Você está na página 1de 29

10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

anais da intentona

A TEIA DO GOLPE DE 8 DE JANEIRO


Como políticos, militares e policiais se juntaram para golpear a democracia no Brasil

Ana Clara Costa | Edição 201, Junho 2023

A+ A- A

U
m telão fora instalado na biblioteca do Palácio da Alvorada no dia 29 de outubro do ano
passado. No dia seguinte, a partir das 17 horas, começou a se projetar ali a apuração de
votos doutiliza
A Folha segundo turno
cookies pelo Tribunal
e tecnologias Superior
semelhantes, Eleitoral
como (TSE). Sentado numa poltrona de
explicado
em nossa
couro modeloPolítica de Privacidade,
Barcelona, para recomendar
do arquiteto conteúdo e norte-americano
alemão naturalizado OK
Mies van der
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais
Rohe, Jair Bolsonaro tomava nota das oscilações na contagem. A cada atualização do gráfico em
minha conta condições. a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 1/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

que seu desempenho recuava e o de Lula avançava, Bolsonaro escrevia o número numa folha
branca – e franzia a testa.
– Tá vendo! Tá vendo! Eu falei! Isso aí é golpe!
Desde a volta da democracia ao país, pela primeira vez um presidente acompanhava a apuração
na companhia de dois generais: Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ministro da Defesa, e Marco
Antônio Freire Gomes, comandante do Exército. Naquela noite, ambos assentiam a cada
afirmação do presidente de que a apuração não era uma coisa séria. Às 18h44, quando Lula
passou à liderança, um incômodo tomou conta do ambiente. Bolsonaro parecia intuir que o jogo
havia acabado. Nos 72 minutos decorridos entre a virada do petista e o anúncio oficial do
resultado, às 19h56, o ar se tornou irrespirável na biblioteca. E Bolsonaro estava incrédulo.
Com a derrota já decretada, chegaram seus filhos, Flávio e Eduardo, que assistiram à apuração
em suas casas e vieram com suas mulheres. Carlos estava rompido com o pai. Michelle
permanecia no Palácio com as duas filhas, mas não acompanhou a contagem ao lado do marido.
O telefone não parava de tocar, com ligações de ex-ministros, aliados e do presidente do pl,
Valdemar Costa Neto. A maior parte esbarrava no coronel Mauro Cid, o ajudante de ordens.
Bolsonaro não queria falar com ninguém. Ficava irritado com o tom de lamento das conversas.
Recolheu-se por volta de meia-noite.
A derrota não estava nos planos de Bolsonaro. Sempre esteve convicto de que seria reeleito
mesmo com as “fraudes”. No último tracking do PL, feito na véspera da eleição, ele aparecia à
frente de Lula, embora dentro da margem de erro. A pesquisa, feita pelo Instituto Paraná, era um
unicórnio – todos os demais institutos apontavam vitória de Lula, por uma margem estreita.
Bolsonaro ficara especialmente animado com um tracking do dia anterior, encomendado pelo
PSD, de Gilberto Kassab. Mostrava que ele abrira 20 pontos sobre Lula no estado de São Paulo.
Nas contas do partido, bastavam 15 pontos de dianteira no eleitorado paulista para que
Bolsonaro fosse reeleito. No fim, teve 10 pontos.
Na campanha, Bolsonaro media a temperatura de acordo com sua recepção nos aeroportos.
“Mesmo com fraude, vou ganhar. Em 2018, eu botava mil pessoas no aeroporto. Hoje, estou
botando 20 mil”, dizia a aliados. Por um lado, imperava a autoconfiança. Por outro, a máquina
pública se movia para garantir a vitória. No abuso da máquina, Bolsonaro atingiu um novo
patamar, com uma gastança bilionária, que chegou perto dos 300 bilhões de reais. No abuso de
poder, adotou uma estratégia jamais vista no regime democrático: cooptou grande parte das
forças policiais, aparelhou as Forças Armadas e encilhou um partido político. Tudo às claras,
incluindo até reunião com o corpo de diplomatas estrangeiros no Brasil, sempre com a intenção
de tumultuar o processo eleitoral e insuflar apoiadores para uma virada de mesa – uma crônica
cujos detalhes a piauí reconstituiu durante três meses de apuração.

N
o dia 4 de outubro, dois dias depois do primeiro turno em que Lula chegou na frente, o
diretor geral da Polícia Federal, Márcio Nunes de Oliveira, fez uma reunião virtual com os
superintendentes da corporação. Pediu foco total para coibir crimes eleitorais. A ordem
A Folha utiliza cookies e tecnologias semelhantes, como explicado
produziu
em nossaum certodeestranhamento
Política – afinal
Privacidade, para de contas,
recomendar combater
conteúdo e esse tipo de crime era a
principalpublicidade.
função daAo PFnavegar por nosso
em qualquer conteúdo,
eleição. o usuário
Duas semanas aceita tais em 19 de outubro, o tema
depois,
minha conta condições. a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 2/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

motivou outra reunião, desta vez com a Polícia Rodoviária Federal (PRF). Convocado com
apenas dois dias de antecedência, o encontro tinha de ser presencial, em Brasília. Celulares e
relógios, ou qualquer aparelho capaz de fazer registros, estavam proibidos.

Na reunião, reconstituída pela piauí a partir de entrevistas com duas testemunhas, o então diretor
da PRF, Silvinei Vasques, foi direto: pediu fiscalização rigorosa no Nordeste e em eleitores do PT.
Ponderou que Bolsonaro fora generoso com a PRF e deveria se reeleger. Os agentes precisariam
ficar de olho em qualquer ilegalidade de trânsito, atentando para veículos com documentação
irregular, falta de capacetes ou equipamentos de segurança vencidos. Numa indicação de que
todos sabiam que a conversa era imprópria, nada disso foi colocado na ata do encontro, segundo
apurou o jornal O Globo.

Enquanto a PF e a PRF eram acionadas, a então diretora de inteligência do Ministério da Justiça,


Marília Ferreira de Alencar, fez dois boletins de inteligência a pedido do então ministro da
Justiça, Anderson Torres. O primeiro listava os municípios em que Lula e Bolsonaro tiveram
mais de 75% dos votos, divididos por estado. Para Lula, a maioria estava no Nordeste. Para
Bolsonaro, no Sul. O segundo boletim mapeava a localização dos efetivos da PRF nos estados.
Conjugadas, as duas planilhas continham dados úteis. Torres podia saber quantos agentes da
PRF era possível deslocar para as regiões onde cada candidato era mais forte – e calcular o custo
à pasta em viagens e horas extras. Depois de enviar as planilhas ao ministro, Alencar, ela também
delegada da PF, excluiu os boletins do sistema.
(Poucos meses mais tarde, na apuração dos atos golpistas do 8 de janeiro, a servidora voltou a
apagar rastros. Ela chefiava a equipe de inteligência de Torres no governo do Distrito Federal
quando a Esplanada foi invadida. Chamada para depor na CPI dos Atos Antidemocráticos na
Câmara Distrital de Brasília, a delegada, antes de ser ouvida, foi à sede da PF pedir aos colegas
para eliminar os arquivos de seu celular. Sumiu ali um dos boletins eleitorais que havia enviado
a Torres.)
Na segunda-feira, 24 de outubro, seis dias antes do segundo turno, o superintendente da PF da
Bahia, Leandro Almada da Costa, foi avisado de que receberia as visitas de Torres e Nunes de
Oliveira, o diretor-geral da PF. Não havia uma pauta, a visita era uma surpresa e nem constava
na agenda do ministro. Na noite de terça, a dupla chegou a Salvador em avião da Força Aérea
Brasileira, com assessores. O encontro se deu na manhã seguinte. Torres informou que havia
suspeitas de compra de voto na Bahia, onde Lula cravara 69,7% no primeiro turno. O ministro
citou um áudio em que um indivíduo denuncia ter sido coagido por um petista à saída de sua
zona eleitoral em Salvador. O áudio fora amplamente divulgado e já tinha sido apurado pela PF,
que concluíra: era fake news. No fim da conversa, Torres sugeriu que a PRF apoiasse as operações
da PF. Os federais estranharam a sugestão porque tal apoio não era praxe e a corporação
rodoviária se tornara abertamente um braço do bolsonarismo.
Na sexta-feira 28, todas as superintendências da PF receberam as listas dos municípios com mais
“suspeitas” de compra de votos. Na Bahia, sentindo cheiro de armação, os policiais federais não
deram bola nem para a lista, nem para o apoio da PRF. Mas os agentes rodoviários estavam a
todo vapor, fazendo
A Folha operações
utiliza cookies atípicas na
e tecnologias Bahia, Piauí,
semelhantes, Alagoas,
como Ceará, Paraíba e Sergipe. Ao
explicado
em nossa
montar uma Política
blitz em de onde
locais Privacidade,
nuncapara recomendar
haviam conteúdo
aparecido, e
os patrulheiros espantavam o trânsito
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais
de quem estivesse com veículo irregular,
condições.coisa comum nas vans, ônibus e motos de circulação
minha conta a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 3/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

municipal. A medida logo suscitou suspeitas no PT. O deputado Paulo Teixeira (PT-SP) entrou
no sábado com um pedido no TSE para que a fiscalização fosse interrompida. Na mesma noite, o
ministro Alexandre de Moraes proibiu as operações que estavam atrapalhando o fluxo de
eleitores.
Na madrugada do segundo turno, porém, Silvinei Vasques enviou ofício orientando seus
superintendentes a ignorar a decisão do ministro, pois tudo que era recomendado ali, dizia ele, já
estava sendo feito pela corporação. Os rodoviários em campo, alheios ao cunho político da
empreitada, começaram a estranhar a quantidade incomum de efetivo nas estradas e o rigor
exigido pelas chefias na abordagem, como pedir para que tirassem fotos de cada veículo parado e
exigissem documentação até de passageiros – não só do condutor. A deputada Alice Portugal
(PCdoB-BA), que fundou a Frente Parlamentar em Defesa da PRF, recebeu ligações de agentes
nas estradas denunciando os abusos. Em contato com o chefe da PRF baiana, Virgílio Tourinho,
ela questionou a operação. “Ele me disse: ‘Não, deputada, é apenas uma operação de trânsito.’
Eu disse que a polícia rodoviária estava deixando de ser uma polícia cidadã para se tornar uma
polícia partidarizada. Ele foi completamente conivente com tudo”, diz a deputada.
No fim do dia, a despeito da alegação de que coibiriam crimes em todo o país, 49,5% das
operações se concentraram no Nordeste, onde Lula liderava. No Sul, reduto de Bolsonaro, apenas
8,74%. Houve mais agentes deslocados para o Nordeste do que para o Sudeste, região mais
populosa do país. No STF, Alexandre de Moraes convocou Vasques para dar explicações e
chegou a consultar colegas sobre prorrogar o horário de votação. Decidiu manter tudo como
estava, desconfiado de que os bolsonaristas usariam o adiamento para tumultuar o processo
eleitoral. Na PF, havia expectativa de que o chefe da PRF fosse preso naquela mesma noite, o que
nunca ocorreu.
Vasques foi exonerado ainda em 2022 e se aposentou com salário integral. É réu por improbidade
administrativa, depois de ter pedido votos para Bolsonaro em suas redes sociais, enquanto
coordenava o boicote a eleitores no Nordeste. “Vote 22”, postou ele, com uma bandeira do Brasil.
Também é investigado por omissão quando caminhoneiros bloquearam as estradas do país, nos
dias que se seguiram às eleições. A PRF não conseguia romper os bloqueios, mas até torcidas
organizadas de futebol conseguiam. A atual gestão da PRF quer cassar a aposentadoria de
Vasques.

