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Verbete para o dicionário sobre militares organizado por Francisco Carlos Teixeira da

Silva, no prelo
DIVULGAÇÃO NÃO AUTORIZADA

A IDEIA DE TUTELA MILITAR NA REPÚBLICA BRASILEIRA

Carlos Fico, Doutor em História (USP), Instituto de História (UFRJ)

Países em geral caracterizados como democracias liberais, boa parte deles no Ocidente,
contam com forças armadas que não interferem na política doméstica. Vários outros,
entretanto, convivem, de um modo ou de outro, com a ingerência dos militares na política.
Com isso se quer assinalar que o fenômeno aqui em pauta não é exclusivo do Brasil.

Entre nós, tem sido constante a intervenção dos militares na política. As diversas
interferências têm características diferentes, embora seja possível identificar algumas
fases – como se verá adiante. Ainda assim, tais intervenções têm em comum a ruptura da
legalidade com o uso da força das armas e, sobretudo, a suposição de superioridade dos
militares em relação aos civis que, por essa razão, caberia tutelar.

Também em termos preliminares, convém assinalar que a intervenção dos militares na


política brasileira não decorre, pura e simplesmente, de uma predisposição atávica para
tutelar a sociedade, sendo frequente o apelo de civis a esse tipo de atuação por assim dizer
“moderadora” – como foi frequente sobretudo no período posterior ao fim do Estado
Novo (1937-1945).

A mencionada tradição de intervenções expressa significativa fragilidade da democracia


brasileira pelo fato evidente de que elas se caracterizam como insubordinação militar aos
ditames constitucionais. Como disse certa vez o jornalista Newton Rodrigues, “a
interferência da espada é o maior comprovante de subdesenvolvimento institucional”.

A desobediência à Constituição é a principal característica das crises institucionais, que,


assim, desbordam dos limites das corriqueiras crises políticas, sendo muito mais graves.
Ora, se considerarmos apenas o período republicano posterior a 1930, veremos que os
militares foram responsáveis ou estiveram envolvidos em todas as crises institucionais do
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período: assim foi em 1930, com a junta governativa provisória, de natureza militar, que,
após a deposição de Washington Luís, entregou o governo a Vargas; do mesmo modo, a
ditadura do Estado Novo, estabelecida em 1937, teve a tutela das Forças Armadas – e a
deposição de Vargas, em 1945, também se deveu à ação dos militares; igualmente, em
1954, Vargas suicidou-se após pressão militar; o general Lott, em 1955, afastou do poder
os presidentes Carlos Luz e Café Filho supondo que eles tramavam impedir a posse do
presidente eleito, Juscelino Kubitschek; os três ministros militares do presidente Jânio
Quadros, que renunciou em 1961, pronunciaram-se contra a posse do vice-presidente
João Goulart, quase levando o país à guerra civil; o golpe de Estado de 1964, embora
caracterizável como “civil-militar”, inaugurou ditadura militar que durou mais de duas
décadas.

No âmbito acadêmico, consolidou-se a tese segundo a qual a ditadura militar rompeu com
suposto padrão de intervenções moderadoras por meio das quais os militares teriam
mediado conflitos para logo devolverem o poder aos civis. As evidências, entretanto,
mostram que esse tipo de atuação não foi frequente. Ele não se verificou no rol de
agitações que marcaram a Primeira República. Na chamada Revolução de 1930, uma
junta militar depôs o governo civil e o passou a Getúlio Vargas, em atuação decisiva na
capital federal, mas que era consequente ao movimento que se alastrava desde o sul do
país; o golpe de Estado de 1937 e a ditadura do Estado Novo, sob a tutela dos militares,
tampouco podem ser caracterizados como intervenções rápidas ou moderadoras; em
1945, houve a deposição de Vargas pelas Forças Armadas, que entregaram a Presidência
da República ao presidente do Supremo Tribunal Federal numa ação que pode ser
caracterizada como moderadora; o suicídio de Vargas, em 1954, também foi
consequência de pressão dos militares, mas a posse do vice-presidente Café Filho foi
decorrência constitucional que não dependia das Forças Armadas; a intervenção do
general Lott, em 1955, seria o caso emblemático de “padrão moderador”; por fim, seria
difícil caracterizar a intervenção de 1961 como moderadora, haja vista a generalizada
estranheza que a ação dos três ministros militares causou, inclusive entre políticos da
União Democrática Nacional (UDN), justamente o partido que tanto clamara por
intervenções militares anos antes.

