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Maria Victoria de Mesquita Benevides

O Governo Jânio Quadros


ÍNDICE

O falso carisma

Quem foi Jânio Quadros?

1960: A vitória de Jânio e a quebra do sistema partidário

Acima dos partidos, o bonapartismo janista

Do tostão à vassoura, o moralismo autoritário

Entre nacionalismo e "entreguismo", as pazes com o FMI

Em política externa o Brasil não é mais satélite

A renúncia

Indicações para leitura


O FALSO CARISMA

Sete anos e um dia após o suicídio de Getúlio Vargas, outro


presidente, igualmente eleito com expressiva votação popular,
deixava o poder de forma traumática. Mas, além de carecer do
sentimento de grandeza, inegável no gesto de Getúlio, a renúncia
de Jânio Quadros permanece até hoje envolta na polêmica que ora
enxerga o golpe, ora a insanidade do protagonista. E a crise que
provocou, pela tentativa militar de se impedir a investidura
constitucional do vice João Goulart, quase leva o país à guerra
civil.
A comparação, por mais superficial, será inevitável. Em sua
carta-testamento, bandeira do trabalhismo e do nacionalismo,
Getúlio referia-se a "forças ocultas", porém identificadas com o
imperialismo e a direita interna, temerosa do "fantasma popular" e
das reformas econômicas e sociais iniciadas pelo presidente que
entendera a urgência da inclusão das massas na política. Em sua
carta-renúncia Jânio referia-se a "forças terríveis" que, embora
sugerissem frustrações de interesse "de toda a nação", jamais
foram apontadas. Não seriam, por certo, as mesmas do drama
getuliano. Afinal, Quadros candidatara-se com apoio de poderosos
grupos econômicos exatamente em oposição à aliança partidária PSD-
PTB, herdeira natural da tradição varguista.
Getúlio Vargas tinha a marca inconfundível e duradoura do
carisma. Jânio, apesar de insistentemente apresentado como um dos
exemplos mais "brasileiros" do político carismático, teve apenas a
caricatura do carisma, ou seja, o talento histriônico, a
facilidade para a adesão epidérmica, populista no pior sentido da
palavra, da manipulação e do autoritarismo. O carisma desprende-se
muito mais da personalidade do líder, e menos do "papel" que ele
representa. O histrião terá o carisma da máscara; será, sempre, um
falso carisma. Jânio foi, sem dúvida, um bom ator. Mas com um
papel ultrapassado e mistificador, do ponto de vista do
desenvolvimento social e político e das reais aspirações de
participação das classes trabalhadoras. Não foi um líder de mas-
sas, como Getúlio, ou menos ainda carismático como os heróis de
sua confessada admiração, Lincoln, Tito, Nasser ou De Gaulle.
Jânio da Silva Quadros, sucessor de Juscelino Kubitschek, foi
o primeiro presidente a tomar posse em Brasília, a 31 de janeiro
de 1961. Sua renúncia, a 25 de agosto, foi considerada uma
"traição" aos quase seis milhões de eleitores que confiaram na
ação da vassoura (símbolo de sua campanha contra a corrupção) e
nas promessas de redenção nacional. A interpretação deste breve
governo de sete meses esbarra, de início, em dois tipos de
dificuldades: a queda no maniqueísmo, pela condenação implícita de
qualquer política populista; e a sedução de uma análise
personalista.
Quanto à primeira armadilha, trata-se de afirmar, como ponto
de partida, algumas diferenças. O populismo expresso nos governos
de Vargas (1950-1954) e de Goulart (1961-1964) estava efetivamente
vinculado aos movimentos sociais e aos partidos políticos, numa
inequívoca tentativa de política de massas. O estilo autoritário,
moralista e extremamente personificado de Jânio Quadros evocava um
"populismo de direita"—militarista, antiparlamentar e associado ao
grande capital —, o qual, dirigido "a todas as classes, ao
conjunto da nação", terminava por diluir o próprio significado de
povo e de massa. Como indica Francisco Weffort — que analisou,
para o primeiro caso, o "Estado de Compromisso" — Jânio Quadros
significava não apenas a falência do sistema partidário, como o
populismo levado à sua contradição mais extrema e que se volta
contra si próprio.
A segunda armadilha é mais complicada. Como evitar o enfoque
pessoal na análise de um curtíssimo governo, marcado do começo ao
fim pela figura onipresente de um quase-confesso candidato a
ditador? Em que pese o exame das características estruturais e
conjunturais da realidade brasileira no período, torna-se
impossível separar o governo Quadros da "personalidade" Jânio.
Como é impossível ignorar, no ator político, o ator teatral. O
leitor perceberá, no entanto, que a insistência nos traços
pessoais do presidente será diretamente associada ao processo
político e aos fatos. Esta é a única saída para a tentação
personalista. Tal perspectiva informa, portanto, a breve
apresentação: "Quem foi Jânio Quadros?", e as tentativas de
análise sobre o moralismo autoritário (do tostão à vassoura) e
sobre o bonapartismo janista (a crença em um governo acima dos
partidos).
Uma célebre boutade, atribuída a Milton Campos, dizia que
"Jânio se elege com seus defeitos e governa com suas qualidades".
Os defeitos seriam, para o liberal udenista, os recursos
populistas; as qualidades seriam a independência, a administração
eficiente, a honestidade. Mas a própria UDN considerar-se-ia
traída por seu eleito. Como entender a ascensão janista ao posto
de "candidato ideal" de todos, em 1960, é tema de outro capítulo,
enfatizando-se a vitória de Jânio como causa e conseqüência da
falência do sistema partidário.
O governo Quadros transcorreu num período marcado pelo
prenuncio de grave crise econômica, pela diversificação dos
movimentos sociais — Ligas Camponesas, transição do sindicalismo
populista urbano, intensificação das greves, etc. —, além da
crescente intervenção, tanto de militares quanto da Igreja, na
cena política. (No quadro internacional modificava-se o
tradicional balanço da "guerra fria", entre outras coisas pelos
novos rumos impressos à Revolução Cubana.) Tais questões
pertencem, é claro, à problemática mais ampla da chamada República
Populista. Não são características apenas do governo em foco:
foram herdadas dos anteriores e continuaram, com intensidade
redobrada, no governo Goulart. Neste pequeno livro, dada sua
intenção primeira e as óbvias limitações de espaço, pretende-se
abordar o que foi específico à presidência Jânio Quadros e, por
extensão obrigatória, ao fenômeno do janismo.
Além dos assuntos já referidos, e da própria evidência da
renúncia, dois grandes temas singularizam o governo Quadros: a
política externa independente (que culminaria com a condecoração
do ministro cubano Ernesto "Che" Guevara) e a política econômica
de estabilização ortodoxa, na qual se destaca a "verdade cambial"
(instrução 204) e o reatamento com o Fundo Monetário
Internacional.
Em toda a discussão transparece uma questão típica do
autoritarismo personalista do governo Quadros: o desprezo do
presidente pelas instituições, sobretudo pelo Congresso, em favor
de um significativo respeito pelo papel dos militares. Estes se
tornariam "sacerdotes de uma santa inquisição, cada vez mais
convencidos de que uma corja de trêfegos assaltantes civis
enlameava a puridade nacional" (História do Povo Brasileiro). Não
se encontrariam aí alguns aspectos importantes da crise que "se
resolverá" em 1964, com a ascensão dos militares e a instalação de
um regime autoritário, repressivo e "vingador"?
QUEM FOI JÂNIO QUADROS?

Afinal, quem era Jânio Quadros? Sua carreira política indica,


inegavelmente, o que se convencionou chamar de ascensão meteórica.
A do modesto advogado e professor de ginásio, de família simples,
sem fortuna e tradição política, que percorre os diversos escalões
da vida pública e chega à Presidência da República aos 44 anos de
idade. Sempre em são Paulo, este "paulista de Mato Grosso"
conquista rapidamente boa parte de um espaço político até então
partilhado por bacharéis, comerciantes e fazendeiros da UDN e do
PSD (remanescentes dos antigos Partido Democrático e Partido
Republicano) e por partidários do ex-interventor Ademar de Barros.
Em 1947, suplente de vereador pela legenda do Partido
Democrata Cristão, assume o mandato devido à cassação dos
candidatos do Partido Comunista, então colocado na ilegalidade. No
ano seguinte elege-se deputado estadual também pelo PDC. Mas é nas
eleições municipais de março de 1953 que Jânio marca a força de
sua escalada populista. A campanha do "tostão contra o milhão"
("tem ou não tem razão o homem da rua quando diz que quem rouba um
tostão é ladrão, quem rouba um milhão é barão?", indagava nos
comícios) explode dos limites acanhados do bairro popular de Vila
Maria, principal reduto eleitoral janista. Contrariando todas as
expectativas, Jânio Quadros chega à Prefeitura de São Paulo com
apoio de dois pequenos partidos — o PDC e o Partido Socialista
Brasileiro — e derrota uma poderosa coligação partidária que
incluía UDN, PSD, PTB, PR, ademaristas e comunistas.
Um ano depois, a campanha do tostão recebe o impulso da
vassoura (supostamente para "varrer os ratos, os ricos e os
reacionários") e do slogan: "Não desespere, Jânio vem aí". São as
primeiras eleições após o suicídio de Getúlio. Eleito governador
de São Paulo, Jânio vence seu mais poderoso adversário, Ademar de
Barros. Nessa ocasião Jânio estava rompido com a cúpula do PDC
(iniciando uma sucessão de rupturas e renúncias que marcariam suas
relações com os partidos políticos pela vida afora), cujo presi-
dente, Antônio Queiroz Filho, pintava o retrato que o futuro
confirmaria: "a fantasia delirante do candidato a caudilho,
dominado pela magia dos extremos, com a falsa imagem de sua
predestinação". Mas Jânio contava com o entusiasmo dos
socialistas, de uma ala dissidente do PTB e o apoio de outro pe-
queno partido, o PTN (Partido Trabalhista Nacional), liderado pelo
deputado paulista Emílio Carlos.
Além do recurso à demagogia teatral, a atuação de Jânio seria
sempre marcada pela alta incidência de contradições e
ambigüidades, numa taxa muito acima do "normal" que se concede
como inevitável a qualquer governante. O enérgico candidato que
atacava os desmandos do poder público e a inércia da burocracia é
o mesmo que, governador de São Paulo, proíbe os professores da USP
de criticarem o governo, baseando-se nos Estatutos do
Funcionalismo. O estadista altivo que se opõe à aventura do
Presidente Kennedy na invasão a Cuba (Baía dos Porcos, abril de
1961) aceita a imposição de regras rigorosas pelo FMI. O
presidente que condecora o líder revolucionário Guevara, ordena a
repressão às manifestações de estudantes em Recife, por ocasião de
conferência da mãe do próprio "Che". Empossado na Presidência, vai
à televisão e reafirma sua firme defesa da iniciativa privada; no
dia seguinte envia um projeto sobre os abusos do poder econômico.
Nunca se definiu claramente acerca de Getúlio Vargas; ora
getulista, ora antigetulista, passava do PTB para a UDN com a
naturalidade que beira o cinismo. Corteja a esquerda e os
comunistas para depois considerá-los, publicamente, "como irrecu-
peráveis para a democracia". Eleito com forte apoio sindical,
tentaria minar exatamente as fontes do poder sindical, através do
controle "despolitizado" no Ministério do Trabalho, nos institutos
de previdência e atacando a instituição do "imposto sindical".
As campanhas de Jânio Quadros são um capítulo à parte na
história eleitoral brasileira. Em nenhum outro momento, a nível de
eleição majoritária, as contradições entre desenvolvimento e
atraso, autoritarismo e liberalismo, progressismo e reacionarismo,
público e privado, foram tão bem manipuladas. Como em nenhum outro
momento o populismo assumiu feições tão "pessoais" — tão marcadas
pelo talento histriônico do ator, que se confundia com a marca de
uma carisma genuíno — reunindo, ao mesmo tempo, grupos sociais
díspares e até antagônicos.
O estilo da campanha para a Prefeitura se repete na campanha
para o Governo do Estado e depois para a Presidência. Os palanques
transformavam-se em verdadeiros palcos de tragicomédias: Jânio
tomava injeções em público, simulava desmaios e comia sanduíches
de mortadela levados nos bolsos. E era carregado nos ombros do
povo! Numa esdrúxula mistura de radicalismo e Kitsch popularesco
(um admirador udenista chegou a identificá-lo como um misto de
Lênin e Carlitos!) fazia violentos ou pitorescos discursos, num
português precioso de sílabas escandidas, e apoiado num visual que
se tornaria típico: roupas surradas e em desalinho, cabelos com-
pridos e barba por fazer, ombros brilhantes de caspa... um
visionário. Muitos o tomaram como um messias, poucos denunciaram o
charlatão.
Nos comícios Jânio atacava a inércia dos políticos, o abandono
da causa pública, os desmandos dos governos, a opressão de "Dona
Light". Apontava, como plataforma para a "recuperação moral e
administrativa", a correta equação dos direitos e deveres dos
cidadãos e do Estado. É nesse sentido que se entende o apoio da
esquerda ao movimento janista, naquela época com inegáveis raízes
populares. A campanha contra a corrupção contida na mensagem de
Jânio Quadros, segundo depoimento de um socialista, "atacava, por
um lado, a base do poder das classes dominantes, através das
denúncias de desigualdades e das injustiças da política do Estado,
e, por outro, acenava com a defesa dos interesses econômicos das
classes populares. A luta contra a corrupção, em certa medida,
atingia o poder que permitia o excesso de exploração" (depoimento
de Fúlvio Abramo a J. A. Moisés).
Na sucessão presidencial de 1955 Jânio apóia ostensivamente a
campanha de Juarez Távora (candidato do PDC e da coligação UDN-PL)
contra a aliança getulista PSD-PTB que elege Kubitschek e Goulart.
Em 1958 consegue fazer seu sucessor ao governo do Estado, Carvalho
Pinto, na mesma ocasião em que recebe grande votação para deputado
federal pelo Paraná, na legenda petebista (jamais poria os pés no
Congresso). Dois anos mais tarde é eleito presidente da República.
Após a renúncia tenta novamente o governo estadual de São Paulo,
nas eleições de 1962 ("renúncia é denúncia"), mas desta vez e
derrotado por Ademar, que conseguia reunir até mesmo seus
arquiinimigos da UDN.
Embora notoriamente hostil ao governo Goulart, e simpático ao
movimento militar de 64, Jânio terá seus direitos políticos
suspensos, a exemplo do que ocorreu com outros nomes nacionais,
como Juscelino, Lacerda e o próprio Ademar. No governo Costa e
Silva será punido com 4 meses de confinamento em Corumbá. Com a
anistia política de 1979 Jânio inicia seu regresso à cena
política, motivado pelas eleições previstas para 1982. No velho
estilo joga com o "suspense" de sucessivas aproximações e recuos
com quase todos os partidos, oscilando do extremo de governismo ao
extremo de oposição. Ressuscita a vassoura, o anticomunismo, a
lealdade e o respeito pela ação das Forças Armadas, a defesa de
uma política econômica ortodoxa e, acima de tudo, a confirmação de
sua crença num regime forte e autoritário.
Esboçado esse breve quadro sobre o histórico janista, trata-se
de situar a campanha presidencial de 1960 e procurar entender a
esmagadora vitória do autodenominado "candidato do inconformismo".
1960: A VITÓRIA DE JÂNIO
E A QUEBRA DO SISTEMA PARTIDÁRIO

