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Ditadura e revisionismo no Brasil: as disputas de narrativas e seus

reflexos no direito à memória, verdade e justiça das vítimas do regime


autoritário (1964-1985)

Regina Célia Daefiol


Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Resumo: O presente artigo busca analisar as disputas de sentido promovidas


pelo revisionismo proposto por algumas correntes historiográficas acerca da
ditadura militar no Brasil e suas interferências nas questões relacionadas ao
direito à memória, à verdade e à justiça. Propomos também uma reflexão sobre
o papel do historiador quando produz sua narrativa e sobre os usos políticos do
passado que seu trabalho pode favorecer. A interpretação destas correntes
historiográficas de que a ditadura que se instalou no Brasil teve um caráter civil-
militar e a atribuição, por alguns de seus postulantes, de uma postura
antidemocrática à esquerda revolucionária que lutou contra o regime autoritário
fornecem a base que suscita os debates aqui propostos. A partir de Koselleck
(2006), que demonstra a historicidade do pensamento sócio-político, e de
Skinner (2002), para quem a intenção de um determinado discurso está inscrita
no texto mas as motivos de sua produção é que permitem compreender seu
verdadeiro significado, buscamos refletir sobre os impactos políticos e sociais de
tais postulações revisionistas. Em especial, refletiremos sobre o potencial
dessas narrativas de descaracterizar a responsabilidade dos militares que
governaram o país pelos crimes cometidos e pelos traumas causados e de
instrumentalizar argumentos políticos do presente que buscam desconstruir a
ideia de que houve uma ditadura no Brasil entre 1964 e 1985, negando à
sociedade o direito à verdade e, às vítimas do regime, o direito à memória e à
justiça.
Palavras-chave: Ditadura Militar; Revisionismo; Memória; Justiça.

Introdução
A questão central deste artigo reside no sentido contido nas teses
revisionistas defendidas por alguns historiadores sobre a ditadura militar no
Brasil e as consequências dessas proposições para a memória social e a luta
por reparação das famílias das vítimas do regime. É relevante ressaltar que o
revisionismo a que nos referimos trata-se de revisão proposta por historiadores,
que difere do discurso construído por políticos conservadores, militares e
simpatizantes do regime, discurso esse que busca justificar ou mesmo enaltecer
“qualidades” do período autoritário.
O golpe civil-militar de 1964, que derrubou o governo de João Goulart,
eleito pelas urnas, implantou um modelo de desenvolvimento que “revelou uma
essência que pode ser resumida em duas frases: concentração da renda e
desnacionalização da economia.” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p.
60). Para que tal modelo fosse implantado, o governo do primeiro militar
presidente, o marechal Humberto Castelo Branco, pavimentou o caminho para a
institucionalização do regime autoritário, com medidas que alteraram toda a
estrutura jurídica do país. O sistema de relação entre os três poderes da
República foi totalmente alterado, conferindo cada vez mais proeminência e
força ao Executivo.
O cientista político uruguaio René Dreifuss (1981) foi um dos primeiros
pesquisadores a caracterizar o golpe de Estado de 1964 como civil-militar,
concluindo que o que ocorreu em 1964 não foi um golpe das forças armadas
contra Goulart, mas a "culminância de um movimento civil-militar" (DREIFUSS,
1981, p. 361). Esse movimento agiu de diversas maneiras, principalmente por
meio de “uma campanha ideológica, [capaz] de esvaziar uma boa parte do apoio
ao Executivo existente e reunir as classes médias contra o governo” (DREIFUSS,
1981, p. 259). Campanha essa desenvolvida por meio de órgãos como o IPES
[Instituto de Pesquisas e Estudos Socias] e o IBAD [Instituto Brasileiro de Ação
Democrática], criados pela elite empresarial com apoio do capital estrangeiro,
para desestabilizar o governo Goulart.

A historiografia e a ciência política críticas no Brasil têm


documentado, de forma consistente, a ação política e ideológica
de setores civis e “duros” das Forças Armadas – apoiados pelos
serviços de inteligência do governo norte-americano – no
planejamento e consecução do golpe de 1964. (TOLEDO, 2004,
p. 44)

A eminência de uma “ameaça comunista”, que a propaganda do IPES


associava à versão de reformas de base defendida por Goulart, foi um dos motes
da campanha ideológica empreendida pelas elites golpistas para desestabilizar
o governo. Apesar de ter havido uma participação das classes médias em
protestos que pediam a queda de João Goulart, como nas Marchas da Família
com Deus e pela Liberdade, incitadas principalmente pelos setores
conservadores católicos e pelas campanhas do IPES, Dreifuss considera que é
preciso qualificar quem eram exatamente os “civis” que participaram de forma
direta no golpe por existir um “projeto de classe” não só no golpe, mas também
na ditadura que com ele se instalou.

