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17/06/2023, 14:43 A teia do golpe de 8 de janeiro

anais da intentona

A TEIA DO GOLPE DE 8
DE JANEIRO
Como políticos, militares e policiais se juntaram para
golpear a democracia no Brasil
Ana Clara Costa  |  Edição 201, Junho 2023

U m telão fora instalado na biblioteca do Palácio da


Alvorada no dia 29 de outubro do ano passado.
No dia seguinte, a partir das 17 horas, começou a se
projetar ali a apuração de votos do segundo turno pelo
Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Sentado numa
poltrona de couro modelo Barcelona, do arquiteto
alemão naturalizado norte-americano Mies van der
Rohe, Jair Bolsonaro tomava nota das oscilações na
contagem. A cada atualização do gráfico em que seu
desempenho recuava e o de Lula avançava, Bolsonaro
escrevia o número numa folha branca – e franzia a testa.
– Tá vendo! Tá vendo! Eu falei! Isso aí é golpe!
Desde a volta da democracia ao país, pela primeira vez
um presidente acompanhava a apuração na companhia
de dois generais: Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira,
ministro da Defesa, e Marco Antônio Freire Gomes,
comandante do Exército. Naquela noite, ambos
assentiam a cada afirmação do presidente de que a
apuração não era uma coisa séria. Às 18h44, quando

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Lula passou à liderança, um incômodo tomou conta do


ambiente. Bolsonaro parecia intuir que o jogo havia
acabado. Nos 72 minutos decorridos entre a virada do
petista e o anúncio oficial do resultado, às 19h56, o ar
se tornou irrespirável na biblioteca. E Bolsonaro estava
incrédulo.
Com a derrota já decretada, chegaram seus filhos,
Flávio e Eduardo, que assistiram à apuração em suas
casas e vieram com suas mulheres. Carlos estava
rompido com o pai. Michelle permanecia no Palácio
com as duas filhas, mas não acompanhou a contagem ao
lado do marido. O telefone não parava de tocar, com
ligações de ex-ministros, aliados e do presidente do pl,
Valdemar Costa Neto. A maior parte esbarrava no
coronel Mauro Cid, o ajudante de ordens. Bolsonaro
não queria falar com ninguém. Ficava irritado com o
tom de lamento das conversas. Recolheu-se por volta de
meia-noite.
A derrota não estava nos planos de Bolsonaro. Sempre
esteve convicto de que seria reeleito mesmo com as
“fraudes”. No último tracking do PL, feito na véspera
da eleição, ele aparecia à frente de Lula, embora dentro
da margem de erro. A pesquisa, feita pelo Instituto
Paraná, era um unicórnio – todos os demais institutos
apontavam vitória de Lula, por uma margem estreita.
Bolsonaro ficara especialmente animado com
um tracking do dia anterior, encomendado pelo PSD, de
Gilberto Kassab. Mostrava que ele abrira 20 pontos
sobre Lula no estado de São Paulo. Nas contas do
partido, bastavam 15 pontos de dianteira no eleitorado
paulista para que Bolsonaro fosse reeleito. No fim, teve
10 pontos.

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Na campanha, Bolsonaro media a temperatura de


acordo com sua recepção nos aeroportos. “Mesmo com
fraude, vou ganhar. Em 2018, eu botava mil pessoas no
aeroporto. Hoje, estou botando 20 mil”, dizia a aliados.
Por um lado, imperava a autoconfiança. Por outro, a
máquina pública se movia para garantir a vitória. No
abuso da máquina, Bolsonaro atingiu um novo patamar,
com uma gastança bilionária, que chegou perto dos 300
bilhões de reais. No abuso de poder, adotou uma
estratégia jamais vista no regime democrático: cooptou
grande parte das forças policiais, aparelhou as Forças
Armadas e encilhou um partido político. Tudo às claras,
incluindo até reunião com o corpo de diplomatas
estrangeiros no Brasil, sempre com a intenção de
tumultuar o processo eleitoral e insuflar apoiadores para
uma virada de mesa – uma crônica cujos detalhes
a piauí reconstituiu durante três meses de apuração.
 

N o dia 4 de outubro, dois dias depois do primeiro


turno em que Lula chegou na frente, o diretor
geral da Polícia Federal, Márcio Nunes de Oliveira, fez
uma reunião virtual com os superintendentes da
corporação. Pediu foco total para coibir crimes
eleitorais. A ordem produziu um certo estranhamento –
afinal de contas, combater esse tipo de crime era a
principal função da PF em qualquer eleição. Duas
semanas depois, em 19 de outubro, o tema motivou
outra reunião, desta vez com a Polícia Rodoviária
Federal (PRF). Convocado com apenas dois dias de
antecedência, o encontro tinha de ser presencial, em
Brasília. Celulares e relógios, ou qualquer aparelho
capaz de fazer registros, estavam proibidos.

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Na reunião, reconstituída pela piauí a partir de


entrevistas com duas testemunhas, o então diretor da
PRF, Silvinei Vasques, foi direto: pediu fiscalização
rigorosa no Nordeste e em eleitores do PT. Ponderou
que Bolsonaro fora generoso com a PRF e deveria se
reeleger. Os agentes precisariam ficar de olho em
qualquer ilegalidade de trânsito, atentando para veículos
com documentação irregular, falta de capacetes ou
equipamentos de segurança vencidos. Numa indicação
de que todos sabiam que a conversa era imprópria, nada
disso foi colocado na ata do encontro, segundo apurou o
jornal O Globo.
Enquanto a PF e a PRF eram acionadas, a então diretora
de inteligência do Ministério da Justiça, Marília Ferreira
de Alencar, fez dois boletins de inteligência a pedido do
então ministro da Justiça, Anderson Torres. O primeiro
listava os municípios em que Lula e Bolsonaro tiveram
mais de 75% dos votos, divididos por estado. Para Lula,
a maioria estava no Nordeste. Para Bolsonaro, no Sul. O
segundo boletim mapeava a localização dos efetivos da
PRF nos estados. Conjugadas, as duas planilhas
continham dados úteis. Torres podia saber quantos
agentes da PRF era possível deslocar para as regiões
onde cada candidato era mais forte – e calcular o custo à
pasta em viagens e horas extras. Depois de enviar as
planilhas ao ministro, Alencar, ela também delegada da
PF, excluiu os boletins do sistema.
(Poucos meses mais tarde, na apuração dos atos
golpistas do 8 de janeiro, a servidora voltou a apagar
rastros. Ela chefiava a equipe de inteligência de Torres
no governo do Distrito Federal quando a Esplanada foi
invadida. Chamada para depor na CPI dos Atos
Antidemocráticos na Câmara Distrital de Brasília, a
delegada, antes de ser ouvida, foi à sede da PF pedir aos

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colegas para eliminar os arquivos de seu celular. Sumiu


ali um dos boletins eleitorais que havia enviado a
Torres.)
Na segunda-feira, 24 de outubro, seis dias antes do
segundo turno, o superintendente da PF da Bahia,
Leandro Almada da Costa, foi avisado de que receberia
as visitas de Torres e Nunes de Oliveira, o diretor-geral
da PF. Não havia uma pauta, a visita era uma surpresa e
nem constava na agenda do ministro. Na noite de terça,
a dupla chegou a Salvador em avião da Força Aérea
Brasileira, com assessores. O encontro se deu na manhã
seguinte. Torres informou que havia suspeitas de
compra de voto na Bahia, onde Lula cravara 69,7% no
primeiro turno. O ministro citou um áudio em que um
indivíduo denuncia ter sido coagido por um petista à
saída de sua zona eleitoral em Salvador. O áudio fora
amplamente divulgado e já tinha sido apurado pela PF,
que concluíra: era fake news. No fim da conversa,
Torres sugeriu que a PRF apoiasse as operações da PF.
Os federais estranharam a sugestão porque tal apoio não
era praxe e a corporação rodoviária se tornara
abertamente um braço do bolsonarismo.
Na sexta-feira 28, todas as superintendências da PF
receberam as listas dos municípios com mais
“suspeitas” de compra de votos. Na Bahia, sentindo
cheiro de armação, os policiais federais não deram bola
nem para a lista, nem para o apoio da PRF. Mas os
agentes rodoviários estavam a todo vapor, fazendo
operações atípicas na Bahia, Piauí, Alagoas, Ceará,
Paraíba e Sergipe. Ao montar uma blitz em locais onde
nunca haviam aparecido, os patrulheiros espantavam o
trânsito de quem estivesse com veículo irregular, coisa
comum nas vans, ônibus e motos de circulação
municipal. A medida logo suscitou suspeitas no PT. O

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deputado Paulo Teixeira (PT-SP) entrou no sábado com


um pedido no TSE para que a fiscalização fosse
interrompida. Na mesma noite, o ministro Alexandre de
Moraes proibiu as operações que estavam atrapalhando
o fluxo de eleitores.
Na madrugada do segundo turno, porém, Silvinei
Vasques enviou ofício orientando seus superintendentes
a ignorar a decisão do ministro, pois tudo que era
recomendado ali, dizia ele, já estava sendo feito pela
corporação. Os rodoviários em campo, alheios ao cunho
político da empreitada, começaram a estranhar a
quantidade incomum de efetivo nas estradas e o rigor
exigido pelas chefias na abordagem, como pedir para
que tirassem fotos de cada veículo parado e exigissem
documentação até de passageiros – não só do condutor.
A deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), que fundou a
Frente Parlamentar em Defesa da PRF, recebeu ligações
de agentes nas estradas denunciando os abusos. Em
contato com o chefe da PRF baiana, Virgílio Tourinho,
ela questionou a operação. “Ele me disse: ‘Não,
deputada, é apenas uma operação de trânsito.’ Eu disse
que a polícia rodoviária estava deixando de ser uma
polícia cidadã para se tornar uma polícia partidarizada.
Ele foi completamente conivente com tudo”, diz a
deputada.
No fim do dia, a despeito da alegação de que coibiriam
crimes em todo o país, 49,5% das operações se
concentraram no Nordeste, onde Lula liderava. No Sul,
reduto de Bolsonaro, apenas 8,74%. Houve mais
agentes deslocados para o Nordeste do que para o
Sudeste, região mais populosa do país. No STF,
Alexandre de Moraes convocou Vasques para dar
explicações e chegou a consultar colegas sobre
prorrogar o horário de votação. Decidiu manter tudo

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como estava, desconfiado de que os bolsonaristas


usariam o adiamento para tumultuar o processo
eleitoral. Na PF, havia expectativa de que o chefe da
PRF fosse preso naquela mesma noite, o que nunca
ocorreu.
Vasques foi exonerado ainda em 2022 e se aposentou
com salário integral. É réu por improbidade
administrativa, depois de ter pedido votos para
Bolsonaro em suas redes sociais, enquanto coordenava
o boicote a eleitores no Nordeste. “Vote 22”, postou ele,
com uma bandeira do Brasil. Também é investigado por
omissão quando caminhoneiros bloquearam as estradas
do país, nos dias que se seguiram às eleições. A PRF
não conseguia romper os bloqueios, mas até torcidas
organizadas de futebol conseguiam. A atual gestão da
PRF quer cassar a aposentadoria de Vasques.
 