O
influenciador bolsonarista Oswaldo Eustáquio, preso em duas ocasiões por incitar atos
antidemocráticos, vive no Paraguai, asilado. Ele ajudou a montar dois acampamentos de
bolsonaristas em frente de quartéis, depois da derrota de Bolsonaro, em Curitiba e em
Brasília. “Não havia uma organização, uma ordem. Quando Lula ganhou, todo mundo foi
organicamente. Eu fui de imediato para o quartel-general do Exército de Pinheirinho, em
Curitiba, e organizei tudo por lá. No começo de novembro, fui para Brasília e ajudei a montar. A
primeira coisa que fiz foi criar um estúdio de podcast, para entrevistar quem passava por lá,
como o [Frederick] Wassef, advogado do Bolsonaro”, conta.
A Folha utiliza
O acampamento cookies ecresceu
de Brasília tecnologias semelhantes,
no ritmo como explicado
das doações. Banheiros químicos, tendas e
em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e
restaurantes com cozinha
publicidade. industrial
Ao navegar eram
por nosso o centro
conteúdo, da engrenagem
o usuário aceita tais que dava aos manifestantes a
sensação de estar
minha em casa. Haviacondições.
conta café da manhã, lanches, almoço e jantar, alémfazer
a revista de churrascos
logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 4/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

ocasionais, com carne enviada por frigoríficos de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Havia
ainda doação de bebidas alcoólicas, que também podiam ser adquiridas dos ambulantes que se
instalaram no local. A fartura era tanta que atraiu gente pobre, em busca de comida. Uma
imigrante venezuelana conta que arrecadava dinheiro para fornecer comida, roupas e ajuda
médica aos acampados. Ela pediu para não ter seu nome revelado porque participou dos atos de
8 de janeiro e teme ser procurada pela polícia. Conta ter ficado 63 dias no acampamento para que
o Brasil não “se torne a Venezuela”.
Sem líderes, à medida que se passavam as semanas, os grupos se desentendiam – por dinheiro.
Eustáquio acusa a ex-bancária Ana Priscila Azevedo, o caminhoneiro Ramiro Alves da Rocha
Cruz Junior e o empresário Rubem Abdalla Barroso Júnior de liderarem o que ele chama de
“Máfia do Pix”, que pedia doações de dinheiro em escala maciça na internet para a cozinha
principal do acampamento. Parte dos valores, acusa ele, era embolsada pelos donos da cozinha.
Priscila Azevedo e Cruz Junior foram presos na esteira das investigações do 8 de janeiro. Abdalla
está foragido. As denúncias de Eustáquio de que uma Máfia do Pix dominava o local foram
confirmadas por policiais militares ouvidos pela CPI da Câmara Distrital, em Brasília.
As intenções golpistas dos acampamentos eram explícitas, assim como o plano de invadir o
Congresso Nacional. A venezuelana que conversou com a piauí disse que, desde o início, almejava
entrar no Congresso e ficar sentada no chão em vigília, mas sem quebrar nada. Já Eustáquio
conta que a ideia de seu grupo era efetuar a invasão entre o final de novembro e o final de
dezembro. Imaginava que, se o movimento ganhasse tração, Bolsonaro tomaria coragem de
patrocinar uma quartelada. “A gente queria entrar e ocupar o Congresso. Não queríamos quebrar
nada, porque é patrimônio da direita, da esquerda, do centro, do povo brasileiro. Se
conseguíssemos fazer essa manifestação ainda em dezembro, entendíamos que o chefe supremo
das Forças Armadas, o presidente Bolsonaro, poderia tomar uma decisão”, diz.
A decisão, no caso, era Bolsonaro evocar o artigo 142 da Constituição Federal que, na lógica
peculiar do bolsonarismo, atribui às Forças Armadas a função de intervir entre poderes, como
um “poder moderador” – nesse caso, intervir no TSE, anulando a vitória de Lula. “Não
queríamos um golpe”, diz Eustáquio. “Queríamos algo dentro da Constituição.” Ele diz que, ao
final de novembro, já estava claro que o Exército não lideraria sozinho a quartelada. “Para nós, o
acampamento era um local para dormir e marcar a nossa presença. Não fazia mais sentido ficar
pedindo nada aos generais. O Exército não tinha autonomia para fazer nada do que a gente
queria.” Eustáquio passou então, por meio de suas redes, a convocar “patriotas” para a “Marcha
da Família”, prevista para 30 de novembro. Eles iriam ao Congresso com o objetivo de invadir.
“Tudo ali estava no auge, tinha muita gente, o quartel bombando. Aí eu e o pessoal do canal
Hipócritas fizemos um vídeo. Convocamos o Brasil inteiro”, conta.
Seu movimento despertou a ira do pessoal das cozinhas do acampamento, não com a ideia de
invadir o Congresso, mas com o esvaziamento do local, caso todos migrassem para a Esplanada.
Sem “patriotas” nos quartéis, as doações minguariam. “Era um negócio lucrativo que o quartel
continuasse funcionando”, diz o influenciador. Segundo Eustáquio, iniciou-se uma campanha
difamatória contra ele a partir de então, o que acabou minando seu plano. “Diziam que éramos
A Folha utiliza cookies e tecnologias semelhantes, como explicado
infiltrados
emde esquerda,
nossa Políticaapoiadores do Lula,
de Privacidade, que era uma
para recomendar cilada.”
conteúdo e Em certo momento, a rixa
escalou,publicidade. Ao navegar
ele foi agredido por nosso
e decidiu conteúdo,
deixar o local oe usuário
liderar aceita tais que passava o dia em frente
um grupo
minha conta condições. a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 5/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

ao Palácio da Alvorada, na expectativa de falar com Bolsonaro, voltando ao quartel apenas para
dormir. Em uma dessas idas, chegou a entrar no Alvorada, mas diz que não falou com Bolsonaro.
Em razão de pregar a invasão do Congresso, Eustáquio foi alvo de nova ordem de prisão e fugiu
para o Paraguai.
Até aqui, a Máfia do Pix prestara um serviço involuntário à democracia brasileira. Mas seu
apetite dinheirista voltaria mais tarde – e, dessa vez, na forma de golpe.

O
vendedor de carros Armando Valentin Settin Lopes de Andrade frequentava o QG nesses
dias agitados. Preso nas investigações do 8 de janeiro, acusado de levar artefatos
explosivos em seu carro no dia dos ataques, ele contou em seu depoimento que
testemunhou reuniões em que se discutiam atentados terroristas. Em pauta, se debatia
colocar bombas para dinamitar o viaduto da rodoviária de Brasília, queimar carros e incendiar
estações de energia na cidade.
O Exército, anfitrião atencioso, recebeu os manifestantes, inclusive os que maquinavam atentados
terroristas, de braços abertos. Na primeira semana de novembro, quando o acampamento foi
montado, o coronel Fabiano Augusto Cunha da Silva, do Comando Militar do Planalto (CMP),
mandou ofício ao governo do DF para organizar as coisas. Informou que o carro de som dos
manifestantes estava autorizado a ficar na frente do QG e os caminhões estacionariam em uma
das vias do Setor Militar Urbano (SMU), uma área próxima. Também pediu que o governo do DF
colaborasse com a limpeza do local, ambulância e policiamento. Mas fez um alerta: a Polícia
Militar não podia, em hipótese alguma, entrar no acampamento. Tinha que ficar nas imediações
da Catedral Militar Rainha da Paz, à entrada do SMU. Só a Polícia do Exército poderia acessar a
área dos acampados.
Todos os pedidos do Exército foram atendidos pelo governo do DF. A limpeza das ruas do
acampamento era feita três vezes ao dia. Naquele início de novembro, o general Gustavo
Henrique Dutra de Menezes, comandante militar do Planalto, voltou a lembrar os limites: a
Polícia Militar e o governo do DF poderiam retirar os vendedores ambulantes do local, mas não
poderiam mexer com a estrutura montada pelos manifestantes que, segundo o general, tinham o
direito de estar lá. Era uma novidade e tanto: nunca o Exército, desde a inauguração de Brasília,
permitira que cidadãos comuns se concentrassem naquele espaço, considerado uma área de
segurança.
Enquanto o acampamento crescia sob proteção fardada, Jair Bolsonaro, entrincheirado no
Alvorada, oscilava entre a depressão pela derrota, o ódio de ver-se alvo da piedade alheia e a
certeza de que as urnas haviam sido fraudadas. Ao seu redor, engalfinhavam-se três grupos
divergentes que tentavam tutelar sua fúria e conduzi-la na direção que mais lhes convinha. O
núcleo político, composto pelos ministros Ciro Nogueira, Fábio Faria, Rogério Marinho e Flávia
Arruda, tentava convencêlo a reconhecer a derrota. O núcleo militar, liderado pelo candidato a
vice, general Walter Braga Netto, dedicava-se a discutir “saídas constitucionais” para virar a
mesa. O núcleo ideológico, composto pelo ajudante de ordens Mauro Cid, Eduardo Bolsonaro e
A Folha
assessores utiliza cookies
do gabinete e tecnologias
do ódio, tramavasemelhantes, como explicado
outros subterfúgios – e às favas os escrúpulos
em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e
constitucionais. NoAo
publicidade. dianavegar
1º de novembro, uma reunião
por nosso conteúdo, no Planalto
o usuário aceita taisexplicitou a divergência.
minha conta condições. a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 6/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

Convencido pelo núcleo político de que era preciso reconhecer o resultado eleitoral, num
momento em que as estradas eram bloqueadas e surgia o receio de desabastecimento, Bolsonaro
chamou seus ministros ao gabinete para que chegassem a uma nota de consenso. O texto, no
trecho mais relevante, diria que “as instituições democráticas haviam declarado Lula o presidente
eleito”. Era a forma indireta de admitir que perdeu a eleição e aceitava a vitória de Lula. O
deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) não era ministro, mas apareceu acompanhado de
assessores. Contrário à nota, disse ao pai que, com a população nas ruas, ele não poderia fazer
aquilo. Alegou que, se mais tarde se provasse fraude nas urnas, ele teria o trunfo de não ter
reconhecido o resultado. Eduardo disse também que era preciso “manter a esperança dos
nossos”.
Bolsonaro ouviu o filho e avisou que, por haver posição divergente, colocaria a nota em votação.
Todos os presentes, incluindo o vice Braga Netto e o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira
de Oliveira, votaram a favor da nota. Só Eduardo foi contra. Mas foi o que bastou para que o
texto fosse alterado. Bolsonaro, Eduardo e Braga Netto se dirigiram a uma sala próxima para
reescrever a nova declaração, que foi lida pelo presidente diante das câmeras de tevê 45 horas
depois da derrota. Lendo a nota, agradeceu os 58 milhões de votos que recebeu e disse que os
“atuais movimentos populares são frutos de indignação e sentimento de injustiça de como se deu
o processo eleitoral”. Não reconheceu o resultado, nem criticou os bloqueios de estrada.
Na mesma tarde, num gesto político a portas fechadas, sem imagens que pudessem estragar o
teatro público, Bolsonaro agiu dentro da normalidade. Pediu que o coronel Mauro Cid ligasse
para o ministro Gilmar Mendes e convidou os membros da Corte para uma conversa no Planalto.
Depois de consultar seus pares, Mendes pediu que Bolsonaro fosse até o STF. O presidente
atravessou a Praça dos Três Poderes, chegou amigavelmente ao Supremo, reconheceu o resultado
e interagiu com os ministros de forma a distensionar o clima. Ouviu deles que não o animava
nenhum espírito revanchista. Naqueles dias de incerteza, a burocracia estatal instalou
rapidamente um governo de transição para reduzir o espaço para aventuras inconstitucionais.
A recusa de Bolsonaro em reconhecer a derrota publicamente encheu os radicais de esperança de
que ele tinha um plano para permanecer na cadeira. E tinha mesmo. Doze meses antes, começara
a ser gestada a estratégia de jogar dúvidas sobre o processo eleitoral, em caso de derrota nas
urnas. Faziam parte do projeto os militares (mais por convicção do que por oportunismo) e o
presidente do PL, Valdemar Costa Neto (mais por oportunismo do que por convicção).