Um exame mais cuidadoso desses civis indica que a maioria


esmagadora dos principais técnicos em cargos burocráticos
deveria (em decorrência de suas fortes ligações industriais e
bancárias) ser chamada mais precisamente de empresários, ou,
na melhor das hipóteses, de tecno-empresários. (DREIFUSS,
1981, p. 361)

O historiador Carlos Fico, um dos maiores estudiosos do período


autoritário, entende, como Dreifuss, que os militares não agiram sozinhos no
golpe de 1964, tendo tido a colaboração direta da elite empresarial, pois “na
verdade o Estado teria sido diretamente reorganizado pela ‘elite orgânica’
capitaneada pelo IPES” (FICO, 2004, p. 11). Esses civis não só se articularam
para disseminar uma atmosfera de inquietação política, com a consequente
desestabilização do governo, como também conseguiram se integrar aos grupos
militares que conspiravam contra Goulart, ajudando na formação do que Dreifuss
chama de "raciocínio estratégico para o golpe". Carlos Fico ressalta que, mesmo
tendo sido a preparação do golpe levada a cabo por uma associação civil-militar,
foram os militares que o concretizaram.
Se faz necessário ressaltar que a conspiração golpista também se
alimentou de uma conjuntura de instabilidade política e social que contribuiu
grandemente o sucesso do golpe. Carlos Fico assim resume essa conjuntura:

As transformações estruturais do capitalismo brasileiro, a


fragilidade institucional do país, as incertezas que marcaram o
governo de João Goulart, a propaganda política do IPES, a
índole golpista dos conspiradores, especialmente dos militares –
todas são causas, macroestruturais ou micrológicas, que devem
ser levadas em conta, não havendo nenhuma fragilidade teórica
em considerarmos como razões do golpe tanto os
condicionantes estruturais quanto os processos conjunturais ou
os episódios imediatos. (FICO, 2004, p. 12).

Em relação ao regime instaurado após o golpe de 1964, Fico é categórico:


foi uma ditadura militar. Os militares foram, na interpretação do historiador, os
verdadeiros governantes, independente do fato de muitos cargos relevantes do
governo de Castelo Branco terem sido “dados a ‘homens-chave dos grandes
empreendimentos industriais e financeiros e de interesses multinacionais’”
(FICO, 2004, p. 10), o que representou a concretização dos interesses do bloco
multinacional e associado que participou da articulação do golpe. Ao mesmo
tempo em que se pode conceituar o golpe de civil-militar, segundo Fico, não há
entre os fatos sustentação suficiente para que se atribua também à ditadura que
se impôs um caráter civil-militar.

Efemérides e revisionismo
Os debates acerca da natureza do regime que se instalou no Brasil após
o golpe de Estado de 1964 começaram a ganhar corpo na historiografia brasileira
a partir dos anos 2000. Apesar do período autoritário já ter sido amplamente
pesquisado e discutido até aquele momento, ainda existiam divergências ao se
atribuir um sentido ao conceito de “ditadura” – esse, sem dúvida, um consenso
entre os historiadores que realizam um trabalho baseado no rigor do método
historiográfico – para definir o regime que durou de 1964 até 1985.
Os debates em torno da revisão das pesquisas e narrativas
historiográficas sobre a ditadura se acirraram a partir da efeméride dos 40 anos
do golpe de Estado de 1964, completados em 2004. Naquele período, ocorreu a
publicação de um grande volume de material sobre o tema pela imprensa. Teses
revisionistas passaram a disputar espaço na academia com as leituras já
consagradas pela historiografia a partir de pesquisas e trabalhos publicados.
De um lado estavam os historiadores que, a exemplo de Carlos Fico,
entendem que a ditadura imposta ao Brasil no período deve ser conceituada
como uma “ditadura militar”. Primeiro, porque foram os militares quem tomaram
as decisões estratégicas de governo e relativas a políticas de Estado; segundo,
porque a presença de civis nos cargos de governo durante a ditadura não deve
ser pensada e considerada como a participação da sociedade civil, mas sim de
classes muito específicas, as elites empresariais e políticas, setores que,
historicamente, gravitam em torno do poder no Brasil.
No lado oposto estavam os que defendiam que, devido ao apoio dado por
setores da sociedade civil organizada ao golpe de Estado que depôs o
presidente João Goulart e à participação de civis em cargos-chaves dos
governos militares, o regime que se instalou no país entre 1964 e 1985 deveria
ser conceituado como uma “ditadura civil-militar”. O historiador Daniel Aarão Reis
é um dos expoentes desta corrente revisionista. Reis, que é professor de História
Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF) e também estudioso
do período autoritário, durante a ditadura fez parte do MR-8 (Movimento
Revolucionário 8 de Outubro), tendo sido preso, torturado e expulso do Brasil em
1970.
O historiador fluminense parte do pressuposto de que a sociedade
brasileira não só apoiou o golpe, mas participou e deu legitimidade social à
ditadura. E que, por conta de um “discurso hegemônico” dentro da historiografia,
consolidou-se a memória de um regime de cunho exclusivamente militar.