O influenciador bolsonarista Oswaldo Eustáquio,


preso em duas ocasiões por incitar atos
antidemocráticos, vive no Paraguai, asilado. Ele ajudou
a montar dois acampamentos de bolsonaristas em frente
de quartéis, depois da derrota de Bolsonaro, em Curitiba
e em Brasília. “Não havia uma organização, uma ordem.
Quando Lula ganhou, todo mundo foi organicamente.
Eu fui de imediato para o quartel-general do Exército de
Pinheirinho, em Curitiba, e organizei tudo por lá. No
começo de novembro, fui para Brasília e ajudei a
montar. A primeira coisa que fiz foi criar um estúdio de
podcast, para entrevistar quem passava por lá, como o
[Frederick] Wassef, advogado do Bolsonaro”, conta.
O acampamento de Brasília cresceu no ritmo das
doações. Banheiros químicos, tendas e restaurantes com
cozinha industrial eram o centro da engrenagem que

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dava aos manifestantes a sensação de estar em casa.


Havia café da manhã, lanches, almoço e jantar, além de
churrascos ocasionais, com carne enviada por
frigoríficos de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Havia ainda doação de bebidas alcoólicas, que também
podiam ser adquiridas dos ambulantes que se instalaram
no local. A fartura era tanta que atraiu gente pobre, em
busca de comida. Uma imigrante venezuelana conta que
arrecadava dinheiro para fornecer comida, roupas e
ajuda médica aos acampados. Ela pediu para não ter seu
nome revelado porque participou dos atos de 8 de
janeiro e teme ser procurada pela polícia. Conta ter
ficado 63 dias no acampamento para que o Brasil não
“se torne a Venezuela”.
Sem líderes, à medida que se passavam as semanas, os
grupos se desentendiam – por dinheiro. Eustáquio acusa
a ex-bancária Ana Priscila Azevedo, o caminhoneiro
Ramiro Alves da Rocha Cruz Junior e o empresário
Rubem Abdalla Barroso Júnior de liderarem o que ele
chama de “Máfia do Pix”, que pedia doações de
dinheiro em escala maciça na internet para a cozinha
principal do acampamento. Parte dos valores, acusa ele,
era embolsada pelos donos da cozinha. Priscila Azevedo
e Cruz Junior foram presos na esteira das investigações
do 8 de janeiro. Abdalla está foragido. As denúncias de
Eustáquio de que uma Máfia do Pix dominava o local
foram confirmadas por policiais militares ouvidos pela
CPI da Câmara Distrital, em Brasília.
As intenções golpistas dos acampamentos eram
explícitas, assim como o plano de invadir o Congresso
Nacional. A venezuelana que conversou com
a piauí disse que, desde o início, almejava entrar no
Congresso e ficar sentada no chão em vigília, mas sem
quebrar nada. Já Eustáquio conta que a ideia de seu

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grupo era efetuar a invasão entre o final de novembro e


o final de dezembro. Imaginava que, se o movimento
ganhasse tração, Bolsonaro tomaria coragem de
patrocinar uma quartelada. “A gente queria entrar e
ocupar o Congresso. Não queríamos quebrar nada,
porque é patrimônio da direita, da esquerda, do centro,
do povo brasileiro. Se conseguíssemos fazer essa
manifestação ainda em dezembro, entendíamos que o
chefe supremo das Forças Armadas, o presidente
Bolsonaro, poderia tomar uma decisão”, diz.
A decisão, no caso, era Bolsonaro evocar o artigo 142
da Constituição Federal que, na lógica peculiar do
bolsonarismo, atribui às Forças Armadas a função de
intervir entre poderes, como um “poder moderador” –
nesse caso, intervir no TSE, anulando a vitória de Lula.
“Não queríamos um golpe”, diz Eustáquio. “Queríamos
algo dentro da Constituição.” Ele diz que, ao final de
novembro, já estava claro que o Exército não lideraria
sozinho a quartelada. “Para nós, o acampamento era um
local para dormir e marcar a nossa presença. Não fazia
mais sentido ficar pedindo nada aos generais. O
Exército não tinha autonomia para fazer nada do que a
gente queria.” Eustáquio passou então, por meio de suas
redes, a convocar “patriotas” para a “Marcha da
Família”, prevista para 30 de novembro. Eles iriam ao
Congresso com o objetivo de invadir. “Tudo ali estava
no auge, tinha muita gente, o quartel bombando. Aí eu e
o pessoal do canal Hipócritas fizemos um vídeo.
Convocamos o Brasil inteiro”, conta.
Seu movimento despertou a ira do pessoal das cozinhas
do acampamento, não com a ideia de invadir o
Congresso, mas com o esvaziamento do local, caso
todos migrassem para a Esplanada. Sem “patriotas” nos
quartéis, as doações minguariam. “Era um negócio

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lucrativo que o quartel continuasse funcionando”, diz o


influenciador. Segundo Eustáquio, iniciou-se uma
campanha difamatória contra ele a partir de então, o que
acabou minando seu plano. “Diziam que éramos
infiltrados de esquerda, apoiadores do Lula, que era
uma cilada.” Em certo momento, a rixa escalou, ele foi
agredido e decidiu deixar o local e liderar um grupo que
passava o dia em frente ao Palácio da Alvorada, na
expectativa de falar com Bolsonaro, voltando ao quartel
apenas para dormir. Em uma dessas idas, chegou a
entrar no Alvorada, mas diz que não falou com
Bolsonaro. Em razão de pregar a invasão do Congresso,
Eustáquio foi alvo de nova ordem de prisão e fugiu para
o Paraguai.
Até aqui, a Máfia do Pix prestara um serviço
involuntário à democracia brasileira. Mas seu apetite
dinheirista voltaria mais tarde – e, dessa vez, na forma
de golpe.
 

O vendedor de carros Armando Valentin Settin


Lopes de Andrade frequentava o QG nesses dias
agitados. Preso nas investigações do 8 de janeiro,
acusado de levar artefatos explosivos em seu carro no
dia dos ataques, ele contou em seu depoimento que
testemunhou reuniões em que se discutiam atentados
terroristas. Em pauta, se debatia colocar bombas para
dinamitar o viaduto da rodoviária de Brasília, queimar
carros e incendiar estações de energia na cidade.
O Exército, anfitrião atencioso, recebeu os
manifestantes, inclusive os que maquinavam atentados
terroristas, de braços abertos. Na primeira semana de
novembro, quando o acampamento foi montado, o
coronel Fabiano Augusto Cunha da Silva, do Comando

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Militar do Planalto (CMP), mandou ofício ao governo


do DF para organizar as coisas. Informou que o carro de
som dos manifestantes estava autorizado a ficar na
frente do QG e os caminhões estacionariam em uma das
vias do Setor Militar Urbano (SMU), uma área próxima.
Também pediu que o governo do DF colaborasse com a
limpeza do local, ambulância e policiamento. Mas fez
um alerta: a Polícia Militar não podia, em hipótese
alguma, entrar no acampamento. Tinha que ficar nas
imediações da Catedral Militar Rainha da Paz, à entrada
do SMU. Só a Polícia do Exército poderia acessar a área
dos acampados.
Todos os pedidos do Exército foram atendidos pelo
governo do DF. A limpeza das ruas do acampamento era
feita três vezes ao dia. Naquele início de novembro, o
general Gustavo Henrique Dutra de Menezes,
comandante militar do Planalto, voltou a lembrar os
limites: a Polícia Militar e o governo do DF poderiam
retirar os vendedores ambulantes do local, mas não
poderiam mexer com a estrutura montada pelos
manifestantes que, segundo o general, tinham o direito
de estar lá. Era uma novidade e tanto: nunca o Exército,
desde a inauguração de Brasília, permitira que cidadãos
comuns se concentrassem naquele espaço, considerado
uma área de segurança.
Enquanto o acampamento crescia sob proteção fardada,
Jair Bolsonaro, entrincheirado no Alvorada, oscilava
entre a depressão pela derrota, o ódio de ver-se alvo da
piedade alheia e a certeza de que as urnas haviam sido
fraudadas. Ao seu redor, engalfinhavam-se três grupos
divergentes que tentavam tutelar sua fúria e conduzi-la
na direção que mais lhes convinha. O núcleo político,
composto pelos ministros Ciro Nogueira, Fábio Faria,
Rogério Marinho e Flávia Arruda, tentava convencêlo a

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reconhecer a derrota. O núcleo militar, liderado pelo


candidato a vice, general Walter Braga Netto, dedicava-
se a discutir “saídas constitucionais” para virar a mesa.
O núcleo ideológico, composto pelo ajudante de ordens
Mauro Cid, Eduardo Bolsonaro e assessores do gabinete
do ódio, tramava outros subterfúgios – e às favas os
escrúpulos constitucionais. No dia 1º de novembro, uma
reunião no Planalto explicitou a divergência.
Convencido pelo núcleo político de que era preciso
reconhecer o resultado eleitoral, num momento em que
as estradas eram bloqueadas e surgia o receio de
desabastecimento, Bolsonaro chamou seus ministros ao
gabinete para que chegassem a uma nota de consenso. O
texto, no trecho mais relevante, diria que “as
instituições democráticas haviam declarado Lula o
presidente eleito”. Era a forma indireta de admitir que
perdeu a eleição e aceitava a vitória de Lula. O
deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) não era ministro,
mas apareceu acompanhado de assessores. Contrário à
nota, disse ao pai que, com a população nas ruas, ele
não poderia fazer aquilo. Alegou que, se mais tarde se
provasse fraude nas urnas, ele teria o trunfo de não ter
reconhecido o resultado. Eduardo disse também que era
preciso “manter a esperança dos nossos”.
Bolsonaro ouviu o filho e avisou que, por haver posição
divergente, colocaria a nota em votação. Todos os
presentes, incluindo o vice Braga Netto e o ministro da
Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, votaram a
favor da nota. Só Eduardo foi contra. Mas foi o que
bastou para que o texto fosse alterado. Bolsonaro,
Eduardo e Braga Netto se dirigiram a uma sala próxima
para reescrever a nova declaração, que foi lida pelo
presidente diante das câmeras de tevê 45 horas depois
da derrota. Lendo a nota, agradeceu os 58 milhões de

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votos que recebeu e disse que os “atuais movimentos


populares são frutos de indignação e sentimento de
injustiça de como se deu o processo eleitoral”. Não
reconheceu o resultado, nem criticou os bloqueios de
estrada.
Na mesma tarde, num gesto político a portas fechadas,
sem imagens que pudessem estragar o teatro público,
Bolsonaro agiu dentro da normalidade. Pediu que o
coronel Mauro Cid ligasse para o ministro Gilmar
Mendes e convidou os membros da Corte para uma
conversa no Planalto. Depois de consultar seus pares,
Mendes pediu que Bolsonaro fosse até o STF. O
presidente atravessou a Praça dos Três Poderes, chegou
amigavelmente ao Supremo, reconheceu o resultado e
interagiu com os ministros de forma a distensionar o
clima. Ouviu deles que não o animava nenhum espírito
revanchista. Naqueles dias de incerteza, a burocracia
estatal instalou rapidamente um governo de transição
para reduzir o espaço para aventuras inconstitucionais.
A recusa de Bolsonaro em reconhecer a derrota
publicamente encheu os radicais de esperança de que
ele tinha um plano para permanecer na cadeira. E tinha
mesmo. Doze meses antes, começara a ser gestada a
estratégia de jogar dúvidas sobre o processo eleitoral,
em caso de derrota nas urnas. Faziam parte do projeto
os militares (mais por convicção do que por
oportunismo) e o presidente do PL, Valdemar Costa
Neto (mais por oportunismo do que por convicção).
 

