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FICHAMENTO: CHALHOUB, S. ; PEREIRA, L. A. M. A História Contada.

Capítulos de História Social no Brasil. São Paulo, Nova Fronteira, 1998.

“As políticas de dominação vigentes na sociedade brasileira do século XIX


poderiam ser apropriadamente descritas como paternalistas. A característica comum a
tais políticas de domínio era a imagem da inviolabilidade senhorial. (...) Machado de
Assis foi mestre nesses meandros e expositor arguto de tal tecnologia de dominação.” P.
95
“Não existe lugar social fora das formas instituídas – formalmente, mas também
pelo costume – de hierarquia, autoridade e dependência. Os sujeitos do poder senhorial
concedem, controlam uma espécie de economia de favores, nunca cedem a pressões ou
reconhecem direitos adquiridos em lutas sociais. Fora dos referenciais da verticalidade,
haveria apenas pulverização sem existência social.” P. 96
“Em outras palavras, na ideologia do paternalismo, tomada em seus próprios
termos, de modo transparente, é central o sentido de ocultamento de interesses e
solidariedades horizontais entre os ‘dominados’, ‘subordinados’, subalternos’,
‘dependentes’. O que interessa é notar que, em semelhante acepção, o paternalismo é
apenas o mundo idealizado pelos senhores, a sociedade imaginária que eles sonhavam
realizar no cotidiano – sonho impossível, no qual Estácio e Bentinho ainda puderam
acreditar, talvez ingenuamente, mas que Brás Cubas e Dom Casmurro aprenderam a
glosar perfeitamente, em parte, por auto-comiseração diante da consciência da derrota.”
P. 97
“O fato é que a alteridade, a diferença, vazava a rotina mesmo do diálogo
inevitável entre sujeitos socialmente desiguais. Machado de Assis foi um intérprete
incansável do discurso político possível aos dominados em tais situações que, posto que
rotineiras, traziam sempre o risco do deslize, da palavra dita em má hora, provocando
em contrapartida os atos de agressão e humilhação dos detentores das prerrogativas
senhoriais.” P. 97
“A vigência do enredo da dominação paternalista não significava que os
subordinados estavam passivos, incapazes de perseguir objetivos próprios. Ao contrario,
o desafio de Helena, Luís Garcia, Capitu e tantos outros era afirmar a diferença no
centro mesmo dos rituais da dominação senhorial.” P. 99
“O antagonismo entre senhores e dependentes é claro e passível de análise para
Helena – a moça, afinal, está ciente da fragilidade de sua posição, e tenta esculpir a
própria sobrevivência a partir de tal percepção. (...). Estamos na década de 1850,
período que na memória política construída no século XIX configurou-se como o
apogeu do Segundo Reinado. (...). Por conseguinte, Estácio está ‘satisfeito consigo
mesmo’ [H279], exercendo como que naturalmente os ‘direitos e deveres que lhe davam
a idade e a classe em que nascera’ – ‘direito e deveres’ esses que ‘ele não cedia nem
esquecia’. Em outra palavras, Estácio, postado diante do espelho da alcova, aparece
como o representante de uma dominação incontestada, orgânica, virtuosa, abençoada
pela religião e polida pela ciência.” P. 103
“Em Iaiá Garcia, romance publicado originalmente em 1878, a narrativa se
move ostensivamente para os anos que o próprio Machado percebia como decisivos na
crise do paternalismo – 1866 a 1871 -, sendo então traçado um amplo painel das
mudanças históricas do período.” P. 104
“Brás Cubas e Dom Casmurro, herdeiros de senhores e possuidores de terras e
escravos, eles mesmos senhores e possuidores de escravos e confortáveis propriedades
nos agitos da Corte, são os narradores de suas próprias histórias.” P. 108
“As Memórias reescrevem Helena não apenas nos comentários gerais,
estruturais, sobre dominação social. Há também a atenção para o processo, a
preocupação em descrever transformações históricas. (...), o ano de 1850, no qual
ocorreu a aprovação da lei que resultou na extinção definitiva do tráfico africano,
aparece como decisivo nos dois romances.” P. 110.
“Em Dom Casmurro, Machado de Assis volta a abordar as transformações
históricas que haviam sido centrais à realização de Iaiá Garcia. Os riscos potenciais que
correm os dependentes nesses diálogos políticos cotidianos é um dos temas fundantes
no romance. No momento em que os detentores das prerrogativas senhoriais começam a
desconfiar da autenticidade dos movimentos dos subordinados – passando a atribuir-
lhes capacidade de representação, de teatralização -, então ficam prestes a adotar a visão
de que esses são sempre e universalmente falsos, enganadores e mentirosos. Dom
Casmurro é uma alegoria da experiência da derrota de todo um projeto de dominação de
classe.” P. 115.
“Dom Casmurro, o narrador do romance, é concebido em março de 1871 – logo
após a subida ao poder do Gabinete Rio Branco, que aprovaria a lei do Ventre Livre-, no
exato instante em que os olhos de ressaca de Capitu tragam o cadáver de Escobar,
provocando a suspeita de adultério no herdeiro dos Santigo. Além de Escobar, é
Bentinho quem morre nesse momento. Aqui, mais uma vez, o drama doméstico relatado
é metáfora política. Torturado pela derrota política cujo maior símbolo talvez tenha sido
a aprovação da lei de 1871, procurando refletir sobre semelhante experiência dentro dos
hábitos de pensamento da classe senhorial, Dom Casmurro empunha a pena para
demonstrar que fora vitimado pela ingratidão dos dependentes.” P. 116.
“Dom Casmurro descobre em Capitu uma capacidade que já observamos em
Helena, Luís Garcia, mesmo em dona Plácida: ela consegue penetrar a lógica senhorial,
desvendá-la, e então interpretar corretamente as motivações e atitudes de seus
antagonistas de classe. As pessoas não são boas ou más, como pensa Bentinho, apenas
expressam seus preconceitos sociais e culturais.” P. 118
“O sentido político das artimanhas narrativas de Dom Casmurro é claro. Em
Brás Cubas, diz-se que o menino é pai do homem; Em Dom Casmurro, a menina é mãe
da mulher. A traição estava na natureza de Capitu; era a sua terra e o seu estrume.
Lendo a metáfora, encontramos a notação senhorial possível para a ideia de
antagonismos de classe e para a experiência da derrota política: traição dos
dependentes.. Sem que sujeitos da história, os dependentes traem os senhores. Se é esta
a única clave possível, podemos ficar aliviados. Capitu comeu Escobar.” P. 120.

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