Os janistas exaltavam a "revolução pelo voto". Um sociólogo


chegou a falar de "rebelião do eleitorado". O que significava tal
fenômeno, justamente após um governo marcado pelo desenvolvimento,
pelo otimismo generalizado e pela tolerância política? Na
realidade, a ascensão de Jânio Quadros, candidato ao mesmo tempo
do povo e das elites, evidenciava tanto a falência do sistema
partidário quanto o "esgotamento das virtualidades" do brilhante
governo Kubitschek.
O debate entre economistas sobre o colapso do modelo de
desenvolvimento capitalista via substituirão de importações,
entrada em massa de capital estrangeiro, recurso à inflação e
endividamento externo, é bem conhecido. Trata-se, aqui, de situar
dois aspectos que marcaram o final do governo JK, especialmente
relevantes para a compreensão da explosão janista: 1) a crescente
insatisfação de vários setores sociais com a alta do custo de
vida, despertados para a participação reivindicatória exatamente
pelos frutos do desenvolvimento num governo politicamente aberto;
2) a transformação gradativa do sistema partidário, com a
decadência dos grandes partidos conservadores — Partido Social
Democrático e União Democrática Nacional —, o crescimento do
Partido Trabalhista Brasileiro e de agremiações interpartidárias,
com o conseqüente processo de realinhamento. Estes dois aspectos
refletem, é claro, um fenômeno mais amplo, relativo à crônica
debilidade institucional brasileira, patente nas relações desi-
guais entre um Estado cada vez mais forte e uma sociedade civil
frágil e desarticulada.
O desenvolvimento do período Kubitschek despertara camadas
sociais para demandas que não apenas se exprimiam em obras
públicas ou empregos, mas no alargamento efetivo dos limites da
participação — econômica, social e política. A legitimidade do
sistema político começava a ser posta em xeque pelas camadas
emergentes na medida em que o governo revelava-se incapaz de as
absorver institucionalmente.
Jânio Quadros surge com força total nesse aparente vácuo
institucional e caos partidário, agravados pela crise econômica.
Sua postura tradicionalmente suprapartidária será, ao mesmo tempo,
causa e conseqüência do esfacelamento do sistema partidário.
Não se trata apenas da famosa "crise do poder", como também da
crise de representatividade dos partidos políticos. Jânio
apresenta-se ostensivamente como o candidato independente, "acima
dos partidos", prometendo um governo "sem donos e sem
influências".
Nesse sentido a vitória de Jânio em 1960 pode ser entendida
como fruto do desmoronamento da aliança PSD-PTB, habilmente
articulada por Getúlio Vargas desde os prenúncios da
"democratização" de 1945. As eleições de 1958 já haviam mostrado a
inversão da aliança getulista nos estados e municípios, em favor
de acordos locais — muitas vezes com o inimigo da véspera, ou o
adversário do partido em termos nacionais. A coligação com a UDN
passa a ser disputada tanto pelo PSD quanto pelo PTB.
Um dos fatores mais importantes para o realinhamento refere-se
ao crescimento do PTB (de 22 deputados federais em 1945 a 116 em
1962), o que forçava a aproximação PSD/UDN, partidos com bases
sociais e interesses econômicos semelhantes, porém separados pelo
corte profundo da herança getulista. Do ponto de vista do janismo
o papel do PTB paulista é da maior relevância, mas em sentido con-
trário: aí se trata da fragilidade, e não da força. Por que o PTB
não vinga em São Paulo, justamente o estado mais desenvolvido do
país? Ao que parece, não havia interesse do trabalhismo nacional —
cuja hegemonia permanecia com os gaúchos — no fortalecimento do
PTB paulista. Este, deixado à sua própria dinâmica, seria,
certamente, um partido fortíssimo. Ainda uma vez se invocava a
temeridade de São Paulo "dominar" a cena política nacional... Deve
ser lembrado, também, que PSD e UDN nunca chegaram a ter força
expressiva em São Paulo (como ocorreu no Rio, em Minas Gerais, na
Bahia), onde atuavam com maior eficácia os grupos de pressão, os
sindicatos, as associações de comerciantes e de empresários. Outro
fator importante para explicar a falta de um trabalhismo
"autêntico" em São Paulo consiste na forte presença do ademarismo,
atuante no estado desde a década de 40. Além da fragmentação
trabalhista em partidos minúsculos, como o PTN, ironizados por
Getúlio como "bijuterias políticas, os partidos da Sloper".
No final dos anos 50 o janismo passa a competir favoravelmente
com o PTB — e seus aliados comunistas — na área sindical. Apoiando
o Movimento de Renovação Sindical e depois o dinâmico Movimento
Jan-Jan (Jânio-Jango), os janistas passam a controlar as
negociações das greves — numerosas no final do governo JK — e das
chapas às eleições sindicais. Combatiam o imposto sindical e a
influência do Ministério do Trabalho nos sindicatos. 1960, segundo
Francisco Weffort, marcaria a transformação do sindicalismo
populista, pelo eclipsamento do PUI (Pacto de Unidade
Intersindical), com sede em São Paulo, pelo PUA (Pacto de Unidade
e Ação), com sede no Rio de Janeiro.
No plano parlamentar a situação também indica o realinhamento.
No Congresso os oradores petebistas eram mais contestados pelos
aliados do PSD, enquanto a UDN dividia-se, ora apoiando o PTB, ora
as posições mais conservadoras do PSD. O final do governo é
marcado pela predominância dos agrupamentos interpartidários, a
Frente Parlamentar Nacionalista, de linha "esquerdizante", e a
Ação Democrática Nacional, onde predominavam os grupos mais
reacionários de todos os partidos, comprometidos com a corrupção
eleitoral alimentada pelo IBAD (Instituto Brasileiro de Ação
Democrática) sob a cobertura ideológica da "defesa contra o comu-
nismo".
Apesar dos abalos e de infidelidades mútuas, a aliança PSD/PTB
mantém-se formalmente coesa e lança o General Lott para a
Presidência, em chapa conjunta com João Goulart. O Ministro da
Guerra de Juscelino (equivocadamente considerado "apolítico",
quando de sua escolha ainda no governo Café Filho) surgia como o
candidato natural das forças nacionalistas do Exército e de toda a
esquerda. Mas o PSD, ainda uma vez, "cristianizaria" seu candidato
que, além de totalmente desprovido de apelo popular, atemorizava
os setores mais conservadores do PSD, partidários da política
econômica ortodoxa sugerida por Jânio Quadros. Aos radicais do
PTB, por outro lado, constrangiam certos aspectos da campanha do
General Lott; este, embora defendesse posições progressistas como
o voto do analfabeto e restrições à remessa de lucros, não
escondia seu visceral anticomunismo.
Jânio Quadros, que centrava sua campanha nos ataques à
"corrupção do governo anterior", à inflação e à alta do custo de
vida, o desperdício com as obras "faraônicas" de Brasília e as
"irresponsabilidades do presidente voador", reunia todos os des-
contentes e os sem partido. E para a UDN tornava-se o candidato
ideal, aquele messias que "conseguia efetuar o encontro do
desespero com a esperança pela antevisão de uma nova era de
austeridade e reformas sociais" (A. Arinos). É verdade que o
temário janista significava a encarnação das teses udenistas
anticorrupção, que atraíam os setores populares, tradicionalmente
hostis à UDN, e ainda polarizava o descontentamento dos militares
e das camadas médias através das promessas de "limpeza" na
administração e estabilização da economia.
Apesar dessas semelhanças, a UDN dava uma guinada de 180
graus. Abandonava sua austera visão antipopulista e partia para um
festival de rua, com as "Caravanas da Liberdade" e o "Caminhão do
Povo", trocando o lenço branco das memoráveis campanhas do
Brigadeiro pela vassoura janista. No dizer de um de seus líderes,
a UDN estava "farta das derrotas gloriosas" e apostava nas
eleições (afinal, "o povo não pode errar sempre"...), abandonando
sua especial predileção pelas manobras golpistas. Com Jânio
Quadros os udenistas acreditavam, enfim, derrotar "aquela
coligação maldita" que se achava no poder, conforme anunciavam em
nota oficial do partido. Esta crença na vitória de Jânio — com ou
sem a UDN — superou todas as dificuldades que acompanharam o apoio
dos udenistas, incluindo a renúncia do candidato.
Jânio contava com o decisivo apoio de Carlos Lacerda ("haverá
algo mais udenista neste país do que a obra de Jânio Quadros em
São Paulo?", indagava), dos udenistas históricos que viam com
desagrado a aproximação dos "realistas" com o PSD (não perdoavam o
acordo no governo Dutra) e do grupo que compunha o "movimento
renovador", embrião da futura "Bossa-Nova". O candidato natural da
UDN, no entanto, era Juraci Magalhães, antigo tenente, fundador do
partido, e que formava, ao mesmo tempo, com o grupo da conciliação
e da abertura popular. Contava, ademais, com o discreto apoio do
presidente Kubitschek, que preferia a vitória da oposição para
garantir, sem desgastes, a sua própria volta ao governo em 1965. O
baiano Aliomar Baleeiro, um dos mais combativos membros da "Banda
de Música", liderava a campanha pró-Juraci, com apoio do grupo
nordestino, para quem o paulista Jânio Quadros, por não pertencer
a nenhum partido, "não passava de uma bailarina política a qual
não deveria ser entregue a cabeça de João Batista" (M. V.
Benevides, A UDN e o Udenismo). Assim, a confusão partidária
parecia irremediável. Se os próprios partidos apresentavam
divisões tão intrigantes, o que dizer da disposição do eleitorado
para, eventualmente, dar provas de "maturidade política" e votar
partidariamente, acima de nomes e personalismos?
"A campanha eleitoral foi, em boa medida, uma comédia de
equívocos. Lott, apoiado pela esquerda, pautou seus
pronunciamentos por um anticomunismo extremado, que lhe alienava
as simpatias das massas urbanas sem lhe granjear apoio nas áreas
conservadoras. Jânio, candidato da direita, introduziu no debate
eleitoral a política externa, solidarizando-se com Cuba e propondo
uma atitude de independência face aos dois blocos que dividem o
mundo. No final, ganhou o melhor orador, o demagogo talentoso,
capaz de entusiasmar as massas operárias com tiradas esquerdistas
e, ao mesmo tempo, inspirar confiança à burguesia com apelos à
austeridade e promessas de sobriedade no trato dos dinheiros
públicos" (Paulo Singer, Política e Revolução Social no Brasil).
Na realidade Jânio contou com o apoio da CONCLAP (Conselho
Nacional das Classes Produtoras), de grupos industriais impor-
tantes, como Matarazzo e Votorantim, e associações paulistas como
a FIESP, a FARESP e a Associação Comercial.
A plataforma de Lott expressava a ideologia da ala
nacionalista que fazia política ativa no Clube Militar. Jânio, por
sua vez, contava com a simpatia dos militares identificados às
candidaturas frustradas do Brigadeiro Eduardo Gomes (1945 e 1950)
e do General Juarez Távora (1955) e que não perdoavam o
"contragolpe preventivo" do 11 de Novembro, com o qual Lott
garantira a posse de Juscelino e Jango. Além dos militares da
Cruzada Democrática, de setores influentes da Escola Superior de
Guerra, Jânio polarizava, também, o engajamento político de jovens
da Aeronáutica fiéis à pregação radical de Carlos Lacerda. Assim é
que, em novembro de 1959, os rebeldes de Aragarças (os mesmos
oficiais do levante de Jacareacanga de 1956) apontam como um dos
motivos de sua rebelião a renúncia de Jânio Quadros à candidatura
para a Presidência (com esta renúncia a UDN ficara em pânico, e
Jânio reconsidera a decisão em menos de uma semana).
Além do pequeno PTN, do PDC e da maioria da UDN, a candidatura
janista contava com o apoio da Frente Democrática Gaúcha (UDN-PSD-
PL), de setores do Partido Socialista (interessados na proposta
progressista e modernizadora) e de alas dissidentes do PR, do PTB
e do PSD. Na Convenção Nacional da UDN, em novembro de 1959, a
consagração é apoteótica: Jânio recebe 205 votos contra 83 dados a
Juraci Magalhães. Este, apesar das vaias, faz um discurso
premonitório da renúncia, concluindo dramaticamente: "E agora,
José?". Para a vice-presidência a UDN recorre, mais uma vez, ao
"charme discreto" de um liberal consagrado como Milton Campos,
depois do malogro do lançamento da candidatura do ex-governador de
Sergipe, Leandro Maciel.
A "campanha das mãos limpas" do candidato à Vice-Presidência
Fernando Ferrari (do Movimento Trabalhista Renovador, dissidência
do PTB gaúcho), com apoio do PDC, complementava a campanha da
vassoura e atraía votos udenistas. Os resultados do pleito indicam
não apenas a divisão do eleitorado antijanguista (a união dos
votos de Campos e Ferrari teria garantido, por ampla margem, a
derrota de Goulart), como o sucesso dos comitês Jan-Jan e do
Movimento Popular Jânio Quadros nos grandes centros trabalhistas e
esquerdistas como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife.
Nas eleições de 3 de outubro Jânio é eleito com 5 636 623
votos, derrotando o General Lott (3 846 825 votos) e Ademar de
Barros (2195 709 votos). Convém lembrar, para a correta avaliação
dos dados eleitorais, que em relação ao pleito presidencial
anterior há um aumento significativo não apenas do eleitorado, em
números absolutos, como da proporção do comparecimento às urnas:
de 60% em 1955 passa a 80% em 1960. Do total de votos válidos
dados a Jânio, 78% foram obtidos nos estados-chave Guanabara, Rio
Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo. Em 1919 havia mais de cem
brasileiros para cada voto dado ao presidente eleito. Em 1960
havia menos de 13 brasileiros para cada voto dado a Jânio Quadros.
Jânio obteve substancial votação em todas as camadas sociais,
mas uma pesquisa pré-eleitoral feita por Gláucio Soares na
Guanabara indicou preferência significativamente maior por Jânio
nos estratos sócio-econômicos mais elevados, medidos por instrução
e ocupação. O perfil do eleitorado janista, em 1960, indicaria,
assim, que "Jânio ainda é a grande esperança dos deserdados, mas é
sobretudo o instilador de um novo ânimo defensivo à classe média
tradicional, atormentada pela inflação, temerosa das mudanças que
se processavam no país, ansiosa em busca de um messias-estadista
para repor as coisas nos seus lugares" (Souza e Lamounier, Isto É,
nº 4, 1976).
A vitória de Jânio seria reforçada pelo sucesso da oposição
nos governos estaduais: Carlos Lacerda, na Guanabara; Magalhães
Pinto, em Minas Gerais (derrotou Tancredo Neves); Luiz Cavalcanti,
em Alagoas; Pedro Gondim, na Paraíba; Aluísio Alves, no Rio Grande
do Norte; Correia da Costa, em Mato Grosso, e Ney Braga, no
Paraná. Jânio não conseguira a maioria absoluta dos votos
(48,26%), mas em momento algum os radicais da UDN — que haviam
invocado tal motivo em 50 e 55 — manifestaram intenções golpistas.
Uma era de confiança, um clima de "democrática pacificação
nacional" parecia transformar os mais renitentes golpistas. Dois
importantes fatores, no entanto, já indicavam tempestades futuras:
a eleição de João Goulart para a Vice-presidência (com visível
hostilidade das Forças Armadas e das classes conservadoras) e as
características do temperamento personalista, autoritário e
psicologicamente instável do novo presidente.
ACIMA DOS PARTIDOS, O BONAPARTISMO JANISTA