A
o entrar no PL em novembro de 2021, Bolsonaro exigiu que o partido contratasse o
engenheiro Carlos Rocha, formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica, para fazer
estudos sobre a confiabilidade das urnas. Rocha era dono da empresa que foi
subcontratada para construir a primeira série de urnas eletrônicas, em 1995. No ano
seguinte, tentou registrar a patente da urna, mas seu pedido foi negado porque a máquina fora
construída mediante especificações estabelecidas pelo TSE – ou seja, não era uma invenção dele.
Rocha entrou num litígio. Queria receber royalties sobre cada urna fabricada. Perdeu a parada e
desde então passou
A Folha utiliza acookies
integrar um diminuto,
e tecnologias mas ruidoso,
semelhantes, grupo de acadêmicos e leigos que
como explicado
em nossa
questionam Política
as urnas. Nosdeprimórdios
Privacidade,da
para recomendar
internet, conteúdo
eles se reuniame em fóruns e listas de
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais
minha conta condições. a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 7/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

discussão. No bolsonarismo, encontraram abrigo e guarida – e ganharam as redes sociais e os


grupos de WhatsApp e Telegram.
Para viabilizar sua contratação, Rocha criou o Instituto Voto Legal (IVL), registrado na Junta
Comercial do Estado de São Paulo em 30 de novembro de 2021, no mesmo dia em que Bolsonaro
se filiou ao PL. Desde o início de 2022, o IVL levou quase meio milhão de reais do partido
produzindo relatórios que passaram a incendiar a imaginação conspiratória da extrema direita.
Mas, como Bolsonaro acreditava que ganharia nas urnas, “mesmo com fraude”, os trabalhos do
IVL ficaram de estepe.
Na teia do golpe, o papel dos militares era político e técnico. Assim que assumiu o Ministério da
Defesa, em abril de 2022, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira recebeu a missão de tutelar
a confiabilidade do sistema eleitoral. Em público, as Forças Armadas jamais apontaram problema
nas urnas, mas, em privado, o novo ministro vivia reclamando para Bolsonaro que sua equipe
não conseguia confirmar com o TSE que havia “segurança do código-fonte”. Um ex-ministro do
núcleo político, que pediu para não ter seu nome citado por razões partidárias, conta que o
general Braga Netto, que deixou o Ministério da Defesa para ser vice na chapa de Bolsonaro, era
a figura-chave da estratégia de colocar as urnas sob suspeita, ao lado do coronel Mauro Cid.
“O presidente sempre desacreditou das urnas, e os militares estavam junto com ele nessa ideia”,
diz o ex-ministro. “Nós tentávamos tirar isso da cabeça dele, mas logo voltava. Até que, uma
hora, todas as reuniões em que se falava de urnas já não contavam mais com a presença do
núcleo político. Era só o Braga Netto e o Cid, que assistia a tudo na condição de ajudante de
ordens, mas era muito mais do que isso. O Ramos [refere-se ao general Luiz Eduardo Ramos] depois
se inseriu nesse tema para bajular o presidente e estar presente nessas reuniões”, diz o ex-
ministro.
Braga Netto, além de chancelar a interpretação golpista do artigo 142, vendia a impressão de que
tinha controle sobre a maioria dos dezesseis integrantes do Alto Comando do Exército – razão
decisiva para que obtivesse a vaga de candidato a vice. Bolsonaro acreditava, mas até os próprios
militares do Planalto achavam o cálculo excessivamente otimista. Na verdade, nessa fase de
conversas golpistas ao pé do ouvido, o Alto Comando estava longe de um consenso, mas a tese
de que as urnas eram uma fraude nunca perdeu força entre os militares.
Em pleno dia do primeiro turno, em 2 de outubro, o coronel Marcelo Nogueira de Sousa, que
acompanhava a eleição no TSE em nome do Ministério da Defesa, fez o seguinte comentário
durante uma visita à sala de apuração do tribunal: “O código-fonte é fraco.” Aos mais chegados,
com discrição, disse que, embora a composição do tribunal mudasse com frequência, a
“burocracia do TSE” continuava a mesma e era a responsável por manter o sistema com as
fraudes. “Vocês entendem por que estamos aqui? Porque o Alexandre de Moraes pintou o
quadro e nós somos a moldura que diz que o sistema está O.K. Agora, ele pode vender o
quadro.” Quem ouviu os comentários ficou com a expectativa de que o relatório sobre as urnas
que ele produziria para o Ministério da Defesa, depois do pleito, seria escandaloso.
Nos dias seguintes à derrota, Bolsonaro, mesmo em seus acessos de irritação, nunca pediu
A Folha
claramente queutiliza cookiesdos
o relatório e tecnologias
militares semelhantes,
detonasse ascomo explicado
urnas, mas suas críticas intermináveis
em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e
pressionavam a caserna,
publicidade. que, por
Ao navegar embora
nossotambém duvidasse
conteúdo, do resultado,
o usuário aceita tais não queria assumir a
dianteira do
minha conta “O sentimento
assunto. condições.
geral dosatrês comandantes era de indignação
revista com a
fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 8/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

maneira como foi tratada a eleição, a falta de transparência. O povo pedindo e você não tendo
resposta para dar”, queixou-se um aliado militar de primeira ordem do presidente, em conversa
com a piauí. A indignação, porém, não bastava para patrocinar uma aventura. As cogitações de
Bolsonaro de melar a eleição eram respondidas com evasivas pelo ministro da Defesa, pelo
general Freire Gomes, comandante do Exército, e pelo brigadeiro Carlos de Almeida Baptista
Júnior, que comandava a Aeronáutica. Somente o almirante Almir Garnier Santos, da Marinha,
colocou-se à disposição do chefe para o que ele desejasse. Estava de plantão para o golpe.
O equivalente civil do almirante era Costa Neto, o presidente do PL. As urnas haviam dado ao
seu partido uma fabulosa bancada de 99 deputados – e 1,2 bilhão de reais de fundo partidário –,
mas o político sentou-se na primeira fila dos contestadores das urnas. No dia 8 de novembro, ao
anunciar o convite para Bolsonaro ser presidente de honra do PL, Costa Neto não reconheceu a
vitória de Lula e expressou a certeza de que o relatório do Ministério de Defesa, ainda em
elaboração, apontaria as fraudes. “Eles [os militares] vão trazer alguma coisa. Não tenho dúvida
disso, porque senão já tinham apresentado, já tinham liquidado o assunto. E, dependendo do que
eles encontrarem, nós vamos brigar no TSE com esses questionamentos que eles possam trazer.”
No dia seguinte, na primeira reunião da nova bancada do PL na sede do partido, em Brasília,
Costa Neto foi categórico ao dizer que havia algo errado com as urnas. E foi apoiado pela franja
radical do partido, composta, entre outros, pelo deputado Filipe Barros (PL-PR), o mais
estridente da turma, a deputada Carla Zambelli (PL-SP) e o recém-chegado Eduardo Pazuello
(PL-RJ), o general que fez a vexaminosa gestão da pandemia no Ministério da Saúde. Todos
haviam acabado de ser eleitos – nas urnas eletrônicas. Naquele mesmo dia, a Defesa finalmente
divulgou seu relatório. Trazia uma conclusão covarde de tão ambígua: não era possível
comprovar vulnerabilidades nas urnas, mas tampouco era possível negá-las. Estava claro que
não encontraram nada de errado. Bolsonaro não gostou. Esperava um relatório denunciando
fraude, sobretudo porque sabia que essa era a opinião dos militares. Para não entregar o jogo,
acionou-se então a estepe: um relatório do IVL.
E Costa Neto entrou no seu labirinto. Como nem os militares acharam fraude, ele também queria
pular fora do barco, mas sua bancada bolsonarista pressionava para que o partido usasse o
relatório para contestar o resultado. A máquina de difamação do entorno presidencial entrou em
campo, dizendo que Costa Neto já estava aderindo ao governo petista e andava se encontrando
com Lula. Entre perder sua bancada ou perder a democracia, Costa Neto, ex-mensaleiro, ex-
preso, ex-lulista e atual bolsonarista no coração e no bolso, decidiu atacar a democracia:
apresentou o relatório do IVL ao TSE. Sabia que o tribunal rejeitaria a contestação, mas queria se
livrar da pressão dos radicais.
Mal calibrado, o relatório dizia ter encontrado “indícios de mau funcionamento” em 59% das
urnas eletrônicas do segundo turno – apenas do segundo turno. Em conversa com a piauí, o
engenheiro Carlos Rocha defendeu seu trabalho, dizendo que não contestou os votos, apenas
informou que havia “indícios de erros”. “Se há um erro, nada mais natural do que pedir para esse
erro ser verificado”, diz.
Na prática, o conteúdo
A Folha do relatório
utiliza cookies encaixou-se
e tecnologias comocomo
semelhantes, umaexplicado
luva nas intenções de Costa Neto de
contestarem nossa Política
a vitória desem
de Lula, Privacidade, para
contestar recomendar
a vitória conteúdo
dos seus e
99 deputados, eleitos no primeiro
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais
turno. Mas o ministro Alexandrecondições.
de Moraes não caiu no truque. Deu 24 horas para que o PL
minha conta a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 9/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

anexasse um relatório completo, incluindo as urnas do primeiro turno, com base no fato
elementar que as urnas dos dois turnos eram as mesmas. O relatório não foi anexado, e Moraes
multou o PL em 22,9 milhões de reais por litigância de má-fé. A ala bolsonarista indignou-se com
os números (não o valor) da multa: 2 + 2 + 9 = 13, o número do PT. Entenderam que só podia ser
um deboche de Moraes.
A recusa da ação do PL inflamou a ira de Bolsonaro contra Moraes. Segundo um assessor, que
acompanhava o então presidente no momento em que saiu a decisão, a irritação era visível, mas
justificável. “O presidente não queria nada demais, só queria um papelzinho [refere-se ao voto
impresso] que provasse que o voto eletrônico tinha sido computado”, diz o assessor, que
trabalhava no Palácio do Planalto. “Quando você entra com um recurso e o recurso é ignorado,
tratado com chacota, você cria mais revolta. O normal seria receber a denúncia, apurar e depois
responder que não havia nada.”
Os caminhos estavam se estreitando. As Forças Armadas não agiam e a chicana jurídica resultara
num vexame. Um dos principais auxiliares de Bolsonaro contou à piauí que o então presidente só
teria “força para fazer alguma coisa para checar as eleições” se, além dos militares, tivesse
também “o apoio do Congresso e da mídia”. Diz ele: “Mas a mídia não comprou a ideia de que
precisávamos ter uma eleição auditável.” Na conversa, esse auxiliar reconheceu que mesmo a
alternativa vista como “constitucional” – o artigo 142 –, era, no fim das contas, uma saída
autoritária. “Qualquer coisa que o presidente fizesse seria ação de força. No momento em que as
Forças Armadas saíssem, a Justiça iria em cima, mandar prender general. É um ciclo que não
para. Ia ter mais vinte anos de regime de força”, disse o assessor, que pertence à ala militar.

N
as ruas, a realidade dos palácios e dos tribunais ainda não havia chegado – e o ânimo dos
militantes do bolsonarismo não arrefecia. No dia 9 de dezembro, saiu um mandado de
prisão contra o indígena José Acácio Serere Xavante. Ele invadira o aeroporto de Brasília,
causara tumulto num shopping center e tentara invadir o hotel onde Lula estava
hospedado durante a transição de governo. Era fácil cumprir a ordem de prisão. O indígena não
estava escondido. Fazia até lives de suas estrepolias pela cidade e, todas as noites, recolhia-se
para dormir em segurança no acampamento em frente ao QG do Exército.
A polícia, no entanto, não o prendeu no dia 9. Era uma sexta-feira. Deixou passar o fim de
semana e, na segunda, decidiu cumprir a ordem – exatamente na data em que Lula seria
diplomado como presidente pelo TSE. A polícia sabia que seria um dia de manifestações, tanto
que montara um esquema de segurança no tribunal. Impedidos de protestar diante do TSE, os
ônibus lotados de bolsonaristas dirigiram-se ao Palácio da Alvorada, para pedir a Bolsonaro que
fizesse alguma coisa. Os agentes da PF entenderam que era um bom momento para prender
Serere, em meio a uma turba indignada. Os policiais subiram no ônibus, renderam o indígena e o
levaram, algemado, para a viatura.
Numa decisão inédita na história da PF em Brasília, o preso deixou de ser levado para a sede
regional da corporação, localizada a mais de 8 km do acampamento no QG. Pela primeira vez,
A Folha
recolheram umutiliza
civil cookies
na sedeenacional
tecnologias
dasemelhantes,
PF, bem no como explicado
coração de Brasília e não muito longe do
em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e
acampamento. Os ônibus,
publicidade. lotados
Ao navegar de bolsonaristas,
por nosso seguiram
conteúdo, o usuário aceitaa tais
viatura policial, os acampados do
QG foram minha
avisados condições.um fenomenal
conta – e assim montou-se a revista quebra-quebra na capital. fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 10/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