A tese do “padrão moderador” (que teria sido rompido com o golpe de 1964) se ampara
na ideia de que as lideranças políticas civis tentavam cooptar os militares e legitimavam
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suas intervenções em momentos de crise. Isso não aconteceu em 1930; em 1937, houve
grande harmonia entre os desígnios de Vargas e os interesses das Forças Armadas.
Portanto, também do ponto de vista do relacionamento entre civis e militares, pode-se
sustentar que, apenas após 1945, tornou-se de algum modo frequente o apelo de civis à
intervenção militar, embora isso tenha ocorrido com clareza apenas em alguns episódios
específicos.

Desse modo, o que parece de fato caracterizar as diversas intervenções militares no caso
brasileiro é, como já dito, a recorrência da ruptura da legalidade com o uso da força das
armas e a suposição de superioridade dos militares em relação aos civis. A recorrência
desse padrão ampara-se, evidentemente, em forte tradição política de autoritarismo (que
não marca apenas os militares) e expressa – também como já foi dito – a fragilidade da
democracia brasileira, incapaz de consolidar a proeminência simbólica do poder civil que
caracteriza as democracias liberais mencionadas no início deste verbete.

A ditadura militar (1964-1985) levou ao paroxismo aquilo que se pode chamar de “utopia
autoritária brasileira”, isto é, a recorrente suposição, na história política de nosso país, de
que será possível solucionar os problemas nacionais por meio de “atalhos” que,
frequentemente, desprezam a legalidade constitucional. Tal pressuposição fundamenta-
se na crença de que a população é “despreparada” (em função da pobreza e dos baixos
níveis de educação, entre outros argumentos elitistas) e/ou de que o eleitorado não é capaz
de resistir à ação de “políticos demagogos”. O general Aurélio de Lyra Tavares
(integrante da junta militar que governou o país após o golpe de 1969 depois de impedir
a posse do vice-presidente Pedro Aleixo, que deveria assumir em função da doença do
presidente Costa e Silva) sustentava que a realidade nacional era marcada pelo baixo nível
de preparo cultural e político do povo para o pleno exercício da democracia: teríamos
partidos inconsistentes e imaturos e um povo deseducado e de baixo nível médio de
instrução, além da ausência de ideário cívico, segundo disse em suas memórias. Trata-se,
portanto, de perspectiva flagrantemente autoritária, antipopular e antidemocrática,
suposição que, como já disse, não caracteriza apenas os militares, não obstante ela
também considere o mundo da política (civil) como venal e corrupto. Essa equação
autoritária e elitista será talvez a marca recorrente da história política republicana,
combinando as variáveis civil e militar de diversas maneiras.
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O debate sobre a denominação do regime instaurado pelo golpe de Estado de 1964


expressa, justamente, a complexidade da equação autoritária que combina militares e
civis. Tem sido comum designar-se o golpe de 1964 como “civil-militar”, o que parece
correto, tendo em vista que civis também atuaram, efetivamente, na deposição do
presidente João Goulart (como se comprova com a declaração de vacância do cargo de
presidente da República pelo Congresso Nacional, embora Goulart ainda estivesse no
país). Entretanto, deve-se evitar a designação “ditadura civil-militar” precisamente
porque ela atenua a responsabilidade política dos militares no tocante a essa opção tutelar
que, reitere-se, atingiu dimensões paroxísticas no período 1964-1985. De fato, o
fenômeno em pauta – não obstante tenha raízes históricas e infelizmente se perpetue na
contemporaneidade – conheceu sua pujança no período da ditadura militar.

Exatamente por isso, ou seja, pela óbvia exacerbação do intervencionismo militar durante
1964-1985, esperava-se que, com o “fim da ditadura”, ou com a “redemocratização”
(expressões que, por si só, assinalam as dúvidas sobre a efetiva instauração de uma
democracia no Brasil), houvesse definitiva profissionalização dos militares no sentido da
submissão ao poder civil e do abandono das antigas pretensões tutelares.