"As proporções da vitória eleitoral de Jânio Quadros — por


generosa margem de quase dois milhões de votos sobre seu principal
adversário — conferiam-lhe considerável quantum de poder
específico em relação às forças que lançaram sua candidatura. Como
nenhuma delas poderia reivindicar 'dividendos partidários', Jânio
colocava-se acima da sociedade política, verificando-se o quarto
do bonapartismo. O bonapartismo suspende a força política das
classes sociais e as transforma, por assim dizer, em suplicantes
diante do Estado. Então o povo, partidariamente desorganizado,
passa a ser aparente sustentáculo do poder. O chefe bonapartista,
por cima das classes, por cima dos partidos, busca o apoio direto
do povo" (Guerreiro Ramos, A Crise do Poder no Brasil). Pairando
acima dos partidos, fugindo ao esquema "esquerda e direita", Jânio
significava, para seus defensores, o encontro da ordem com o pro-
gresso, a revolução política sem violência ou ilegalidade. Seria
"um governo ao mesmo tempo progressista e conservador, austero e
audacioso, amado pelo povo e respeitado pelas elites" (A. Arinos,
A Escalada).
A realidade seria bem diversa. Através da política dos
"bilhetinhos" Jânio converteria seus ministros em meros executores
de determinações presidenciais; pela criação das Seções Especiais
do Gabinete Civil e Militar, e do Serviço Nacional de Municípios,
tentaria anular qualquer mediação entre a Presidência e o poder
regional e local; pelo tratamento dispensado aos parlamentares e
empresários, revelaria o desprezo implícito por tudo aquilo que
não fosse emanação direta de sua própria autoridade,
supervalorizada por um voluntarismo quase místico, na crença
absoluta no "mandato independente". Afinal, este seria o governo
que prometera, "sem donos nem influências".
As forças políticas que apoiaram sua candidatura não apenas se
revelaram impotentes para reclamarem "dividendos partidários",
como incapazes de defenderem um projeto comum, por serem, em cer-
tos casos, francamente antagônicas. O que explica, em parte, as
profundas ambigüidades e contradições no relacionamento Executivo-
Legislativo. No governo Kubitschek, a euforia desenvolvimentista e
o estilo conciliatório do presidente, aliados à eficiente política
de "administração paralela" (que mantinha intacta a burocracia
tradicional, feudo dos interesses cartoriais e clientelísticos),
conseguiram, por um período determinado, responder às expectativas
de diferentes grupos sociais, com exceção dos marginalizados da
terra.
O governo Quadros, ao contrário, acirrou contradições, jogando
com forças políticas que se repeliam mutuamente. Todos
"pertenciam" ao governo, um caleidoscópio que iluminava ora o
moralismo bacharelesco da UDN, ora o conservadorismo burocrático e
o industrialismo do PSD. Ou o trabalhismo do PTB e a crescente
participação dos sindicatos. Ora os interesses agrário-
modernizantes sulistas, ora os dos coronéis do Nordeste. O impulso
desenvolvimentista dos herdeiros de JK e a moderação
estabilizadora dos ortodoxos. Ou seja, uma amplíssima "frente",
que tinha em comum os louros da vitória eleitoral; nenhum programa
coerente garantia a unidade. Em resumo, os que apoiavam o
moralismo, condenavam o trabalhismo; os que defendiam a política
econômica ortodoxa odiavam a política externa independente, e
vice-versa.
E Jânio teria que enfrentar não apenas os problemas
decorrentes da crise econômica herdada, como os inerentes às
promessas de "reformas de base". Para tal proeza dificilmente o
apoio do Congresso poderia ser menosprezado. Durante os sete meses
de governo Jânio conseguiu fazer chegar ao Congresso apenas um
projeto importante, o da Lei de Remessas de Lucros, e neste caso
com a divisão de seus próprios ministros.
A composição diversificada do Ministério é esclarecedora. Na
Fazenda, o udenista baiano Clementi Mariani, industrial e
banqueiro, ministro da Educação no governo Dutra e presidente do
Banco do Brasil no governo Café Filho à época da famosa instrução
113, que favorecia a entrada de capitais estrangeiros no país. Na
Agricultura Romero Cabral da Costa, um desconhecido na cena
partidária nacional, usineiro ligado aos setores mais arcaicos da
agricultura nordestina, fora indicado pelo governador de
Pernambuco, o udenista Cid Sampaio. Na Viação, outro político sem
expressão, o pessedista Clóvis Pestana; na Saúde, Catete Pinheiro,
um obscuro paraense do PTN.
Na pasta de Minas e Energia, um nome forte: o do paraibano
João Agripino, que, embora da UDN, defenderia o nacionalismo
varguista na área de minérios e na Petrobrás. Na Indústria e
Comércio, Artur Bernardes Filho, do Partido Republicano, empre-
sário ligado aos interesses de multinacionais. A pasta do Trabalho
seria "despolitizada" pela indicação do paulista Francisco de
Castro Neves, apenas formalmente filiado ao PTB, e contrário à
política janguista nos sindicatos e institutos (o simples fato de
querer denominar o Ministério como "Secretaria da Mão-de-Obra
Nacional" já indica as intenções "despolitizantes").
O Ministro da Educação, Brígido Tinoco, era um político do
antigo Estado do Rio, sem nenhum convívio com os problemas da
educação. Jânio convocaria o Professor Anísio Teixeira que lhe
entregou, em pouco tempo, um plano de educação; a inércia
burocrática do Ministério, no entanto, não combinava com as idéias
renovadoras e o projeto seria arquivado. Na Pasta da Justiça,
Oscar Pedroso Horta representava, juntamente com o chefe da Casa
Civil, Quintanilha Ribeiro, uma escolha baseada na lealdade
pessoal ao ex-governador paulista. E, finalmente, o novo
Chanceler, Afonso Arinos de Melo Franco, seria o responsável pela
defesa da política externa independente, enfrentando o
reacionarismo de seu próprio partido, a UDN.
Nos ministérios militares, no entanto, a coerência foi
mantida. O General Odilo Denys permanece no Ministério da Guerra;
apesar de comprometido com o grupo do 11 de novembro, que
garantira a posse de Juscelino e Jango, Denys já se afastara
definitivamente da ala nacionalista representada pelo General
Lott, cujo esquema de posições começara a desmantelar em todo o
país. Na Marinha, o Almirante Sílvio Heck, vinculado aos
lacerdistas e comandante do Cruzador Tamandaré em 1955; na Aero-
náutica, o Brigadeiro Gabriel Grum Moss, da ala mais
"brigadeirista" da FAB, e na chefia do Estado-Maior das Forças
Armadas o General Oswaldo Cordeiro de Farias. Jânio contava com o
apoio dos militares da Escola Superior de Guerra, para quem era "a
negação da demagogia" (!). No plano federal, o único setor
organizado e ativo era justamente a Casa Militar, sob a chefia do
General Pedro Geraldo de Almeida, identificado com o grupo da ESG
ligado ao então Coronel Golbery do Couto e Silva. Este era chefe
de Gabinete da Secretaria Geral do Conselho Nacional, onde se
encontravam, também, os oficiais João Batista Figueiredo, Walter
Pires, Heitor de Aquino Ferreira e Mario Andreazza, no Serviço Fe-
deral de Informações (René Dreifuss, 1964: A Conquista do Estado).
Aliás, um dos principais motivos para a hostilidade de setores
do Congresso a Jânio foi o espaço privilegiado concedido às Forças
Armadas. Como, por exemplo, a criação de subchefias militares do
gabinete presidencial em várias regiões do país e a sistemática
designação de oficiais para presidirem as Comissões de Inquéritos
e sindicâncias da cruzada moralizadora. Esta última medida
provocou violenta reação na Câmara dos Deputados, destacando-se a
denúncia de Almino Affonso, líder do PTB, que indagava por que os
militares passariam a ser fiscais da coisa pública: "por acaso um
militar, por definição, é honesto, e há de ser um civil, por
definição, um venal?" (Mário Victor, Cinco Anos que Abalaram o
Brasil).
No plano civil, a prática de organizar reuniões nos estados
com os governadores, criando uma nova instância decisória de
mediação, constituiu-se em rede de apoio regional também fora do
Congresso. Note-se que pela primeira vez o governo não tinha
maioria no Congresso. O Bloco Parlamentar de oposição PSD-PTB-PSP
(o Partido Social Progressista era o partido de Ademar de Barros)
compunha a maioria na Câmara dos Deputados. Mas era uma maioria
fluida, extremamente heterogênea, que incluía desde socialistas
até radicais de direita. E não se poderia dizer que os unia uma
posição constante contra o governo, pois conservadores e
progressistas dividiam-se, em cada partido, em relação a quase
todas as questões.
A política progressista de Jânio contava com o apoio das alas
rebeldes dos grandes partidos: a ala moça do PSD, a Bossa-Nova da
UDN e o Grupo Compacto do PTB. Mas, se os progressistas uniam-se
na defesa da política externa independente e do controle sobre a
remessa de lucros, dividiam-se quanto à política sindical e a
prática das sindicâncias que visava diretamente membros da aliança
PSD-PTB. A Bossa-Nova udenista (José Aparecido, José Sarney,
Seixas Dória, Clóvis Ferro Costa), adversária dos lacerdistas e da
"Banda de Música", surgira exatamente para dar apoio às propostas
reformistas do novo governo.
Jânio, por sua vez, procurava apoio na esquerda, a nível
individual somente, cortejando lideranças "não alinhadas", como
Miguel Arraes, Leonel Brizola e Francisco Julião. A tentativa de
aproximação com o PSD, através de políticos paulistas, não logrou
resultados — graças à forte bancada mineira, comprometida com o
governo anterior — e Paulo Pinheiro Chagas, líder pessedista da
maioria, chegou a nomear uma comissão de deputados para estudar a
proposta de impedimento do presidente (o que não ocorreu). E
quanto à UDN — considerada por Jânio "inepta e bacharelesca" — a
frustração seria total; suas lideranças parlamentares não eram
consultadas pelo presidente e o partido não dispunha de uma margem
de manobras para distribuir cargos e vantagens, típica atribuição
de qualquer esquema de poder. Aparentemente vencedora, a UDN não
era governo nem era oposição; constrangida a "apoiar um governo
que não era seu" (como se queixaria mais tarde o presidente do
partido, Herbert Levy), pois não poderia isolar-se na oposição,
muito menos renegar o fruto de sua sedução populista, a UDN
revelava o lado trágico de sua própria ambigüidade, num processo
autofágico de sua única vitória (M. V. Benevides, A UDN e o
Udenismo).
E, finalmente, cabe assinalar que, já nos primeiros meses do
governo Quadros, os debates no congresso sobre a adoção do sistema
parlamentarista recrutavam novos adeptos. Aliás, a encarnação viva
do projeto, o presidente do Partido Liberdade, Raul Pilla, uma
semana apenas antes da renúncia, sugeriu a criação de uma Comissão
de Política Parlamentar para a "defesa da integridade e
efetividade das funções parlamentares", a fim de evitar que o
Congresso continuasse perdendo prestígio entre o povo,
conseqüência da "invasão de sua própria esfera por outros órgãos
do poder" (Mário Victor, op. cit.).
Mas o desprezo de Jânio Quadros pelo Congresso — "um clube de
ociosos" — era tão grande que chegou a indagar a seu perplexo
Chanceler: "Ministro,V. Exa. pegaria em armas para defender este
Congresso que aí está?" (Afonso Arinos, Planalto). E depois da
renúncia, ao contestar seus propósitos golpistas, não hesitaria em
vangloriar-se: "se quisesse teria fechado o Congresso com um cabo
e dois soldados".
DO TOSTÃO À VASSOURA,
O MORALISMO AUTORITÁRIO