A o entrar no PL em novembro de 2021, Bolsonaro


exigiu que o partido contratasse o engenheiro
Carlos Rocha, formado pelo Instituto Tecnológico de
Aeronáutica, para fazer estudos sobre a confiabilidade

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das urnas. Rocha era dono da empresa que foi


subcontratada para construir a primeira série de urnas
eletrônicas, em 1995. No ano seguinte, tentou registrar a
patente da urna, mas seu pedido foi negado porque a
máquina fora construída mediante especificações
estabelecidas pelo TSE – ou seja, não era uma invenção
dele. Rocha entrou num litígio. Queria receber royalties
sobre cada urna fabricada. Perdeu a parada e desde
então passou a integrar um diminuto, mas ruidoso,
grupo de acadêmicos e leigos que questionam as urnas.
Nos primórdios da internet, eles se reuniam em fóruns e
listas de discussão. No bolsonarismo, encontraram
abrigo e guarida – e ganharam as redes sociais e os
grupos de WhatsApp e Telegram.
Para viabilizar sua contratação, Rocha criou o Instituto
Voto Legal (IVL), registrado na Junta Comercial do
Estado de São Paulo em 30 de novembro de 2021, no
mesmo dia em que Bolsonaro se filiou ao PL. Desde o
início de 2022, o IVL levou quase meio milhão de reais
do partido produzindo relatórios que passaram a
incendiar a imaginação conspiratória da extrema direita.
Mas, como Bolsonaro acreditava que ganharia nas
urnas, “mesmo com fraude”, os trabalhos do IVL
ficaram de estepe.
Na teia do golpe, o papel dos militares era político e
técnico. Assim que assumiu o Ministério da Defesa, em
abril de 2022, o general Paulo Sérgio Nogueira de
Oliveira recebeu a missão de tutelar a confiabilidade do
sistema eleitoral. Em público, as Forças Armadas jamais
apontaram problema nas urnas, mas, em privado, o
novo ministro vivia reclamando para Bolsonaro que sua
equipe não conseguia confirmar com o TSE que havia
“segurança do código-fonte”. Um ex-ministro do núcleo
político, que pediu para não ter seu nome citado por

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razões partidárias, conta que o general Braga Netto, que


deixou o Ministério da Defesa para ser vice na chapa de
Bolsonaro, era a figura-chave da estratégia de colocar as
urnas sob suspeita, ao lado do coronel Mauro Cid.
“O presidente sempre desacreditou das urnas, e os
militares estavam junto com ele nessa ideia”, diz o ex-
ministro. “Nós tentávamos tirar isso da cabeça dele, mas
logo voltava. Até que, uma hora, todas as reuniões em
que se falava de urnas já não contavam mais com a
presença do núcleo político. Era só o Braga Netto e o
Cid, que assistia a tudo na condição de ajudante de
ordens, mas era muito mais do que isso. O Ramos
[refere-se ao general Luiz Eduardo Ramos] depois se
inseriu nesse tema para bajular o presidente e estar
presente nessas reuniões”, diz o ex-ministro.
Braga Netto, além de chancelar a interpretação golpista
do artigo 142, vendia a impressão de que tinha controle
sobre a maioria dos dezesseis integrantes do Alto
Comando do Exército – razão decisiva para que
obtivesse a vaga de candidato a vice. Bolsonaro
acreditava, mas até os próprios militares do Planalto
achavam o cálculo excessivamente otimista. Na
verdade, nessa fase de conversas golpistas ao pé do
ouvido, o Alto Comando estava longe de um consenso,
mas a tese de que as urnas eram uma fraude nunca
perdeu força entre os militares.
Em pleno dia do primeiro turno, em 2 de outubro, o
coronel Marcelo Nogueira de Sousa, que acompanhava
a eleição no TSE em nome do Ministério da Defesa, fez
o seguinte comentário durante uma visita à sala de
apuração do tribunal: “O código-fonte é fraco.” Aos
mais chegados, com discrição, disse que, embora a
composição do tribunal mudasse com frequência, a

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“burocracia do TSE” continuava a mesma e era a


responsável por manter o sistema com as fraudes.
“Vocês entendem por que estamos aqui? Porque o
Alexandre de Moraes pintou o quadro e nós somos a
moldura que diz que o sistema está O.K. Agora, ele
pode vender o quadro.” Quem ouviu os comentários
ficou com a expectativa de que o relatório sobre as
urnas que ele produziria para o Ministério da Defesa,
depois do pleito, seria escandaloso.
Nos dias seguintes à derrota, Bolsonaro, mesmo em
seus acessos de irritação, nunca pediu claramente que o
relatório dos militares detonasse as urnas, mas suas
críticas intermináveis pressionavam a caserna, que,
embora também duvidasse do resultado, não queria
assumir a dianteira do assunto. “O sentimento geral dos
três comandantes era de indignação com a maneira
como foi tratada a eleição, a falta de transparência. O
povo pedindo e você não tendo resposta para dar”,
queixou-se um aliado militar de primeira ordem do
presidente, em conversa com a piauí. A indignação,
porém, não bastava para patrocinar uma aventura. As
cogitações de Bolsonaro de melar a eleição eram
respondidas com evasivas pelo ministro da Defesa, pelo
general Freire Gomes, comandante do Exército, e pelo
brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, que
comandava a Aeronáutica. Somente o almirante Almir
Garnier Santos, da Marinha, colocou-se à disposição do
chefe para o que ele desejasse. Estava de plantão para o
golpe.
O equivalente civil do almirante era Costa Neto, o
presidente do PL. As urnas haviam dado ao seu partido
uma fabulosa bancada de 99 deputados – e 1,2 bilhão de
reais de fundo partidário –, mas o político sentou-se na
primeira fila dos contestadores das urnas. No dia 8 de

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17/06/2023, 14:43 A teia do golpe de 8 de janeiro

novembro, ao anunciar o convite para Bolsonaro ser


presidente de honra do PL, Costa Neto não reconheceu
a vitória de Lula e expressou a certeza de que o relatório
do Ministério de Defesa, ainda em elaboração, apontaria
as fraudes. “Eles [os militares] vão trazer alguma coisa.
Não tenho dúvida disso, porque senão já tinham
apresentado, já tinham liquidado o assunto. E,
dependendo do que eles encontrarem, nós vamos brigar
no TSE com esses questionamentos que eles possam
trazer.”
No dia seguinte, na primeira reunião da nova bancada
do PL na sede do partido, em Brasília, Costa Neto foi
categórico ao dizer que havia algo errado com as urnas.
E foi apoiado pela franja radical do partido, composta,
entre outros, pelo deputado Filipe Barros (PL-PR), o
mais estridente da turma, a deputada Carla Zambelli
(PL-SP) e o recém-chegado Eduardo Pazuello (PL-RJ),
o general que fez a vexaminosa gestão da pandemia no
Ministério da Saúde. Todos haviam acabado de ser
eleitos – nas urnas eletrônicas. Naquele mesmo dia, a
Defesa finalmente divulgou seu relatório. Trazia uma
conclusão covarde de tão ambígua: não era possível
comprovar vulnerabilidades nas urnas, mas tampouco
era possível negá-las. Estava claro que não encontraram
nada de errado. Bolsonaro não gostou. Esperava um
relatório denunciando fraude, sobretudo porque sabia
que essa era a opinião dos militares. Para não entregar o
jogo, acionou-se então a estepe: um relatório do IVL.
E Costa Neto entrou no seu labirinto. Como nem os
militares acharam fraude, ele também queria pular fora
do barco, mas sua bancada bolsonarista pressionava
para que o partido usasse o relatório para contestar o
resultado. A máquina de difamação do entorno
presidencial entrou em campo, dizendo que Costa Neto

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já estava aderindo ao governo petista e andava se


encontrando com Lula. Entre perder sua bancada ou
perder a democracia, Costa Neto, ex-mensaleiro, ex-
preso, ex-lulista e atual bolsonarista no coração e no
bolso, decidiu atacar a democracia: apresentou o
relatório do IVL ao TSE. Sabia que o tribunal rejeitaria
a contestação, mas queria se livrar da pressão dos
radicais.
Mal calibrado, o relatório dizia ter encontrado “indícios
de mau funcionamento” em 59% das urnas eletrônicas
do segundo turno – apenas do segundo turno. Em
conversa com a piauí, o engenheiro Carlos Rocha
defendeu seu trabalho, dizendo que não contestou os
votos, apenas informou que havia “indícios de erros”.
“Se há um erro, nada mais natural do que pedir para
esse erro ser verificado”, diz.
Na prática, o conteúdo do relatório encaixou-se como
uma luva nas intenções de Costa Neto de contestar a
vitória de Lula, sem contestar a vitória dos seus 99
deputados, eleitos no primeiro turno. Mas o ministro
Alexandre de Moraes não caiu no truque. Deu 24 horas
para que o PL anexasse um relatório completo,
incluindo as urnas do primeiro turno, com base no fato
elementar que as urnas dos dois turnos eram as mesmas.
O relatório não foi anexado, e Moraes multou o PL em
22,9 milhões de reais por litigância de má-fé. A ala
bolsonarista indignou-se com os números (não o valor)
da multa: 2 + 2 + 9 = 13, o número do PT. Entenderam
que só podia ser um deboche de Moraes.
A recusa da ação do PL inflamou a ira de Bolsonaro
contra Moraes. Segundo um assessor, que acompanhava
o então presidente no momento em que saiu a decisão, a
irritação era visível, mas justificável. “O presidente não

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queria nada demais, só queria um papelzinho [refere-se


ao voto impresso] que provasse que o voto eletrônico
tinha sido computado”, diz o assessor, que trabalhava no
Palácio do Planalto. “Quando você entra com um
recurso e o recurso é ignorado, tratado com chacota,
você cria mais revolta. O normal seria receber a
denúncia, apurar e depois responder que não havia
nada.”
Os caminhos estavam se estreitando. As Forças
Armadas não agiam e a chicana jurídica resultara num
vexame. Um dos principais auxiliares de Bolsonaro
contou à piauí que o então presidente só teria “força
para fazer alguma coisa para checar as eleições” se,
além dos militares, tivesse também “o apoio do
Congresso e da mídia”. Diz ele: “Mas a mídia não
comprou a ideia de que precisávamos ter uma eleição
auditável.” Na conversa, esse auxiliar reconheceu que
mesmo a alternativa vista como “constitucional” – o
artigo 142 –, era, no fim das contas, uma saída
autoritária. “Qualquer coisa que o presidente fizesse
seria ação de força. No momento em que as Forças
Armadas saíssem, a Justiça iria em cima, mandar
prender general. É um ciclo que não para. Ia ter mais
vinte anos de regime de força”, disse o assessor, que
pertence à ala militar.
 

