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Silva, no prelo
DIVULGAÇÃO NÃO AUTORIZADA
Países em geral caracterizados como democracias liberais, boa parte deles no Ocidente,
contam com forças armadas que não interferem na política doméstica. Vários outros,
entretanto, convivem, de um modo ou de outro, com a ingerência dos militares na política.
Com isso se quer assinalar que o fenômeno aqui em pauta não é exclusivo do Brasil.
Entre nós, tem sido constante a intervenção dos militares na política. As diversas
interferências têm características diferentes, embora seja possível identificar algumas
fases – como se verá adiante. Ainda assim, tais intervenções têm em comum a ruptura da
legalidade com o uso da força das armas e, sobretudo, a suposição de superioridade dos
militares em relação aos civis que, por essa razão, caberia tutelar.
período: assim foi em 1930, com a junta governativa provisória, de natureza militar, que,
após a deposição de Washington Luís, entregou o governo a Vargas; do mesmo modo, a
ditadura do Estado Novo, estabelecida em 1937, teve a tutela das Forças Armadas – e a
deposição de Vargas, em 1945, também se deveu à ação dos militares; igualmente, em
1954, Vargas suicidou-se após pressão militar; o general Lott, em 1955, afastou do poder
os presidentes Carlos Luz e Café Filho supondo que eles tramavam impedir a posse do
presidente eleito, Juscelino Kubitschek; os três ministros militares do presidente Jânio
Quadros, que renunciou em 1961, pronunciaram-se contra a posse do vice-presidente
João Goulart, quase levando o país à guerra civil; o golpe de Estado de 1964, embora
caracterizável como “civil-militar”, inaugurou ditadura militar que durou mais de duas
décadas.
No âmbito acadêmico, consolidou-se a tese segundo a qual a ditadura militar rompeu com
suposto padrão de intervenções moderadoras por meio das quais os militares teriam
mediado conflitos para logo devolverem o poder aos civis. As evidências, entretanto,
mostram que esse tipo de atuação não foi frequente. Ele não se verificou no rol de
agitações que marcaram a Primeira República. Na chamada Revolução de 1930, uma
junta militar depôs o governo civil e o passou a Getúlio Vargas, em atuação decisiva na
capital federal, mas que era consequente ao movimento que se alastrava desde o sul do
país; o golpe de Estado de 1937 e a ditadura do Estado Novo, sob a tutela dos militares,
tampouco podem ser caracterizados como intervenções rápidas ou moderadoras; em
1945, houve a deposição de Vargas pelas Forças Armadas, que entregaram a Presidência
da República ao presidente do Supremo Tribunal Federal numa ação que pode ser
caracterizada como moderadora; o suicídio de Vargas, em 1954, também foi
consequência de pressão dos militares, mas a posse do vice-presidente Café Filho foi
decorrência constitucional que não dependia das Forças Armadas; a intervenção do
general Lott, em 1955, seria o caso emblemático de “padrão moderador”; por fim, seria
difícil caracterizar a intervenção de 1961 como moderadora, haja vista a generalizada
estranheza que a ação dos três ministros militares causou, inclusive entre políticos da
União Democrática Nacional (UDN), justamente o partido que tanto clamara por
intervenções militares anos antes.
A tese do “padrão moderador” (que teria sido rompido com o golpe de 1964) se ampara
na ideia de que as lideranças políticas civis tentavam cooptar os militares e legitimavam
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suas intervenções em momentos de crise. Isso não aconteceu em 1930; em 1937, houve
grande harmonia entre os desígnios de Vargas e os interesses das Forças Armadas.
Portanto, também do ponto de vista do relacionamento entre civis e militares, pode-se
sustentar que, apenas após 1945, tornou-se de algum modo frequente o apelo de civis à
intervenção militar, embora isso tenha ocorrido com clareza apenas em alguns episódios
específicos.