Entre as contradições do governo Jânio Quadros destaca-se a


intrigante conjugação entre a defesa ativa de uma política externa
"de grandeza" e a adoção de um estilo provinciano e mesquinho no
trato da coisa pública. No estadista da autodeterminação dos povos
disfarçava-se, ora mais visível, ora mais superado, o prefeito dos
limites bairristas de Vila Maria. A "política dos bilhetinhos"
revela o tacanho autoritarismo de um governo que erigiu como norma
o controle burocrático personificado, baixado aos mínimos
pormenores, em toda e qualquer área da administração pública, mas
também nos mais diversos aspectos da vida social.
A "eterna vigilância", referência emblemática dos liberais
udenistas, revestia-se de especial significado para Jânio.
Vigilância moral, ideológica, punitiva, corretiva, didática,
gratificadora. Em suma, uma nova "Voz do Brasil", altamente
centralizada, porém fragmentada em pequenas ordens, proibições,
reclamações ou simples avisos, carregados da aura onipresente de
quem se apresentava, sem o menor pudor, como o messias após o
caos. - E que utilizava, com mestria, recursos publicitários e
dramáticos para uma campanha nacional de "recuperação da
austeridade e da autoridade".
Assim se explicam decisões pessoais do presidente da República
para questões disparatadas e insólitas, obviamente deslocadas da
órbita governamental. Como, por exemplo, os decretos proibindo o
funcionamento dos Jóqueis Clubes nos dias úteis e às brigas de
galo em todo o território nacional. Ou as proibições de desfiles
de misses com maiôs cavados nos concursos de beleza e do uso de
lança-perfume nos bailes carnavalescos. O presidente interferiu
diretamente para a solução dos problemas relativos aos atrasos dos
trens urbanos e às filas de abastecimento nas cidades. Passando
por cima da competência do Ministério da Justiça ocupou-se com a
instituição da censura moralizadora — em defesa da família e dos
bons costumes — na televisão, nas diversões públicas e na
publicidade comercial. Ordenou a suspensão das emissões da Rádio
Jornal do Brasil (baseando-se na célebre portaria da Comissão
Técnica do Rádio, utilizada no governo Kubitschek contra Carlos
Lacerda e que merecera de Jânio e dos udenistas o mais vivo
repúdio), acusada de divulgar "notícia inverídica".
Na instância das "amenidades", Jânio preocupou-se em lançar "a
moda racional para os trópicos" (inspirado em sua confessada
admiração pelos costumes britânicos), inovando o protocolo
presidencial ao adotar o terno "safari" — cuja uniformização
desejou estender aos demais órgãos do governo, aparentemente sem
sucesso. A economia com os gastos públicos chegaria às raias do
ridículo com a determinação de que os papéis velhos dos
escritórios de toda a administração pública deveriam ser coletados
para venda filantrópica.
O suporte ideológico para esta política autoritária e
personalista encontra-se explicitamente no moralismo punitivo e
redentor que, aos olhos de Jânio e seguidores, garantiria a
originalidade e a autenticidade do que entendiam como "a revolução
pelo voto". Em termos concretos tratava-se de levar a todo o país
a cruzada do saneamento moral, sob a bandeira da austeridade,
honestidade e trabalho: "Este será um governo rude e áspero",
afirmou no dia da posse. E ao longo do governo seus discursos
insistiam na tônica do sacrifício: "que todos detenham suas
ambições, que todos sofreiem seu egoísmo, que todos sofreiem sua
cupidez. Quero uma reforma de princípios e de fundamentos". O
sacrifício seria de toda a nação — para Jânio povo, nação e
governo confundiam-se numa só tarefa, mais ainda, eram uma só
entidade. Identificava, ademais, sua própria autoridade com o
ethos da nação: "todos aqueles que se voltam contra mim estão-se
voltando contra a verdade e a nação".
Como salientaram Souza e Lamounier, "esta era a grande
alquimia do símbolo janista: o máximo de personalidade jamais
praticado em nossa história política como veículo para a extinção
dos personalismos ou, pelo menos, de 'favores pessoais'. A
vassoura, instrumento para a remoção da sujeira; mas sujeira onde,
de quem? A sujeira administrativa, a corrupção, na perspectiva dos
pobres. A sujeira, quem sabe, representada pelos pobres, pelas
reivindicações, pela nova periferia urbana, na perspectiva dos
setores ultraconservadores da classe média tradicional que aderiu
ao janismo" (op. cit.).
O apelo de Jânio ao discurso moralista, sabidamente sedutor
para a indigência política das classes médias — mas também para o
elitismo sutilmente hipócrita dos bacharéis — vinha de longe, e de
êxito comprovado. Sua fulgurante ascensão política assentara-se no
moralismo radical que explorava habilmente o ressentimento
daqueles setores médios temerosos da "proletarização". A análise
de Weffort sobre as bases sociais do janismo em São Paulo é
esclarecedora; tratava-se de uma "classe média assalariada,
proletarizada ou em vias de proletarização, que já não tem muito a
perder com o desenvolvimento capitalista (...) o moralismo que se
expressa em Quadros expressa setores sociais que já não podem
partilhar a esperança de favores e facilidades pessoais. Já não
podem acalentar os mitos do patriarcalismo. Seu novo mito é a
idéia de justiça, igualdade incondicional perante a lei. É
evidente que este moralismo é ambíguo quanto a seus efeitos
políticos, e o líder moralista dos homens do 'tostão' nunca viu
impedimentos maiores em se associar aos representantes, também
moralistas, dos homens do 'milhão' " (O Populismo na Política Bra-
sileira).
Esta análise permite situar o moralismo janista em suas
ambigüidades e compreender por que a perseguição administrativa
surgia como uma "santa inquisição", pois se tratava de "limitar os
privilégios". Daí o êxito da violência verbal de Quadros — e de
seus ares de ascetismo rigoroso, implacável, autoritário, porém
supostamente justo — junto à massa equivocada na caracterização
dos verdadeiros donos do poder. Trata-se de um radicalismo de tipo
pe-queno-burguês que obscurece e mistifica um reformismo de tipo
operário, circunstância que denota, e até certo ponto explica, a
enorme ineficiência dos grupos de esquerda junto à classe operária
de São Paulo(Weffort, op. cit.).
Já nos primeiros dias de seu governo Jânio Quadros inaugura um
estilo inquisitorial na denúncia da "crise moral" identificada com
a corrupção e a irresponsabilidade do governo anterior. Seria uma
nova "caça aos escândalos", à moda da agressiva "Banda de Música"
udenista que atormentara os líderes de Getúlio e Kubitschek no
Congresso. Para Jânio a corrupção aparece como "o filhotismo, o
compadrio, o favoritismo sugando a seiva da Nação e obstando o
caminho dos mais capazes. Não haverá ninguém, a começar dos mais
altos escalões administrativos, que possa situar-se fora das
normas da exação, compostura e integridade que caracterizarão os
negócios públicos nesse qüinqüênio".
E nesse sentido, ao identificar o empreguismo com a base da
corrupção, que Jânio inscreve em seu programa de governo a
necessidade de "despolitizar a administração em geral".
Despolitizar significava acabar com o sistema de nomeações feitas
por injunções políticas, ou seja, extinguir a principal fonte do
clientelismo urbano. E a retórica do sacrifício será sempre
invocada, apoiada nos valores morais com os quais o discurso
janista identifica o povo: "um povo generoso, um povo bom, um povo
excepcional, trabalhador e honesto". Daí, os reiterados apelos à
"compreensão de todos" ("e não quero nada que eu mesmo não faça!")
para a contenção de consumo, de reivindicações salariais, etc.
Assim é que a varredura da corrupção passa a significar a
instrução de dezenas de inquéritos administrativos (em grande
maioria presididos por oficiais militares) que tendiam a
comprometer medidas, pessoas ou grupos vinculados ao governo
Kubitschek. Assim ocorreu com as sindicâncias da COFAP (Comissão
Federal de Abastecimento e Preços), no Instituto Brasileiro do
Café, no IBGE, na SUMOC (Superintendência da Moeda e do Crédito),
no Conselho Nacional de Pesquisas, na SPVEA (Superintendência pela
Valorização da Amazônia), Rede Ferroviária Federal, na Cia.
Siderúrgica Nacional, na Cia. Vale do Rio Doce, no Departamento
Nacional de Obras contra as Secas, entre outros. Os diversos
Institutos da Previdência Social foram os mais atingidos pela
ânsia das delações e devassas. Os relatórios finais, divulgados
pela imprensa, chegaram a envolver o nome do vice-presidente
(notoriamente comprometido com a política trabalhista e
previdenciária dos governos anteriores), o que provocou uma
virtual ruptura entre Goulart e o presidente, o qual lhe devolveu
uma carta por julgá-la "descortês". Na maior parte dos casos as
sérias denúncias aos suspeitos eram publicadas sem se assegurarem
os direitos de um processo competente.
O funcionalismo público foi o alvo privilegiado da ação
moralizadora. Entre as principais medidas diretamente inspiradas
pelo presidente destacam-se as que maior impacto causaram na
opinião pública (intensos noticiários na imprensa) e nos debates
parlamentares: a instituição do horário corrido para o funcionário
federal, o controle do "ponto" e o corte de 30% nas despesas com
pessoal. Outras medidas altamente criticadas referem-se à redução
de vencimentos ou de "mordomia" para funcionários em missão no
exterior, ao veto ao projeto que dava estabilidade aos empregados
da NOVACAP (o veto presidencial foi derrubado na Câmara dos
Deputados), à criação de um Grupo de Trabalho para investigar o
Contrabando, etc. (Mário Victor, op. cit.).
Tais medidas, a nível da Presidência, revelavam a continuidade
do moralismo autoritário do governador paulista que marcara sua
eficiente administração pelo controle absurdamente minudente sobre
a "moralidade pública": visitas "incertas" a órgãos de atendimento
público, fiscalização do uso de carros oficiais nos fins de
semana, acompanhamento das provas dos concursos para simples
escriturário, etc. Ainda na Prefeitura de São Paulo tomaria uma
drástica medida para "servir de exemplo perante a nação, do que se
devia fazer, doesse a quem doesse, em defesa do patrimônio
público". Puniu o atleta Ademar Ferreira da Silva, campeão
olímpico de salto triplo, por se ter afastado do cargo para a
prática esportista, justificando-se: "infelizmente era um fun-
cionário relapso e a Prefeitura não é clube de atletismo" (Viriato
de Castro, O Fenômeno Jânio Quadros).
É evidente que a cruzada moralizadora servia aos interesses
ideológicos da manipulação janista, visando a reforçar seu
prestígio popular ("o povo será a um tempo minha bússola e o meu
destino"), mas também ao cálculo político que impunha a derrocada
final da herança getulista. Isso porque a devassa nos setores da
administração pública minava diretamente o controle clientelístico
dos representantes da aliança PSD-PTB. É bem verdade, também, que,
apesar da derrota eleitoral em 1960, esta aliança continuava
majoritária nas duas casas do Congresso; pouco a pouco os excessos
da "campanha saneadora" passaram a corroer as já frágeis
possibilidades de diálogo do presidente com a oposição. Nas pala-
vras de Mário Victor, Jânio Quadros prosseguia a sua ação contra
as ratazanas do Tesouro, como as apelidava Rui Barbosa. "Eu
continuarei. Custe o que custar. Nada me deterá. Não olharei nomes
nem posições" (op. cit., p. 162).
É interessante considerar, no plano da ideologia, o parentesco
entre esse moralismo (falso ou verdadeiro, não importa) e o
idealismo decorrente da crença de que os fenômenos políticos são
regidos prioritariamente por expressões da vontade individual.
Trata-se, é claro, de uma visão maniqueísta, apoiada na divisão
entre o "mal" e o "bem" absolutos; e as "forças do mal", para
Jânio e os moralistas da UDN, encarnavam-se nas práticas
explícitas e "personificadas" da corrupção no poder público, sem
jamais questionar as fontes, os interesses econômicos e a
verdadeira correlação de forças sociais no sistema capitalista que
sustentava aquele mesmo poder. Já em sua análise sobre o golpismo
e a oposição moralista, que levaram ao suicídio de Getúlio, Hélio
Jaguaribe assinala que "todo esse moralismo manipulado, todo esse
arsenal de velhas paixões puritanas exercidas por todos os meios
de difusão, não tem outro valor que não seja o de instrumento útil
na aglutinação das frustrações da classe média" (Cadernos de Nosso
Tempo, 1955, nº 3). Este moralismo, em última instância, apelará
para a solução golpista como a alternativa radical da
"purificação" e da vitória do "bem".
ENTRE NACIONALISMO E "ENTREGUISMO",
AS PAZES COM O FMI