Os agentes do Comando de Operações Táticas da PF, treinados para ações de alto risco, como
assaltos a bancos e operações contra o tráfico, não estavam na sede nacional da corporação
naquele dia. Os manifestantes atearam fogo em carros e ônibus, quebraram o que viram pela
frente, roubaram botijões de gás em um posto de gasolina e os espalharam pelo setor hoteleiro de
Brasília, onde ficava o hotel de Lula. Para completar, atacaram a 5ª Delegacia de Polícia Civil, ali
nas redondezas. O pandemônio terminou sem uma única prisão. Nem pela polícia da ordem
pública, que é a militar. Nem pela federal, que tinha atribuição para tanto. Nem pela civil,
atacada em sua própria casa.
O comandante do choque da PM naquela noite, coronel Jorge Eduardo Naime Barreto, ouvido na
CPI dos Atos Antidemocráticos, na Câmara Distrital, disse que não tinha como efetuar as prisões
e, ao mesmo tempo, dispersar vândalos – ainda mais com seus homens portando coletes de 7 kg
e armas não letais. Disse que tentou fazer as prisões depois do fim dos ataques, mas, “por incrível
que pareça, os caras sumiram”. No dia seguinte, membros da associação dos hotéis em Brasília
pediram segurança à PM ao constatar que alguns dos vândalos estavam hospedados em seus
hotéis, inclusive no de Lula. O coronel respondeu que a PM de Brasília não era instruída a matar
manifestante, e sim “preservar vidas” dentro da “doutrina de direitos humanos” – declaração
curiosa, já que ninguém pedira para matar ninguém. Da massa que infernizou a capital, quarenta
arruaceiros foram identificados, mas só quatro foram presos posteriormente.
O senador eleito Flávio Dino (PSB-MA), que já havia sido escalado para comandar o Ministério
da Justiça de Lula, soube dos ataques por volta das 19 horas, quando chegava à casa do
advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, para um jantar em comemoração à
diplomação do presidente. Dino ligou para o governador Ibaneis Rocha (MDB) e ouviu que
“estava tudo caminhando bem” e “tudo controlado”. Como as horas avançavam e a cidade estava
um caos, Dino voltou a ligar para Ibaneis, que então reconheceu que as polícias ainda não
haviam controlado os vândalos, mas disse que a segurança do hotel de Lula fora reforçada
porque o grupo tentara invadir o prédio. Corria o boato de que Lula tivera de ser retirado do
hotel num helicóptero. Mas ele ainda estava no jantar na casa de Kakay e lá permaneceu até que
a situação se normalizou.
Para tranquilizar a opinião pública, Dino marcou uma coletiva de imprensa e convidou Ibaneis,
que não quis participar, mas enviou seu secretário de Segurança Pública, Júlio Danilo Souza
Ferreira. Enquanto a entrevista transcorria, o ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres,
jantava no restaurante Dom Francisco, alheio ao que se passava. Ao relembrar aquele dia em
conversa com a piauí, Dino diz que foi um momento-chave. “Acendeu-se ali um grande sinal
amarelo de que eles não desistiriam desses atos terroristas. Como organizar a segurança da
posse? Já era difícil com as forças federais. E a gente passou a ter insegurança também em relação
às forças locais.”
Para complicar, o Exército protegia a turba nos quartéis. “A partir da diplomação, os
acampamentos deixam de ser pontos estáticos e viram hubs”, diz Flávio Dino, sobre o caráter de
incubadora de criminosos que o local adquiriu. O governo do DF e o governo eleito
pressionavam pelo desmonte dos acampamentos, mas o Exército nunca achava que era o
A Folha utiliza cookies e tecnologias semelhantes, como explicado
momentoem adequado. Em de
nossa Política novembro, uma
Privacidade, nota
para conjuntaconteúdo
recomendar dos comandantes
e das três forças apoiara
publicidade.que
os manifestantes, Ao navegar por nosso conteúdo,
faziam “demandas legais eolegítimas
usuário aceita tais
da população”, e cobrava que lhes
minha conta condições. a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 11/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

fosse garantido a “livre manifestação do pensamento”. O comunicado fora elaborado como


antídoto a uma eventual ordem de Alexandre de Moraes para dissolver os acampamentos.
Também em meados de novembro, nas conversas sobre a primeira tentativa para retirar os
acampados, a Secretaria de Segurança Pública fez um plano de ação cujo título era “Operação
para a Retirada do Acampamento”. O Exército pediu que o texto fosse alterado para “Operação
para Reprimir o Comércio Ambulante”. Os militares temiam que o documento chegasse aos
ouvidos de Bolsonaro ou dos manifestantes, mostrando que a caserna era a patrocinadora da
dissolução do local. “Havia proteção aos manifestantes, e essa proteção vinha do comando do
Exército”, disse um dos PMs que participou das várias tentativas de desfazer o local, sempre
abortadas pela caserna. Conforme apuração da piauí, associada aos depoimentos de policiais
militares e federais prestados nas investigações, a crônica do apoio do Exército aos vândalos
pode ser ilustrada com duas datas. São elas:

12 DE NOVEMBRO, DOMINGO_É o dia da primeira tentativa de desmontar o acampamento em Brasília.


A estrutura de barracas, cozinhas e banheiros químicos era recente, mas já havia ambulantes
irregulares, vendendo bebidas alcoólicas, comida e roupas. Como a Polícia Militar estava
proibida pelo Exército de entrar no acampamento, só os fiscais de comércio ilegal acessavam o
local. Quando começaram a retirar os ambulantes, os fiscais foram hostilizados pelos acampados.
Deixaram o local sob o risco de linchamento. A PM, que se posicionava em frente à Catedral
Rainha da Paz, ao lado do acampamento, nada podia fazer para proteger os fiscais. E a Polícia do
Exército permitiu que fossem hostilizados e expulsos. Mais tarde, os servidores deixaram
registrada em documento a inação dos militares.

7 DE DEZEMBRO, QUINTA-FEIRA_O acampamento já contava com quase 50 mil pessoas e, como


proliferavam as denúncias de roubos, prostituição e violência, organizou-se nova tentativa de
desmobilização. Outra vez, a ordem do Exército era para que apenas os ambulantes saíssem.
Houve uma reunião na véspera, no auditório do Comando Militar do Planalto, em que foram
apresentados croquis e transparências pelos militares sobre como seria a retirada. Novamente, na
hora H, os fiscais foram expulsos pelos acampados, sem que a Polícia do Exército agisse. Em
vídeos na internet, pode-se ver a polícia protegendo acampados que atacam fiscais. De novo, o
Exército abortou a operação porque não havia “condições de segurança das equipes de
fiscalização”.

S
em nenhuma interlocução com o Exército, instituição historicamente avessa ao PT e à
esquerda, ao governo eleito restava pressionar o governo do DF. O governo distrital, por
sua vez, embora quisesse se livrar dos vândalos, estava abraçado ao bolsonarismo e não
tinha força política para negociar a retirada com os generais. Reeleito em primeiro turno,
Ibaneis Rocha saldou sua dívida de campanha com Bolsonaro escalando Anderson Torres para
secretário de Segurança Pública. Mesmo alertado por ministros do STF de que Torres era peça
central das maquinações de golpe, Ibaneis foi em frente – decisão que, quando a intentona
golpista chegasse ao seu auge, o levaria a ficar judicialmente afastado do governo por 66 dias.
A Folha utiliza cookies e tecnologias semelhantes, como explicado
A tensão em
entre o PT
nossa e o Exército
Política – em outras
de Privacidade, palavras, entre
para recomendar um governo
conteúdo e em formação e uma
força armada
publicidade. – levou
hostilAo à escolha
navegar por nossodeconteúdo,
José Múcio Monteiro
o usuário aceitaFilho
tais para de ministro da Defesa.
minha conta
Ex-conselheiro condições.
do Tribunal de Contas da Uniãoa revista fazerde
(TCU) e ex-ministro da Secretaria logout
Relações
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 12/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

Institucionais do governo Lula, Múcio fora convidado pelo petista para colaborar com o núcleo
político logo no início da campanha. Declinou. Quando venceu, Lula voltou a sondá-lo. “Vou
precisar de você na transição”, disse o presidente eleito. Em tom de brincadeira, Múcio
respondeu que gostaria de ter o cargo do advogado Sigmaringa Seixas, morto em 2018, que “não
tinha função, mas era ouvido em tudo”.
Ao final do cortejo, Múcio topou integrar a equipe de civis e militares que discutia temas da
defesa na transição. Deu-se conta de que seria ministro quando percebeu que, na equipe, era o
único civil. Aceitou o convite, superando vários concorrentes – entre eles, Ricardo Lewandowski,
a aposta do ministro Alexandre de Moraes para fazer “a intervenção final no quartel” – e fez uma
exigência: queria autonomia para escolher os comandantes das três forças. Como precisava de
um pacificador, e Múcio era jeitoso e tinha trânsito com a direita, Lula concordou.
A escolha emitia dois sinais: o presidente eleito estava ansioso para pactuar, não para brigar, e
temia uma rebelião nos quartéis, diante do avanço dos apelos golpistas nas franjas radicais do
bolsonarismo. Em conversa com amigos próximos, o ex-presidente José Sarney, ao saber da
indicação de Múcio, fez a leitura otimista de uma raposa: “Os militares estão gostando da escolha
do Múcio porque vão mandar nele.”
Ainda durante a transição, Múcio tentou contato com os comandantes militares. Suas ligações
não eram atendidas, seus recados não recebiam retornos e seus pedidos de visita eram repelidos.
O ministro então procurou Bolsonaro, a quem conhecia desde os tempos em que ambos foram
deputados. Tinham relações cordiais. Pediu que o então presidente dissesse aos comandantes
que, no governo petista, tudo ocorreria dentro da institucionalidade. Funcionou, em parte. O
general Freire Gomes e o brigadeiro Baptista Júnior receberam Múcio. O almirante Garnier, o
plantonista do golpe, não. No decorrer de dezembro, quando todo o entorno de Bolsonaro
maquinava contra a democracia, Múcio excedeu-se a ponto de dizer em uma entrevista que
Bolsonaro era um “democrata”. Nem assim reuniu capital político para pedir aos militares o fim
dos acampamentos em frente ao QG.
E os militares, sobretudo o Exército, estavam encantados com a tarefa de cevar o ninho da
extrema direta. Os acampados continuavam bloqueando vias e fazendo arruaça em shoppings de
Brasília. Na véspera do Natal, descobriu-se uma caixa de explosivos acoplada a um caminhão-
tanque, carregado de combustível, perto do aeroporto. O motorista Jeferson Henrique Ribeiro
Silveira percebeu a caixa com dinamite presa em uma das rodas, abriu o artefato, viu que havia
explosivos, uma antena e detonadores piscando. Tirou a caixa do caminhão, afastou o veículo
cerca de 500 metros e avisou seu chefe, que chamou a polícia. Silveira, ele próprio bolsonarista,
disse aos policiais que jamais participara de bloqueios ou tivera qualquer envolvimento com a
bomba. Em menos de 24 horas, a Polícia Civil prendeu dois dos suspeitos. O terceiro, o jornalista
Wellington Macedo de Souza, está foragido até hoje.
Embora fracassado, o atentado terrorista era um emblema do radicalismo que explodiria no 8 de
janeiro. Um dos suspeitos presos, George Washington de Oliveira Sousa, era herdeiro de uma
rede de postos de combustíveis, atirador e gastara 160 mil reais em armas em um ano. Viajara a
Brasília Anuma
Folhapicape zero-quilômetro
utiliza cookies para
e tecnologias viver entre
semelhantes, o QG
como e um apartamento alugado no
explicado
em nossaDo
bairro Sudoeste. Política
Pará,de Privacidade,
trouxera cincopara recomendar
emulsões conteúdo
explosivas e
à base de nitrato de amônio,
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais
substância comum em áreas de garimpo. condições.No dia 23 de dezembro, um dia antes do atentado,
minha conta a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 13/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

recebeu no acampamento do QG um controle remoto e quatro acionadores. O outro preso, o


eletricista Alan Diego dos Santos Rodrigues, um evangélico que deixara mulher e dois filhos em
Mato Grosso, chegou em Brasília para se “manifestar contra as eleições e tentar receber o código-
fonte das urnas”. Em seu depoimento, contou que o assunto “explosões” era comum no
acampamento e todos acreditavam que “a explosão atrairia a atenção de Bolsonaro para invocar
o artigo 142 e fazer a intervenção”. Rodrigues ajudou Sousa a colocar a bomba no caminhão.
Em seu depoimento, Sousa disse que mantinha contato com um “importante general do Exército”
e que, no ataque à sede da PF em Brasília, do qual ele participou, havia conversado com
bombeiros e policiais militares no local. Contou que ouviu deles que “não iam coibir a destruição
e o vandalismo desde que os envolvidos não agredissem os policiais”. Sousa disse que acreditava
que a “PM e o Bombeiro estavam ao lado do presidente” e que “em breve seria decretada a
intervenção das Forças Armadas”. Como nada aconteceu, resolveu agir “para provocar a
intervenção” e a “decretação de estado de sítio para impedir a instauração do comunismo no
Brasil”.
Apesar da aparência de criminoso mambembe, Sousa tinha conexões. Assim que a polícia lhe
perguntou se queria ligar para alguém, ele acionou dois conhecidos. Um é o pecuarista Bento
Carlos Liebl, cuja família é dona de mais de 30 mil hectares no entorno de São Félix do Xingu, no
Pará. Outro é o empresário e político Ricardo Pereira da Cunha, que, segundo reportagem do
Repórter Brasil, pedia Pix entre fazendeiros da região amazônica para financiar os acampamentos.
Neste caso, a Polícia Civil agiu rápido. Prendeu os suspeitos e logo investigou. Não encontrou
conexão real com o Exército ou com “um general importante”. Os contatos de Sousa no Pará
posteriormente foram alvo de busca e apreensão. Em maio, os dois terroristas fracassados foram
condenados às penas de 9 anos e quatro meses (Sousa) e 5 anos e quatro meses (Rodrigues), em
regime fechado, pelos crimes de incêndio com dolo, porte ilegal de artefato explosivo e dano
contra a vida e o patrimônio. Apesar da confissão dos dois e da tragédia que a bomba poderia
provocar ao explodir um caminhão de combustível, a polícia disse que não achou indícios de
terrorismo, nem de atentado contra a democracia.