Desse modo, o que parece de fato caracterizar as diversas intervenções militares no caso
brasileiro é, como já dito, a recorrência da ruptura da legalidade com o uso da força das
armas e a suposição de superioridade dos militares em relação aos civis. A recorrência
desse padrão ampara-se, evidentemente, em forte tradição política de autoritarismo (que
não marca apenas os militares) e expressa – também como já foi dito – a fragilidade da
democracia brasileira, incapaz de consolidar a proeminência simbólica do poder civil que
caracteriza as democracias liberais mencionadas no início deste verbete.
A ditadura militar (1964-1985) levou ao paroxismo aquilo que se pode chamar de “utopia
autoritária brasileira”, isto é, a recorrente suposição, na história política de nosso país, de
que será possível solucionar os problemas nacionais por meio de “atalhos” que,
frequentemente, desprezam a legalidade constitucional. Tal pressuposição fundamenta-
se na crença de que a população é “despreparada” (em função da pobreza e dos baixos
níveis de educação, entre outros argumentos elitistas) e/ou de que o eleitorado não é capaz
de resistir à ação de “políticos demagogos”. O general Aurélio de Lyra Tavares
(integrante da junta militar que governou o país após o golpe de 1969 depois de impedir
a posse do vice-presidente Pedro Aleixo, que deveria assumir em função da doença do
presidente Costa e Silva) sustentava que a realidade nacional era marcada pelo baixo nível
de preparo cultural e político do povo para o pleno exercício da democracia: teríamos
partidos inconsistentes e imaturos e um povo deseducado e de baixo nível médio de
instrução, além da ausência de ideário cívico, segundo disse em suas memórias. Trata-se,
portanto, de perspectiva flagrantemente autoritária, antipopular e antidemocrática,
suposição que, como já disse, não caracteriza apenas os militares, não obstante ela
também considere o mundo da política (civil) como venal e corrupto. Essa equação
autoritária e elitista será talvez a marca recorrente da história política republicana,
combinando as variáveis civil e militar de diversas maneiras.
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Exatamente por isso, ou seja, pela óbvia exacerbação do intervencionismo militar durante
1964-1985, esperava-se que, com o “fim da ditadura”, ou com a “redemocratização”
(expressões que, por si só, assinalam as dúvidas sobre a efetiva instauração de uma
democracia no Brasil), houvesse definitiva profissionalização dos militares no sentido da
submissão ao poder civil e do abandono das antigas pretensões tutelares.
Sabe-se, entretanto, que a profissionalização de quaisquer forças armadas não garante que
os militares se afastem da política. No caso do Brasil, o incipiente fortalecimento do
Exército e da Marinha, imposto pela Guerra do Paraguai (1864-1870), bem como a
profissionalização sob a liderança do general Góes Monteiro, levada a cabo nos anos
1930, acarretaram crescente hostilidade contra os políticos e a consolidação da suposta
superioridade dos militares.
Até a Guerra do Paraguai, o Exército era bastante precário. A maior força do Império era
a Guarda Nacional. Foi precisamente a guerra que impôs alguma profissionalização e
modernização tanto ao Exército quanto à Marinha. Em paralelo às questões materiais de
aparelhamento ou aumento de contingentes, também vieram à tona aspectos corporativos
relacionados à “honra” e à “dignidade” militares – sempre em oposição aos civis. São
conhecidas as consequências da Guerra do Paraguai, inclusive em termos de
contraposição dos militares ao sistema político e aos interesses da monarquia. Uma série
de conflitos marcaria a relação dos militares com o governo no período 1884-1887 (a
chamada “Questão Militar”), em geral motivados por problemas menores, disciplinares,
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mas que amplificavam as demandas por respeito à “classe militar”. Após a chamada
“Proclamação da República” – um golpe militar republicano –, cresceu o protagonismo
dos militares.
