Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
A questão central deste artigo reside no sentido contido nas teses
revisionistas defendidas por alguns historiadores sobre a ditadura militar no
Brasil e as consequências dessas proposições para a memória social e a luta
por reparação das famílias das vítimas do regime. É relevante ressaltar que o
revisionismo a que nos referimos trata-se de revisão proposta por historiadores,
que difere do discurso construído por políticos conservadores, militares e
simpatizantes do regime, discurso esse que busca justificar ou mesmo enaltecer
“qualidades” do período autoritário.
O golpe civil-militar de 1964, que derrubou o governo de João Goulart,
eleito pelas urnas, implantou um modelo de desenvolvimento que “revelou uma
essência que pode ser resumida em duas frases: concentração da renda e
desnacionalização da economia.” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p.
60). Para que tal modelo fosse implantado, o governo do primeiro militar
presidente, o marechal Humberto Castelo Branco, pavimentou o caminho para a
institucionalização do regime autoritário, com medidas que alteraram toda a
estrutura jurídica do país. O sistema de relação entre os três poderes da
República foi totalmente alterado, conferindo cada vez mais proeminência e
força ao Executivo.
O cientista político uruguaio René Dreifuss (1981) foi um dos primeiros
pesquisadores a caracterizar o golpe de Estado de 1964 como civil-militar,
concluindo que o que ocorreu em 1964 não foi um golpe das forças armadas
contra Goulart, mas a "culminância de um movimento civil-militar" (DREIFUSS,
1981, p. 361). Esse movimento agiu de diversas maneiras, principalmente por
meio de “uma campanha ideológica, [capaz] de esvaziar uma boa parte do apoio
ao Executivo existente e reunir as classes médias contra o governo” (DREIFUSS,
1981, p. 259). Campanha essa desenvolvida por meio de órgãos como o IPES
[Instituto de Pesquisas e Estudos Socias] e o IBAD [Instituto Brasileiro de Ação
Democrática], criados pela elite empresarial com apoio do capital estrangeiro,
para desestabilizar o governo Goulart.
Efemérides e revisionismo
Os debates acerca da natureza do regime que se instalou no Brasil após
o golpe de Estado de 1964 começaram a ganhar corpo na historiografia brasileira
a partir dos anos 2000. Apesar do período autoritário já ter sido amplamente
pesquisado e discutido até aquele momento, ainda existiam divergências ao se
atribuir um sentido ao conceito de “ditadura” – esse, sem dúvida, um consenso
entre os historiadores que realizam um trabalho baseado no rigor do método
historiográfico – para definir o regime que durou de 1964 até 1985.
Os debates em torno da revisão das pesquisas e narrativas
historiográficas sobre a ditadura se acirraram a partir da efeméride dos 40 anos
do golpe de Estado de 1964, completados em 2004. Naquele período, ocorreu a
publicação de um grande volume de material sobre o tema pela imprensa. Teses
revisionistas passaram a disputar espaço na academia com as leituras já
consagradas pela historiografia a partir de pesquisas e trabalhos publicados.
De um lado estavam os historiadores que, a exemplo de Carlos Fico,
entendem que a ditadura imposta ao Brasil no período deve ser conceituada
como uma “ditadura militar”. Primeiro, porque foram os militares quem tomaram
as decisões estratégicas de governo e relativas a políticas de Estado; segundo,
porque a presença de civis nos cargos de governo durante a ditadura não deve
ser pensada e considerada como a participação da sociedade civil, mas sim de
classes muito específicas, as elites empresariais e políticas, setores que,
historicamente, gravitam em torno do poder no Brasil.
No lado oposto estavam os que defendiam que, devido ao apoio dado por
setores da sociedade civil organizada ao golpe de Estado que depôs o
presidente João Goulart e à participação de civis em cargos-chaves dos
governos militares, o regime que se instalou no país entre 1964 e 1985 deveria
ser conceituado como uma “ditadura civil-militar”. O historiador Daniel Aarão Reis
é um dos expoentes desta corrente revisionista. Reis, que é professor de História
Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF) e também estudioso
do período autoritário, durante a ditadura fez parte do MR-8 (Movimento
Revolucionário 8 de Outubro), tendo sido preso, torturado e expulso do Brasil em
1970.