Um certo fascínio, alimentado por boa dose de publicidade,


cercava a fama de Jânio Quadros como o eficiente administrador das
finanças públicas na Prefeitura e no Governo de São Paulo. Mas a
política econômica a ser posta em prática na Presidência da
República permanecia uma incógnita. As propostas do candidato
dissolviam-se no discurso geral de defesa da iniciativa privada,
prudência quanto ao capital estrangeiro e sobretudo — a grande
atração! — o combate à inflação, o saneamento dos gastos públicos
e a defesa dos interesses das classes médias "empobrecidas".
Nenhum plano foi apresentado. A confiança expressa na campanha
"Jânio vem aí" parecia suficiente. Para o setor privado era,
talvez, "suficiente" a lembrança do pronunciamento do governador
paulista, a respeito da polêmica sobre a Petrobrás, de que "o
Estado é mau patrão" (esta famosa frase de Jânio seria seguida da
não menos famosa frase do General Lott: "a Petrobrás é
intocável").
A expectativa em torno do novo governo expressava, também, os
interesses daqueles grupos econômicos que, beneficiados pela
euforia desenvolvimentista de Kubitschek, temiam, agora, a
"explosão social". Defendiam uma "modernização conservadora",
através do desenvolvimento com medidas deflacionárias. Logo depois
de empossado, Jânio pronuncia um discurso demolidor sobre "as
irresponsabilidades" do governo precedente, prometendo o maior
rigor para enfrentar a "terrível situação financeira do Brasil",
com a herança de uma dívida externa de cerca de dois bilhões de
dólares. Sua política econômica apresentava-se, portanto, como a
retomada das teses de estabilização, incluindo certas práticas
preconizadas pelo Fundo Monetário Internacional. O que não poderia
ser feito sem muita polêmica. E também não pode ser entendido sem
uma breve alusão à crise que marcou o final do governo Kubitschek.
É em 1959 que Juscelino enfrenta a fase mais difícil do
"desenvolvimentismo", pressionado externamente pelo FMI e
internamente pelas oposições, que atacavam tanto a inflação quanto
os remédios para contê-la. Entre os fatores inflacionários mais
importantes destacam-se os gastos com o ritmo acelerado do
Programa de Metas e a construção de Brasília, além dos aumentos
salariais superiores ao custo de vida, e a política de empréstimos
ao setor Privado, através do Banco do Brasil. Acrescente-se o
declínio persistente dos preços, em dólares, dos produtos de
exportação e a superprodução do café.
O debate econômico no governo JK polariza-se em torno do
sistema de taxas de câmbio múltiplas, com a constante pressão dos
exportadores. A polêmica estabilização-desenvolvimentismo põe em
confronto a política ortodoxa defendida por Eugênio Gudin, Octavio
Gouvêa de Bulhões e Roberto Campos (o "Bob Fields", cujo enterro
simbólico seria comemorado pelos estudantes da UNE) e os interes-
ses dos grupos que entendiam "o recurso à inflação como
indispensável para o desenvolvimento".
O rompimento de Juscelino com o FMI significava a renúncia ao
Plano de Estabilização Monetária, proposto pelo Ministro Lucas
Lopes, e cujas medidas seriam praticamente as mesmas do governo
Quadros: limitação de créditos, controle operacional sobre bancos
particulares, eliminação dos subsídios cambiais, revisão do
salário mínimo, etc. Além de esbarrar nos interesses do
sustentáculo político-partidário e social do governo, a
estabilização proposta significaria a negação do Programa de
Metas, e, acima de tudo, renunciar à construção de Brasília no
prazo previsto.
O poder do FMI não deve ser subestimado. De seu aval dependia
a concessão de empréstimos de capitais privados estrangeiros. Em
resumo, a tese do FMI apontava a necessidade de "se pôr a casa em
ordem" como pré-requisito para receber a ajuda financeira. A
"ordem" significava taxa de inflação a menos de 10% ao ano, câmbio
unificado, abolição de incentivos a cafeicultores e restrição
salarial.
Um mês apenas após a posse, um grupo de empresários da CONCLAP
encaminha ao presidente um documento intitulado "Sugestões para
uma Política Nacional de Desenvolvimento". Jânio reage
agressivamente, como se entendesse sua autoridade solapada por
pressões indevidas: "Tenho de aplicar medidas drásticas e ásperas,
a fim de conduzir este país à sanidade. São-me indiferentes os
aplausos e os apupos (...) Homens poderosos já me procuraram para
expressar sua insatisfação com o meu governo. Expliquei-lhes que
só há dois meios de tolher os meus passos: depor-me, ou
assassinar-me, o que não me parece fácil" (M. Victor, op. cit.). O
impacto negativo foi grande para a comunidade empresarial, assim
refletida em editoriais da imprensa: "Não combina com o cargo e o
poder do Presidente da República jogar com palavras ameaçadoras".
Jânio recorria a gestos e retórica de uma austera
independência, mas a simples escolha de seu Ministro da Fazenda,
Clemente Mariani — notório defensor dos interesses do grande
capital, nacional e estrangeiro —, indicaria que certas
providências sugeridas no memorial da CONCLAP seriam adotadas pelo
governo. A reafirmação da empresa privada (contra a ação do
Estado) com franca entrada do capital estrangeiro; incentivo à
exportação com "supressão de quaisquer controles", e com regime
cambial favorável; redução de gastos públicos; capitalização da
agricultura contra os "extremismos expropriativistas";
restabelecimento da livre concorrência no setor de preços e
aluguéis; e, finalmente, "ação moralizadora" na Previdência Social
e nos sindicatos contra o "peleguismo dos agentes infiltrados no
Ministério do Trabalho".
A medida econômico-financeira mais importante do período foi a
instrução 204 da SUMOC, que pretendia restabelecer a chamada
"verdade cambial". Isto é, ficavam extintas as taxas múltiplas de
câmbio (com cortes radicais aos subsídios para produtos
importados) e decretava-se a desvalorização do cruzeiro em 100%.
Os dispositivos da 204 — cujo objetivo essencial era diminuir a
inflação e corresponder à "ordem" esperada do FMI —, além do
evidente reforço às finanças do governo, favoreciam os interesses
da burguesia agrário-exportadora e dos investidores estrangeiros.
Mas teriam efeitos devastadores para a grande maioria da
população: aumento no preço dos gêneros de primeira necessidade
(pelo corte aos subsídios ao trigo), nos transportes (corte aos
subsídios a óleo e combustíveis), além de medidas que incidiriam
sobre o congelamento parcial dos salários.
"A elevação do câmbio de custo de Cr$ 100,00 para Cr$ 200,00,
pela instrução 204, encarece os custos de produção da indústria,
uma vez que diversas matérias-primas e equipamentos eram
adquiridos no exterior por câmbio favorecido. As indústrias insta-
ladas nas áreas subdesenvolvidas são ainda duplamente
prejudicadas, por dependerem de suprimentos oriundos do exterior
ou do parque manufatureiro do Centro-Sul. A cláusula V da
instrução parece destinada a proteger certas empresas
estrangeiras, pois assegura não lhes será aplicada a majoração do
custo do câmbio, senão quando reajustarem as suas tarifas; em
outras palavras, senão quando transferirem para o consumidor os
ônus da providência" (Guerreiro Ramos, op. cit.).
O Jornal do Brasil assim condenava o aspecto drástico da
instrução: "De 1958 a 1959 o reajustamento do custo de câmbio de
50 a 100 cruzeiros foi realizado em três etapas e, ainda assim,
ocasionou um impacto de 50% no custo de vida. Sua Exa. cobra ao
presente um preço que não só está muito acima das possibilidades
imediatas do responsável final, que é o povo, como discutível
também seria admitir a justeza da cobrança que se exige de uma só
vez" (Mário Victor, op. cit.). Aos que atacavam a medida, Jânio
lembrava que prometera mesmo um governo "duro, duríssimo", para
combater o "ciclo de insânias" precedente, e acrescentava: "e há
ainda quem fala na 204, merecendo ser posto sobre os joelhos, ter
determinada parte mais carnuda que Deus todo-poderoso fez, muito a
propósito mais descoberta, para receber vigorosas palmadas"
(Jornal do Brasil, 5/4/61).
E, aos nacionalistas que apontavam o golpe da 204 contra a
Petrobrás, respondia Jânio: "Encontrei a Petrobrás de joelhos, ou
de rastros, sobre a barriga, pedindo um bilhão de cruzeiros ao
Banco do Brasil. Quebrada, falida. E eu, que fui acusado de
entreguista, sou quem a sustenta, quem a defende... Hoje, com a
204, deve ser feliz possuidora de alguns bilhões, pagos pelo nosso
povo" (idem). Afinal, era ele ou o "povo" que sustentava a
Petrobrás com a 204? O Ministro de Minas e Energia, João Agripino,
era contra a medida, pois "a verdade cambial num país como o
Brasil, em que a legislação favorece lucros fabulosos, pode
significar o maior enriquecimento de poucos à custa do sacrifício
do restante da população". "A reforma cambial só se justificaria
se viesse realmente associada às outras reformas prometidas: a lei
antitruste, a reforma do imposto de renda, a reforma bancária, a
de remessa de lucros para o exterior e a de lucros extraordinários
(...) Sem essa legislação, a verdade cambial significa uma
política de formação de capitais que muito interessou aos grupos
econômicos do Brasil. Tanto que as classes produtoras e a imprensa
tida de direita a louvou, aplaudiu e defendeu" (depoimento a O
Cruzeiro, 16/11/61).
Apesar das polêmicas internas e da impopularidade das medidas,
o objetivo principal foi atingido: a apresentação de um perfil
"saudável" ao FMI, na mira de novos empréstimos e renegociação da
dívida externa. Os embaixadores Walter Moreira Salles, nos Estados
Unidos, e Roberto Campos, na França, conseguiram vender a imagem
da "estabilização ortodoxa" (imagem seriamente abalada desde o
rompimento de Juscelino com o FMI) e contratar um empréstimo de 2
milhões de dólares.
Outra polêmica importante refere-se aos projetos da Lei
Antitruste e da Lei sobre a Remessa de Lucros. O governo dividia-
se em duas correntes: a nacionalista, liderada pelo Ministro João
Agripino, e a "entreguista", do Ministro Clemente Mariani (é
interessante lembrar que ambos eram udenistas e que o nacionalismo
nunca foi levado a sério na UDN pois, entre outras coisas, era
muito identificado com posições "getulistas"). Pela Lei Antitruste
seriam considerados abusos do poder econômico "embaraçar a criação
ou funcionamento de empresas ou monopolizar certa atividade, ou
estabelecer a exclusividade de determinada produção, ou
distribuição de mercadorias, com o objetivo de controlar o mercado
interno". E assim prejudicaria os interesses de muitas empresas
estrangeiras (M. Victor, op. cit.).
O projeto defendido por João Agripino (elaborado pelos
deputados Oliveira Brito e Daniel Faraco) previa a intervenção nas
empresas somente por solicitação do Poder Judiciário e sob seu
controle. Intervenção que existia no projeto Agamenon Magalhães
(apresentado em 1948, baseado na famosa "Lei Malaia", tão
combatida pelos adversários de Getulio em 1945) e no substitutivo
Adaucto Cardoso, que tramitava na Câmara. O projeto, no entanto, é
redefinido na conceituação de delitos e sanções e substitui o
órgão autônomo pela CADEC (Comissão Administrativa de Defesa
Econômica), constituída na base de representações de Ministérios;
o novo órgão, sem nenhuma estabilidade, terminaria por agir sempre
em função do poder dominante — ou para proteger ou para destruir
as empresas (João Agripino, op. cit.).
A Lei Antitruste seria aprovada no governo João Goulart em
setembro de 1962, no gabinete parlamentarista de Brochado da
Rocha.
Quanto ao projeto de lei regulamentando a remessa de lucros
para o exterior, a divisão no governo era mais radical. A proposta
de João Agripino (elaborada pelo professor mineiro Darcy Bessone)
fixava em 10% da moeda de origem a remessa como remuneração de
capital e que os lucros restantes, reinvestidos, fossem
considerados capital nacional, decorrente de fatores internos. O
projeto denunciava, também, a vinda de capital estrangeiro para
atividades secundárias ou competitivas desigualmente com nosso
capital. O Ministro da Fazenda defendia uma linha política
diferente, que significava tributar fortemente a remessa de lucros
e liberar o reinvestimento. Tal política significaria, a longo
prazo, o fortalecimento de poderosos grupos estrangeiros no país.
"Pelo projeto Mariani, o capital estrangeiro ingressa livremente,
retorna livremente, se estabelece na atividade que lhe convier,
remete os lucros sujeito apenas à tributação" (João Agripino, op.
cit.).
No governo Goulart a linha nacionalista predomina e resulta na
lei aprovada em setembro de 1962. No entanto, em agosto de 1964,
em pleno governo "revolucionário" do General Castello Branco, a
proposta "entreguista" de Mariani é vitoriosa na nova Lei de
Remessa de Lucros, inaugurando-se uma política frente ao capital
estrangeiro definida por Aliomar Baleeiro como a "porta
escancarada".
A posição de Jânio, na questão, era também marcada pela
concepção moralista. Em maio de 1960, ao receber um grupo de
sindicalistas que apoiavam sua candidatura, declarava-se a favor
de uma lei de remessa de lucros, porém "prudente para não assustar
os capitais estrangeiros, e firme para não encorajar o capital
estrangeiro desonesto" (M. Victor, op. cit.).
Além da própria complexidade das questões envolvidas, uma das
principais razões para o desencontro das políticas econômicas do
governo era a total indiferença de Jânio pelas virtudes do plane-
jamento. Seu personalismo extremado, aliado a um certo
provincianismo de quem ainda raciocina em termos de Prefeitura e
Governo Estadual, favorecia a situação de isolamento em que
passara a governar, estranho aos complexos meandros da "máquina
federal". Nunca trabalhou seriamente em conjunto com os membros
dos ministérios — preferia multiplicar os bilhetinhos — e não
conseguiu consolidar equipes de assessoria técnica, ou grupo de
trabalho, como seu antecessor. Em suas campanhas, desde a Câmara
Municipal paulista, o poder público, a burocracia emperrada,
sempre fora o alvo principal dos ataques e denúncias. Na
Presidência, via-se despreparado para enfrentar a questão com
eficácia.
O Conselho de Desenvolvimento, do governo JK, foi substituído
por uma Comissão Nacional de Planejamento (COPLAN), que não chegou
sequer a estudar os primeiros projetos de um novo plano
qüinqüenal, pois foi nomeada às vésperas da renúncia. Uma
Assessoria Técnica, solicitada a apresentar um programa preliminar
de planejamento, seria inteiramente esvaziada pela ausência de
qualquer diretriz do Poder Executivo. A linha administrativa do
governo nunca foi definida. Conta o Ministro João Agripino que
Jânio lhe confessara que, "se fosse esperar estudos para tomar
decisões, nada decidiria; ao passo que, decidindo de qualquer
forma, se a solução fosse errada, dentro de pouco tempo seu
Ministro teria estudos para convencê-lo do erro".
Esta ação empírica, isolada, assistemática, impetuosa, sem uma
visão global das medidas, contribuiria não apenas para uma
paralisia administrativa (frente às crises e ao acúmulo de
demandas) como também para aguçar a instabilidade emocional do
presidente.
EM POLÍTICA EXTERNA
O BRASIL NÃO É MAIS SATÉLITE