Sabe-se, entretanto, que a profissionalização de quaisquer forças armadas não garante que
os militares se afastem da política. No caso do Brasil, o incipiente fortalecimento do
Exército e da Marinha, imposto pela Guerra do Paraguai (1864-1870), bem como a
profissionalização sob a liderança do general Góes Monteiro, levada a cabo nos anos
1930, acarretaram crescente hostilidade contra os políticos e a consolidação da suposta
superioridade dos militares.

Até a Guerra do Paraguai, o Exército era bastante precário. A maior força do Império era
a Guarda Nacional. Foi precisamente a guerra que impôs alguma profissionalização e
modernização tanto ao Exército quanto à Marinha. Em paralelo às questões materiais de
aparelhamento ou aumento de contingentes, também vieram à tona aspectos corporativos
relacionados à “honra” e à “dignidade” militares – sempre em oposição aos civis. São
conhecidas as consequências da Guerra do Paraguai, inclusive em termos de
contraposição dos militares ao sistema político e aos interesses da monarquia. Uma série
de conflitos marcaria a relação dos militares com o governo no período 1884-1887 (a
chamada “Questão Militar”), em geral motivados por problemas menores, disciplinares,
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mas que amplificavam as demandas por respeito à “classe militar”. Após a chamada
“Proclamação da República” – um golpe militar republicano –, cresceu o protagonismo
dos militares.

Depois dos conturbados governos dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto,
houve certa estabilidade político-militar na Primeira República, apesar da Revolta da
Escola Militar da Praia Vermelha, em 1904, no contexto da Revolta da Vacina. Haveria
algum esforço de modernização do Exército nos anos seguintes, com o treinamento de
jovens oficiais na Alemanha em 1906, 1908 e 1910 (os “Jovens Turcos”), e a vinda de
missão militar francesa em 1920. Critérios de planejamento e de controle, bem como
ações de estado-maior, foram aprimorados. Para os “Jovens Turcos”, a nação brasileira
ainda não estava formada, sendo o Exército a única força nacional verdadeiramente
organizada. Desse modo, admitiam que a arma, por vezes, fosse “um pouco além dos seus
deveres profissionais para tornar-se, em dados momentos, um fator decisivo de
transformação política ou de estabilização social”.

O tenentismo foi um movimento de inspiração militar que aconteceu aproximadamente


entre 1922 e 1930. Seus componentes eram oficiais de baixa patente, sobretudo tenentes,
mas alguns civis também o integraram. Críticos dos padrões políticos fraudulentos da
Primeira República, contavam com apoio não organizado de setores das classes médias
urbanas. Voluntaristas, defendiam ações militares como principal forma de luta.
Demandavam o fortalecimento do governo central e advogavam um governo provisório
ditatorial, mas não tinham clareza sobre o que fazer caso conseguissem chegar ao poder.
Viviam grandes dificuldades profissionais e salariais, pois a promoção de um tenente
podia demorar muitos anos. Em 1922, o presidente Epitácio Pessoa nomeou um civil para
o Ministério da Guerra, deixando os tenentes descontentes. O candidato à sucessão de
Epitácio Pessoa, Artur Bernardes, havia sido acusado de ofender os militares por meio de
cartas que, afinal, se provaram falsas. Os tenentistas, não obstante, passaram a lutar contra
a posse de Bernardes. Em 1922, rebelaram-se a Escola Militar de Realengo, a Vila Militar
e o Forte de Copacabana no Rio de Janeiro. Essas agitações, entretanto, não contavam
com apoio unânime do Exército e podem ser caracterizadas como iniciativas de grupos,
não da instituição.

Com a Revolução de 1930, várias lideranças tenentistas chegaram ao poder. As Forças


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Armadas ocuparam espaço político decisivo, mas houve muitos incidentes envolvendo
militares, agitações, protestos e revoltas entre 1930 e 1934.

Com o golpe que instaurou o Estado Novo, em 1937, tornou-se possível a implantação
do projeto de nacionalização do Exército e a imposição de sua hegemonia, para o que foi
necessário controlar as forças policiais estaduais: polícias militarizadas deveriam se
tornar forças auxiliares do Exército, conforme previa a Constituição de 1934. No período,
deu-se significativa renovação e aperfeiçoamento das Forças Armadas. Fortaleceu-se a
ideia do Exército como protetor do Estado e da suposta superioridade da elite militar.
Quando da implantação do Estado Novo, o ministro da Guerra, general Eurico Dutra,
futuro presidente da República, referindo-se ao Exército, disse que “a pátria e o regime
repousarão sob nossa guarda”. Com a deposição de Vargas, em 1945, e a instauração da
vida político-partidária, consolidou-se entre os militares o posicionamento anticomunista
(que vinha desde 1932, conforme o marechal Odylio Denys), frequentemente associado
ao trabalhismo, estabelecendo-se expressivo vínculo entre as Forças Armadas e o
pensamento conservador do partido antigetulista União Democrática Nacional (UDN).