O
desafio era óbvio: como organizar uma posse presidencial, com a presença de milhares de
pessoas, num ambiente em que militares protegiam criminosos? De cara, as incertezas
levaram ao alijamento do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), um ninho de
militares que, tradicionalmente, coordena a segurança das posses presidenciais e fora
inteiramente capturado por bolsonaristas. Mas, a essa altura, também se desconfiava que grupos
da PT e da PM pudessem estar na conspiração.
Em razão de tantos temores, ficara acordado durante a transição que a Esplanada dos Ministérios
seria fechada para a cerimônia de posse. Na última reunião da transição, porém, na qual todo o
planejamento de segurança foi apresentado à primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja, as
coisas mudaram. Janja queria que Lula fosse aclamado pelo povo no trajeto da Catedral até o
Congresso, a bordo do Rolls-Royce presidencial. E Janja abriu a conversa em termos exaltados.
“Não foiAisso
Folhaque
utiliza
eu cookies e tecnologias
determinei!”, reagiu,semelhantes,
ao saber dacomo
ideiaexplicado
de fechar a Esplanada. Argumentou-
em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e
se que opublicidade.
esquema fora definido
Ao navegar porem razão
nosso o usuário“Mas
da segurança.
conteúdo, aceitaeu que mando. Ou vocês não
tais
minha conta condições. a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 14/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

entenderam ainda? Vocês estão descumprindo o que eu determinei! E quem não entendeu, pode
sair”, disse.
Depois da confusão, chegou-se a um consenso: a Esplanada ficaria fechada para a população em
geral, mas teria um público composto por militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST), previamente credenciados pela Secretaria de Segurança, portando pulseiras de
identificação. Assim, cerca de 5 mil sem-terra vindos de dezessete estados distribuíram-se em
diversos pontos entre a catedral e o Congresso.
Restava o antigo caroço: era preciso finalmente desmontar o acampamento no QG antes da posse.
No dia 27 de dezembro, Flávio Dino se reuniu com Ibaneis Rocha, José Múcio e o delegado
Andrei Rodrigues, da PF. “Nós tivemos uma conversa clara, direta e muito efetiva”, conta Dino.
Na reunião, Ibaneis acenou com a possibilidade de pedir ao STF uma ordem judicial para
desmontar o ajuntamento sem depender do Exército. A petição já estava até pronta. Mas Múcio
rechaçou qualquer ação à revelia dos militares. Temia que, dada a proteção que o Exército
oferecia aos acampados, o risco de golpe aumentaria caso o acampamento fosse desfeito a mando
da Justiça.
No mesmo dia, o ainda secretário de Segurança Pública, Júlio Danilo Ferreira, conseguiu acertar
com o general Gustavo Dutra uma nova data para a retirada: 29 de dezembro. A Secretaria fez
um planejamento envolvendo quinze órgãos, entre os distritais e os federais. A PM designou
quinhentos homens para acompanhar a remoção. Às 6h30 da manhã do dia 29, quando toda a
equipe do governo distrital estava diante da Catedral Rainha da Paz, os fiscais de comércio ilegal
começaram expulsando os ambulantes – e foram atacados pelos acampados. O general Dutra,
que acompanhava a ação, não se indignou com os ataques aos servidores, mas com a quantidade
excessiva de policiais. Ali mesmo, mandou uma mensagem de WhatsApp a um funcionário da
Secretaria reclamando: “Estou preocupado com a quantidade de meios [policiais] que vieram.
Conforme pleiteado, deve ser sem violência”. E voltou a lembrar os limites da ação: “Retirada das
estruturas [barracas] vazias. A tropa hipo [cavalaria], só em último caso. Não podemos subir a
temperatura hoje.”

A
Polícia do Exército continuou onde sempre esteve: não deu proteção aos fiscais. Houve
atrito com os militares quando a PM tentou intervir para garantir a segurança dos
servidores do governo do DF. Nesse momento, Dutra mais uma vez abortou a retirada dos
acampados, exasperando o governador e toda a equipe que faria a posse presidencial.
“Claro que a gente ficou mais inquieto”, relembra Dino. “Faltavam dois dias para a posse e o
entendimento acertado no dia 27 era de que o acampamento iria acabar.”
A continuidade do ninho do QG era repleta de significados. Agradava a Bolsonaro, pois era a
materialização do seu apoio popular. Agradava a caserna, insatisfeita com o resultado das urnas.
E testava a autoridade de Lula. Os acampados que concordaram em falar com a piauí dizem que
se sentiam protegidos pelos militares, que às vezes até ajudavam a montar barracas, como
mostram vídeos divulgados nas redes sociais. O comando do Exército não queria assumir o
A Folha utiliza cookies e tecnologias semelhantes, como explicado
“desgaste” de informar aos “patriotas” que a intervenção havia micado. Segundo membros da
em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e
caserna publicidade.
ouvidos pela Ao revista, “desgaste”
navegar opor devia oser
nosso conteúdo, bancado
usuário pelo
aceita taisgeneral Júlio César de Arruda,
minha conta condições. a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 15/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

que comandaria o Exército no governo Lula, e não pelo general Freire Gomes, que estava no
cargo sob Bolsonaro.
O pesquisador Guilherme Lemos da Silva Moreira, da Universidade Federal de São Carlos, ficou
à paisana no acampamento entre 26 e 30 de dezembro, colhendo material para um trabalho do
curso de antropologia social. Testemunhou o corpo mole da Polícia do Exército. “Eles quase
pediam desculpas por terem de chamar a atenção dos acampados por algum motivo”, conta
Moreira. Segundo ele, os militares ajudavam com o trânsito quando os manifestantes partiam
para fazer buzinaços e apartavam eventuais brigas. O estacionamento da Poupex, a previdência
privada do Exército, fora liberado para uso dos acampados motorizados. A única vez que o
pesquisador presenciou uma ação mais contundente dos militares foi quando dois repórteres
eram espancados. Usaram gás de pimenta para parar a violência.
Além do apoio explícito aos acampados, os chefes das Forças Armadas encontraram outro meio
de tumultuar. Queriam deixar seus cargos antes da posse para não bater continência a Lula.
Como Bolsonaro anunciara que não passaria a faixa presidencial e se refugiaria nos Estados
Unidos, os comandantes acharam que deviam fazer algo parecido. Múcio tentava demovê-los. O
general Freire Gomes estava irredutível. Avisou que sairia antes de Lula, mas aceitou postergar
sua saída até 28 de dezembro, num gesto de “cooperação”. Para que o Exército não ficasse
nenhum dia sem comando, coube a Bolsonaro exonerar um comandante e nomear seu sucessor, o
general Júlio Cesar de Arruda. Era uma aberração, própria de republiquetas de quarteladas, que
expunha o grau de animosidade do Exército com um governo que, sob todos os ângulos, fora
legitimamente eleito.
O general Arruda, embora fosse um dos mais bolsonaristas do Alto Comando, foi escolhido por
Múcio com base no critério de idade, em respeito à tradição da corporação. Os seguintes da lista
eram os generais Tomás Paiva e Valério Stumpf Trindade, ambos considerados legalistas. Paiva
tinha mais apoio no novo governo e certa proximidade com o PSDB. Fora ajudante de ordens de
Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990 e seu nome agradava o vice Geraldo Alckmin e o
futuro ministro Flávio Dino. Além disso, Paiva comandava a maior tropa do país, o Comando
Militar do Sudeste, um antídoto contra as velhas vivandeiras que até hoje vão aos bivaques bulir
com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar. Já Stumpf estava dentro do
quartel, como chefe do Estado-Maior do Exército, um cargo mais burocrático e sem tropa. Mas a
decisão era de Múcio, que afinal recebera a promessa de autonomia. E Múcio queria Arruda.
Lula concordou.
O almirante Garnier, o plantonista do golpe, recusou-se a conversar com Múcio e agendou sua
exoneração para a noite do 31 de dezembro. Não queria ficar um minuto sob o comando de Lula.
O almirante é o pai daquele constrangedor desfile da Marinha, em que tanques sucateados se
exibiram na Esplanada soltando fumaça de óleo diesel. Era agosto de 2021, a exibição deveria ser
um show de força para intimidar parlamentares que analisavam a PEC do Voto Impresso. A PEC
foi derrubada e o desfile virou chacota nacional, deixando um rastro de memes impiedosos.
(Depois de ingressar na reserva e passar a frequentar o Clube Naval de Brasília, nas tardes de
ócio, Garnier achou que era boa ideia ter contatos no novo governo. E só então conversou com
A Folha utiliza cookies e tecnologias semelhantes, como explicado
Múcio, com quem Política
em nossa mantém dehoje uma relação
Privacidade, cordial – econteúdo
para recomendar longe das e vistas dos acampados.) A
publicidade.
Aeronáutica teve a Ao navegarmais
transição por nosso conteúdo,Oo brigadeiro
republicana. usuário aceita tais
Marcelo Kanitz Damasceno, o novo
minha conta condições. a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 16/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

comandante na gestão petista, ajudou a convencer o então ocupante do cargo, Baptista Júnior, a
esperar a posse presidencial. Ele concordou, recebeu Múcio e participou da passagem de
comando para Damasceno.
Diante desses movimentos, os acampados entenderam que os militares não atenderiam seus
apelos golpistas. Começaram a bombardear a caserna nas redes sociais, chamando os militares de
“frouxas armadas”, “traidores” e “covardes”. Na noite de Ano-Novo, indignados com a iminente
posse de Lula, um grupo de acampados do QG foi à frente da casa dos generais, ali perto, para
xingar o Alto Comando. Alguns tentaram invadir as residências, a tropa de choque do Exército
foi acionada e mostrou que, afinal, sabia conter gente exaltada. E Bolsonaro embarcara para os
Estados Unidos. A democracia e a normalidade institucional pareciam ter vencido.

Na verdade, a senha para desmobilizar circulava havia alguns dias. Dois acampados ouvidos
pela piauí dizem que, desde o dia 20 de dezembro, recebiam “mensagens” do núcleo duro de
Bolsonaro, avisando que não haveria intervenção. Nenhum quis identificar os interlocutores, mas
era comum que os acampados tentassem se valorizar dizendo que tinham contato com
Bolsonaro, ou pessoas próximas. O fato é que o entorno do presidente estimulava essa troca para
manter sua base engajada. Em muitas ocasiões, o coronel Mauro Cid, o ajudante de ordens,
interagiu com esses grupos. Com frequência, recebia mensagens de cunho golpista de
apoiadores, como as que vieram a público depois da apreensão de seu celular no caso da
falsificação da carteira de vacinação de Bolsonaro.
Em uma dessas mensagens, reveladas pela CNN Brasil, o ex-major Ailton Gonçalves Moraes
Barros fala para Cid que tinham de pressionar o então comandante do Exército, Freire Gomes,
“para que ele faça o que tem que fazer” e que “se for preciso, vai ser fora das quatro linhas”. O ex-
major diz que, se Freire Gomes não “aderisse”, Bolsonaro teria de fazer um pronunciamento
“para levantar a moral da tropa” e mandar prender o ministro Alexandre de Moraes. As
respostas de Cid não foram divulgadas. Em outra mensagem, o coronel da reserva Antônio Elcio
Franco Filho, secretário do Ministério da Saúde na pandemia e assessor de Braga Netto, sugere
que Freire Gomes só agiria se recebesse “ordem por escrito”. Em maio, Barros e Cid foram presos
na operação sobre a fraude na vacina de Bolsonaro. Elcio Franco continua em liberdade.
Embora Bolsonaro fosse considerado teimoso e irredutível, Cid era o que chegava mais perto de
manipular suas ações. Antes da viagem para os Estados Unidos, em 30 de dezembro, os
ministros do núcleo político tentaram convencer Bolsonaro a gravar um vídeo desmobilizando os
acampados. Cid convenceu-o do contrário. “Cid estava por trás da cloroquina, da associação da
vacina da Covid à Aids, da ideia de não reconhecer a vitória do Joe Biden”, diz um ex-ministro
de Bolsonaro, que pediu o anonimato porque ainda integra a base de apoio do ex-presidente. Ele
conta que, em parte, o general Fernando Azevedo e Silva foi demitido do Ministério da Defesa
em março de 2021 porque queria tirar Cid da ajudância de ordens de Bolsonaro. O general estava
farto de ouvir outros ministros reclamando da interferência onipresente de Cid no governo.
No início de 2022, seis ministros – entre eles, Flávia Arruda, Ciro Nogueira, Fábio Faria e Tarcísio
de Freitas –, se reuniram para encontrar uma forma de derrubar o ajudante de ordens. Não
chegaram a umutiliza
A Folha plano eficazepor
cookies falta desemelhantes,
tecnologias apoio do núcleo
comomilitar.
explicadoOutro ex-ministro, que também
em nossa
pediu à piauí Política
que sua de Privacidade,
identidade para recomendar
fosse preservada, disseconteúdo e
que participou de reuniões em que Cid
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais
contestava falas de ministros e interferia
condições.quando se reuniam com Bolsonaro. Ele até evitava tirar
minha conta a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 17/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

folga, trabalhando no turno dos seus subordinados, para ficar mais tempo ao lado do presidente.
No dia 30, partiu com ele para os Estados Unidos e lá permaneceu, voltando apenas em meados
de janeiro, quando sua situação com a Justiça começou a se agravar.
“A posse ocorreu com tranquilidade”, diz Flávio Dino, ao relembrar que o plano de segurança do
governo distrital foi cumprido, à exceção do desmonte do acampamento. “Em mobilização de
policiais militares, civis, bombeiros, agentes de trânsito e barreiras, eu diria até que o GDF [sigla
usada para designar o governo do DF] cumpriu mais do que pedimos”, diz o ministro. “Nos dias 1º,
2 e 3 basicamente foram eventos de posse e os acampamentos começaram a fenecer”, conta. No
dia 4, as tendas dos acampamentos pelo país estavam se esvaziando. Enfim, parecia que o país
voltaria ao normal. Mas então o apetite dinheirista da Máfia do Pix, aquele grupo que
comandava as cozinhas do acampamento de Brasília, entrou de novo em ação.