"O Brasil está fadado a ser, por tempo indefinido, um satélite


dos Estados Unidos." Esta declaração do jurista Raul Fernandes,
então Ministro das Relações Exteriores, dá o tom da diplomacia
brasileira na década de cinqüenta. E a recusa dessa estranha noção
de soberania explicaria o sucesso da política externa do governo
Quadros junto aos setores nacionalistas e de esquerda. Assim como
explicaria, no outro lado, a carga de pressões dos grupos
políticos e econômicos mais conservadores. Pois a mudança na
tradicional "satelização" significava não apenas reformular o
alinhamento incondicional com os Estados Unidos em questões
internacionais, como também admitir que havia áreas de atrito
entre interesses brasileiros e norte-americanos. Significava,
igualmente, a defesa de uma posição "independente" entre as duas
grandes potências mundiais, e uma tentativa de aproximação com o
chamado Terceiro Mundo. Tudo isso não poderia se dar impunemente,
num governo marcado por tantas contradições na área econômica e
apoiado por forças políticas antagônicas.
O ponto alto da plataforma janista na campanha de 1960 era a
proposta de abertura na política externa, sobretudo em relação aos
países socialistas: "no meu governo tudo se fará, abrindo as
portas do comércio para o mundo, sem distinção de credo político
ou ideológico". Era esta, sem dúvida, a fonte de perplexidades
para os articuladores das candidaturas Lott e Jânio, obrigando-os
a um jogo ambíguo entre posições de "esquerda" e de "direita"
(lembre-se que, ainda como candidato, Jânio visitara Cuba a
convite de Fidel Castro, convite recusado por Lott).
Em linhas gerais, o programa da política externa independente
incluía os seguintes pontos:

— estabelecimento ou fortalecimento de vínculos comerciais e


diplomáticos com os países socialistas, sobretudo a União
Soviética;
— estabelecimento de relações cordiais com Cuba, e uma posição
de apoio à autodeterminação do povo cubano;
— redefinição do apoio tradicional à política salazarista
quanto às "províncias ultramarinas" (Goa, Damão, Timor e
Macau, na Ásia, e Guiné, Angola e Moçambique, na África);
— solidariedade aos movimentos de emancipação do Terceiro
Mundo, incluindo a soberania da Argélia e o movimento de
Patrice Lumumba.

Conseqüências diretas dessas posições resultariam na abertura


de novas embaixadas (Senegal, Gana, Nigéria, Etiópia, Congo
Kinshasa) e na perspectiva de o Brasil apoiar a discussão sobre o
ingresso da China na ONU. Quanto à América Latina, tratava-se de
manter os princípios da OPA (Operação Pan-Americana, inaugurada no
governo JK) e fortalecer os laços com os países da ALALC (Asso-
ciação Latino-Americana de Livre Comércio). Tratava-se, em
especial, de firmar um acordo privilegiado com a Argentina para
enfrentar a hegemonia norte-americana no continente (lembre-se que
data do início do governo Quadros o lançamento dos planos da
"Aliança para o Progresso" pelo presidente Kennedy).
"Ao lado das forças progressistas da História", no dizer do
chanceler Afonso Arinos, a política independente do Brasil
significava, ao invés da propalada "comunização", o respeito
integral aos princípios do Direito Internacional Americano: não
intervenção; autodeterminação; solidariedade coletiva;
antitotalitarismo em geral e anticomunismo em particular. Tratava-
se, enfim, de manter o equilíbrio entre a luta pela
autodeterminação dos povos e a luta contra a infiltração do
comunismo internacional na América" (Planalto).
Tais ressalvas do liberal udenista não seriam suficientes para
enfrentar a oposição reacionária e, principalmente, entrosar uma
política externa independente com um governo conservador. Assim é
que a política externa tomar-se-ia o alvo privilegiado dos ataques
dos setores mais reacionários das Forças Armadas, da Igreja, das
Finanças e dos partidos políticos. Como depõe Afonso Arinos, o
irredutível reacionarismo da UDN, com sua visão belle époque da
diplomacia, reivindicava a volta "às normas do Itamarati", de
sermos instrumentos de decisões alheias.
A política externa transforma-se, ainda, no principal elemento
mobilizador do "novo golpismo", pelo qual Carlos Lacerda e
seguidores (com amplo apoio em seu jornal Tribuna da Imprensa e em
O Globo e O Estado de S. Paulo) tentariam acirrar o anticomunismo
visceral dos militares, as suspeitas dos católicos e o temor das
classes médias. Estavam em questão, evidentemente, os interesses
econômicos do capital associado, da grande imprensa, da influente
comunidade de portugueses no Rio e em São Paulo, que não poderiam
aceitar, entre outras, a política anticolonialista na África e a
agressiva independência em relação aos Estados Unidos.
As medidas concretas para a "abertura" iniciaram-se com as
missões especiais, incumbidas de ampliar ou planejar o intercâmbio
econômico com os países socialistas. A Missão chefiada pelo
jornalista João Dantas (que acompanhara Jânio em sua viagem à
União Soviética em 1959) visitou, de abril a junho, os seguintes
países: Albânia, Bulgária, Romênia, Iugoslávia e Hungria, onde
foram firmados acordos bilaterais de comércio e pagamento. A
Missão Leão de Moura destinou-se à União Soviética e, finalmente,
a Missão chefiada pelo vice-presidente João Goulart, para a China,
seria interrompida com a renúncia de Jânio. É importante assinalar
que desde o governo Vargas vigoravam acordos comerciais com países
do Leste europeu, reforçados e ampliados no governo Kubitschek. A
inovação dar-se-ia, com Jânio, na ênfase à ampliação do
intercâmbio e na proposta de reatamento de relações diplomáticas,
assim como na inclusão da China no roteiro.
Importa assinalar, também, que, ao mesmo tempo que seguia para
o Leste a Missão Dantas, o embaixador Roberto Campos percorria os
países do "Oeste Europeu" (Clube de Haia) e o embaixador Walter
Moreira Salles os Estados Unidos, para negociar as dívidas e
levantar novos empréstimos. E, também, é claro, tranqüilizar os
tradicionais aliados quanto à permanência do Brasil no bloco
ocidental capitalista cristão. A imprensa divulgaria com grande
destaque os resultados dessas duas missões, em termos das "boas
intenções" dos americanos e dos europeus. Lembre-se que tais
"bondades" foram feitas justamente após a fracassada tentativa de
invasão americana em Cuba.
A maior dificuldade encontrada pela Missão Dantas se refere
aos problemas diplomáticos provocados pela aproximação do Brasil
com a República Democrática Alemã. Para os alemães ocidentais
qualquer acordo, de governo a governo, representaria um
inadmissível reconhecimento da Alemanha da "cortina de ferro". O
acordo comercial sairia, portanto, "sem nível governamental",
resolvendo-se, no plano externo, o incidente diplomático. No plano
interno a crise culmina com a demissão do Secretário-geral do
Itamarati, Vasco Leitão da Cunha, que, motivado por informações
alarmantes de Roberto Campos, desautorizara a Missão Dantas junto
ao governo de Pankov.
A invasão de Cuba patrocinada por grupos econômicos e
militares norte-americanos, e com ampla cobertura do presidente
John Kennedy, agravaria a polêmica sobre os rumos "comunizantes"
da política externa. A posição brasileira contra a invasão, e a
favor da autodeterminação do povo cubano, seria violentamente
atacada por Carlos Lacerda e demais setores da direita organizada.
Em entrevista à televisão americana, Lacerda declarou-se
enfaticamente favorável à intervenção militar em Cuba. Na
televisão brasileira diria: "No momento o Brasil apóia uma das
mais sanguinárias, uma das mais torpes, uma das mais sujas
ditaduras do mundo, pois, no momento, é a nação que fortifica a
tirania de Fidel Castro no continente". O Embaixador americano
John Moors Cabot acrescentaria que o Brasil estava "comprometido"
com Cuba, o que desapontava os Estados Unidos. O jornal O Estado
de S. Paulo sintetizava a polêmica: "O Sr. Jânio Quadros decidiu
imprimir à rota de seu governo uma guinada para a esquerda" (Mário
Victor, op. cit.).
Toda medida entendida como essa "guinada para a esquerda"
repercutia na imprensa norte-americana, para a qual "o colosso do
Norte" (expressão local deles) não se conformaria com o desvio de
órbita de um de seus mais fiéis e importantes satélites.
Um exemplo é elucidativo. O Itamarati anuncia que votaria, na
ONU, a favor da discussão da entrada da China; não se tratava de
apoiar a entrada, mas simplesmente de admitir a discussão da
matéria em Assembléia. Jornalistas americanos consideraram a
posição brasileira "uma bofetada direta nos Estados Unidos" (A.
Arinos, Planalto).
Outra medida de intensa repercussão nacional foi a divulgação
das providências tomadas pelo governo para o restabelecimento das
relações diplomáticas com a União Soviética. A Cruzada Brasileira
Anticomunista pichou muros, a grande imprensa acompanhou a
virulência lacerdista e associações de classe, como a CONCLAP,
vieram a público manifestar seu desacordo. Pelas palavras do
deputado pedecista, Monsenhor Arruda Câmara, expressava-se a
"maioria silenciosa" dos católicos tradicionais, "apontando o
inconveniente de se criar esta cabeça de ponte, este ninho de
serpentes dentro do Brasil". A defesa de Afonso Arinos — além de
invocar o exemplo de Roma, com sua embaixada soviética — baseava-
se nos critérios obrigatórios do intercâmbio econômico, pois
tratava-se de "vencer a etapa dos mercados tradicionais, cuja
saturação na absorção dos nossos produtos é evidente" (Mário
Victor, op. cit.). As relações diplomáticas com a União Soviética,
no entanto, só seriam restabelecidas no governo Goulart.
Os interesses econômicos que sustentavam a política externa
independente seriam sempre, aliás, enfatizados pelo presidente
Quadros. Se, por um lado, ele insiste no "dever de formar uma
frente unida na batalha contra o subdesenvolvimento e todas as
formas de opressão", reafirma, por outro, que "a rejeição do
colonialismo não implica numa solidariedade platônica, mas
consoante os interesses nacionais (...) A exploração dos africanos
pelo capital europeu é prejudicial à economia brasileira (...) A
idéia por trás da política externa do Brasil tornara-se agora o
instrumento para uma política de desenvolvimento nacional" (Jornal
do Brasil, 27/9/61). E, finalmente, concluía Jânio que "os
interesses materiais não conhecem doutrina".
Essas declarações são significativas. Pois já se tornou lugar
comum apontar, como principal causa para o malogro do governo
Quadros, o acúmulo de tensões divergentes, provocadas pela defesa
simultânea de uma política externa progressista e uma política
interna conservadora. Se a afirmação contém sua dose de verdade —
aliás confirmada pelos fatos e pela confissão de "esmagamento" do
presidente renunciante —, é preciso adiantar a análise levando em
conta argumentos da "lógica de interesses", entre o progressismo
para fora e o conservadorismo para dentro... Não estão em causa, é
claro, a sinceridade dos formuladores da nova diplomacia; não
importa, igualmente, o grau de lealdade com que Jânio tratou os
novos parceiros. O que deve ser questionado é, exatamente, o
aparente paradoxo. Até que ponto não haveria razões objetivas para
justificar uma agressividade diplomática justamente em nome dos
interesses de uma política econômica conservadora?
O sociólogo Octavio Ianni entende a abertura para o Leste como
uma política de resultados políticos e econômicos de amplo
alcance. Politicamente o Brasil escapava à chantagem da "guerra
fria" ao mesmo tempo em que reduzia sua dependência frente aos
Estados Unidos, abandonando a "diplomacia subsidiária", e se
aproximando do Terceiro Mundo. No plano econômico era uma saída
satisfatória para o tipo de industrialização vigente, resultado do
desenvolvimento acelerado do qüinqüênio precedente, que levara à
alta taxa de capacidade ociosa.
Já para Brás Araújo, a política externa independente não
apenas expõe, de maneira clara, as contradições do sistema
político marcado pelas regras do capitalismo dependente, como se
insere numa lógica própria. Ou seja, a exigência de novos mercados
explica a ofensiva diplomática assim como as "representações
ideológicas" para justificar a conquista desses novos mercados. As
necessidades objetivas do capitalismo brasileiro não dependeriam
nem da "vontade" de um Executivo forte, nem mesmo de um "bloco no
poder". A dependência do sistema, no entanto, provocaria a contra-
ofensiva, também lógica, do imperialismo americano e europeu
(sobretudo alemão) e de seus aliados internos, tanto na burguesia
industrial quanto na latifundiária.
Carlos Estevam Martins acrescenta um outro aspecto: o peculiar
tipo de nacionalismo janista, como principal instrumento de
redefinição do processo de desenvolvimento brasileiro. A pressão
livremente exercida pelos capitais e pelas autoridades brasileiras
era considerada como principal obstáculo à expansão do capitalismo
brasileiro; tratava-se, portanto, de recorrer à tática que
consistia em explorar os temores suscitados nos Estados Unidos
quanto à "sovietização" da América Latina. "Vendo-se forçado a
atender às exigências do FMI e estando convencido, por causa da
crise cubana, de que Washington só se dispõe a atitudes
benevolentes quando confrontado com um clima de urgência
internacional, Quadros passou a lançar mão do que havia a seu
alcance para criar apreensão e alarme a respeito dos rumos de seu
governo e assim fortalecer seu poder de barganha nas mesas de
negociação. Tratava-se de elevar o Brasil ao status de aliado
privilegiado, de garantir a ajuda norte-americana em condições
tais que o processo de acumulação pudesse prosseguir com o mínimo
de prejuízo para o capital nacional e o máximo de entusiasmo
popular" (Cadernos CEBRAP, nº9, 1972).
É nesse sentido que não se pode aceitar que a abertura para os
países socialistas e o apoio às lutas anticolonialistas conferia
ao governo Quadros uma visão de esquerda. A ambigüidade de Jânio
em relação às esquerdas sempre foi dosada pelo mais visível
oportunismo. Em momento algum demonstrou qualquer compreensão, por
exemplo, pela legalização do Partido Comunista; "os comunistas são
irrecuperáveis para a democracia", dizia. Ao contrário, sua
aproximação com as esquerdas era feita justamente através de
contatos com lideranças marginais à organização. Essa política de
aproximação fragmentada tinha a grande vantagem de conseguir divi-
dendos externos, sem se comprometer com a "subversão" interna.
A análise de Carlos Estevam é ainda esclarecedora. "Para evitar
o alijamento prematuro de suas bases conservadores, e, ao mesmo
tempo, tornar-se palatável para o gosto americano, o janismo tempe-
rou seu radicalismo externo com uma importante concessão à direita:
o escalonamento de graus de independência da política exterior
(...) O governo manter-se-ia aquém da fronteira que separa a posi-
ção independente — avessa às imposições políticas ou ideológicas
que limitam as relações comerciais e diplomáticas com outros países
— da posição neutra, que se recusa a honrar os compromissos
internacionais relacionados com a defesa do bloco ocidental, e do
continente, em particular, face à ameaça da agressão comunista.
Concretamente, essa orientação manifestou-se na recusa oficial ao
convite para participar da reunião dos neutros em Belgrado" (op.
cit.).
Esse equilíbrio entre "independência" e "neutralidade" (Afonso
Arinos insistia na diferença entre neutralismo e neutralidade)
sugere as ambigüidades da posição brasileira. Embora condenando a
invasão de Cuba, por exemplo, a delegação brasileira na ONU
termina por se abster de votar a proposta mexicana — apoiada por
Cuba — e acompanha os Estados Unidos na resolução final, vaga e
inócua, que apenas recomendava aos Estados-Membros procurar
intervir com "medidas pacíficas". A nota do Itamarati, aliás, era
muito clara na condenação implícita aos "rumos socialistas" da
revolução cubana, pois insistia que "a não intervenção opõe-se a
toda dominação econômica ou ideológica" e defendia a democracia
representativa.
E, apesar dos princípios do anticolonialismo, o Brasil abstém-
se de votar a favor de Angola (e contra Portugal) nas sessões da
ONU de março-abril de 1961. O embaixador brasileiro chegou a tecer
elogios públicos "à obra portuguesa em Angola". E o governo
brasileiro não veria inconveniente em reforçar suas relações com a
África do Sul (Brás Araújo).
Apesar das ambigüidades e contradições, mescladas a um certo
oportunismo, a política externa janista tornou-se o principal
elemento precipitador da ruptura irreversível entre as forças, já
contraditórias, que compunham o governo. Se a esquerda apóia a
luta antiimperialista e a aproximação com os países socialistas
(na crença implícita de uma "revolução pelo alto"), a direita
passa a temer com mais vigor a ameaça do comunismo internacional.
Os dois grandes partidos nacionais, PSD e UDN, mantêm-se divi-
didos, restando o apoio unânime da ala mais avançada do PTB e seus
aliados comunistas.
A condecoração de Ernesto "Che" Guevara, de passagem pelo
Brasil vindo da Conferência de Punta del Leste (onde desmascara a
Aliança para o Progresso), foi a chamada gota d'água. O Ministro
de Economia de Cuba é condecorado por Jânio Quadros com a Grã-Cruz
da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul a 18 de agosto. A repercussão
nos meios militares e na imprensa foi a mais intensa deste
governo. No episódio, Jânio revelaria não apenas oportunismo (no
caso, mal conduzido), como os traços de seu conhecido estilo
personalista e autoritário. Não consultou seu Ministro das
Relações Exteriores nem os ministros militares e membros do
Conselho da Ordem. Cortejou as esquerdas com um presente de grego
e comprou, sem necessidade e sem "lucros", um casus belli com a
Igreja, os militares (alguns devolveram sua condecoração) e os
setores mais conservadores do país, orquestrados na campanha
liderada por Carlos Lacerda. Este, em resposta imediata ao ato
presidencial, condecora no Palácio das Laranjeiras um político
cubano em viagem de propaganda anticastrista.
A condecoração a Guevara não fez avançar a posição
progressista dos grupos políticos já solidários com a revolução
cubana. Pelo contrário, o efeito devastador causado pela cerimônia
foi negativo para as esquerdas brasileiras. Tratava-se, então, de
justificar o ato do presidente, desvesti-lo do aspecto de "provo-
cação", defendê-lo perante a opinião pública manipulada pela
grande imprensa em sua quase unanimidade. Isso significava, além
do óbvio desgaste, um desvio da verdadeira luta pelo
reconhecimento dos rumos do socialismo cubano. No final das contas
o país nada ganhou com a bravata de seu presidente — e o movimento
por uma política externa independente, coerente e responsável,
saiu desgastado.
Uma semana após a polêmica condecoração, Jânio Quadros
renunciava à Presidência da República.
A RENÚNCIA