O período que se estende de 1945 a 1964 é conhecido como democrático, mas vivenciou
graves crises institucionais. Foi principalmente nessa época que políticos conservadores
e de direita clamaram pela intervenção militar admitindo a quebra da legalidade
constitucional e democrática.

Isso aconteceu pouco mais de um ano após o suicídio de Vargas, já que militares e setores
conservadores não se conformavam com a vitória de Juscelino Kubitschek – tido como
continuador de Vargas – na eleição para presidente da República em outubro de 1955.
Houve tentativas fracassadas de impugnar a eleição na justiça e manifestações de
militares e civis contra a posse do presidente eleito. Em um programa de TV, o deputado
pela UDN (DF), Carlos Lacerda, disse que “Juscelino não será candidato. Se for
candidato, não será eleito. Se for eleito, não tomará posse. Se tomar posse, não
governará!” Um militar extremado, o vice-almirante Pena Boto, liderava a “Cruzada
Brasileira Anticomunista” ao mesmo tempo em que ocupava o cargo de comandante-
em-chefe da Esquadra, exercendo este cargo cumulativamente com o comando da Força
dos Cruzadores. Ele dizia que “é indispensável impedir que Juscelino e Jango tomem
posse dos cargos para que foram indevidamente eleitos!”
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O discurso provocador de um coronel fez com que o ministro da Guerra, general Lott,
buscasse puni-lo disciplinarmente, mas o presidente da República, Café Filho, licenciou-
se do cargo por motivo de doença e Carlos Luz, presidente da Câmara no exercício da
Presidência da República, não autorizou a punição do coronel. Com a força das armas,
Lott obrigou a Câmara a votar o impedimento de Luz no dia 11 de novembro e o de Café
Filho no dia 21. O vice-presidente do Senado, Nereu Ramos, conduziu o governo até a
posse de JK.

Os episódios de 1955 de algum modo contrapunham o Exército, de um lado, e a Marinha


e Aeronáutica (criada em 1941), de outro. A derrota do brigadeiro Eduardo Gomes para
Vargas, na eleição presidencial de 1950, e a morte do major da FAB, Rubens Vaz –
consequência do atentado contra o jornalista Carlos Lacerda, em 1954 – aumentaram os
sentimentos antigetulistas sobretudo na Aeronáutica. Por isso, as ações do general Lott
que garantiram a posse de JK criaram alguma indisposição entre as forças. Consequência
disso, duas tentativas de golpe contra Juscelino Kubitschek se verificaram: uma em 1955,
a “Revolta de Jacareacanga” (PA) e outra em 1959, a “Revolta de Aragarças” (GO).
Foram rebeliões de pequena monta, conduzidas por oficiais da Aeronáutica, ambas
controladas pelo governo.

A grave crise institucional de 1961 não decorreu de exortações de políticos, devendo-se


exclusivamente à ação dos ministros militares do presidente renunciante. Segundo o
ministro da Guerra, os ministros militares supunham-se “investidos do poder de chefes
militares para a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem”. Mas houve
importante cisão no interior da força terrestre porque o comandante do III Exército apoiou
a iniciativa do governador do Rio Grande do Sul, em favor da posse do vice-presidente,
contrapondo-se aos ministros militares. A decorrente crise militar possibilitou o acordo
político que implantou o parlamentarismo e permitiu, afinal, a posse de João Goulart na
Presidência da República em setembro daquele ano.