A
na Priscila Azevedo era bancária, deixou a profissão em 2013 e tornou-se uma militante da
intervenção militar. Criou um canal de cunho golpista no YouTube e, segundo ela mesma,
ganhava cerca de 5 mil reais mensais até 2020. A partir daí, seus canais começaram a ser
derrubados pelo YouTube em função das investigações do STF sobre atos
antidemocráticos e milícias digitais. Quando os bolsonaristas se instalaram no QG em Brasília,
ela abriu a principal cozinha do acampamento, mantida por doações via internet. A CPI dos Atos
Antidemocráticos na Câmara do DF descobriu que os depósitos eram feitos sem prestação de
contas. Os deputados distritais concluíram que parte das doações era embolsada pelos donos das
cozinhas – a própria Ana Azevedo e seus dois sócios, Ramiro Cruz Junior e Rubem Abdalla.
Às vésperas da posse presidencial, o trio começou a se desesperar com a queda nas doações,
diante da desmobilização no QG. Os três então tiveram a ideia de forjar um novo acampamento,
dessa vez dentro da Esplanada, resgatando a antiga proposta do influenciador Oswaldo
Eustáquio. Iniciou-se então a convocação nas redes para a “tomada de poder” nos dias 7 e 8 de
janeiro. O plano não era quebrar tudo, mas retomar a mobilização. Eles acharam que, se antes
falhara o “golpe militar”, a opção agora era o “golpe popular”.
As convocações começaram para valer no dia 4 de janeiro. Azevedo fez chamamentos; o cantor
gospel Salomão Vieira gravou vídeo conclamando fiéis evangélicos a irem a Brasília. Como
inspiração, alguém postou um vídeo em que populares invadem a residência presidencial do Sri
Lanka, em 9 de julho de 2022. Em grupos bolsonaristas do Telegram acompanhados pela piauí,
usuários compartilhavam links de compra de artefatos de proteção militar, como máscaras de
gás. Ana Azevedo começou a transferir a estrutura no dia 7. De início, como não tinha
autorização legal para se instalar no gramado da Esplanada, montou seu aparato no
estacionamento do Ministério da Saúde. Depois, quando a coisa já estivesse funcionando,
retiraria as tendas do QG.

As convocações chamaram a atenção em alguns setores do governo, em especial do ministro


Dino e o delegado Andrei Rodrigues. “Alguns cards de protestos falavam em fechar refinarias. Eu
então ligo para os governadores Tarcísio de Freitas [de São Paulo] e Cláudio Castro [do Rio de
Janeiro],Aalém
Folha utiliza cookies e tecnologias semelhantes, como explicado
do Ibaneis, e eles são muito receptivos. Dizem que vão mobilizar as PMs. E tudo
em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e
funcionou, mesmo Ao
publicidade. elesnavegar
não sendo do nosso
por nosso campo
conteúdo, político”,
o usuário conta
aceita tais o ministro. O GDF de Ibaneis
marcou uma reunião
minha conta para o dia 6 condições.
para que todos os órgãos se alinhassem sobrefazer
a revista o que fazer
logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 18/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

diante da chegada iminente de caravanas de ônibus a Brasília. Contudo, naqueles dias, os


principais dirigentes da Secretaria de Segurança Pública tinham outras preocupações – entre elas,
manter-se no cargo.
Anderson Torres, o novo secretário de Segurança do DF, indicara servidores da Polícia Federal
para ocupar os principais postos. Ele próprio fora delegado da PF antes de entrar na política. Mas
o ministro Dino acabara de assinar uma portaria que lhe dava poder de veto sobre a cessão de
qualquer servidor da PF para órgãos públicos. Então, naquele momento, todos os cargos da pasta
de Torres, incluindo o dele próprio, estavam sob o crivo de Dino. “Eles passavam os dias
trancados em reunião, sem ter qualquer contato com os assuntos da Secretaria”, conta um
funcionário da pasta, que falou com a piauí sob a condição de não ter seu nome revelado.

A turma de Torres estava tão alheia a tudo que, no dia 5, quando o general Gustavo Dutra
procurou a Secretaria e pediu uma reunião para, enfim, desmanchar o acampamento do QG,
Torres fez pouco caso, mas marcou o encontro para a manhã do dia 6. Na ocasião, aparentemente
alheio a qualquer maquinação golpista, o general Dutra pediu a Torres verba para ajudar os 150
remanescentes do acampamento que não tinham dinheiro para voltar para casa. Torres disse que
não tinha recursos, mas outra secretaria trataria do caso.
No mesmo dia 6, na primeira reunião ministerial do governo Lula, José Múcio foi criticado
abertamente pelo presidente por ter dito que os acampamentos estavam se desfazendo por si só.
Diante da bronca pública, Múcio chamou Arruda, o comandante do Exército, e lhe deu um
ultimato: desfazer os acampamentos já. Arruda disse que as coisas não poderiam ser feitas de
forma atabalhoada. E, pela primeira vez, admitiu um dos fatos que explicaria, em parte, a
proteção irrestrita dada pelo Exército aos acampados: ali havia militares da reserva e familiares
de militares da ativa. Arruda insistiu que o desmonte ocorresse de forma gradual, com o apoio
do GDF aos vulneráveis.
Enquanto isso, o pessoal da Secretaria de Segurança se reuniu para planejar a atuação nos
protestos do fim de semana. Torres não participou, o pessoal do GSI também se ausentou, mas
havia representantes da PM, dos bombeiros, do Detran, das polícias da Câmara, do Senado e do
Supremo. O coronel Marcelo Casimiro Vasconcelos Rodrigues, do 1º Comando de Policiamento
Regional, que cuida da área da Esplanada, chegou bem informado. Havia recebido por
WhatsApp um folder que convocava para a “Tomada do Poder pelo Povo”. A ata da reunião, à
qual a piauí teve acesso, mostra que o coronel Casimiro falou da circulação de “áudios em redes
sociais” alertando para a possibilidade de “ invasão de prédios públicos”, afirmou que “não se
pode descartar, que é preciso ficar bem atento aos eventos”, informou “que haverá reforços de
viaturas”, propôs reforçar também “as portarias e a segurança dos prédios federais” e alertou que
seria “necessário providenciar um outro esquema de segurança se confirmados os atos”.
Os alertas eram apenas para constar, tanto que, na hora H, a Polícia Militar escalou um major
para cuidar da tropa na Esplanada, e não um tenente-coronel ou coronel. Em vez de oficiais,
mobilizou alunos da Academia de Polícia Militar de Brasília sem equipamento apropriado. Não
providenciou água nem comida para os policiais escalados. Não fez o planejamento operacional,
em que AseFolha
informa
utilizaa cookies
quantidade de efetivo
e tecnologias e a posição
semelhantes, dosexplicado
como batalhões. Para piorar, na noite do dia
em nossa Política de
7, o subcomandante-geral daPrivacidade,
corporação,para recomendar
o coronel conteúdo
Klepter RosaeGonçalves, determinou que
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais
todo o efetivo ficasse de sobreaviso em casa, e não de prontidão no quartel. Com isso, entre o
condições.
minha conta a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 19/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

acionamento de um oficial e sua chegada a campo, gastam-se pelo menos duas horas – tempo
suficiente para que a Praça dos Três Poderes fosse destruída.
A Polícia Militar fez o que fez – e não estava no escuro. Depois de tudo, a Polícia Federal realizou
uma operação na casa do coronel Paulo José Bezerra, responsável interino pelo Departamento
Operacional da PM, e encontrou mensagens comprometedoras. Mostram que, quando cumpriu
a ordem de deixar a tropa de sobreaviso para o dia 8 de janeiro, o coronel Paulo José estava a par
da gravidade dos atos. Ele tinha um informante dentro do QG que lhe dissera, no dia 7, que os
manifestantes estavam “preparados para a guerra” e “não vão ceder de forma alguma”. Alertava
que havia risco de “morte” e que as coisas estavam “mais sérias do que muitos brasileiros estão
imaginando”. O coronel Paulo Jose repassou esse relato a colegas da PM, inclusive ao próprio
coronel Casimiro. Mesmo assim, não se tomou nenhuma prevenção.

E
nquanto o GDF agia como se tudo estivesse dentro da normalidade, no governo federal
crescia a preocupação. No dia 7, o delegado Andrei Rodrigues, a par da agitação nas redes
sociais, pediu à Secretaria de Segurança Pública que não autorizasse a descida dos
manifestantes do QG para a Esplanada. Fernando de Souza Oliveira, que estava no
comando da secretaria em razão da viagem de Anderson Torres de férias para os Estados
Unidos, alertou-o sobre um obstáculo legal: só podia barrar os manifestantes mediante ofício do
ministro da Justiça. Dino, no entanto, só encontrou previsão legal para impedir a circulação de
ônibus e caminhões na Esplanada, não de manifestantes. Assim foi feito, mas o delegado Andrei
Rodrigues continuou aflito. A um auxiliar, ele confidenciou que “não identificava nenhum
elemento de segurança” e que não havia “nem o mínimo razoável”.
Já os militares seguiam tranquilos. Mesmo alertado pela Secretaria de Segurança sobre a chegada
das caravanas e montagem de barracas no QG, o general Dutra continuou impassível. Por
WhatsApp, recebeu imagens dos ônibus chegando, enviadas por um servidor da Secretaria.
Respondeu:
– Bom dia, estamos coibindo.
Uma hora depois, o general recebeu em seu WhatsApp mais fotos e vídeos de barracas sendo
montadas. Voltou a minimizar o problema:
– Acredito que tenham chegado cerca de dez ônibus, confere?
Não conferia. Seu interlocutor respondeu que havia “muito mais” e, outra vez, disse que o
Exército não estava coibindo nada. Quando começaram a desembarcar fardos de água, um
funcionário do GDF voltou a chamar a atenção do general, que se esquivou do assunto:
– Não posso coibir levar água.
Quando os manifestantes começaram a fazer arruaça nas ruas do entorno, o general Dutra foi
informado que havia pouco efetivo e apenas duas viaturas do Exército bloqueando a turba de
duzentas pessoas. O general não respondeu nada. Minutos depois, seu WhatsApp recebeu outro
aviso deAque osutiliza
Folha manifestantes estavam tentando
cookies e tecnologias romper
semelhantes, comooexplicado
bloqueio. Novamente, o general não
emPor
disse nada. nossa
fim,Política de Privacidade,
recebeu a informação para
derecomendar conteúdo
que o bloqueio e sido rompido – e a Secretaria
havia
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais
minha conta condições. a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 20/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

de Segurança iria fechar o acesso ao SMU. Só então, o general deu sinal de vida. Agradeceu a
medida, em tom de reclamação:
– Vai tumultuar bastante, vai dificultar bastante o acesso ao SMU e prejudicar os moradores –
disse, e concluiu: – Mas é melhor.
Na véspera do dia 8 de janeiro, o governador Ibaneis Rocha ficou inacessível. Às 20h11, Dino
enviou dois ofícios ao governador informando que mobilizara a Força Nacional para proteger os
prédios da PF e do Ministério da Justiça, e oferecendo ajuda ao GDF. Não obteve resposta. Então,
ligou, mas não foi atendido. Às 23h28, Dino leu uma reportagem do site Metrópoles informando
que Ibaneis liberara as manifestações na Esplanada. Mandou o link da matéria ao governador e
pediu explicações. Enfim, obteve retorno. “Situação tranquila, no momento.”
O governador parecia encontrar-se num estado impróprio para conversas longas e respostas
elaboradas. Na mesma noite de 7 de janeiro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, enviou
suas preocupações. “Estimado governador, boa noite! Polícia do Senado está um tanto apreensiva
pelas notícias de mobilização e invasão ao Congresso. Pode nos ajudar nisso? Abraço fraterno.
Rodrigo.” O governador respondeu em três mensagens curtas:
– Já estamos mobilizados.
– Não teremos problemas.
– Coloquei todas as forças nas ruas.