[...] a memória é assim: substitui evidências pela vontade e pelo


interesse, que, no caso, se articularam para responsabilizar
unicamente os militares pelo “fato ditatorial”. No mesmo
movimento, obscureceu-se a participação dos civis na
construção do regime, esvaziando-se de quebra o estudo e a
compreensão das complexas relações que sempre vigoraram
entre o poder ditatorial e a sociedade. (REIS, MOTTA, &
RIDENTI, 2004, p. 6)

Nesta perspectiva, Reis também defendia que a revogação do AI-5, em


1º de janeiro de 1979, representou o fim da ditadura e a passagem para “um
estado de direito autoritário”, uma espécie de período de transição para o regime
democrático, que teria se concretizado com a Constituição de 1988. Mais
combustível foi adicionado à fogueira dos debates com a tese de Reis de que a
esquerda revolucionária era tão antidemocrática quanto os governos da ditadura,
uma vez que o objetivo dos movimentos revolucionários que lutavam contra o
regime era radicalizar, promover reformas profundas que levariam à superação
do capitalismo, instaurando “uma ditadura revolucionária, modo de agir que
seguia o padrão do socialismo revolucionário do século XX”. (REIS, 2006, p. 16)
Caio Navarro de Toledo (2004) considera que a argumentação de Reis
representa um “recuo ideológico”. Na visão de Toledo, Daniel Aarão Reis, com
suas teses, estaria interpretando o regime ditatorial sob a lente do liberalismo,
que atribui às esquerdas revolucionárias uma “cultura política não democrática”
pelo fato dessas esquerdas “criticarem a democracia liberal.” (TOLEDO, 2004)
Dez anos depois, novamente os debates em torno do caráter da ditadura
em si, se militar ou civil-militar, voltaram ao cenário historiográfico. Isso ocorreu
num momento emblemático, os anos de 2014 e 2015, quando se completavam,
respectivamente, 50 anos do golpe civil-militar e 30 anos do fim do regime
autoritário. Foi um período de grande produção historiográfica sobre o tema, com
inúmeros trabalhos acadêmicos, eventos e publicações. Nesse contexto ganhou
impulso o revisionismo baseado na tese do colaboracionismo da sociedade civil
com a ditadura.
Em 2014, numa entrevista concedida ao jornal O Globo, Reis criticou a
“hegemonia” da principal tendência historiográfica sobre o período que, segundo
ele, deixava de considerar a participação civil no regime autoritário.

A grande novidade nessa última década é que se fortaleceu uma


corrente crítica à principal tendência da historiografia sobre o
período. A história da ditadura que ainda permanece
hegemônica no Brasil, encarnada em grande parte pelo Arquivo
Nacional e em certa medida pela Comissão Nacional da
Verdade, se recusa a considerar a ditadura nas suas complexas
relações com a sociedade brasileira. Imagina que a ditadura foi
imposta de cima para baixo e enfatiza, quase que
exclusivamente, a resistência à ditadura. (...) É preciso estudar
as complexas relações que se estabeleceram. Houve muita
colaboração, cumplicidade, zigue-zagues. (SENA JÚNIOR,
2015, p. 124)

