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Análise historiográfica do tema

Quando se trata sobre a reconstrução constitucional do país, a historiografia conta com


poucos trabalhos, posto ser um tema mais comum à Ciência Política e à Sociologia. Todavia,
mais significativo é o número de obras historiográficas que cuidam do período anterior à
redemocratização. A Ditadura Civil-Militar, efetivada no Brasil a partir de 1964, foi marcada
pelo Estado repressor e a violação aos direitos humanos. O interesse por esse momento da
história brasileira cresceu nos últimos anos graças à permissão de acesso aos documentos
oficiais do Estado brasileiro, até então mantidos em sigilo, e a instalação da Comissão Nacional
da Verdade1, cujos trabalhos se deram de 2011 a 2014, ano em que se recordou os 50 anos do
golpe.

Importantes obras da Ciência Política e da Sociologia tentaram explicar o golpe de 1964 e a


ditadura que se seguiu sob uma ótica de análise estrutural. Esta, por sua vez, estava amparada
pelo determinismo das circunstâncias econômicas ou na relevância de elementos institucionais
e políticos. Assim, os trabalhos mais sólidos podem ser agrupados em três correntes, a saber:
as tentativas de teorização da Ciência Política, as análises marxistas e a valorização do papel
desempenhado pelos militares (Carlos FICO – Revista Brasileira de História, v. 24 nº 47, 2004,
p. 42;).

Sobre o papel desempenhado pelas Forças Armadas, a obra de Alfred Stepan (1975), joga luz
ao modo como a instituição militar, ao contrário de ser autônoma, reage às transformações
ocorridas no campo político. A falha no funcionamento das instituições civis e a quebra da
disciplina e da hierarquia militar engrossavam o caldo da crise nos anos de 1960. Somado a
isso, a crescente instabilidade política, causada pelos conflitos sociais que demandavam
reformas radicais na estrutura do Estado brasileiro, levou à reação dos militares que culminou
no golpe de estado. Embriagados pelo que depois seria chamado de “utopia autoritária”2, os
militares passaram a supor a necessidade de um governo militar autoritário que pudesse fazer
mudanças radicais e eliminar atores políticos (STEPAN, 1975, p. 124). Apesar de inconsistências
históricas e na superficialidade de algumas análises realizadas pelo autor, principalmente
acerca da ideologia militar anterior ao golpe, sua obra é fundamental por apontar a
necessidade de analisar a atuação dos militares considerando seus aspectos particulares,
enquanto grupo especializado, e os gerais, em relação à sociedade (FICO, 2004, p. 43).
Ademais, publicada no contexto da ditadura, o estudo foi elementar para divulgar o tema, já
presente nas Ciências Sociais e Políticas, entre os historiadores.

Analisando o fenômeno do populismo, Francisco Weffort (1980 – O populismo na política


brasileira), defendeu a tese de que o golpe de 1964 e a ditadura foram o resultado do
esgotamento do pacto “populista” realizado após a queda do Estado Novo. O autor critica a
visão liberal que define o populismo como a resultante da soma entre a demagogia dos líderes
aliada à ignorância da massa manipulada: “se o populismo foi uma manipulação, também foi
um modo de expressão de suas insatisfações” (WEFFORT, 1980, p. 62), ou seja, o autor define
o populismo como um modo de interlocução entre a Classe Trabalhadora e o Estado. Todavia,
por tratar-se de uma “forma pequeno burguesa de ação”, cedo ou tarde, o Estado trairia a
massa de trabalhadores.

A fundamental obra de Dreifuss (1981 – A Conquista do Estado) trouxe uma nova perspectiva
às análises ao descrever a campanha de desestabilização que culminou com o golpe de 1964.
1
Para mais informações sobre a CNV ver: <<http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/>>. Acesso em:
10/08/2018.
2
Ver – VISÕES DO GOLPE
Para o autor, a crise do populismo originou-se e desdobrou-se no âmago do conflito de classe
e da luta de classe. O “Complexo IPES-IBAD”, expressão organizacional e doutrinária dos
intelectuais orgânicos, possuía uma intensa ação entre os militares, cujo objetivo era envolver
o maior número de oficiais na mobilização popular contra o governo. O “Complexo IPES-IBAD”
significou a passagem de antigas tentativas de reforma dentro da lei para um golpe de Estado
que mudaria a constituição (DREIFUSS, 1981, 0. 145). O golpe de 1964 e a ditadura instalada
posteriormente foram frutos de uma ampla e sofisticada articulação política entre setores civis
e militares, ou seja, “a queda do governo ocorreu como a culminância de um movimento civil-
militar e não como um golpe das Forças Armadas contra Goulart” (DREIFUSS, 1981, p. 361).

Ao tratar das esquerdas políticas e da luta armada, Jacob Gorender (1987 – Combate nas
trevas) expõe o início dos anos de 1960 como o auge da luta de classes no Brasil, ocasião em
que a elite nacional percebeu seus privilégios ameaçados. Fundado na orientação teórica
marxista, o autor analisa o golpe a partir de uma perspectiva econômica e estrutural. Para
Gorender, a crise de um capitalismo brasileiro e a agitação revolucionária que se avolumava no
seio da sociedade e junto às forças de esquerda teriam sido as razões para o golpe de 1964 e a
ditadura subsequente.

Ainda sobre a atuação das esquerdas no período discricionário, Daniel Aarão Reis Filho (1990
– a Revolução faltou ao encontro) defenderia sua tese afirmando que o golpe de 1964 se deu
para garantir a hegemonia do capital internacional no bloco do poder (banqueiros,
empresários, industriais, latifundiários, comerciantes, políticos, magistrados e classe média).
Esta frente social ampla e heterogênea compartilhava do horror pelo protagonismo
crescente das classes trabalhadores pós-1945, fator que condicionaria “no interior das Forças
Armadas uma unidade que seria dificilmente concebível em condições normais” (1990, P.
57). Em outra obra, o autor analisa as consequências do período discricionário. A ditadura
reatualizou e exacerbou, no Brasil, a cultura autoritária e a cultura nacional-estatista.
Instaurada sob o signo do medo – medo da perda de privilégio, medo da redistribuição de
renda e do poder – a Ditadura Civil-Militar conservou e consolidou as desigualdades (REIS
FILHO, 2000 – Ditadura Militar, esquerdas e sociedade - ZAHAR, p. 42).

Para Carlos Fico (2004, p. 33 – versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar), após
o golpe de 1964, Castelo Branco foi complacente com as arbitrariedades da “linha dura”, que
adquiriram maior espaço ao longo dos anos. Esse dado revela o projeto repressivo baseado
numa “operação limpeza violenta e longeva”, presente desde os primeiros momentos do
golpe (FICO, 2004, p. 33-4). Os militares permitiram torturas e extermínios, mas sem praticá-
los com suas próprias mãos. Assim, o endurecimento do regime, marcado pelo AI-5, não foi o
chamado “golpe dentro do golpe”, mas o amadurecimento e a institucionalização de um
projeto repressivo.

Os estudos que cuidam do período da redemocratização brasileira são ainda reduzidos. Por
tratar de um período recente da história brasileira, este tema possui importantes e
significativos trabalhos produzidos pelas Ciências Sociais e a Ciência Política.

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