N as ruas, a realidade dos palácios e dos tribunais


ainda não havia chegado – e o ânimo dos
militantes do bolsonarismo não arrefecia. No dia 9 de
dezembro, saiu um mandado de prisão contra o indígena
José Acácio Serere Xavante. Ele invadira o aeroporto de
Brasília, causara tumulto num shopping center e tentara
invadir o hotel onde Lula estava hospedado durante a

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transição de governo. Era fácil cumprir a ordem de


prisão. O indígena não estava escondido. Fazia
até lives de suas estrepolias pela cidade e, todas as
noites, recolhia-se para dormir em segurança no
acampamento em frente ao QG do Exército.
A polícia, no entanto, não o prendeu no dia 9. Era uma
sexta-feira. Deixou passar o fim de semana e, na
segunda, decidiu cumprir a ordem – exatamente na data
em que Lula seria diplomado como presidente pelo
TSE. A polícia sabia que seria um dia de manifestações,
tanto que montara um esquema de segurança no
tribunal. Impedidos de protestar diante do TSE, os
ônibus lotados de bolsonaristas dirigiram-se ao Palácio
da Alvorada, para pedir a Bolsonaro que fizesse alguma
coisa. Os agentes da PF entenderam que era um bom
momento para prender Serere, em meio a uma turba
indignada. Os policiais subiram no ônibus, renderam o
indígena e o levaram, algemado, para a viatura.
Numa decisão inédita na história da PF em Brasília, o
preso deixou de ser levado para a sede regional da
corporação, localizada a mais de 8 km do acampamento
no QG. Pela primeira vez, recolheram um civil na sede
nacional da PF, bem no coração de Brasília e não muito
longe do acampamento. Os ônibus, lotados de
bolsonaristas, seguiram a viatura policial, os acampados
do QG foram avisados – e assim montou-se um
fenomenal quebra-quebra na capital.
Os agentes do Comando de Operações Táticas da PF,
treinados para ações de alto risco, como assaltos a
bancos e operações contra o tráfico, não estavam na
sede nacional da corporação naquele dia. Os
manifestantes atearam fogo em carros e ônibus,
quebraram o que viram pela frente, roubaram botijões

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de gás em um posto de gasolina e os espalharam pelo


setor hoteleiro de Brasília, onde ficava o hotel de Lula.
Para completar, atacaram a 5ª Delegacia de Polícia
Civil, ali nas redondezas. O pandemônio terminou sem
uma única prisão. Nem pela polícia da ordem pública,
que é a militar. Nem pela federal, que tinha atribuição
para tanto. Nem pela civil, atacada em sua própria casa.
O comandante do choque da PM naquela noite, coronel
Jorge Eduardo Naime Barreto, ouvido na CPI dos Atos
Antidemocráticos, na Câmara Distrital, disse que não
tinha como efetuar as prisões e, ao mesmo tempo,
dispersar vândalos – ainda mais com seus homens
portando coletes de 7 kg e armas não letais. Disse que
tentou fazer as prisões depois do fim dos ataques, mas,
“por incrível que pareça, os caras sumiram”. No dia
seguinte, membros da associação dos hotéis em Brasília
pediram segurança à PM ao constatar que alguns dos
vândalos estavam hospedados em seus hotéis, inclusive
no de Lula. O coronel respondeu que a PM de Brasília
não era instruída a matar manifestante, e sim “preservar
vidas” dentro da “doutrina de direitos humanos” –
declaração curiosa, já que ninguém pedira para matar
ninguém. Da massa que infernizou a capital, quarenta
arruaceiros foram identificados, mas só quatro foram
presos posteriormente.
O senador eleito Flávio Dino (PSB-MA), que já havia
sido escalado para comandar o Ministério da Justiça de
Lula, soube dos ataques por volta das 19 horas, quando
chegava à casa do advogado Antônio Carlos de Almeida
Castro, o Kakay, para um jantar em comemoração à
diplomação do presidente. Dino ligou para o governador
Ibaneis Rocha (MDB) e ouviu que “estava tudo
caminhando bem” e “tudo controlado”. Como as horas
avançavam e a cidade estava um caos, Dino voltou a

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ligar para Ibaneis, que então reconheceu que as polícias


ainda não haviam controlado os vândalos, mas disse que
a segurança do hotel de Lula fora reforçada porque o
grupo tentara invadir o prédio. Corria o boato de que
Lula tivera de ser retirado do hotel num helicóptero.
Mas ele ainda estava no jantar na casa de Kakay e lá
permaneceu até que a situação se normalizou.
Para tranquilizar a opinião pública, Dino marcou uma
coletiva de imprensa e convidou Ibaneis, que não quis
participar, mas enviou seu secretário de Segurança
Pública, Júlio Danilo Souza Ferreira. Enquanto a
entrevista transcorria, o ministro da Justiça de
Bolsonaro, Anderson Torres, jantava no restaurante
Dom Francisco, alheio ao que se passava. Ao relembrar
aquele dia em conversa com a piauí, Dino diz que foi
um momento-chave. “Acendeu-se ali um grande sinal
amarelo de que eles não desistiriam desses atos
terroristas. Como organizar a segurança da posse? Já era
difícil com as forças federais. E a gente passou a ter
insegurança também em relação às forças locais.”
Para complicar, o Exército protegia a turba nos quartéis.
“A partir da diplomação, os acampamentos deixam de
ser pontos estáticos e viram hubs”, diz Flávio Dino,
sobre o caráter de incubadora de criminosos que o local
adquiriu. O governo do DF e o governo eleito
pressionavam pelo desmonte dos acampamentos, mas o
Exército nunca achava que era o momento adequado.
Em novembro, uma nota conjunta dos comandantes das
três forças apoiara os manifestantes, que faziam
“demandas legais e legítimas da população”, e cobrava
que lhes fosse garantido a “livre manifestação do
pensamento”. O comunicado fora elaborado como
antídoto a uma eventual ordem de Alexandre de Moraes
para dissolver os acampamentos.

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Também em meados de novembro, nas conversas sobre


a primeira tentativa para retirar os acampados, a
Secretaria de Segurança Pública fez um plano de ação
cujo título era “Operação para a Retirada do
Acampamento”. O Exército pediu que o texto fosse
alterado para “Operação para Reprimir o Comércio
Ambulante”. Os militares temiam que o documento
chegasse aos ouvidos de Bolsonaro ou dos
manifestantes, mostrando que a caserna era a
patrocinadora da dissolução do local. “Havia proteção
aos manifestantes, e essa proteção vinha do comando do
Exército”, disse um dos PMs que participou das várias
tentativas de desfazer o local, sempre abortadas pela
caserna. Conforme apuração da piauí, associada aos
depoimentos de policiais militares e federais prestados
nas investigações, a crônica do apoio do Exército aos
vândalos pode ser ilustrada com duas datas. São elas:
12 DE NOVEMBRO, DOMINGO_É o dia da primeira
tentativa de desmontar o acampamento em Brasília. A
estrutura de barracas, cozinhas e banheiros químicos era
recente, mas já havia ambulantes irregulares, vendendo
bebidas alcoólicas, comida e roupas. Como a Polícia
Militar estava proibida pelo Exército de entrar no
acampamento, só os fiscais de comércio ilegal
acessavam o local. Quando começaram a retirar os
ambulantes, os fiscais foram hostilizados pelos
acampados. Deixaram  o local sob o risco de
linchamento. A PM, que se posicionava em frente à
Catedral Rainha da Paz, ao lado do acampamento, nada
podia fazer para proteger os fiscais. E a Polícia do
Exército permitiu que fossem hostilizados e expulsos.
Mais tarde, os servidores deixaram registrada em
documento a inação dos militares.

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17/06/2023, 14:43 A teia do golpe de 8 de janeiro

7 DE DEZEMBRO, QUINTA-FEIRA_O
acampamento já contava com quase 50 mil pessoas e,
como proliferavam as denúncias de roubos, prostituição
e violência, organizou-se nova tentativa de
desmobilização. Outra vez, a ordem do Exército era
para que apenas os ambulantes saíssem. Houve uma
reunião na véspera, no auditório do Comando Militar do
Planalto, em que foram apresentados croquis e
transparências pelos militares sobre como seria a
retirada. Novamente, na hora H, os fiscais foram
expulsos pelos acampados, sem que a Polícia do
Exército agisse. Em vídeos na internet, pode-se ver a
polícia protegendo acampados que atacam fiscais. De
novo, o Exército abortou a operação porque não havia
“condições de segurança das equipes de fiscalização”.
 

S em nenhuma interlocução com o Exército,


instituição historicamente avessa ao PT e à
esquerda, ao governo eleito restava pressionar o
governo do DF. O governo distrital, por sua vez, embora
quisesse se livrar dos vândalos, estava abraçado ao
bolsonarismo e não tinha força política para negociar a
retirada com os generais. Reeleito em primeiro turno,
Ibaneis Rocha saldou sua dívida de campanha com
Bolsonaro escalando Anderson Torres para secretário de
Segurança Pública. Mesmo alertado por ministros do
STF de que Torres era peça central das maquinações de
golpe, Ibaneis foi em frente – decisão que, quando a
intentona golpista chegasse ao seu auge, o levaria a ficar
judicialmente afastado do governo por 66 dias.
A tensão entre o PT e o Exército – em outras palavras,
entre um governo em formação e uma força armada
hostil – levou à escolha de José Múcio Monteiro Filho

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para de ministro da Defesa. Ex-conselheiro do Tribunal


de Contas da União (TCU) e ex-ministro da Secretaria
de Relações Institucionais do governo Lula, Múcio fora
convidado pelo petista para colaborar com o núcleo
político logo no início da campanha. Declinou. Quando
venceu, Lula voltou a sondá-lo. “Vou precisar de você
na transição”, disse o presidente eleito. Em tom de
brincadeira, Múcio respondeu que gostaria de ter o
cargo do advogado Sigmaringa Seixas, morto em 2018,
que “não tinha função, mas era ouvido em tudo”.
Ao final do cortejo, Múcio topou integrar a equipe de
civis e militares que discutia temas da defesa na
transição. Deu-se conta de que seria ministro quando
percebeu que, na equipe, era o único civil. Aceitou o
convite, superando vários concorrentes – entre eles,
Ricardo Lewandowski, a aposta do ministro Alexandre
de Moraes para fazer “a intervenção final no quartel” –
e fez uma exigência: queria autonomia para escolher os
comandantes das três forças. Como precisava de um
pacificador, e Múcio era jeitoso e tinha trânsito com a
direita, Lula concordou.
A escolha emitia dois sinais: o presidente eleito estava
ansioso para pactuar, não para brigar, e temia uma
rebelião nos quartéis, diante do avanço dos apelos
golpistas nas franjas radicais do bolsonarismo. Em
conversa com amigos próximos, o ex-presidente José
Sarney, ao saber da indicação de Múcio, fez a leitura
otimista de uma raposa: “Os militares estão gostando da
escolha do Múcio porque vão mandar nele.”
Ainda durante a transição, Múcio tentou contato com os
comandantes militares. Suas ligações não eram
atendidas, seus recados não recebiam retornos e seus
pedidos de visita eram repelidos. O ministro então

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procurou Bolsonaro, a quem conhecia desde os tempos


em que ambos foram deputados. Tinham relações
cordiais. Pediu que o então presidente dissesse aos
comandantes que, no governo petista, tudo ocorreria
dentro da institucionalidade. Funcionou, em parte. O
general Freire Gomes e o brigadeiro Baptista Júnior
receberam Múcio. O almirante Garnier, o plantonista do
golpe, não. No decorrer de dezembro, quando todo o
entorno de Bolsonaro maquinava contra a democracia,
Múcio excedeu-se a ponto de dizer em uma entrevista
que Bolsonaro era um “democrata”. Nem assim reuniu
capital político para pedir aos militares o fim dos
acampamentos em frente ao QG.
E os militares, sobretudo o Exército, estavam
encantados com a tarefa de cevar o ninho da extrema
direta. Os acampados continuavam bloqueando vias e
fazendo arruaça em shoppings de Brasília. Na véspera
do Natal, descobriu-se uma caixa de explosivos
acoplada a um caminhão-tanque, carregado de
combustível, perto do aeroporto. O motorista Jeferson
Henrique Ribeiro Silveira percebeu a caixa com
dinamite presa em uma das rodas, abriu o artefato, viu
que havia explosivos, uma antena e detonadores
piscando. Tirou a caixa do caminhão, afastou o veículo
cerca de 500 metros e avisou seu chefe, que chamou a
polícia. Silveira, ele próprio bolsonarista, disse aos
policiais que jamais participara de bloqueios ou tivera
qualquer envolvimento com a bomba. Em menos de 24
horas, a Polícia Civil prendeu dois dos suspeitos. O
terceiro, o jornalista Wellington Macedo de Souza, está
foragido até hoje.
Embora fracassado, o atentado terrorista era um
emblema do radicalismo que explodiria no 8 de janeiro.
Um dos suspeitos presos, George Washington de

