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O passado que não passa: três anos sem Marielle

O covarde assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) e do seu motorista,


Anderson Gomes, completa três anos sem que as autoridades competentes saibam
responder a pergunta elementar: quem mandou matar Marielle e por que? A
sofisticação do crime e o evidente caráter político de sua execução trouxe de volta
aquela realidade presente durante a Ditadura Militar quando defensores dos direitos
humanos, das liberdades democráticas e das lutas anticapitalistas eram sequestrados,
torturados e assassinados por agentes do Estado sem que qualquer investigação ou
punição fosse aplicada aos responsáveis.
Se até hoje não é possível apontar o mandante do assassinato de Marielle e Anderson,
é um óbvio ululante que as milícias cariocas, máfias que dominam territórios e agem
sobre decisões políticas, sãos responsáveis pelo crime. É plausível afirmar que, mesmo
após a Constituição de 1988, o Brasil segue contando com Esquadrões da Morte
(grupos de extermínio como aqueles comandados pelo delegado Fleury, na Ditadura
Militar) que, em conluio com grupos políticos, integram as polícias e corrompem os
agentes do Estado no exercício da violência contra a população civil.
As munições calibre 9 mm que mataram Marielle e Anderson pertencem ao mesmo
lote daquelas utilizadas na maior chacina do estado de São Paulo, em 2015, quando 23
pessoas foram assassinadas e sete ficaram feridas, num intervalo de duas horas, em
ataques ocorridos nas cidades de Osasco e Barueri. Até hoje não sabemos como essas
munições foram desviadas, mas é tácito que trata-se de lote separado para cometer
crimes e ações por parte de grupos, inseridos no sistema repressivo, que atuam
contando com financiamento, aparato técnico e treinamento do Estado.
Tudo ficou ainda mais escandaloso quando descobriu-se que o acusado de efetuar os
disparos contra Marielle e Anderson, Ronnie Lessa – ligado ao contrabando de armas e
às milícias -, era vizinho do atual presidente da República e recebeu, no dia do crime, o
seu cúmplice, Élcio Queiroz, cujo registro de visita remete à casa 58, de Jair Bolsonaro,
não à casa 65, de Ronnie Lessa. O filho 03, Carlos Bolsonaro, estava presente no
condomínio durante o horário da reunião, de acordo com vídeo publicado por ele
mesmo, na internet. Ao ver que estava se auto incriminando, excluiu suas redes sociais
e sumiu por uns dias.
A ligação dos Bolsonaros com grupos de extermínio é antiga. Ronnie Lessa era o chefe
da milícia da comunidade Rio das Pedras, o mesmo lugar que o ex-assessor de Flávio
Bolsonaro, Fabrício Queiroz, se escondeu antes de ir a São Paulo, em dezembro de
2018, para tratar um câncer, no hospital Albert Einstein. Pouco tempo depois,
descobriu-se que dois promotores, ligados ao caso da morte de Marielle e Anderson,
fizeram campanha para o atual presidente. Vazamentos de trechos das apurações, de
interesse da família, mostraram acesso ilegal às investigações. Suspeitos de
envolvimento no crime também tinham fotos, na internet, ao lado de Bolsonaro e seus
filhos.
O que a morte de Marielle e Anderson traz à tona é o envolvimento do presidente da
República e do seu grupo político com suspeitos de terem participação em
assassinatos políticos. Marielle - mulher, negra, lésbica, nascida e criada na favela da
Maré, foi mãe jovem e correspondeu à exigência meritocrática ao chegar à pós-
graduação e ser eleita vereadora, em 2016, com mais de 46 mil votos – foi
covardemente assassinada numa tentativa de silenciar seu pensamento e eliminar a
sua luta. Trata-se de um crime político executado pelas milícias à serviço da extrema-
direita que, atualmente no poder, oferece uma série de medidas que facilita o acesso e
o comércio de armas, a cooptação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal
com o apoio de integrantes das Forças Armadas.
A covarde execução de Marielle escancarou a fragilidade da nossa democracia e
mostrou como a institucionalização secular da violência contra grupos marginalizados
leva a um senso comum que naturaliza agressões, massacres e torturas. Os assassinos
de Marielle carregam a mesma motivação que detinham os torturadores dos porões
da ditadura: eliminar a diferença para conservar a desigualdade. O cálculo sinistro que
nos faz viver, permanentemente, num passado que não passa.
A morte de Marielle e Anderson é símbolo do estado autoritário que avançou a partir
de 2016 e adquiriu contornos mais bem definidos com a eleição do atual presidente,
rebento das milícias cariocas. Solucionar a questão não é apenas resolver um caso
qualquer de homicídio, mas oferecer o respiro necessário à nossa democracia sufocada
e consolidar as liberdades democráticas conquistadas com milhares, milhões de vidas
ao longo da nossa história. Quem mandou matar Marielle e por que? Sem essa
resposta, seguiremos com nossa democracia incompleta e vulneráveis ao
autoritarismo.

Carla Teixeira – Doutoranda em História na UFMG.

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