Considerar as complexas relações entre sociedade e ditadura é


fundamental na análise do período autoritário, sem dúvida. Porém, não se pode
perder de vista que, muito mais poderosas do que qualquer tipo de legitimação
social, a força e a repressão é que foram os instrumentos de manutenção do
regime autoritário, bem como de desestímulo à oposição. A existência de um
forte aparato repressivo, um sistema complexo e capilarizado que foi sendo
aparelhado nos anos iniciais do regime autoritário e que mostraria toda a sua
força a partir da edição do AI-5 (Ato Institucional número 5), em 1968, por si só
é uma evidência de que existia uma resistência social e que, na visão dos
militares, precisava ser combatida.
Também não se pode deixar de considerar a disseminação de notícias
falsas pela ditadura na imprensa colaboracionista – que durante um período
considerável apoiou e foi complacente com a ditadura – notícias essas que
qualificavam os que eram assassinados por agentes do Estado como terroristas.
E também o largo uso da propaganda pelos governos autoritários, especialmente
no período em que a televisão registrou uma grande expansão no Brasil.
Os maciços investimentos dos militares, em parceria com grupos
estrangeiros, na infraestrutura necessária para a massificação da televisão
tiveram importante peso no colaboracionismo dos meios de comunicação e dos
grandes empresários do setor. A criação do sistema Embratel foi vital para a
consolidação da televisão no país, que se transformou em veículo estratégico
para a ditadura militar como o melhor meio de atingir a massa.
O governo Médici, além de ter ficado marcado como o período da mais
dura e violenta repressão, foi também o que mais investiu em propaganda de
cunho ufanista nos grandes veículos de comunicação, em especial a televisão.
O objetivo era passar para a opinião pública uma imagem de que tudo ia muito
bem no país, mergulhando a sociedade numa “realidade subvertida” que ajudou
a criar um clima de não-reação. Afirmar, pois, que a ditadura foi legitimada
socialmente é incorrer em uma perigosa generalização.

Jogo de luz e sombra


Algumas proposições da corrente analítica revisionista acabam
fornecendo argumento para ataques à memória daqueles que lutaram contra a
ditadura, porque os equipara, em termos de poder de ação/reação e de postura
em relação à democracia, aos que detinham a força e o poder de polícia por
serem agentes/representantes do Estado. A memória dos que perderam a vida
ou desapareceram porque se opuseram à ditadura fica, assim, associada a uma
espécie de “contingência de guerra” que naturaliza a morte de “inimigos” como
um “efeito colateral” de um momento de exceção, conforme dita a Doutrina de
Segurança Nacional.
É emblemático, do ponto de vista dessa disputa de memória, o caso
recente das falas do presidente da República, Jair Bolsonaro, sobre a morte de
Fernando de Santa Cruz, membro da Ação Popular Marxista-Leninista (APML)
e pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Bolsonaro insinuou que Santa
Cruz foi morto pelos próprios companheiros de APML, afirmando que, quando a
esquerda desconfiava de alguém, executava. Como coloca Dias (2020), a fala
do presidente, “além de eximir o Estado brasileiro de qualquer responsabilidade
pela morte de Fernando de Santa Cruz, [...]” (DIAS, 2020, p. 394) atribuiu a ele
a condição de alguém que era visto por seus pares “como indigno de confiança”,
versão que, segundo o autor, não tem fundamento. Trata-se, pois, de “uma
imputação desonrosa à memória de quem pereceu diante da violência do
Estado.” (idem)
As formulações da corrente revisionista fornecem argumentos – e de
fontes qualificadas – para os que defendem que os mortos pela ditadura militar
eram, de fato, terroristas, como eram chamados na época pela repressão. E isso
afeta muito a luta das famílias dessas vítimas em busca de reparação e de
justiça. Como ocorreu com uma família de Maringá, que lutou por mais de duas
décadas para resgatar não só a verdade e obter reparação judicial pelo
desaparecimento de um ente querido durante a ditadura militar, mas até mesmo para
localizar e recuperar seus restos mortais.
Trata-se da família de Arno Preis, integrante do Molipo (Movimento de
Libertação Popular) que foi assassinado pela ditadura em 1972 em Goiás e enterrado
numa sepultura anônima, como indigente e sem certidão de óbito. Sua mão chegou a
ser amputada para dificultar a identificação. Somente em maio 1994, depois de uma
longa e dolorosa luta da família, os restos mortais de Arno Preis foram
oficialmente sepultados em Forquilhinha (SC), sua cidade natal, com o devido
reconhecimento da responsabilidade da ditadura e do Estado brasileiro pela sua
morte (DIAS & PAVANI, 2011).
A perspectiva de Reinhart Koselleck e de Quentin Skinner sobre história
dos conceitos e da análise do discurso pode contribuir para a compreensão da
disputa de sentidos que se estabeleceu na historiografia sobre o período
autoritário a partir dos debates em torno da natureza de ditadura imposta no país
pelo golpe de Estado de 1964. Koselleck (2006) afirma que conceitos e
pensamentos sócio-políticos têm historicidade e, por esta razão, podem ter
significados diversos ao longo do tempo. Um conceito não é algo inalterável, uma
vez que está revestido de temporalidade e, por isso, precisa ser contextualizado
para que seu sentido possa ser compreendido.
Numa perspectiva historiográfica, a polissemia de um conceito num
determinado contexto temporal nem sempre significa um ganho para a
compreensão das implicações de determinados atos e ações na realidade social,
uma vez que podem revelar apenas a tentativa de desconstrução ou de
relativização de um discurso, sem que haja o lastro de novas evidências
historiográficas. Resumindo, pode jogar sombras ao invés de luz sobre
determinados períodos históricos.
Essa disputa de sentidos pode ser analisada também sob a perspectiva
das motivações que extrapolam o discurso que está posto. A intenção de um
determinado discurso está inscrita no texto, mas as motivações que levam à sua
produção vão muito além do que está explícito e descrito. E são as motivações
que permitem compreender o verdadeiro sentido do que está dito. Segundo
Skinner (2002), para se conhecer as motivações, é preciso partir do sentido literal
do que está escrito/dito, analisar o contexto e a ocasião em que tal discurso foi
produzido e, finalmente, reconstruir o conjunto de atitudes e obras do autor para
conhecer sua maneira de pensar.