Embora seja questionável falar-se em um “padrão moderador” rompido em 1964, é


evidente que a ditadura militar inaugurou fase nova – já que os militares controlariam o
governo brasileiro diretamente até 1985. Além da longevidade e da presença de generais
na Presidência da República, a singularidade do regime militar residiu na tentativa feita
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por três generais-presidentes de estabelecer nova moldura institucional para o país que
consagrasse um “governo forte” e uma democracia tutelada – o que, afinal, se verificou.
Justamente por terem consciência da precariedade das intervenções baseadas apenas na
força e na ruptura da legalidade, a partir de 1964 os militares tentaram estabelecer um
arcabouço institucional que combinasse legalidade e excepcionalidade. O Ato
Institucional de 9 de abril de 1964 (posteriormente conhecido como AI-1) manteve a
Constituição de 1946, ao mesmo tempo que instituiu instrumentos “revolucionários” ou
“excepcionais” de punição. A convivência entre o parâmetro legal/constitucional e a
“necessidade” de medidas de exceção marcaram toda a ditadura militar. Mais do que isso,
aquilo que os militares chamavam de “institucionalização” foi a expressão mais concreta
da utopia autoritária que os inspirava.

De fato, os militares (e civis também) supunham que mecanismos rigorosos de controle


da sociedade devessem ser incluídos na Constituição, de modo que os atos institucionais
se tornassem desnecessários. Portanto, curiosamente, a “institucionalização” pressupunha
a eliminação dos atos “institucionais”. Buscava-se, assim, uma juridicidade constitucional
autoritária. Como o segundo ato institucional deixaria de vigorar na data da posse de seu
sucessor, o primeiro marechal-presidente, Castelo Branco, tentou a mencionada
“institucionalização” com a aprovação, às pressas, da Constituição de 1967, além de
legislação ordinária draconiana contra a imprensa e sobre a segurança nacional que
também fez aprovar. Esse aparato institucional, entretanto, não foi capaz de coibir as
manifestações oposicionistas de 1968, levando o segundo presidente militar, Costa e
Silva, a decretar novo ato institucional “excepcional” (o famoso AI-5). Entretanto,
também Costa e Silva buscaria a institucionalização: determinou a uma equipe de juristas
a redação de nova constituição que previa o fim dos atos institucionais e ampliava os
poderes do presidente da República para decretar o Estado de Sítio. Como se sabe, Costa
e Silva sofreu uma trombose em 1969, três dias antes da promulgação desta nova
constituição, e a junta militar que o substituiu alterou o artigo que permitia o fim dos atos
institucionais dizendo precisamente o contrário, ou seja, que eles continuavam em vigor.
Foi somente no governo do general Ernesto Geisel que se efetivou o projeto autoritário
de “pôr um termo a leis de exceção (...) substituindo-as por adequadas salvaguardas
constitucionais que permitam (...) a manutenção e o melhor funcionamento do regime
democrático e a ordem” – como disse o próprio presidente. Essas salvaguardas seriam o
“Estado de Emergência” e as “Medidas de Emergência”, espécie de Estado de Sítio
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drástico que podia ser imposto sem autorização do Congresso Nacional.

Essa excrescente moldura institucional, que acolhia “um dos mais violentos remédios
para preservação das instituições existentes em todo o ordenamento constitucional” –
conforme caracterizou o jurista Ricardo Lewandowski –, persistiria até a Constituição de
1988. A Constituição hoje em vigor eliminou o caráter arbitrário das salvaguardas de
Geisel e revalorizou o papel do Congresso Nacional nos casos de decretação do Estado
de Defesa e do Estado de Sítio. Mas os constituintes não foram capazes de eliminar do
texto constitucional a competência das Forças Armadas para a “garantia da lei e da
ordem” (art. 142).

De fato, a longa transição para a democracia, iniciada no governo Geisel, foi conduzida
pelos militares e, de algum modo, só se concluiu com a Constituição de 1988, haja vista
que o governo Sarney (1985-1990) foi praticamente tutelado pelos militares. A
dinamização dos movimentos sociais no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 afetou
os debates da Assembleia Nacional Constituinte – e a Constituição de 1988 tem generosos
capítulos de direitos e garantias fundamentais –, mas não foi capaz de apressar a transição.
Tampouco conseguiu contrapor-se aos “claros objetivos”, conforme dizia o ideólogo do
regime, general Golbery do Couto e Silva, isto é, “o que queremos de fato, o que nunca
cederemos ou até onde poderemos negociar e ceder”. Uma das principais cláusulas
inegociáveis foi a autoanistia inserida na Lei de Anistia de 1979 (o chamado “perdão aos
torturadores”). A outra, a tradicional competência das Forças Armadas para tutelar os
poderes da União e garantir a lei e a ordem.