O historiador fluminense parte do pressuposto de que a sociedade
brasileira não só apoiou o golpe, mas participou e deu legitimidade social à
ditadura. E que, por conta de um “discurso hegemônico” dentro da historiografia,
consolidou-se a memória de um regime de cunho exclusivamente militar.
Considerações finais
O objetivo deste artigo, ao levantar questões acerca das teses
historiográficas revisionistas sobre o período autoritário vivido pelo Brasil entre
1964 e 1985, foi propor uma reflexão sobre o papel do historiador quando produz
sua narrativa e sobre os usos políticos do passado que seu trabalho pode
favorecer. Analisamos o potencial das narrativas revisionistas de descaracterizar
a responsabilidade dos militares que governaram o país pelos crimes cometidos
e pelos traumas deixados, instrumentalizando argumentos políticos do presente
que buscam desconstruir a ideia de que houve, de fato, uma ditadura no Brasil.
Desta forma, teses revisionistas como as aqui analisadas podem afetar
de forma direta os que foram vítimas do regime autoritário, na medida em
contribuem para uma relativização da ditadura e o não-reconhecimento dos
crimes contra os direitos humanos praticados por agentes do Estado brasileiro,
tornando ainda mais árdua e sofrida a luta das famílias por reparação e justiça,
pelo direito à memória e à verdade.
Um último aspecto merece menção: o limite ético de algumas análises
revisionistas que qualificam como “discurso hegemônico” a historiografia crítica
construída ao longo de muitos anos de pesquisa, que jogou luz sobre um dos
períodos mais traumáticos da história do Brasil, para que não sejam esquecidos
ou relativizados os danos humanos, sociais, políticos e econômicos deixados
como herança pela ditadura, bem como os crimes cometidos pelos militares, os
reais detentores do poder naquele triste período da história.
Referências
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. (1985). Brasil nunca mais. Petrópolis:
Vozes.
DIAS, R. B. (jan./jun. de 2020). O caso Fernando de Santa Cruz: uma
abordagem da pauta dos mortos e desaparecidos pela ditadura relacionada à
historia da Ação Popular Marxista-Leninista (APML). Antíteses, 13, 391-424.
DIAS, R., & PAVANI, E. (2011). A luta da família de Arno Preis pela verdade e
por reparação: contribuição aos estudos a respeito dos mortos e desaparecidos
da ditadura. Esboços, 153-181.
DREIFUSS, R. A. (1981). 1964, a conquista do estado: ação política, poder e
golpe de classe. Petrópolis: Vozes.
FICO, C. (2004). Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura. Revista
Brasileira de História, 24(n.47), 29-60. Acesso em 10 de outubro de 2019,
disponível em www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-
01882004000100003&script=sci_arttext
JOFFILY, M. (jan./mar. de 2018). Aniversários do golpe de 1964: debates
historiográficos, implicações políticas. Tempo e Argumento, 10, p. 204 - 251.
KOSELLECK, R. (2006). Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos
históricos. Rio de Janeiro: PUC.
LEITE, J. V. (26 de maio de 2017). Ditadura militar: uma revisão historiográfica
crítica sob o prisma da História Social. Acesso em 10 de outubro de 2019,
disponível em II ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA POLÍTICA:
http://uece.br/eventos/gthpanpuh2017/anais/trabalhos.html
NAPOLITANO, M. (2014). 1964: a história do regime militar brasileiro. São
Paulo: Contexto.
REIS, D. A. (2006). Ditadura militar e revolução socialista no Brasil. VI Semana
Acadêmica de História, América Latina: ditaduras, (pp. 1-18). Niterói.
REIS, D., MOTTA, R. P., & RIDENTI, M. (. (2004). A ditadura que mudou o
Brasil: 50 anos do golpe de 1964 . Rio de Janeiro : Zahar.
SENA JÚNIOR, C. Z. (2015). O espelho da memória: um debate com o
revisionismo histórico em torno da ditadura._. Crítica Marxista, p. 121-131.
Fonte:
https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/comentario2016
_08_03
SKINNER, Q. (2002). Visões da política: sobre os métodos históricos. Algés
(Portugal): DIFEL.
TOLEDO, C. N. (2004). 1964: Golpismo e democracia. As falácias do
revisionismo. Crítica Marxista, 1(19), 27-48.