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17/06/2023, 14:43 A teia do golpe de 8 de janeiro

Oliveira Sousa, era herdeiro de uma rede de postos de


combustíveis, atirador e gastara 160 mil reais em armas
em um ano. Viajara a Brasília numa picape zero-
quilômetro para viver entre o QG e um apartamento
alugado no bairro Sudoeste. Do Pará, trouxera cinco
emulsões explosivas à base de nitrato de amônio,
substância comum em áreas de garimpo. No dia 23 de
dezembro, um dia antes do atentado, recebeu no
acampamento do QG um controle remoto e quatro
acionadores. O outro preso, o eletricista Alan Diego dos
Santos Rodrigues, um evangélico que deixara mulher e
dois filhos em Mato Grosso, chegou em Brasília para se
“manifestar contra as eleições e tentar receber o código-
fonte das urnas”. Em seu depoimento, contou que o
assunto “explosões” era comum no acampamento e
todos acreditavam que “a explosão atrairia a atenção de
Bolsonaro para invocar o artigo 142 e fazer a
intervenção”. Rodrigues ajudou Sousa a colocar a
bomba no caminhão.
Em seu depoimento, Sousa disse que mantinha contato
com um “importante general do Exército” e que, no
ataque à sede da PF em Brasília, do qual ele participou,
havia conversado com bombeiros e policiais militares
no local. Contou que ouviu deles que “não iam coibir a
destruição e o vandalismo desde que os envolvidos não
agredissem os policiais”. Sousa disse que acreditava que
a “PM e o Bombeiro estavam ao lado do presidente” e
que “em breve seria decretada a intervenção das Forças
Armadas”. Como nada aconteceu, resolveu agir “para
provocar a intervenção” e a “decretação de estado de
sítio para impedir a instauração do comunismo no
Brasil”.
Apesar da aparência de criminoso mambembe, Sousa
tinha conexões. Assim que a polícia lhe perguntou se

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17/06/2023, 14:43 A teia do golpe de 8 de janeiro

queria ligar para alguém, ele acionou dois conhecidos.


Um é o pecuarista Bento Carlos Liebl, cuja família é
dona de mais de 30 mil hectares no entorno de São
Félix do Xingu, no Pará. Outro é o empresário e político
Ricardo Pereira da Cunha, que, segundo reportagem
do Repórter Brasil, pedia Pix entre fazendeiros da
região amazônica para financiar os acampamentos.
Neste caso, a Polícia Civil agiu rápido. Prendeu os
suspeitos e logo investigou. Não encontrou conexão real
com o Exército ou com “um general importante”. Os
contatos de Sousa no Pará posteriormente foram alvo de
busca e apreensão. Em maio, os dois terroristas
fracassados foram condenados às penas de 9 anos e
quatro meses (Sousa) e 5 anos e quatro meses
(Rodrigues), em regime fechado, pelos crimes de
incêndio com dolo, porte ilegal de artefato explosivo e
dano contra a vida e o patrimônio. Apesar da confissão
dos dois e da tragédia que a bomba poderia provocar ao
explodir um caminhão de combustível, a polícia disse
que não achou indícios de terrorismo, nem de atentado
contra a democracia.
 

O desafio era óbvio: como organizar uma posse


presidencial, com a presença de milhares de
pessoas, num ambiente em que militares protegiam
criminosos? De cara, as incertezas levaram ao
alijamento do Gabinete de Segurança Institucional
(GSI), um ninho de militares que, tradicionalmente,
coordena a segurança das posses presidenciais e fora
inteiramente capturado por bolsonaristas. Mas, a essa
altura, também se desconfiava que grupos da PT e da
PM pudessem estar na conspiração.

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17/06/2023, 14:43 A teia do golpe de 8 de janeiro

Em razão de tantos temores, ficara acordado durante a


transição que a Esplanada dos Ministérios seria fechada
para a cerimônia de posse. Na última reunião da
transição, porém, na qual todo o planejamento de
segurança foi apresentado à primeira-dama, Rosângela
da Silva, a Janja, as coisas mudaram. Janja queria que
Lula fosse aclamado pelo povo no trajeto da Catedral
até o Congresso, a bordo do Rolls-Royce presidencial. E
Janja abriu a conversa em termos exaltados. “Não foi
isso que eu determinei!”, reagiu, ao saber da ideia de
fechar a Esplanada. Argumentou-se que o esquema fora
definido em razão da segurança. “Mas eu que mando.
Ou vocês não entenderam ainda? Vocês estão
descumprindo o que eu determinei! E quem não
entendeu, pode sair”, disse.
Depois da confusão, chegou-se a um consenso: a
Esplanada ficaria fechada para a população em geral,
mas teria um público composto por militantes do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST), previamente credenciados pela Secretaria de
Segurança, portando pulseiras de identificação. Assim,
cerca de 5 mil sem-terra vindos de dezessete estados
distribuíram-se em diversos pontos entre a catedral e o
Congresso.
Restava o antigo caroço: era preciso finalmente
desmontar o acampamento no QG antes da posse. No
dia 27 de dezembro, Flávio Dino se reuniu com Ibaneis
Rocha, José Múcio e o delegado Andrei Rodrigues, da
PF. “Nós tivemos uma conversa clara, direta e muito
efetiva”, conta Dino. Na reunião, Ibaneis acenou com a
possibilidade de pedir ao STF uma ordem judicial para
desmontar o ajuntamento sem depender do Exército. A
petição já estava até pronta. Mas Múcio rechaçou
qualquer ação à revelia dos militares. Temia que, dada a

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proteção que o Exército oferecia aos acampados, o risco


de golpe aumentaria caso o acampamento fosse desfeito
a mando da Justiça.
No mesmo dia, o ainda secretário de Segurança Pública,
Júlio Danilo Ferreira, conseguiu acertar com o general
Gustavo Dutra uma nova data para a retirada: 29 de
dezembro. A Secretaria fez um planejamento
envolvendo quinze órgãos, entre os distritais e os
federais. A PM designou quinhentos homens para
acompanhar a remoção. Às 6h30 da manhã do dia 29,
quando toda a equipe do governo distrital estava diante
da Catedral Rainha da Paz, os fiscais de comércio ilegal
começaram expulsando os ambulantes – e foram
atacados pelos acampados. O general Dutra, que
acompanhava a ação, não se indignou com os ataques
aos servidores, mas com a quantidade excessiva de
policiais. Ali mesmo, mandou uma mensagem de
WhatsApp a um funcionário da Secretaria reclamando:
“Estou preocupado com a quantidade de meios
[policiais] que vieram. Conforme pleiteado, deve ser
sem violência”. E voltou a lembrar os limites da ação:
“Retirada das estruturas [barracas] vazias. A tropa hipo
[cavalaria], só em último caso. Não podemos subir a
temperatura hoje.”
 

A Polícia do Exército continuou onde sempre esteve:


não deu proteção aos fiscais. Houve atrito com os
militares quando a PM tentou intervir para garantir a
segurança dos servidores do governo do DF. Nesse
momento, Dutra mais uma vez abortou a retirada dos
acampados, exasperando o governador e toda a equipe
que faria a posse presidencial. “Claro que a gente ficou
mais inquieto”, relembra Dino. “Faltavam dois dias para

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a posse e o entendimento acertado no dia 27 era de que


o acampamento iria acabar.”
A continuidade do ninho do QG era repleta de
significados. Agradava a Bolsonaro, pois era a
materialização do seu apoio popular. Agradava a
caserna, insatisfeita com o resultado das urnas. E testava
a autoridade de Lula. Os acampados que concordaram
em falar com a piauí dizem que se sentiam protegidos
pelos militares, que às vezes até ajudavam a montar
barracas, como mostram vídeos divulgados nas redes
sociais. O comando do Exército não queria assumir o
“desgaste” de informar aos “patriotas” que a
intervenção havia micado. Segundo membros da
caserna ouvidos pela revista, o “desgaste” devia ser
bancado pelo general Júlio César de Arruda, que
comandaria o Exército no governo Lula, e não pelo
general Freire Gomes, que estava no cargo sob
Bolsonaro.
O pesquisador Guilherme Lemos da Silva Moreira, da
Universidade Federal de São Carlos, ficou à paisana no
acampamento entre 26 e 30 de dezembro, colhendo
material para um trabalho do curso de antropologia
social. Testemunhou o corpo mole da Polícia do
Exército. “Eles quase pediam desculpas por terem de
chamar a atenção dos acampados por algum motivo”,
conta Moreira. Segundo ele, os militares ajudavam com
o trânsito quando os manifestantes partiam para fazer
buzinaços e apartavam eventuais brigas. O
estacionamento da Poupex, a previdência privada do
Exército, fora liberado para uso dos acampados
motorizados. A única vez que o pesquisador presenciou
uma ação mais contundente dos militares foi quando
dois repórteres eram espancados. Usaram gás de
pimenta para parar a violência.

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17/06/2023, 14:43 A teia do golpe de 8 de janeiro

Além do apoio explícito aos acampados, os chefes das


Forças Armadas encontraram outro meio de tumultuar.
Queriam deixar seus cargos antes da posse para não
bater continência a Lula. Como Bolsonaro anunciara
que não passaria a faixa presidencial e se refugiaria nos
Estados Unidos, os comandantes acharam que deviam
fazer algo parecido. Múcio tentava demovê-los. O
general Freire Gomes estava irredutível. Avisou que
sairia antes de Lula, mas aceitou postergar sua saída até
28 de dezembro, num gesto de “cooperação”. Para que o
Exército não ficasse nenhum dia sem comando, coube a
Bolsonaro exonerar um comandante e nomear seu
sucessor, o general Júlio Cesar de Arruda. Era uma
aberração, própria de republiquetas de quarteladas, que
expunha o grau de animosidade do Exército com um
governo que, sob todos os ângulos, fora legitimamente
eleito.
O general Arruda, embora fosse um dos mais
bolsonaristas do Alto Comando,  foi escolhido por
Múcio com base no critério de idade, em respeito à
tradição da corporação. Os seguintes da lista eram os
generais Tomás Paiva e Valério Stumpf Trindade, ambos
considerados legalistas. Paiva tinha mais apoio no novo
governo e certa proximidade com o PSDB. Fora
ajudante de ordens de Fernando Henrique Cardoso nos
anos 1990 e seu nome agradava o vice Geraldo Alckmin
e o futuro ministro Flávio Dino. Além disso, Paiva
comandava a maior tropa do país, o Comando Militar
do Sudeste, um antídoto contra as velhas vivandeiras
que até hoje vão aos bivaques bulir com os granadeiros
e provocar extravagâncias do poder militar. Já Stumpf
estava dentro do quartel, como chefe do Estado-Maior
do Exército, um cargo mais burocrático e sem tropa.
Mas a decisão era de Múcio, que afinal recebera a