Conhecer os motivos e as intenções é conhecer a relação que


um autor estabelece com o que ele ou ela escreveu. Conhecer
os motivos significa tentar saber quais as razões que levaram
seu autor a realizar esses atos discursivos, isso para além de
seu caráter e de seu estatuto de verdade enquanto proposições.
(SKINNER, 2002, p. 136)

Partindo das postulações de Skinner, é lícito dizer que o sentido atribuído


pela corrente analítica que conceitua a ditadura como “civil-militar” traz, em si,
uma tomada de posição política. Desqualificar uma “historiografia hegemônica”
que, dando ênfase à resistência, jogou luz sobre os abusos do autoritarismo,
com a defesa de uma narrativa que atribui uma responsabilização civil partilhada
com os militares pelos anos autoritários e suas consequências, revela um
posicionamento político afinado com os discursos da direita liberal.

Considerações finais
O objetivo deste artigo, ao levantar questões acerca das teses
historiográficas revisionistas sobre o período autoritário vivido pelo Brasil entre
1964 e 1985, foi propor uma reflexão sobre o papel do historiador quando produz
sua narrativa e sobre os usos políticos do passado que seu trabalho pode
favorecer. Analisamos o potencial das narrativas revisionistas de descaracterizar
a responsabilidade dos militares que governaram o país pelos crimes cometidos
e pelos traumas deixados, instrumentalizando argumentos políticos do presente
que buscam desconstruir a ideia de que houve, de fato, uma ditadura no Brasil.
Desta forma, teses revisionistas como as aqui analisadas podem afetar
de forma direta os que foram vítimas do regime autoritário, na medida em
contribuem para uma relativização da ditadura e o não-reconhecimento dos
crimes contra os direitos humanos praticados por agentes do Estado brasileiro,
tornando ainda mais árdua e sofrida a luta das famílias por reparação e justiça,
pelo direito à memória e à verdade.
Um último aspecto merece menção: o limite ético de algumas análises
revisionistas que qualificam como “discurso hegemônico” a historiografia crítica
construída ao longo de muitos anos de pesquisa, que jogou luz sobre um dos
períodos mais traumáticos da história do Brasil, para que não sejam esquecidos
ou relativizados os danos humanos, sociais, políticos e econômicos deixados
como herança pela ditadura, bem como os crimes cometidos pelos militares, os
reais detentores do poder naquele triste período da história.

Referências
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Fonte:
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