Depois dos conturbados governos dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto,
houve certa estabilidade político-militar na Primeira República, apesar da Revolta da
Escola Militar da Praia Vermelha, em 1904, no contexto da Revolta da Vacina. Haveria
algum esforço de modernização do Exército nos anos seguintes, com o treinamento de
jovens oficiais na Alemanha em 1906, 1908 e 1910 (os “Jovens Turcos”), e a vinda de
missão militar francesa em 1920. Critérios de planejamento e de controle, bem como
ações de estado-maior, foram aprimorados. Para os “Jovens Turcos”, a nação brasileira
ainda não estava formada, sendo o Exército a única força nacional verdadeiramente
organizada. Desse modo, admitiam que a arma, por vezes, fosse “um pouco além dos seus
deveres profissionais para tornar-se, em dados momentos, um fator decisivo de
transformação política ou de estabilização social”.
Armadas ocuparam espaço político decisivo, mas houve muitos incidentes envolvendo
militares, agitações, protestos e revoltas entre 1930 e 1934.
Com o golpe que instaurou o Estado Novo, em 1937, tornou-se possível a implantação
do projeto de nacionalização do Exército e a imposição de sua hegemonia, para o que foi
necessário controlar as forças policiais estaduais: polícias militarizadas deveriam se
tornar forças auxiliares do Exército, conforme previa a Constituição de 1934. No período,
deu-se significativa renovação e aperfeiçoamento das Forças Armadas. Fortaleceu-se a
ideia do Exército como protetor do Estado e da suposta superioridade da elite militar.
Quando da implantação do Estado Novo, o ministro da Guerra, general Eurico Dutra,
futuro presidente da República, referindo-se ao Exército, disse que “a pátria e o regime
repousarão sob nossa guarda”. Com a deposição de Vargas, em 1945, e a instauração da
vida político-partidária, consolidou-se entre os militares o posicionamento anticomunista
(que vinha desde 1932, conforme o marechal Odylio Denys), frequentemente associado
ao trabalhismo, estabelecendo-se expressivo vínculo entre as Forças Armadas e o
pensamento conservador do partido antigetulista União Democrática Nacional (UDN).
O período que se estende de 1945 a 1964 é conhecido como democrático, mas vivenciou
graves crises institucionais. Foi principalmente nessa época que políticos conservadores
e de direita clamaram pela intervenção militar admitindo a quebra da legalidade
constitucional e democrática.
Isso aconteceu pouco mais de um ano após o suicídio de Vargas, já que militares e setores
conservadores não se conformavam com a vitória de Juscelino Kubitschek – tido como
continuador de Vargas – na eleição para presidente da República em outubro de 1955.
Houve tentativas fracassadas de impugnar a eleição na justiça e manifestações de
militares e civis contra a posse do presidente eleito. Em um programa de TV, o deputado
pela UDN (DF), Carlos Lacerda, disse que “Juscelino não será candidato. Se for
candidato, não será eleito. Se for eleito, não tomará posse. Se tomar posse, não
governará!” Um militar extremado, o vice-almirante Pena Boto, liderava a “Cruzada
Brasileira Anticomunista” ao mesmo tempo em que ocupava o cargo de comandante-
em-chefe da Esquadra, exercendo este cargo cumulativamente com o comando da Força
dos Cruzadores. Ele dizia que “é indispensável impedir que Juscelino e Jango tomem
posse dos cargos para que foram indevidamente eleitos!”
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O discurso provocador de um coronel fez com que o ministro da Guerra, general Lott,
buscasse puni-lo disciplinarmente, mas o presidente da República, Café Filho, licenciou-
se do cargo por motivo de doença e Carlos Luz, presidente da Câmara no exercício da
Presidência da República, não autorizou a punição do coronel. Com a força das armas,
Lott obrigou a Câmara a votar o impedimento de Luz no dia 11 de novembro e o de Café
Filho no dia 21. O vice-presidente do Senado, Nereu Ramos, conduziu o governo até a
posse de JK.
por três generais-presidentes de estabelecer nova moldura institucional para o país que
consagrasse um “governo forte” e uma democracia tutelada – o que, afinal, se verificou.