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promessa de autonomia. E Múcio queria Arruda. Lula


concordou.
O almirante Garnier, o plantonista do golpe, recusou-se
a conversar com Múcio e agendou sua exoneração para
a noite do 31 de dezembro. Não queria ficar um minuto
sob o comando de Lula. O almirante é o pai daquele
constrangedor desfile da Marinha, em que tanques
sucateados se exibiram na Esplanada soltando fumaça
de óleo diesel. Era agosto de 2021, a exibição deveria
ser um show de força para intimidar parlamentares que
analisavam a PEC do Voto Impresso. A PEC foi
derrubada e o desfile virou chacota nacional, deixando
um rastro de memes impiedosos. (Depois de ingressar
na reserva e passar a frequentar o Clube Naval de
Brasília, nas tardes de ócio, Garnier achou que era boa
ideia ter contatos no novo governo. E só então
conversou com Múcio, com quem mantém hoje uma
relação cordial – e longe das vistas dos acampados.) A
Aeronáutica teve a transição mais republicana. O
brigadeiro Marcelo Kanitz Damasceno, o novo
comandante na gestão petista, ajudou a convencer o
então ocupante do cargo, Baptista Júnior, a esperar a
posse presidencial. Ele concordou, recebeu Múcio e
participou da passagem de comando para Damasceno.
Diante desses movimentos, os acampados entenderam
que os militares não atenderiam seus apelos golpistas.
Começaram a bombardear a caserna nas redes sociais,
chamando os militares de “frouxas armadas”,
“traidores” e “covardes”. Na noite de Ano-Novo,
indignados com a iminente posse de Lula, um grupo de
acampados do QG foi à frente da casa dos generais, ali
perto, para xingar o Alto Comando. Alguns tentaram
invadir as residências, a tropa de choque do Exército foi
acionada e mostrou que, afinal, sabia conter gente

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exaltada. E Bolsonaro embarcara para os Estados


Unidos. A democracia e a normalidade institucional
pareciam ter vencido.
Na verdade, a senha para desmobilizar circulava havia
alguns dias. Dois acampados ouvidos pela piauí dizem
que, desde o dia 20 de dezembro, recebiam
“mensagens” do núcleo duro de Bolsonaro, avisando
que não haveria intervenção. Nenhum quis identificar os
interlocutores, mas era comum que os acampados
tentassem se valorizar dizendo que tinham contato com
Bolsonaro, ou pessoas próximas. O fato é que o entorno
do presidente estimulava essa troca para manter sua
base engajada. Em muitas ocasiões, o coronel Mauro
Cid, o ajudante de ordens, interagiu com esses grupos.
Com frequência, recebia mensagens de cunho golpista
de apoiadores, como as que vieram a público depois da
apreensão de seu celular no caso da falsificação da
carteira de vacinação de Bolsonaro.
Em uma dessas mensagens, reveladas pela CNN Brasil,
o ex-major Ailton Gonçalves Moraes Barros fala para
Cid que tinham de pressionar o então comandante do
Exército, Freire Gomes, “para que ele faça o que tem
que fazer” e que “se for preciso, vai ser fora das quatro
linhas”. O ex-major diz que, se Freire Gomes não
“aderisse”, Bolsonaro teria de fazer um pronunciamento
“para levantar a moral da tropa” e mandar prender o
ministro Alexandre de Moraes. As respostas de Cid não
foram divulgadas. Em outra mensagem, o coronel da
reserva Antônio Elcio Franco Filho, secretário do
Ministério da Saúde na pandemia e assessor de Braga
Netto, sugere que Freire Gomes só agiria se recebesse
“ordem por escrito”. Em maio, Barros e Cid foram
presos na operação sobre a fraude na vacina de
Bolsonaro. Elcio Franco continua em liberdade.

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Embora Bolsonaro fosse considerado teimoso e


irredutível, Cid era o que chegava mais perto de
manipular suas ações. Antes da viagem para os Estados
Unidos, em 30 de dezembro, os ministros do núcleo
político tentaram convencer Bolsonaro a gravar um
vídeo desmobilizando os acampados. Cid convenceu-o
do contrário. “Cid estava por trás da cloroquina, da
associação da vacina da Covid à Aids, da ideia de não
reconhecer a vitória do Joe Biden”, diz um ex-ministro
de Bolsonaro, que pediu o anonimato porque ainda
integra a base de apoio do ex-presidente. Ele conta que,
em parte, o general Fernando Azevedo e Silva foi
demitido do Ministério da Defesa em março de 2021
porque queria tirar Cid da ajudância de ordens de
Bolsonaro. O general estava farto de ouvir outros
ministros reclamando da interferência onipresente de
Cid no governo.
No início de 2022, seis ministros – entre eles, Flávia
Arruda, Ciro Nogueira, Fábio Faria e Tarcísio de Freitas
–, se reuniram para encontrar uma forma de derrubar o
ajudante de ordens. Não chegaram a um plano eficaz
por falta de apoio do núcleo militar. Outro ex-ministro,
que também pediu à piauí que sua identidade fosse
preservada, disse que participou de reuniões em que Cid
contestava falas de ministros e interferia quando se
reuniam com Bolsonaro. Ele até evitava tirar folga,
trabalhando no turno dos seus subordinados, para ficar
mais tempo ao lado do presidente. No dia 30, partiu
com ele para os Estados Unidos e lá permaneceu,
voltando apenas em meados de janeiro, quando sua
situação com a Justiça começou a se agravar.
“A posse ocorreu com tranquilidade”, diz Flávio Dino,
ao relembrar que o plano de segurança do governo
distrital foi cumprido, à exceção do desmonte do

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acampamento. “Em mobilização de policiais militares,


civis, bombeiros, agentes de trânsito e barreiras, eu diria
até que o GDF [sigla usada para designar o governo do
DF] cumpriu mais do que pedimos”, diz o ministro.
“Nos dias 1º, 2 e 3 basicamente foram eventos de posse
e os acampamentos começaram a fenecer”, conta. No
dia 4, as tendas dos acampamentos pelo país estavam se
esvaziando. Enfim, parecia que o país voltaria ao
normal. Mas então o apetite dinheirista da Máfia do Pix,
aquele grupo que comandava as cozinhas do
acampamento de Brasília, entrou de novo em ação.
 

A na Priscila Azevedo era bancária, deixou a


profissão em 2013 e tornou-se uma militante da
intervenção militar. Criou um canal de cunho golpista
no YouTube e, segundo ela mesma, ganhava cerca de 5
mil reais mensais até 2020. A partir daí, seus canais
começaram a ser derrubados pelo YouTube em função
das investigações do STF sobre atos antidemocráticos e
milícias digitais. Quando os bolsonaristas se instalaram
no QG em Brasília, ela abriu a principal cozinha do
acampamento, mantida por doações via internet. A CPI
dos Atos Antidemocráticos na Câmara do DF descobriu
que os depósitos eram feitos sem prestação de contas.
Os deputados distritais concluíram que parte das
doações era embolsada pelos donos das cozinhas – a
própria Ana Azevedo e seus dois sócios, Ramiro Cruz
Junior e Rubem Abdalla.
Às vésperas da posse presidencial, o trio começou a se
desesperar com a queda nas doações, diante da
desmobilização no QG. Os três então tiveram a ideia de
forjar um novo acampamento, dessa vez dentro da
Esplanada, resgatando a antiga proposta do

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influenciador Oswaldo Eustáquio. Iniciou-se então a


convocação nas redes para a “tomada de poder” nos dias
7 e 8 de janeiro. O plano não era quebrar tudo, mas
retomar a mobilização. Eles acharam que, se antes
falhara o “golpe militar”, a opção agora era o “golpe
popular”.
As convocações começaram para valer no dia 4 de
janeiro. Azevedo fez chamamentos; o cantor gospel
Salomão Vieira gravou vídeo conclamando fiéis
evangélicos a irem a Brasília. Como inspiração, alguém
postou um vídeo em que populares invadem a
residência presidencial do Sri Lanka, em 9 de julho de
2022. Em grupos bolsonaristas do Telegram
acompanhados pela piauí, usuários compartilhavam
links de compra de artefatos de proteção militar, como
máscaras de gás. Ana Azevedo começou a transferir a
estrutura no dia 7. De início, como não tinha
autorização legal para se instalar no gramado da
Esplanada, montou seu aparato no estacionamento do
Ministério da Saúde. Depois, quando a coisa já estivesse
funcionando, retiraria as tendas do QG.
As convocações chamaram a atenção em alguns setores
do governo, em especial do ministro Dino e o delegado
Andrei Rodrigues. “Alguns cards de protestos falavam
em fechar refinarias. Eu então ligo para os governadores
Tarcísio de Freitas [de São Paulo] e Cláudio Castro [do
Rio de Janeiro], além do Ibaneis, e eles são muito
receptivos. Dizem que vão mobilizar as PMs. E tudo
funcionou, mesmo eles não sendo do nosso campo
político”, conta o ministro. O GDF de Ibaneis marcou
uma reunião para o dia 6 para que todos os órgãos se
alinhassem sobre o que fazer diante da chegada
iminente de caravanas de ônibus a Brasília. Contudo,
naqueles dias, os principais dirigentes da Secretaria de

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Segurança Pública tinham outras preocupações – entre


elas, manter-se no cargo.
Anderson Torres, o novo secretário de Segurança do DF,
indicara servidores da Polícia Federal para ocupar os
principais postos. Ele próprio fora delegado da PF antes
de entrar na política. Mas o ministro Dino acabara de
assinar uma portaria que lhe dava poder de veto sobre a
cessão de qualquer servidor da PF para órgãos públicos.
Então, naquele momento, todos os cargos da pasta de
Torres, incluindo o dele próprio, estavam sob o crivo de
Dino. “Eles passavam os dias trancados em reunião,
sem ter qualquer contato com os assuntos da
Secretaria”, conta um funcionário da pasta, que falou
com a piauí sob a condição de não ter seu nome
revelado.
A turma de Torres estava tão alheia a tudo que, no dia 5,
quando o general Gustavo Dutra procurou a Secretaria e
pediu uma reunião para, enfim, desmanchar o
acampamento do QG, Torres fez pouco caso, mas
marcou o encontro para a manhã do dia 6. Na ocasião,
aparentemente alheio a qualquer maquinação golpista, o
general Dutra pediu a Torres verba para ajudar os 150
remanescentes do acampamento que não tinham
dinheiro para voltar para casa. Torres disse que não
tinha recursos, mas outra secretaria trataria do caso.
No mesmo dia 6, na primeira reunião ministerial do
governo Lula, José Múcio foi criticado abertamente
pelo presidente por ter dito que os acampamentos
estavam se desfazendo por si só. Diante da bronca
pública, Múcio chamou Arruda, o comandante do
Exército, e lhe deu um ultimato: desfazer os
acampamentos já. Arruda disse que as coisas não
poderiam ser feitas de forma atabalhoada. E, pela

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primeira vez, admitiu um dos fatos que explicaria, em


parte, a proteção irrestrita dada pelo Exército aos
acampados: ali havia militares da reserva e familiares de
militares da ativa. Arruda insistiu que o desmonte
ocorresse de forma gradual, com o apoio do GDF aos
vulneráveis.
Enquanto isso, o pessoal da Secretaria de Segurança se
reuniu para planejar a atuação nos protestos do fim de
semana. Torres não participou, o pessoal do GSI
também se ausentou, mas havia representantes da PM,
dos bombeiros, do Detran, das polícias da Câmara, do
Senado e do Supremo. O coronel Marcelo Casimiro
Vasconcelos Rodrigues, do 1º Comando de
Policiamento Regional, que cuida da área da Esplanada,
chegou bem informado. Havia recebido por WhatsApp
um folder que convocava para a “Tomada do Poder pelo
Povo”. A ata da reunião, à qual a piauí teve acesso,
mostra que o coronel Casimiro falou da circulação de
“áudios em redes sociais” alertando para a possibilidade
de “ invasão de prédios públicos”, afirmou que “não se
pode descartar, que é preciso ficar bem atento aos
eventos”, informou “que haverá reforços de viaturas”,
propôs reforçar também “as portarias e a segurança dos
prédios federais” e alertou que seria “necessário
providenciar um outro esquema de segurança se
confirmados os atos”.
Os alertas eram apenas para constar, tanto que, na hora
H, a Polícia Militar escalou um major para cuidar da
tropa na Esplanada, e não um tenente-coronel ou
coronel. Em vez de oficiais, mobilizou alunos da
Academia de Polícia Militar de Brasília sem
equipamento apropriado. Não providenciou água nem
comida para os policiais escalados. Não fez o
planejamento operacional, em que se informa a