"Ninguém perturbará a ordem deste país comigo vivo. Ninguém! E


eu não aconselharia, quem quer que seja, a tentá-lo" (25 de março
de 1961). "Fui vencido pela reação e, assim, deixo o governo (...)
Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim
e me intrigam ou me infamam, até com a desculpa da colaboração. Se
permanecesse não manteria a confiança e a tranqüilidade, ora
quebradas, indispensáveis ao exercício da minha autoridade. Creio,
mesmo, que não manteria a própria paz pública" (25 de agosto de
1961).
Cinco meses apenas separam as duas declarações, expressivas do
início e do fim desse breve governo marcado pelas contradições e
ambigüidades. Ambigüidades tanto decorrentes da personalidade do
presidente, quanto das expectativas e posições, reciprocamente
contraditórias, dos diversos grupos sociais que o apoiavam (Hélio
Jaguaribe). E que teriam efeitos deletérios para o desenvolvimento
do sistema democrático no país. Por quê? Até que ponto é correto
imputar a um governante tão pesada carga de responsabilidade por
um sinistro futuro?
É claro que um homem não faz sozinho a história. Mas é
impossível negar a responsabilidade do presidente, num sistema
presidencialista, e sobretudo daquele presidente que quis governar
"acima dos partidos" e com forte apoio nos militares. Como é
difícil esquecer que, pela primeira vez na República de 1946, um
presidente civil recebera a faixa presidencial de outro civil, no
prazo marcado pela Constituição. O que inspirava grandes
esperanças quanto à consolidação do regime democrático. Mas o
personalismo autoritário de Jânio, o bonapartismo, o moralismo que
desemboca no golpismo — temas da discussão nas páginas precedentes
— contribuiriam, de maneira inequívoca, para a crise que "se
resolve" em 1964.
Em primeiro lugar, pela consolidação da intervenção militar na
cena política, graças ao papel privilegiado concedido aos
militares, em detrimento das forças civis. Em segundo lugar, pela
exacerbação da extrema-direita organizada, que se mobiliza sobre-
tudo pelos aspectos contraditórios da "política externa
independente". Em terceiro lugar, pela conseqüente radicalização,
no outro extremo, dos setores populares e de esquerda. Estes,
profundamente lesados pelo não cumprimento das promessas de efe-
tivas transformações sociais, sobrecarregariam o governo Goulart
de demandas insustentáveis num sistema político ainda dominado
pelos interesses das oligarquias, das elites financeiras e do
capitalismo internacional, afinal não atingidos pelos raios puni-
tivos do moralismo janista.
Cabe lembrar, igualmente, a responsabilidade da UDN e de seu
ambíguo liberalismo, ao permitir a ascensão de Carlos Lacerda, que
se torna, para a opinião pública, o líder nacional do partido.
Revigorava-se, assim, o golpismo, fugazmente amortecido na segunda
metade do governo Kubitschek pela expectativa de vitória nas
eleições com Jânio. O novo golpismo, desta vez ideologicamente
apoiado no anticomunismo e no antinacionalismo — e não mais no
antigetulismo — dirigia-se contra supostas disposições golpistas
do presidente, na reedição dos "contragolpes preventivos".
Significava, também, o nítido distanciamento entre a ala radical
da UDN carioca e o udenismo dos "históricos" (Milton Campos,
Afonso Arinos, Adaucto Lúcio Cardoso, entre outros). Significava,
acima de tudo, que a nova frustração com uma falsa vitória (os
udenistas reclamavam da marginalização política imposta por Jânio)
não seria absorvida pela retórica dos bacharéis. E assim como a
UDN aceitaria, até com certo alívio, a renúncia de Jânio,
aceitaria também o regime militar instalado após a deposição do
presidente João Goulart (M. V. Benevides, op. cit.).
Carlos Lacerda seria o avesso do autoritarismo janista. E o
avesso de seu golpismo. Pois ao golpe de Jânio responderia o golpe
de Lacerda, ou vice-versa, clamando, ambos, por um certo tipo de
intervenção militar (H. Jaguaribe).
Os fatos imediatamente precedentes à renúncia têm, como
protagonista, justamente o governador da Guanabara. O pano de
fundo compõe-se do clima de denúncias sobre a "comunização" do
Itamarati e, sobretudo, pelo profundo ressentimento de Lacerda —
que não era considerado, como o desejava, "o parceiro
privilegiado" do governo federal. Num primeiro momento trata-se do
famoso "caso da mala". Lacerda sente-se insultado pelo fato de sua
bagagem ter sido colocada na portaria do palácio da Alvorada, onde
esperava hospedagem "oficial". Num segundo momento, Lacerda (e não
por acaso a 24 de agosto) pronuncia um violento discurso na
televisão acusando o presidente de intenções golpistas. Declara
ter sido duas vezes convidado pelo Ministro da Justiça, Oscar
Pedroso Horta, para participar do golpe (lembre-se que esta era
uma atitude comum a Lacerda; entre outras coisas, denunciara o
convite para participar do levante de Aragarças, em fins de 1959,
por seus próprios aliados, oficiais da Aeronáutica).
As denúncias de Lacerda causam um grande impacto e a Câmara
dos Deputados solicita o comparecimento do Ministro da Justiça. No
dia seguinte, após presidir as solenidades do Dia do Soldado,
Jânio envia ao Congresso documento apresentando sua renúncia à
presidência da República.
Aparentemente Jânio esperava voltar "nos braços do povo".
Confiava demais na "ignorância das massas" e naquilo que Max
Scheller chama "democracia das emoções". Confiava no temor dos
militares e da direita em geral com a "ameaça" da posse de João
Goulart (pois era o herdeiro de Getúlio, de memória associada a
temíveis pactos "comunistas" ou "sindicalistas"...). Confiava,
também, no temor da esquerda com a possível instalação de uma
junta militar no governo, se declarado acéfalo, pois o vice-
presidente encontrava-se em missão oficial na China. E assim,
contando otimisticamente com a repercussão na opinião pública
(afinal, eram seis milhões de votos!), entre os militares, na
direita e na esquerda, imaginava, talvez, o ressurgimento de um
novo "queremismo". Um "queremos Jânio" (num pastiche ao queremismo
getulista que garantira a volta de Vargas em 1950) que lhe daria
respaldo para reassumir a Presidência com poderes discricionários.
Talvez sonhasse mais longe, do exemplo de Getúlio para a história
de De Gaulle.
As intenções do presidente ficariam mais claras com o
depoimento de seu secretário de imprensa, Carlos Castello Branco,
que lhe atribui as seguintes declarações, ainda na Base Aérea de
Cumbica, onde se refugiara após a renúncia: "Não farei nada para
voltar, mas considero minha volta inevitável. Dentro de três
meses, se tanto, estará na rua, espontaneamente, o clamor pela
reimplantação do nosso governo. O Brasil, no momento, precisa de
três coisas: autoridade, capacidade de trabalho e coragem e ra-
pidez nas decisões. Atrás de mim não fica ninguém, mas ninguém,
que reúna esses três requisitos" (Realidade, nov., 1967).
Não houve a esperada comoção popular. Não havia, aliás, nenhum
"dispositivo sindical" — como ocorreria para a posse de Goulart —
que pudesse ser mobilizado para neutralizar a renúncia. Jânio
incompatibilizara-se com o movimento sindical pela própria
política de "despolitizar" o Ministério do Trabalho e a
Previdência Social.
A maioria no Congresso, representada pela aliança PSD-PTB,
prontamente aceitou a renúncia. O presidente da Câmara, Ranieri
Mazzili, assume a Presidência, interinamente, e a questão da
investidura de Goulart passa a dominar o cenário político, numa
gravíssima conjuntura conspiratória e golpista, a partir do
momento em que os ministros militares deixaram clara sua oposição
à posse do vice-presidente. Pela ação legalista liderada pelo
governador gaúcho Leonel Brizola e pelo comando do III Exército,
com apoio de amplos setores sociais e políticos, o golpe é evitado
e o parlamentarismo é adotado como solução de compromisso. João
Goulart assume a chefia do governo a sete de setembro, iniciando
uma breve experiência parlamentarista. Seu governo, marcado por
inúmeras crises, porém polarizador da mais intensa mobilização
social e política da história brasileira contemporânea,
contribuiria para acuar a direita em posições cada vez mais gol-
pistas e reacionárias.
Se a argumentação que atesta a tentativa de golpe de Jânio tem
sérios respaldos — inclusive pelas suas declarações posteriores —
é preciso levar em conta, igualmente, o clima altamente
"golpista", alimentado por Lacerda e seguidores. Seria possível
falar, talvez, de dois golpes em marcha; o de Jânio, pela volta ao
governo com poderes especiais, e o de Lacerda, que certamente
ainda acalentava o "estado de exceção" defendido abertamente desde
os tempos de Getúlio Vargas. Seria um golpe da direita militar, a
mesma que tentaria, em vão, impedir a investidura constitucional
do vice Goulart. Nesse sentido, o golpe gorado de 1961, para
Lacerda ou para Jânio, fora um ensaio de 64.