Essas atribuições excessivas estão presentes nas constituições brasileiras desde a de 1891,
que, além de atribuir aos militares o papel de polícia (“manutenção das leis”), estabelecia
a necessidade de obediência aos superiores hierárquicos de maneira capciosa com o
condicionante “dentro dos limites da lei” (art. 14) – sugestão de Rui Barbosa. A de 1934
falava em “garantir os poderes constitucionais, a ordem e a lei” (art. 162). A de 1946
repetia a de 1934 com pequena alteração: “garantir os poderes constitucionais, a lei e a
ordem” (art. 177). A ditadura militar, com a Constituição de 1967, piorou bastante a
situação ao definir a competência das Forças Armadas para “garantir os poderes
constituídos, a lei e a ordem”, isto é, não se tratava mais dos Poderes da União
(pressupostos na estranha fórmula “poderes constitucionais”), mas dos que estão
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efetivamente instaurados, legítima ou ilegitimamente “constituídos”.

No início de 1986, bem antes da instalação da Assembleia Nacional Constituinte (que


ocorreria em fevereiro de 1987), os chefes militares defenderam a manutenção da fórmula
de 1967 (“poderes constituídos”). Durante os debates da Constituinte, fizeram poderoso
lobby junto aos constituintes para a manutenção de suas competências tutelares. Em
agosto de 1987, o instável relator dos trabalhos da Constituinte, Bernardo Cabral, aceitou
fórmula que retirava a competência de garantia da lei e da ordem do texto constitucional,
mas teve de voltar atrás sob a pressão do ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves,
que queria garantir “a tradição consagrada no direito constitucional brasileiro”. José
Genoino, parlamentar de esquerda, tentou eliminar a tradicional atribuição, adotando o
texto da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais (finalizado em setembro de
1986) o qual, sobre a questão, estabelecia que “as Forças Armadas destinam-se a
assegurar a independência e a soberania do País, a integridade do seu território, os poderes
constitucionais e, por iniciativa expressa destes, nos casos estritos da lei, a ordem
constitucional”, mas foi vencido. Afinal, em abril de 1988, o futuro artigo 142 foi
aprovado. O condicionante estabelecido no projeto da Comissão Provisória (“por
iniciativa expressa destes”) foi mantido, mas a competência de garantir a lei e a ordem
prevaleceu: as Forças Armadas “(...) destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos
poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”, ou seja, a
garantia dos Poderes da União não depende de chamamento de nenhum deles, apenas a
garantia da lei e da ordem.

A partir de 2016, sobretudo no governo de Michel Temer, os decretos determinando ações


de garantia da lei e da ordem pelos militares abundaram, banalizando o que deveria ser
recurso excepcionalíssimo e trazendo os militares novamente para o proscênio político –
eles que, de algum modo, ensaiavam sua dedicação aos afazeres próprios desde o governo
Collor (1990-1992) e, sobretudo, a partir da criação do Ministério da Defesa, em 1999.

Além desse discutível comando constitucional, o Brasil não conta com comissões
parlamentares que efetivamente supervisionem a política nacional de defesa e outros
aspectos concernentes à atividade militar – como, aliás, houve no Império. Ademais, as
iniciativas da chamada “justiça de transição”, que buscaram reparar as violações aos
direitos humanos durante a ditadura militar (a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos,
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a Comissão da Anistia e a Comissão Nacional da Verdade), foram implantadas com


muitas dificuldades, confrontando resistências da caserna e ampliando indesejadas
discrepâncias entre civis e militares. Desse modo, não surpreende que o governo de
extrema-direita, eleito em 2018, ao recorrer amplamente aos militares para sua
composição, tenha alarmado a sociedade como se fora um governo militarista.

Juarez Távora, militar que esteve presente na vida política brasileira desde o tenentismo
até tornar-se ministro de Castelo Branco na ditadura militar, disse em suas memórias que
sua geração “se agitara muito; mas pouco conseguira realizar, em quase um terço de
século, pelo progresso econômico-social e aperfeiçoamento político do povo brasileiro”.
Daí a decisão de, após o suicídio de Vargas, não mais “modelar, recorrendo à violência,
a democracia (...)”. Entretanto, Távora não manteria sua decisão, reincidindo nas
intervenções.

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