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quantidade de efetivo e a posição dos batalhões. Para


piorar, na noite do dia 7, o subcomandante-geral da
corporação, o coronel Klepter Rosa Gonçalves,
determinou que todo o efetivo ficasse de sobreaviso em
casa, e não de prontidão no quartel. Com isso, entre o
acionamento de um oficial e sua chegada a campo,
gastam-se pelo menos duas horas – tempo suficiente
para que a Praça dos Três Poderes fosse destruída.
A Polícia Militar fez o que fez – e não estava no escuro.
Depois de tudo, a Polícia Federal realizou uma operação
na casa do coronel Paulo José Bezerra, responsável
interino pelo Departamento Operacional  da PM, e
encontrou mensagens comprometedoras. Mostram que,
quando cumpriu a ordem de deixar a tropa de
sobreaviso para o dia 8 de janeiro, o coronel Paulo José
estava a par da gravidade dos atos. Ele tinha um
informante dentro do QG que lhe dissera, no dia 7, que
os manifestantes estavam “preparados para a guerra” e
“não vão ceder de forma alguma”. Alertava que havia
risco de “morte” e que as coisas estavam “mais sérias
do que muitos brasileiros estão imaginando”. O coronel
Paulo Jose repassou esse relato a colegas da PM,
inclusive ao próprio coronel Casimiro. Mesmo assim,
não se tomou nenhuma prevenção.
 

E nquanto o GDF agia como se tudo estivesse dentro


da normalidade, no governo federal crescia a
preocupação. No dia 7, o delegado Andrei Rodrigues, a
par da agitação nas redes sociais, pediu à Secretaria de
Segurança Pública que não autorizasse a descida dos
manifestantes do QG para a Esplanada. Fernando de
Souza Oliveira, que estava no comando da secretaria em
razão da viagem de Anderson Torres de férias para os

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Estados Unidos, alertou-o sobre um obstáculo legal: só


podia barrar os manifestantes mediante ofício do
ministro da Justiça. Dino, no entanto, só encontrou
previsão legal para impedir a circulação de ônibus e
caminhões na Esplanada, não de manifestantes. Assim
foi feito, mas o delegado Andrei Rodrigues continuou
aflito. A um auxiliar, ele confidenciou que “não
identificava nenhum elemento de segurança” e que não
havia “nem o mínimo razoável”.
Já os militares seguiam tranquilos. Mesmo alertado pela
Secretaria de Segurança sobre a chegada das caravanas
e montagem de barracas no QG, o general Dutra
continuou impassível. Por WhatsApp, recebeu imagens
dos ônibus chegando, enviadas por um servidor da
Secretaria. Respondeu:
– Bom dia, estamos coibindo.
Uma hora depois, o general recebeu em seu WhatsApp
mais fotos e vídeos de barracas sendo montadas. Voltou
a minimizar o problema:
– Acredito que tenham chegado cerca de dez ônibus,
confere?
Não conferia. Seu interlocutor respondeu que havia
“muito mais” e, outra vez, disse que o Exército não
estava coibindo nada. Quando começaram a
desembarcar fardos de água, um funcionário do GDF
voltou a chamar a atenção do general, que se esquivou
do assunto:
– Não posso coibir levar água.
Quando os manifestantes começaram a fazer arruaça nas
ruas do entorno, o general Dutra foi informado que
havia pouco efetivo e apenas duas viaturas do Exército
bloqueando a turba de duzentas pessoas. O general não

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respondeu nada. Minutos depois, seu WhatsApp


recebeu outro aviso de que os manifestantes estavam
tentando romper o bloqueio. Novamente, o general não
disse nada. Por fim, recebeu a informação de que o
bloqueio havia sido rompido – e a Secretaria de
Segurança iria fechar o acesso ao SMU. Só então, o
general deu sinal de vida. Agradeceu a medida, em tom
de reclamação:
– Vai tumultuar bastante, vai dificultar bastante o acesso
ao SMU e prejudicar os moradores – disse, e concluiu:
– Mas é melhor.
Na véspera do dia 8 de janeiro, o governador Ibaneis
Rocha ficou inacessível. Às 20h11, Dino enviou dois
ofícios ao governador informando que mobilizara a
Força Nacional para proteger os prédios da PF e do
Ministério da Justiça, e oferecendo ajuda ao GDF. Não
obteve resposta. Então, ligou, mas não foi atendido. Às
23h28, Dino leu uma reportagem do
site Metrópoles informando que Ibaneis liberara as
manifestações na Esplanada. Mandou o link da matéria
ao governador e pediu explicações. Enfim, obteve
retorno. “Situação tranquila, no momento.”
O governador parecia encontrar-se num estado
impróprio para conversas longas e respostas elaboradas.
Na mesma noite de 7 de janeiro, o presidente do
Senado, Rodrigo Pacheco, enviou suas preocupações.
“Estimado governador, boa noite! Polícia do Senado
está um tanto apreensiva pelas notícias de mobilização e
invasão ao Congresso. Pode nos ajudar nisso? Abraço
fraterno. Rodrigo.” O governador respondeu em três
mensagens curtas:
– Já estamos mobilizados.
– Não teremos problemas.

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– Coloquei todas as forças nas ruas.


 

N a manhã de domingo, dia 8, a Polícia Militar


estava tranquila. Seus relatos informavam que os
ânimos se mantinham pacíficos e nem havia certeza de
que os bolsonaristas desceriam à Esplanada. Em
depoimento, depois de ser presa no dia 11 de janeiro,
Ana Priscila Azevedo disse que não havia acordo sobre
a descida porque a estrutura do acampamento na
Esplanada ainda não estava pronta. Mas contou que seu
sócio na cozinha, Rubem Abdalla, decidira comandar a
descida. Durante o trajeto, de início pacífico, os
espíritos foram se exaltando na medida em que se
ouviam gritos de “tomar o poder” e “invadir tudo”. Já
então era tarde demais para a PM abortar a caminhada.
Às 14h30, a massa rompeu a primeira barreira de revista
– e Dino correu para o Ministério da Justiça, aonde
chegou a tempo de ver a multidão invadindo o
Congresso sem qualquer resistência da PM.
Dino acionou o governador do DF. Mais uma vez, sem
sucesso. Ligou então para Gustavo do Vale Rocha,
chefe da Casa Civil do governador, que se deslocou de
imediato até o Ministério da Justiça, acompanhado da
vice-governadora, Celina Leão. Ali, no Ministério da
Justiça, começou a se formar o bunker do legalismo.
Chegou Ricardo Garcia Cappelli, secretário executivo
de Dino, chegou Alexandre Padilha, ministro da
Secretaria de Relações Institucionais. Logo chegaram
José Múcio, da Defesa, Miriam Belchior, secretária
executiva da Casa Civil, e o ministro-chefe do gsi,
general Marco Edson Gonçalves Dias, que respondeu
pela segurança de Lula durante duas décadas.

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Quando Dino telefonou para Lula, que cumpria agenda


em Araraquara, no interior de São Paulo, a decretação
de uma GLO, que entrega a segurança pública para as
Forças Armadas, já estava descartada. Discutiu-se a
alternativa de uma intervenção federal. Nesse caso, toda
a cúpula do GDF é afastada. Lula descartou a ideia.
Preferiu a intervenção apenas na área da segurança
pública. Num primeiro momento, o interventor seria
Dino. Quando o decreto que o nomeava para a função já
estava pronto para ser assinado por Lula – tudo por
meio de WhatsApp –, o ministro deu-se conta de que,
pela Constituição, ele, como senador diplomado, só
poderia assumir a função de ministro no Executivo, não
a de interventor.
Nesse momento, Ricardo Cappelli estava exasperado.
Da janela do ministério, ele observava a tropa da Força
Nacional permitindo que os manifestantes passassem
pela lateral do prédio. Desceu até o térreo para falar
com eles. “Eles não faziam nada. Eu achei aquilo um
absurdo. Aí eu desci e me apresentei como secretário do
ministério e botei voz de comando neles. Falei: ‘Olha,
daqui não passa mais ninguém. Não entra
manifestante’”, relembrou à piauí. Pela janela, os
ministros Dino e Padilha testemunhavam a reação de
Cappelli. Quando ele subiu de volta ao gabinete, já era
chamado de interventor.
Quando Cappelli assumiu a nova função, a PM
finalmente havia convocado toda a tropa para a
Esplanada. O batalhão de choque varria o gramado com
ajuda da cavalaria e das bombas de efeito moral
disparadas por helicópteros. Mas Cappelli achou que a
movimentação da linha de choque era lenta demais e
cobrou rapidez. Os policiais militares não concordavam
com a avaliação do interventor, que, segundo eles, não

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entendia como funcionava uma linha de choque.


Cappelli também pediu que o batalhão de choque
prendesse os manifestantes, mas recebia a resposta de
que, primeiro, era preciso paralisar os ataques para
então efetuar as prisões.
O general Gonçalves Dias, chefe do GSI, deixou o
Ministério da Justiça e deslocou-se para o Planalto, já
parcialmente invadido. Chegou mandando prender
todos os manifestantes. O resultado foi uma cena
brancaleônica, protagonizada por incompetentes e por
conspiradores. Para operacionalizar as prisões, o general
G. Dias, como é conhecido, ligou para o coronel
Wanderli Baptista da Silva Júnior, diretor-adjunto do
Departamento de Segurança Presidencial. Como
recebera ordem de apenas evacuar os invasores, sem
prender ninguém, Silva Júnior resolveu confirmar a
determinação de fazer as prisões. Ligou para seu
superior, o general Carlos Feitosa Rodrigues. Nesse
meio tempo, a Polícia Militar e o Batalhão da Guarda
Presidencial (BGP) se desentendiam. A PM querendo
prender e o BGP, ligado ao Exército, impedindo as
prisões. O ministro Dino queria prisões imediatas. “Meu
medo era o efeito dominó, caso isso se consolidasse
pelo país. Seria um problema nacional. A minha visão
era de pânico. Para mim, aquilo era a coluna do general
Mourão”, relembra o ministro, referindo-se ao dia 31 de
março de 1964, quando o general Olympio Mourão
Filho – depois de tirar o pijama e o roupão de seda
vermelho, como fez questão de registrar em suas
memórias – desceu com seus tanques de Juiz de Fora
em direção ao Rio de Janeiro, colocando em marcha o
golpe que levaria os militares ao poder por 21 anos.
“Esse pessoal tem gente em torno, tem base social, não
é um amontoado de desvairados. E, no vai que cola, vai

