradicional, a noção de “cultura popular” é definida em termos exclusivos de
transformação. Critica-se a posição do folclorista, que corresponderia a uma atitude de
paternalismo cultural, para enfim implantar as bases de uma política cultural segundo
uma orientação reformista-revolucionária (p. 71).
14- Para o CPC, a relação [intelectuais x povo] encontra-se invertida [em relação ao que
Gramsci compreendia]: são os intelectuais que levam cultura às massas (p. 73).
Ideologia
15- O Manifesto da UNE de 1962 leva as considerações sobre o processo de alienação
às últimas consequências quando distingue três tipos de objetos artísticos populares: a
arte do povo, a arte popular, a arte revolucionária do CPC (p. 74).
16- Outro aspecto importante da ideologia é a questão do nacionalismo [...]. Popular e
nacional representam assim faces de uma mesma moeda; nesse sentido, a prática do
CPC implicaria a tomada de consciência da dependência dos países subdesenvolvidos
com relação aos centros de decisões econômicas e culturais (p. 75).
Aberturas
17- Na realidade, definir as manifestações populares como “falsa consciência” implica
necessariamente eleger-se arbitrariamente valores da “veracidade” e de “autenticidade”
cultural (p. 77).
18- Colocar a questão da cultura popular em termos de hegemonia pode, a meu ver,
avançar a discussão a respeito da cultura brasileira. Um primeiro aspecto, que situa o
problema enquanto relação de forças, se refere à indústria cultural. Não se deve
esquecer que o desenvolvimento desse ramo industrial é recente; nos anos 60 ele se
encontra ainda em fase embrionária de crescimento, e só toma um impulso considerável
quando se aperfeiçoam e se difundem os meios de comunicação de massa que hoje
tendem a integrar a nação como um todo (p. 77).
ESTADO AUTORITÁRIO E CULTURA
Introdução
19- Isso significa que o Estado [do período militar] deve estimular a cultura como meio
de integração, mas sob o controle do aparelho estatal (p. 82-83).
20- Não estou sugerindo com isto que esse controle é absoluto. Existe evidentemente
um hiato entre o pensamento autoritário e a realidade (p. 83).
21- O que gostaria de ressaltar é que esta ideologia não se volta exclusivamente para a
repressão, mas possui um lado ativo que serve de base para uma série de atividades que
serão desenvolvidas pelo Estado (p. 83).
22- Durante o período 64-80 ocorre uma formidável expansão, a nível da produção, da
distribuição e do consumo de bens culturais (p. 83).
23- Ao se definir como concessionário único e transferir para a jurisdição federal o
poder de concessão, ele concentra poder e facilita o controle sobre as redes nacionais de
televisão (p. 88).
24- O rigor excessivo do sensor acarreta também, para os empresários, consequências
negativas para o funcionamento do mercado cultural (p. 89).
Memória nacional e mestiçagem
25- Recrutados nos Institutos Históricos e Geográficos e nas Academias de Letras, esses
intelectuais conservadores e representantes de uma ordem passada irão se ocupar da
tarefa de traças as diretrizes de um plano cultural para o país (p. 91).
26- O elemento da mestiçagem contém justamente os traços que naturalmente definem a
identidade brasileira: unidade na diversidade. Esta fórmula ideológica condensa duas
dimensões: a variedade das culturas e a unidade do nacional (p. 93).
27- Na verdade, cultura do “homem branco” não entra simplesmente em contato com a
do “homem negro”, existe uma rede de relações sociais que os transcendem para
apreendê-los no interior de uma economia escravista. O que o conceito de aculturação
pressupõe é um mundo onde não se manifestam as relações de poder (p. 95).
28- Voltados para o passado, eles insistem, como Gilberto Freyre em seu manifesto
tradicionalista, na preservação das expressões e manifestações configuradas no passado
da história brasileira (p. 96).
29- O Estado, assumindo o argumento da unidade na diversidade, torna-se brasileiro e
nacional, ele ocupa uma posição e neutralidade, e sua função é simplesmente
salvaguardar uma identidade que se encontra definida pela história (p. 100).
As ideias e os nichos
30- Dentro dessa perspectiva o Estado (composto por setores diferenciados) se vê diante
da necessidade de bricolar as ideias disponíveis [dos intelectuais tradicionais],
reservando-se o direito de incorporar algumas, mas de abandonar outras. A ideologia da
mestiçagem, que possibilita a definição da memória nacional e de uma ontologia do
homem brasileiro, será absorvida, porém a parte que se refere à organicidade de uma
política cultural será recursada (p. 108).
A ideologia de mercado
31- O contraste [dos intelectuais sênior] com os novos intelectuais demandados pelas
burocracias estatais é patente; jovens com carreiras promissoras, bem escanhoados,
Ph.D. nos Estados Unidos, se opõe assim a uma geração de formação bacharelesca,
ensaísta e historiadora dos pequenos fatos da vida nacional. É esta nova intelectualidade
que, por um lado, fornece uma ideologia “moderna” ao aparelho de Estado, por outro
possibilita uma ação orgânica no campo da cultura (p. 108-109).
32- A nova realidade exige dos intelectuais do INC e da EMBRAFILME um discurso
que seja coerente com as perspectivas de desenvolvimento econômico. [...] A primeira
operação classificatória que o discurso estabelece se impõe ao se afirmar que “o filme é
uma arte, o cinema, uma indústria”. Procura-se, dessa forma, dissociar o produto
cultural de sua difusão e consumo (p. 110-111).
33- A ideologia se volta assim para a justificação de um cinema de entretenimento,
voltado para o “interesse do público”, isto é, adequado ao mercado consumidor (p. 111).
34- O Estado seria democrático na medida em que procuraria incentivar os canais de
distribuição dos bens culturais produzidos. O mercado, enquanto espaço social onde se
realizam as trocas e o consumo, torna-se o local por excelência, no qual se exerceriam
as aspirações democráticas (p. 116).
O popular revisitado
35- Vários documentos de Pedro Demo procuram neste sentido distinguir três tipos de
cultura: 1) a cultura da identidade nacional, que se prende à criação de valores culturais
que identificam o povo brasileiro; 2) A cultura de subsistência; 3) A cultura alienada (p.
119).
36- Uma política cultural comunitária proporcionaria ao Estado a possibilidade de
intervir numa esfera da vida social sem abrir mão de sua política econômica recessiva
(p. 123).
Observações não conclusivas
37- [...] o discurso do Estado, produzido por diferentes grupos sociais, procura soldar os
elementos de um pensamento tradicional no interior de uma ideologia de mercado (p.
123).
38- O Estado e as indústrias culturais despolitizam a questão da cultura, uma vez que as
relações sociais são apreendidas como “expressão popular” (p. 125).

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