Justamente por terem consciência da precariedade das intervenções baseadas apenas na
força e na ruptura da legalidade, a partir de 1964 os militares tentaram estabelecer um
arcabouço institucional que combinasse legalidade e excepcionalidade. O Ato
Institucional de 9 de abril de 1964 (posteriormente conhecido como AI-1) manteve a
Constituição de 1946, ao mesmo tempo que instituiu instrumentos “revolucionários” ou
“excepcionais” de punição. A convivência entre o parâmetro legal/constitucional e a
“necessidade” de medidas de exceção marcaram toda a ditadura militar. Mais do que isso,
aquilo que os militares chamavam de “institucionalização” foi a expressão mais concreta
da utopia autoritária que os inspirava.
Essa excrescente moldura institucional, que acolhia “um dos mais violentos remédios
para preservação das instituições existentes em todo o ordenamento constitucional” –
conforme caracterizou o jurista Ricardo Lewandowski –, persistiria até a Constituição de
1988. A Constituição hoje em vigor eliminou o caráter arbitrário das salvaguardas de
Geisel e revalorizou o papel do Congresso Nacional nos casos de decretação do Estado
de Defesa e do Estado de Sítio. Mas os constituintes não foram capazes de eliminar do
texto constitucional a competência das Forças Armadas para a “garantia da lei e da
ordem” (art. 142).
De fato, a longa transição para a democracia, iniciada no governo Geisel, foi conduzida
pelos militares e, de algum modo, só se concluiu com a Constituição de 1988, haja vista
que o governo Sarney (1985-1990) foi praticamente tutelado pelos militares. A
dinamização dos movimentos sociais no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 afetou
os debates da Assembleia Nacional Constituinte – e a Constituição de 1988 tem generosos
capítulos de direitos e garantias fundamentais –, mas não foi capaz de apressar a transição.
Tampouco conseguiu contrapor-se aos “claros objetivos”, conforme dizia o ideólogo do
regime, general Golbery do Couto e Silva, isto é, “o que queremos de fato, o que nunca
cederemos ou até onde poderemos negociar e ceder”. Uma das principais cláusulas
inegociáveis foi a autoanistia inserida na Lei de Anistia de 1979 (o chamado “perdão aos
torturadores”). A outra, a tradicional competência das Forças Armadas para tutelar os
poderes da União e garantir a lei e a ordem.
Essas atribuições excessivas estão presentes nas constituições brasileiras desde a de 1891,
que, além de atribuir aos militares o papel de polícia (“manutenção das leis”), estabelecia
a necessidade de obediência aos superiores hierárquicos de maneira capciosa com o
condicionante “dentro dos limites da lei” (art. 14) – sugestão de Rui Barbosa. A de 1934
falava em “garantir os poderes constitucionais, a ordem e a lei” (art. 162). A de 1946
repetia a de 1934 com pequena alteração: “garantir os poderes constitucionais, a lei e a
ordem” (art. 177). A ditadura militar, com a Constituição de 1967, piorou bastante a
situação ao definir a competência das Forças Armadas para “garantir os poderes
constituídos, a lei e a ordem”, isto é, não se tratava mais dos Poderes da União
(pressupostos na estranha fórmula “poderes constitucionais”), mas dos que estão
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Além desse discutível comando constitucional, o Brasil não conta com comissões
parlamentares que efetivamente supervisionem a política nacional de defesa e outros
aspectos concernentes à atividade militar – como, aliás, houve no Império. Ademais, as
iniciativas da chamada “justiça de transição”, que buscaram reparar as violações aos
direitos humanos durante a ditadura militar (a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos,
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Juarez Távora, militar que esteve presente na vida política brasileira desde o tenentismo
até tornar-se ministro de Castelo Branco na ditadura militar, disse em suas memórias que
sua geração “se agitara muito; mas pouco conseguira realizar, em quase um terço de
século, pelo progresso econômico-social e aperfeiçoamento político do povo brasileiro”.
Daí a decisão de, após o suicídio de Vargas, não mais “modelar, recorrendo à violência,
a democracia (...)”. Entretanto, Távora não manteria sua decisão, reincidindo nas
intervenções.