* * *

Do ponto de vista do desempenho de Jânio, retoma-se o tema da


campanha contra a corrupção. Parece evidente que há muito mais
oportunismo (e nenhuma ingenuidade) neste estilo que pretende fa-
zer crer na força intrínseca da austeridade e da honestidade para
impulsionar o desenvolvimento e consolidar a justiça social. Em
momento algum entram em causa o questionamento do regime
capitalista, as relações de forças, o problema das classes, enfim.
Aliás, o janismo nunca foi um movimento para organizar as massas,
mas para manipulá-las, no pior sentido do populismo autoritário e,
justamente, desmobilizador no plano da verdadeira participação.
Convém lembrar, ainda, que a vassoura não era o símbolo
inocente que sua inspiração doméstica pode insinuar. Mesmo
apelando para as imagens mais tolas, a vassoura tanto pode servir
para varrer, como para, na superstição popular, afastar visitantes
indesejáveis. Na discussão sobre o moralismo janista já se disse
que a varredura implicava em diversas versões de "sujeira". Que
podia ser a "sujeira da corrupção", como também a da "plebe" que
quer se mostrar — em toda sua "sujeira" — participar, rei-
vindicar... "sujar o palco", enfim (Souza e Lamounier, op. cit.).
O mais importante é entender que o império da vassoura
preparou o caminho para o domínio da espada. A política
autoritária e mesquinha, inspirada na máxima "governar é punir",
transformara o país num imenso quartel de inquisição. O incentivo
às delações, o aplauso às "apurações rigorosas" (em muitos casos
sem direito aos processos competentes de defesa) nas numerosas
comissões de sindicâncias, com a responsabilidade centralizada nas
mãos dos militares, abriria o caminho para a instalação do esquema
burocrático-punitivo após 64.
Ainda quanto aos militares, observe-se que a impetuosidade e o
empirismo do presidente no trato das graves questões econômicas e
administrativas permitia a eclosão das divergências entre seus
ministros (sobre remessa de lucros, sobre a 204, etc.) e tornava
inviável a proposta de uma assessoria técnica para o planejamento.
Tal situação levaria os militares aos postos realmente importantes
do governo, especialmente os membros da Casa Militar, que,
organizada e ativa, incumbia-se das grandes tarefas — como, por
exemplo, os encontros com os governadores nos estados — e da "luta
contra a corrupção e a subversão". Assim, o governo Quadros teria
contribuído decisivamente para reforçar o papel "avalista" das
Forças Armadas, na linha seguida após 64, e na antiga lição dos
liberais em descaminho, de que "fora do Exército não há salvação".
O estilo de Jânio e sua renúncia contribuíram, também, para a
desmoralização do processo eleitoral e, conseqüentemente, da
participação democrática. Significa o desprezo, profundamente
arraigado no pensamento elitista (do qual o populismo acaba sendo
o outro lado da moeda), pela legitimidade da participação popular.
A descrença consagrada de que "o povo não sabe votar" termina por
se tornar uma potente arma ideológica da direita, para incutir no
povo a percepção negativa de seus direitos políticos de cidadãos.
Se seu voto nada vale, para que votar? É nesse sentido que se pode
falar, como o jornalista Mino Carta, que "homens como Jânio
contribuíram para manter o Brasil distante da contemporaneidade".
É nesse sentido que ao janismo não interessa, efetivamente, o
desenvolvimento político e social do país. A demagogia teatral, o
moralismo maniqueísta, o personalismo arrogante, só podem vingar
no atraso decorrente da fragilidade das instituições e da mani-
pulação das classes populares.
Como indica Francisco Weffort, "o populismo trás em si a
inconsistência que conduz inevitavelmente à traição. Não obstante,
o mais hipócrita dos populistas nunca pode ser totalmente infiel à
sua massa; ele trairá, mas há limites para a traição além dos
quais a imagem do líder começa a se dissolver". Vinte anos
transcorridos após a renúncia, o ex-presidente não consegue
explicar o gesto. A traição à massa talvez esteja mais clara numa
de suas declarações significativas: "O verdadeiro estado democrá-
tico é o elitário" (Jornal do Brasil, 29/4/76).
Retomando a análise de Weffort, "donde vem a força que a massa
ilusoriamente atribui ao líder? Dela mesma, evidentemente. Quadros
foi apenas uma expressão do impulso popular, sua ideologia ambígua
foi apenas a expressão mistificada e mistificadora das condições
de existência do proletariado, num momento determinado de sua
formação como classe". Mas o falso carisma e os vícios do
populismo autoritário são rechaçados, e cada vez com mais vigor, à
medida que os trabalhadores organizam-se. E dirigem seu movimento,
a partir das bases e com lideranças autênticas, para a construção
da democracia.

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Revisão: Argo – www.portaldocriador.org


INDICAÇÕES PARA LEITURA

1. Não existe, de meu conhecimento, uma obra de história


política específica sobre o desempenho da presidência Jânio
Quadros. O trabalho de maior fôlego, até o momento, ainda é a tese
inédita de Brás José de Araújo (Paris, 1970), que analisa o
período em termos das contradições entre capitalismo dependente e
política externa independente. A tradução encontra-se no prelo da
Editora Graal.
O livro de Mário Victor, Cinco Anos que Abalaram o Brasil,
Civilização Brasileira, 1965, constitui útil fonte de consulta com
uma abordagem jornalística e interpretação pessoal favorável a
Jânio Quadros. Igualmente favorável é o livro de Castilho Cabral,
Tempos de Jânio e Outros Tempos, Civilização Brasileira, 1962, e o
de Viriato de Castro: O Fenômeno Jânio Quadros, edição pessoal,
1959 (este abrange só até o governo estadual, e é muito engra-
çado!).

2. As análises de Francisco Weffort são fundamentais para a


compreensão do fenômeno janista e o sentido desse novo populismo.
Ver, principalmente: "Raízes Sociais do Populismo em São Paulo",
Revista Civilização Brasileira, nº 2, 1965; O Populismo na
Política Brasileira, Paz e Terra, 1978, e "Algumas Questões para a
História do Período 1945-1964", Revista de Cultura Contemporânea,
CEDEC, nºs 1e 2, 1979 e 1980.
O significado do governo Quadros (e as relações com o sistema
partidário), ainda durante sua vigência, é analisado por Guerreiro
Ramos em A Crise do Poder no Brasil, Zahar, 1961. Ver, também,
dois excelentes artigos: o de Hélio Jaguaribe, "A Renúncia do
Presidente Quadros e a Crise Política Brasileira", Revista
Brasileira de Ciências Sociais, nº 1, 1961; e o de Maria do Carmo
Souza e Bolívar Lamounier: "Jânio, Três Momentos na Vida de um
Político", Revista Isto É, nº 4, agosto de 1976.

3. Do ponto de vista do janismo, eleições e partidos


políticos, existem vários bons artigos. De Oliveiros Ferreira:
"Comportamento Eleitoral em São Paulo", Revista Brasileira de
Estudos Políticos, nº 8, abril de 1960. De Gláucio Soares:
"Classes Sociais, Strata e as Eleições Presidenciais de 1960",
Revista Sociologia, nº 3, 1961. De Bolívar Lamounier e Fernando
Henrique Cardoso os capítulos 2 e 3 do livro Os Partidos e as
Eleições no Brasil, Cebrap/Paz e Terra, 1975. De Paulo Singer, "A
Política das Classes Dominantes" in Octavio Ianni e outros,
Política e Revolução Social no Brasil, Civilização Brasileira,
1965. E uma boa análise do janismo, quando esteve associado aos
movimentos populares em São Paulo (as Sociedades de Amigos de
Bairros) encontra-se na tese de José Álvaro Moisés: Protesto
Urbano e Democracia, no prelo. Sobre as relações da União Demo-
crática Nacional com Jânio e o moralismo, assim como sobre a
história da campanha presidencial de 1960, ver, de Maria Victoria
Benevides: A UDN e o Udenismo, Paz e Terra, 1981.
4. As memórias de Afonso Arinos de Melo Franco são importantes
para se ter uma "visão de dentro" da política externa e das
contradições no próprio governo: A Escalada (1965) e Planalto
(1968), Editora José Olympio. Carlos Estevam Martins, em Brasil—
Estados Unidos dos 60 aos 70 (Cadernos CEBRAP nº 9, 1972), aborda
a política externa no âmbito das propostas nacionalista e
desenvolvimentista. Um estudo formal da ideologia, através dos
discursos do presidente Quadros, é feito por Miriam Limoeiro
Cardoso em Ideologia do Desenvolvimento: Brasil JK, JQ, Paz e
Terra, 1978. Para os que desejam compreender melhor a extensão da
política externa, nos governos Jânio e Goulart, ver de San Tiago
Dantas: Política Externa Independente, Civilização Brasileira,
1962, e de José Honório Rodrigues: "Uma Política Externa Própria e
Independente", in Política Externa Independente, nº 1, maio 1965.

5. Uma avaliação do governo, incluindo as "razões da renúncia"


— em versão supostamente oficial, pois avalizada pelo ex-
presidente — encontra-se no Vol. VI de História do Povo
Brasileiro, de Afonso Arinos e Jânio Quadros, J. Quadros Ed.,
1968.

6. O capítulo de Manoel Maurício de Albuquerque em Pequena


História da Formação Social Brasileira (Graal, 1981) aponta as
contradições e dificuldades do governo Quadros no contexto das
relações de classes.
O de Thomas Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castello (Paz e
Terra, 1970), contém um útil resumo do governo, com boas
referências bibliográficas.

7. Sobre a posição da esquerda frente ao governo ver os


números 36 e 38 da Revista Brasiliense, com artigos, entre outros,
de Caio Prado Jr. e Theotônio dos Santos (1961) e a coleção do
semanário Novos Rumos.
Sobre a Autora

Maria Victoria de Mesquita Benevides Soares é socióloga, com


mestrado e doutorado em Ciência Política pela Universidade de Sâo
Paulo. Integra a direção do Centro de Estudos de Cultura Contempo-
rânea, CEDEC, onde participa dos trabalhos de pesquisa (Movimentos
Sociais e Direitos de Cidadania) e do Setor de Documentação,
voltado especificamente para a problemática das classes populares.
É autora de dois livros: Governo Kubitschek, Desenvolvimento
Econômico e Estabilidade Política (1976) e A UDN e o Udenismo,
Ambigüidades do Liberalismo Brasileiro (1981), ambos editados pela
Paz e Terra. Com Francisco Weffort e Bolívar Lamounier editou o
volume Direito, Cidadania e Participação (T. A. Queiroz, Ed.,
1981), resultado de um seminário nacional, do mesmo nome,
realizado sob o patrocínio da Ordem dos Advogados do Brasil, em
1979.
Trabalha, atualmente, numa pesquisa do CEDEC sobre Violência
Urbana. Neste campo publicou, a partir de uma solicitação da Co-
missão de Justiça e Paz de São Paulo: "Linchamentos, Violência e
'Justiça' Popular", in revista Espaço e Debates, nº 3, Ed. Cortez,
1981.
É colaboradora do Dicionário Histórico-Biográfico e do
Departamento de História Oral do CPDOC, da Fundação Getúlio
Vargas, Rio.
Nasceu no Rio de Janeiro em 1942.
É mãe de Daniel, André e Marina.

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