N
a manhã de domingo, dia 8, a Polícia Militar estava tranquila. Seus relatos informavam
que os ânimos se mantinham pacíficos e nem havia certeza de que os bolsonaristas
desceriam à Esplanada. Em depoimento, depois de ser presa no dia 11 de janeiro, Ana
Priscila Azevedo disse que não havia acordo sobre a descida porque a estrutura do
acampamento na Esplanada ainda não estava pronta. Mas contou que seu sócio na cozinha,
Rubem Abdalla, decidira comandar a descida. Durante o trajeto, de início pacífico, os espíritos
foram se exaltando na medida em que se ouviam gritos de “tomar o poder” e “invadir tudo”. Já
então era tarde demais para a PM abortar a caminhada. Às 14h30, a massa rompeu a primeira
barreira de revista – e Dino correu para o Ministério da Justiça, aonde chegou a tempo de ver a
multidão invadindo o Congresso sem qualquer resistência da PM.
Dino acionou o governador do DF. Mais uma vez, sem sucesso. Ligou então para Gustavo do
Vale Rocha, chefe da Casa Civil do governador, que se deslocou de imediato até o Ministério da
Justiça, acompanhado da vice-governadora, Celina Leão. Ali, no Ministério da Justiça, começou a
se formar o bunker do legalismo. Chegou Ricardo Garcia Cappelli, secretário executivo de Dino,
chegou Alexandre Padilha, ministro da Secretaria de Relações Institucionais. Logo chegaram José
Múcio, da Defesa, Miriam Belchior, secretária executiva da Casa Civil, e o ministro-chefe do gsi,
general Marco Edson Gonçalves Dias, que respondeu pela segurança de Lula durante duas
décadas.
QuandoADino
Folhatelefonou parae Lula,
utiliza cookies que cumpria
tecnologias agenda
semelhantes, em
como Araraquara, no interior de São Paulo,
explicado
em nossa
a decretação de uma Política
GLO, deque
Privacidade,
entrega apara recomendar
segurança conteúdo
pública paraeas Forças Armadas, já estava
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais
descartada. Discutiu-se a alternativa de uma intervenção federal. Nesse caso, toda a cúpula do
minha conta condições. a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 21/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

GDF é afastada. Lula descartou a ideia. Preferiu a intervenção apenas na área da segurança
pública. Num primeiro momento, o interventor seria Dino. Quando o decreto que o nomeava
para a função já estava pronto para ser assinado por Lula – tudo por meio de WhatsApp –, o
ministro deu-se conta de que, pela Constituição, ele, como senador diplomado, só poderia
assumir a função de ministro no Executivo, não a de interventor.
Nesse momento, Ricardo Cappelli estava exasperado. Da janela do ministério, ele observava a
tropa da Força Nacional permitindo que os manifestantes passassem pela lateral do prédio.
Desceu até o térreo para falar com eles. “Eles não faziam nada. Eu achei aquilo um absurdo. Aí
eu desci e me apresentei como secretário do ministério e botei voz de comando neles. Falei:
‘Olha, daqui não passa mais ninguém. Não entra manifestante’”, relembrou à piauí. Pela janela, os
ministros Dino e Padilha testemunhavam a reação de Cappelli. Quando ele subiu de volta ao
gabinete, já era chamado de interventor.
Quando Cappelli assumiu a nova função, a PM finalmente havia convocado toda a tropa para a
Esplanada. O batalhão de choque varria o gramado com ajuda da cavalaria e das bombas de
efeito moral disparadas por helicópteros. Mas Cappelli achou que a movimentação da linha de
choque era lenta demais e cobrou rapidez. Os policiais militares não concordavam com a
avaliação do interventor, que, segundo eles, não entendia como funcionava uma linha de choque.
Cappelli também pediu que o batalhão de choque prendesse os manifestantes, mas recebia a
resposta de que, primeiro, era preciso paralisar os ataques para então efetuar as prisões.
O general Gonçalves Dias, chefe do GSI, deixou o Ministério da Justiça e deslocou-se para o
Planalto, já parcialmente invadido. Chegou mandando prender todos os manifestantes. O
resultado foi uma cena brancaleônica, protagonizada por incompetentes e por conspiradores.
Para operacionalizar as prisões, o general G. Dias, como é conhecido, ligou para o coronel
Wanderli Baptista da Silva Júnior, diretor-adjunto do Departamento de Segurança Presidencial.
Como recebera ordem de apenas evacuar os invasores, sem prender ninguém, Silva Júnior
resolveu confirmar a determinação de fazer as prisões. Ligou para seu superior, o general Carlos
Feitosa Rodrigues. Nesse meio tempo, a Polícia Militar e o Batalhão da Guarda Presidencial
(BGP) se desentendiam. A PM querendo prender e o BGP, ligado ao Exército, impedindo as
prisões. O ministro Dino queria prisões imediatas. “Meu medo era o efeito dominó, caso isso se
consolidasse pelo país. Seria um problema nacional. A minha visão era de pânico. Para mim,
aquilo era a coluna do general Mourão”, relembra o ministro, referindo-se ao dia 31 de março de
1964, quando o general Olympio Mourão Filho – depois de tirar o pijama e o roupão de seda
vermelho, como fez questão de registrar em suas memórias – desceu com seus tanques de Juiz de
Fora em direção ao Rio de Janeiro, colocando em marcha o golpe que levaria os militares ao
poder por 21 anos. “Esse pessoal tem gente em torno, tem base social, não é um amontoado de
desvairados. E, no vai que cola, vai que cola? Imagine a gente lidando com uma crise como essa
em dez estados?”
O governador Ibaneis Rocha continuava hibernando. Dino não conseguia achá-lo. Nem a
presidente do STF, Rosa Weber, nem o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, nem o presidente
da Câmara, Arthur Lira. Quando finalmente alcançou o governador, ainda antes da invasão do
A Folha utiliza cookies e tecnologias semelhantes, como explicado
STF, Rosaem
Weber
nossarecebeu uma
Política de resposta para
Privacidade, telegráfica: “Estamos
recomendar cuidando.”
conteúdo e Depois de horas de
sumiço epublicidade.
mensagens Aolacônicas,
navegar por nosso conteúdo,
o governador o usuário
terminou o aceita taisjaneiro destituído do cargo pelo
dia 8 de
minha conta condições. a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 22/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

STF. Mas Dino não acredita que o governador fizesse parte da teia do golpe. “Minha hipótese não
era de que o Ibaneis sabia do golpe, e sim que ele ouvia isso [de que tudo estava sob controle] da
equipe dele. Ele ouvia e transmitia para mim, para o Lira, para o Pacheco e para a Rosa. Mas que
a equipe estava conivente, eu não tenho dúvidas. O que estamos tentando identificar é quem
estava conivente.” Procurado pela piauí, o governador não quis falar.
O comandante-geral da PM no dia 8 de janeiro, coronel Fábio Augusto Vieira, foi preso nas
investigações, suspeito de ter colaborado com golpistas. Na véspera do ato, no entanto, ele agira
conforme o figurino. Pediu que a tropa da PM fosse reforçada – e foi ignorado por seus
subordinados. Ele entrou em ação, atuando nos confrontos e saiu ferido. Mesmo assim, ficou 24
dias preso até os investigadores descobrirem que não era um colaboracionista. Já seus
subordinados, que desobedeceram suas orientações, nunca foram incomodados. Em maio, o
Ministério Público Federal concluiu que a atuação dos policiais militares não teve “dolo”. A PF
apontou que o coronel Paulo José, cujo informante alertou que os atos seriam violentos, incorreu
apenas em “omissão”. O coronel Klepter Rosa, que cometeu o erro de deixar a tropa apenas de
sobreaviso, foi promovido a comandante-geral da PM quando o coronel Fabio Augusto estava
injustamente preso. E segue no cargo até hoje.

O
Supremo, o Planalto e o Congresso foram desocupados perto das 18 horas, mais de três
horas depois do rompimento da primeira barreira de revista. A partir de então, os 2 mil
policiais militares que estavam em campo começaram a cumprir as ordens de prisão. A
orientação era marchar da Esplanada em direção ao QG e prender todos que estivessem
no caminho. A operação era chefiada pelo coronel Jorge Eduardo Naime Barreto. Considerado o
policial mais experiente da PM, Naime estava em férias no início de janeiro, mas se juntara à
tropa naquele domingo para ajudar a combater os vândalos. Porém, como sua folga coincidira
com a cadeia de erros cometidos pela corporação nas vésperas do dia 8, os investigadores
desconfiaram de seu envolvimento na conspirata golpista. Naime está preso desde fevereiro.
Em depoimento à CPI do Distrito Federal, Naime contou que começou a sentir a animosidade do
Exército assim que se aproximou do acampamento no QG para efetuar as prisões, na noite do dia
8. Ele estava comandando a tropa de choque em frente à Catedral Rainha da Paz, uma área
pública. Mas logo foi abordado por um tenente do Exército. Exaltado, o militar dizia que o
coronel não podia estar ali fazendo prisões porque era “área do Exército”. O coronel prosseguiu
com as prisões, levando cerca de cinquenta pessoas. Minutos mais tarde, viu uma cena insólita.
“Quando eu olhei para trás, tinha uma linha de choque do Exército, montada com blindados”,
disse. “Eles não estavam voltados para o acampamento. Eles estavam voltados para a PM,
protegendo o acampamento.”
O interventor Ricardo Cappelli não demorou a chegar ao local. Quando avistou a tropa do
choque do Exército voltada contra os policiais, disse ao comandante-geral da PM, coronel Fábio
Augusto: “Comandante, prepare a tropa porque a gente vai prender todo mundo lá dentro.” O
coronel ficou nervoso e ligou para o general Gustavo Dutra, do Comando Militar do Planalto,
para avisar queutiliza
A Folha fariacookies
as prisões. Dutra mandou
e tecnologias pedircomo
semelhantes, paraexplicado
encontrar Cappelli dentro de alguns
em nossa
minutos em frentePolítica
à Torredede
Privacidade, para recomendar
TV, um ponto conteúdo dali.
não muito distante e Ao ouvir o recado, Cappelli
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais
se recusou: “Manda dizer que eucondições.
não saio daqui. Se ele quiser falar comigo, que venha para cá.”
minha conta a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 23/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

O general foi. O diálogo, segundo Cappelli e outras duas testemunhas, começou com o general
Dutra colocando panos quentes:
– General, como assim, calma? Eu vou entrar – reagiu Cappelli.
– Se o senhor entrar, haverá um banho de sangue – disse Dutra.
– Banho de sangue por quê, general? Por acaso tem manifestante armado dentro do
acampamento, sendo protegido pelo Exército?
– Não – disse o general. – É porque está de noite, os ânimos estão exaltados, vai ter gente que vai
correr, vai ter enfrentamento, as pessoas podem se machucar.
O banho de sangue, bem entendido, seria a tropa do Exército investindo contra os policiais, e não
contra os manifestantes. Nesse momento, Cappelli resolveu ligar para Dino para explicar o
impasse. Enquanto isso, o general Dutra apressou-se em ligar para G. Dias e expor a avaliação do
Exército para Lula, segundo a qual as prisões naquele momento eram uma “operação de alto
risco”. Como estava ao lado de Lula no Palácio do Planalto, G. Dias desligou o telefone e
consultou o presidente sobre o assunto. Dois minutos depois, retornou a ligação:
– O presidente está muito irritado e diz que é para a polícia entrar [no acampamento] – disse G.
Dias.
– General, vai dar problema – ponderou Dutra.

– Então, fala com ele – respondeu G. Dias, passando o telefone para Lula.
Dutra ficou surpreso. Pelo rito hierárquico, não cabe a um general de três estrelas conversar com
o presidente sem a presença do comandante do Exército. Mas, naquela situação de emergência,
Dutra foi em frente e expôs seu pleito. Lula reagiu:
– Eles são criminosos, têm que ser todos presos – disse.
– Presidente, ninguém duvida disso. Serão todos presos. Mas, até agora, nós só estamos
lamentando dano ao patrimônio. Nós podemos terminar essa noite com sangue.
– Seria uma tragédia – disse Lula, que acabou concordando que as prisões fossem feitas apenas
ao amanhecer.

O aval do presidente, porém, não chegou a todos – e nem todos acreditaram que, de fato, o
general Dutra falara com Lula. Neste clima de desconfiança e incerteza, Dutra disse a Cappelli
que o comandante do Exército, Júlio Cesar Arruda, queria vê-lo no prédio do Comando Militar
do Planalto, a poucos metros dali. Cappelli e auxiliares encontraram o general à porta do quartel,
cercado por vinte militares. Na sala de reuniões, com a presença de Cappelli e do coronel Fábio
Augusto, o comandante da PM, o general abriu sua artilharia verbal.
– O senhor ia entrar aqui com tropas sem a minha autorização? – indagou Arruda, dirigindo-se a
Cappelli.
– Não, general. Eu ia consultá-lo – respondeu Cappelli, constrangido com a abordagem à
queima-roupa.
A Folha utiliza cookies e tecnologias semelhantes, como explicado
– Eu achoem
quenossa Política
tenho umade Privacidade,
tropa um poucoparamaior
recomendar conteúdo
que a sua, e coronel Fábio Augusto? –
não é,
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais
provocou Arruda, virando-se para o comandante da PM.
condições.
minha conta a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 24/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

Cappelli, duvidando de que o general Dutra tivesse falado com Lula, insistiu nas prisões
imediatas e argumentou que a situação daquela noite era absurda, que o acampamento tinha de
ser desfeito e as prisões precisavam ser efetuadas o quanto antes.
– O senhor não concorda, general? – perguntou Cappelli.
– Não – cortou Arruda. – O senhor tem que entender que o Brasil está dividido.

Era a histórica cantilena militar de que eleição boa é eleição a favor. A afirmação de Arruda
deixou o clima uma tonelada mais pesado. O general prosseguiu dizendo que precisava que os
ônibus fossem devolvidos para que os acampados pudessem ir embora e o acampamento, enfim,
ser desmontado. Tudo indicava que o general não tinha intenção de colaborar nas prisões
acertadas nem para o amanhecer do dia. Chamados para desfazer o impasse, três ministros
apareceram no quartel: Dino, Múcio e Rui Costa, chefe da Casa Civil. Cappelli e o coronel Fábio
Augusto foram para a antessala, e o trio de ministros assumiu a negociação com o general
Arruda. Quando deixaram o Comando Militar do Planalto, o plano estava definido: ao raiar do
dia, os acampados seriam retirados, colocados em ônibus e levados para a sede da PF. Já passava
de duas da madrugada.
Às seis da manhã, cerca de 500 policiais militares, mais uma vez, estavam posicionados na
Catedral Rainha da Paz. Para convencer os acampados a saírem do local, um capitão do Exército
pegou um megafone e os orientou a deixarem as barracas e se dirigirem, levando seus pertences,
aos ônibus estacionados ali perto. Eles obedeceram, seguindo em fila. Muitos nem se deram
conta de que estavam sendo presos. Confiavam tanto no Exército que pensaram que
embarcariam nos ônibus para voltar para casa.
Entre os presos, há uma enorme diversidade. O vendedor de picolé de Salvador que aproveitou a
viagem de graça para Brasília e a ajuda de custo de 400 reais. O jovem que chegou à capital com
despesas pagas por fazendeiros do Pará. O pernambucano que fugia da perseguição do PCC e
achou boa ideia morar no acampamento. O mineiro de 20 anos que foi passar seu aniversário em
Brasília, escondido da mãe. O evangélico do Piauí que se deslocou para a capital federal em
busca de emprego e acabou atraído pela comida de graça. No quebra-quebra, ele quis entrar no
STF e terminou preso, mas acredita que “se fizer algo contra Lula” ainda vai “parar no Céu”. E há
os convictos.
“Eu me deslumbrava. Achava que o Exército era uma entidade fortíssima”, diz o consultor de
seguros Antônio Augusto Menezes Costa, de 57 anos, que chegou ao QG na manhã do dia 8 de
janeiro, oriundo de Vitória, no Espírito Santo. “Eu não culpo o baixo escalão. Eu culpo o alto
escalão. Eles que são maus. Não acataram a ordem verdadeira que o Exército poderia tomar
sobre si.” A “ordem”, claro, era a intervenção militar. Costa votou em Lula duas vezes, mas
decepcionou-se com a corrupção. Não conhecia Brasília. Ao chegar na capital, alugou uma
barraca no acampamento mas, cansado da viagem, pegou no sono e perdeu a descida para a
Esplanada. Terminou preso. Como tem pressão alta, acabou liberado. Passou a noite na
rodoviária de Brasília e, na manhã do dia 10 de janeiro, tomou o ônibus para Vitória. Acredita
que a quebradeira foi obra de “infiltrados” e continua fã de Bolsonaro – “fala a verdade”, “é
honesto”A Folha
e “lutautiliza
pelacookies e tecnologias
liberdade”. semelhantes,
E, agora, como almirantes
odeia generais, explicado e brigadeiros.
em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais
minha conta condições. a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 25/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

N
a tarde do dia 21 de janeiro, o site Metrópoles informou que o ex-ajudante de ordens de
Bolsonaro, o coronel Mauro Cid, comandaria o Batalhão de Operações Especiais de
Goiânia, o de maior prestígio no Exército. O batalhão é responsável pelo BGP, que faz a
guarda presidencial. A notícia surpreendeu metade da República – do ministro Gilmar
Mendes, do STF, ao presidente do TCU, Bruno Dantas. Naquela noite, Lula interpelou seu
ministro da Defesa sobre o assunto. José Múcio desconversou. Na manhã seguinte, às 6h40, antes
de embarcar para Roraima, Lula voltou a ligar, impaciente. Não pediu a demissão do general
Arruda, que nomeara Cid, mas cobrou resultado. “Quero ver como você vai resolver isso”, disse.
Múcio prometeu que quando Lula voltasse de Roraima, onde se descobrira o surto de doença e
fome que vinha matando os yanomamis, “o problema estará resolvido”.
Àquela altura, Cid já estava sob investigação do Supremo por participação das maquinações do
golpe, mas Múcio queria reverter sua indicação de modo diplomático. Fez chegar ao ministro
Alexandre de Moraes um pedido para que fizesse constar nos autos do inquérito, explicitamente,
que Cid era investigado. Assim, Múcio poderia contestar a promoção com argumentos jurídicos.
Moraes topou. Mas, antes disso, Múcio chamou o general Arruda para uma conversa. Ouviu
uma desculpa de ordem administrativa para manter a indicação de Cid. Múcio resistiu. A
conversa azedou e, sem outra saída, Múcio demitiu o general do comando do Exército ali mesmo.
À noite, Lula disse a Múcio que naquele dia, ao cortar a cabeça de Arruda, ele havia, de fato,
assumido como ministro da Defesa.
O telefonema de Múcio convidando o general Tomás Paiva para substituir o general Arruda
pegou-o desprevenido, de bermuda, fazendo compras no supermercado, em São Paulo. Paiva
pediu uns minutos para pensar e consultou Arruda, de quem é amicíssimo. Os dois se formaram
na Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende, no mesmo ano. Na conversa com Arruda,
tomou pé da situação e, em seguida, ligou para Múcio aceitando o cargo. Paiva tinha as mesmas
credenciais militares que o antecessor, mas havia uma diferença crucial: era um legalista, já
defendera publicamente a democracia e a soberania do voto popular. Naquela tarde, tomou um
avião para Brasília, conversou com Lula e saiu comandante do Exército. A mudança, comunicada
ao Alto Comando em uma reunião virtual, chegou sem sobressalto. Até para os militares, era
uma demissão óbvia.
Os personagens mencionados nesta reportagem tiveram destinos diversos. O general Dutra
permaneceu como comandante militar do Planalto até o dia 12 de abril. Depois de deixar o cargo,
foi convocado pela CPI da Câmara Distrital para explicar a relação entre o Exército e o
acampamento. A caserna fez gestões para mudar a “convocação” para “convite” – uma diferença
sutil, que demonstra a dificuldade dos militares em assumir qualquer responsabilidade sobre o
ocorrido naqueles dias. Em seu depoimento, Dutra mentiu à vontade. Disse que a Polícia Militar
“nunca combinou conosco de desmobilizar o acampamento” e que o Exército não deu “vida fácil
aos manifestantes”. Negou, inclusive, que o Exército tenha apontado seus tanques para a PM na
dramática noite de 8 de janeiro. Alegou que a tropa estava ali para proteger o quartel dos
vândalos.
A Folha utiliza cookies e tecnologias semelhantes, como explicado
Andersonem nossapassou
Torres Política 117
de Privacidade,
dias preso para recomendar
depois conteúdo
que a polícia e
encontrou em sua casa uma minuta
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais
para decretar “estado de defesa”condições.
e intervir no TSE – era a “minuta do golpe”, como ficou
minha conta a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 26/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

conhecida. O general G. Dias acabou pedindo demissão do GSI, depois que um vídeo revelado
pela CNN Brasil o mostrou caminhando tranquilamente no Planalto no auge das depredações. O
coronel Cid, cujo nome aparece envolvido em todos os escândalos desenterrados do governo
Bolsonaro, está preso desde o início de maio.
O general Júlio Cesar Arruda, o ex-comandante do Exército, está na reserva e continua impávido.
Durante a apuração desta reportagem, a piauí perguntou a todos os entrevistados sobre o seu
caso. Afinal, o general protegeu um ninho de manifestantes – que incluía criminosos, como
promotores de atentados –, resistiu à ordem do interventor de prender os golpistas, chegou ao
extremo de usar o batalhão de choque do Exército para arreganhar os dentes para uma tropa da
Polícia Militar – e, mesmo assim, atravessou a tempestade sentado na cadeira de comandante do
Exército. Dentre todas as respostas, a de Cappelli dá uma ideia de como é tênue a teia da
democracia:
– Você tira a tampa da panela de pressão com ela fervendo? – ele pergunta, e ele mesmo
responde: – Não, você espera a temperatura baixar.
Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_201 com o título “A teia do golpe”.

Ana Clara Costa


Repórter da piauí. Foi editora de política na Veja, editora do Globo em Brasília e editora-
chefe na Época

LEIA TAMBÉM

A Folha utiliza cookies e tecnologias semelhantes, como explicado


em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais
minha conta condições. a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 27/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

anais da intentona questões militares

OS KIDS PRETOS O MITO DO MITO


O papel da elite de combate do Exército nas maquinações Os fatos dizem que a eficiência das Forças Armadas na
golpistas gestão pública é mais fantasia do que realidade
06 jun 2023_14h15 30 maio 2022_15h06

questões da ultradireita

ADEUS AO RETROCESSO
Os militares podem fazer bem ao governo e ao país, mas é
preciso eliminar as mensagens dúbias
30 jul 2020_07h02

NA REVISTA RÁDIO PIAUÍ

Edição do Mês Foro de Teresina


Esquinas A Terra é redonda (mesmo)

Cartuns Maria vai com as outras


Luz no fim da quarentena
Praia dos Ossos

Praia dos Ossos (bônus)


Retrato narrado
TOQVNQENPSSC

ESPECIAIS HERALD

Eleições 2022
QUESTÕES CINEMATOGRÁFICAS
má alimentação à brasileira
Pandora Papers EVENTOS

Arrabalde A Folha utiliza cookies e tecnologias semelhantes, como


AGÊNCIA LUPA explicado
Igualdades em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e
Open Lux
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, oEXPEDIENTE
usuário aceita tais
minha conta condições. a revista fazer logout
Luanda Leaks QUEM FAZ

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 28/29
10/07/23, 01:40 A teia do golpe de 8 de janeiro

Debate piauí
MANUAL DE REDAÇÃO
Retrato Narrado – Extras
Implant Files

Anais das redes


Minhas casas, minha vida
Diz aí, mestre

Aqui mando eu

IN ENGLISH SIGA-NOS
EN ESPAÑOL

LOGIN

WhatsApp – SAC: [11] 3584 9200


ANUNCIE WhatsApp – Alvinegra: [21] 99451-6954
Renovação: 0800 775 2112
Segunda a sexta, 9h às 17h30
FALE CONOSCO

ASSINE

© REVISTA piauí 2022


TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
Desenvolvido por OKN Group

A Folha utiliza cookies e tecnologias semelhantes, como explicado


em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e
publicidade. Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais
minha conta condições. a revista fazer logout

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/teia-do-golpe/ 29/29

Você também pode gostar