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que cola? Imagine a gente lidando com uma crise como


essa em dez estados?”
O governador Ibaneis Rocha continuava hibernando.
Dino não conseguia achá-lo. Nem a presidente do STF,
Rosa Weber, nem o presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco, nem o presidente da Câmara, Arthur Lira.
Quando finalmente alcançou o governador, ainda antes
da invasão do STF, Rosa Weber recebeu uma resposta
telegráfica: “Estamos cuidando.” Depois de horas de
sumiço e mensagens lacônicas, o governador terminou o
dia 8 de janeiro destituído do cargo pelo STF. Mas Dino
não acredita que o governador fizesse parte da teia do
golpe. “Minha hipótese não era de que o Ibaneis sabia
do golpe, e sim que ele ouvia isso [de que tudo estava
sob controle] da equipe dele. Ele ouvia e transmitia para
mim, para o Lira, para o Pacheco e para a Rosa. Mas
que a equipe estava conivente, eu não tenho dúvidas. O
que estamos tentando identificar é quem estava
conivente.” Procurado pela piauí, o governador não
quis falar.
O comandante-geral da PM no dia 8 de janeiro, coronel
Fábio Augusto Vieira, foi preso nas investigações,
suspeito de ter colaborado com golpistas. Na véspera do
ato, no entanto, ele agira conforme o figurino. Pediu que
a tropa da PM fosse reforçada – e foi ignorado por seus
subordinados. Ele entrou em ação, atuando nos
confrontos e saiu ferido. Mesmo assim, ficou 24 dias
preso até os investigadores descobrirem que não era um
colaboracionista. Já seus subordinados, que
desobedeceram suas orientações, nunca foram
incomodados. Em maio, o Ministério Público Federal
concluiu que a atuação dos policiais militares não teve
“dolo”. A PF apontou que o coronel Paulo José, cujo
informante alertou que os atos seriam violentos,

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incorreu apenas em “omissão”. O coronel Klepter Rosa,


que cometeu o erro de deixar a tropa apenas de
sobreaviso, foi promovido a comandante-geral da PM
quando o coronel Fabio Augusto estava injustamente
preso. E segue no cargo até hoje.
 

O Supremo, o Planalto e o Congresso foram


desocupados perto das 18 horas, mais de três
horas depois do rompimento da primeira barreira de
revista. A partir de então, os 2 mil policiais militares que
estavam em campo começaram a cumprir as ordens de
prisão. A orientação era marchar da Esplanada em
direção ao QG e prender todos que estivessem no
caminho. A operação era chefiada pelo coronel Jorge
Eduardo Naime Barreto. Considerado o policial mais
experiente da PM, Naime estava em férias no início de
janeiro, mas se juntara à tropa naquele domingo para
ajudar a combater os vândalos. Porém, como sua folga
coincidira com a cadeia de erros cometidos pela
corporação nas vésperas do dia 8, os investigadores
desconfiaram de seu envolvimento na conspirata
golpista. Naime está preso desde fevereiro.
Em depoimento à CPI do Distrito Federal, Naime
contou que começou a sentir a animosidade do Exército
assim que se aproximou do acampamento no QG para
efetuar as prisões, na noite do dia 8. Ele estava
comandando a tropa de choque em frente à Catedral
Rainha da Paz, uma área pública. Mas logo foi abordado
por um tenente do Exército. Exaltado, o militar dizia
que o coronel não podia estar ali fazendo prisões porque
era “área do Exército”. O coronel prosseguiu com as
prisões, levando cerca de cinquenta pessoas. Minutos
mais tarde, viu uma cena insólita. “Quando eu olhei

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para trás, tinha uma linha de choque do Exército,


montada com blindados”, disse. “Eles não estavam
voltados para o acampamento. Eles estavam voltados
para a PM, protegendo o acampamento.”
O interventor Ricardo Cappelli não demorou a chegar
ao local. Quando avistou a tropa do choque do Exército
voltada contra os policiais, disse ao comandante-geral
da PM, coronel Fábio Augusto: “Comandante, prepare a
tropa porque a gente vai prender todo mundo lá dentro.”
O coronel ficou nervoso e ligou para o general Gustavo
Dutra, do Comando Militar do Planalto, para avisar que
faria as prisões. Dutra mandou pedir para encontrar
Cappelli dentro de alguns minutos em frente à Torre de
TV, um ponto não muito distante dali. Ao ouvir o
recado, Cappelli se recusou: “Manda dizer que eu não
saio daqui. Se ele quiser falar comigo, que venha para
cá.” O general foi. O diálogo, segundo Cappelli e outras
duas testemunhas, começou com o general Dutra
colocando panos quentes:
– General, como assim, calma? Eu vou entrar – reagiu
Cappelli.
– Se o senhor entrar, haverá um banho de sangue – disse
Dutra.
– Banho de sangue por quê, general? Por acaso tem
manifestante armado dentro do acampamento, sendo
protegido pelo Exército?
– Não – disse o general. – É porque está de noite, os
ânimos estão exaltados, vai ter gente que vai correr, vai
ter enfrentamento, as pessoas podem se machucar.
O banho de sangue, bem entendido, seria a tropa do
Exército investindo contra os policiais, e não contra os
manifestantes. Nesse momento, Cappelli resolveu ligar

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para Dino para explicar o impasse. Enquanto isso, o


general Dutra apressou-se em ligar para G. Dias e expor
a avaliação do Exército para Lula, segundo a qual as
prisões naquele momento eram uma “operação de alto
risco”. Como estava ao lado de Lula no Palácio do
Planalto, G. Dias desligou o telefone e consultou o
presidente sobre o assunto. Dois minutos depois,
retornou a ligação:
– O presidente está muito irritado e diz que é para a
polícia entrar [no acampamento] – disse G. Dias.
– General, vai dar problema – ponderou Dutra.
– Então, fala com ele – respondeu G. Dias, passando o
telefone para Lula.
Dutra ficou surpreso. Pelo rito hierárquico, não cabe a
um general de três estrelas conversar com o presidente
sem a presença do comandante do Exército. Mas,
naquela situação de emergência, Dutra foi em frente e
expôs seu pleito. Lula reagiu:
– Eles são criminosos, têm que ser todos presos – disse.
– Presidente, ninguém duvida disso. Serão todos presos.
Mas, até agora, nós só estamos lamentando dano ao
patrimônio. Nós podemos terminar essa noite com
sangue.
– Seria uma tragédia – disse Lula, que acabou
concordando que as prisões fossem feitas apenas ao
amanhecer.
O aval do presidente, porém, não chegou a todos – e
nem todos acreditaram que, de fato, o general Dutra
falara com Lula. Neste clima de desconfiança e
incerteza, Dutra disse a Cappelli que o comandante do
Exército, Júlio Cesar Arruda, queria vê-lo no prédio do
Comando Militar do Planalto, a poucos metros dali.

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Cappelli e auxiliares encontraram o general à porta do


quartel, cercado por vinte militares. Na sala de reuniões,
com a presença de Cappelli e do coronel Fábio Augusto,
o comandante da PM, o general abriu sua artilharia
verbal.
– O senhor ia entrar aqui com tropas sem a minha
autorização? – indagou Arruda, dirigindo-se a Cappelli.
– Não, general. Eu ia consultá-lo – respondeu Cappelli,
constrangido com a abordagem à queima-roupa.
– Eu acho que tenho uma tropa um pouco maior que a
sua, não é, coronel Fábio Augusto? – provocou Arruda,
virando-se para o comandante da PM.
Cappelli, duvidando de que o general Dutra tivesse
falado com Lula, insistiu nas prisões imediatas e
argumentou que a situação daquela noite era absurda,
que o acampamento tinha de ser desfeito e as prisões
precisavam ser efetuadas o quanto antes.
– O senhor não concorda, general? – perguntou
Cappelli.
– Não – cortou Arruda. – O senhor tem que entender
que o Brasil está dividido.
Era a histórica cantilena militar de que eleição boa é
eleição a favor. A afirmação de Arruda deixou o clima
uma tonelada mais pesado. O general prosseguiu
dizendo que precisava que os ônibus fossem devolvidos
para que os acampados pudessem ir embora e o
acampamento, enfim, ser desmontado. Tudo indicava
que o general não tinha intenção de colaborar nas
prisões acertadas nem para o amanhecer do dia.
Chamados para desfazer o impasse, três ministros
apareceram no quartel: Dino, Múcio e Rui Costa, chefe
da Casa Civil. Cappelli e o coronel Fábio Augusto

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foram para a antessala, e o trio de ministros assumiu a


negociação com o general Arruda. Quando deixaram o
Comando Militar do Planalto, o plano estava definido:
ao raiar do dia, os acampados seriam retirados,
colocados em ônibus e levados para a sede da PF. Já
passava de duas da madrugada.
Às seis da manhã, cerca de 500 policiais militares, mais
uma vez, estavam posicionados na Catedral Rainha da
Paz. Para convencer os acampados a saírem do local,
um capitão do Exército pegou um megafone e os
orientou a deixarem as barracas e se dirigirem, levando
seus pertences, aos ônibus estacionados ali perto. Eles
obedeceram, seguindo em fila. Muitos nem se deram
conta de que estavam sendo presos. Confiavam tanto no
Exército que pensaram que embarcariam nos ônibus
para voltar para casa.
Entre os presos, há uma enorme diversidade. O
vendedor de picolé de Salvador que aproveitou a
viagem de graça para Brasília e a ajuda de custo de 400
reais. O jovem que chegou à capital com despesas pagas
por fazendeiros do Pará. O pernambucano que fugia da
perseguição do PCC e achou boa ideia morar no
acampamento. O mineiro de 20 anos que foi passar seu
aniversário em Brasília, escondido da mãe. O
evangélico do Piauí que se deslocou para a capital
federal em busca de emprego e acabou atraído pela
comida de graça. No quebra-quebra, ele quis entrar no
STF e terminou preso, mas acredita que “se fizer algo
contra Lula” ainda vai “parar no Céu”. E há os
convictos.
“Eu me deslumbrava. Achava que o Exército era uma
entidade fortíssima”, diz o consultor de seguros Antônio
Augusto Menezes Costa, de 57 anos, que chegou ao QG

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na manhã do dia 8 de janeiro, oriundo de Vitória, no


Espírito Santo. “Eu não culpo o baixo escalão. Eu culpo
o alto escalão. Eles que são maus. Não acataram a
ordem verdadeira que o Exército poderia tomar sobre
si.” A “ordem”, claro, era a intervenção militar. Costa
votou em Lula duas vezes, mas decepcionou-se com a
corrupção. Não conhecia Brasília. Ao chegar na capital,
alugou uma barraca no acampamento mas, cansado da
viagem, pegou no sono e perdeu a descida para a
Esplanada. Terminou preso. Como tem pressão alta,
acabou liberado. Passou a noite na rodoviária de
Brasília e, na manhã do dia 10 de janeiro, tomou o
ônibus para Vitória. Acredita que a quebradeira foi obra
de “infiltrados” e continua fã de Bolsonaro – “fala a
verdade”, “é honesto” e “luta pela liberdade”. E, agora,
odeia generais, almirantes e brigadeiros.
 
 

N a tarde do dia 21 de janeiro, o


site Metrópoles informou que o ex-ajudante de
ordens de Bolsonaro, o coronel Mauro Cid, comandaria
o Batalhão de Operações Especiais de Goiânia, o de
maior prestígio no Exército. O batalhão é responsável
pelo BGP, que faz a guarda presidencial. A notícia
surpreendeu metade da República – do ministro Gilmar
Mendes, do STF, ao presidente do TCU, Bruno Dantas.
Naquela noite, Lula interpelou seu ministro da Defesa
sobre o assunto. José Múcio desconversou. Na manhã
seguinte, às 6h40, antes de embarcar para Roraima, Lula
voltou a ligar, impaciente. Não pediu a demissão do
general Arruda, que nomeara Cid, mas cobrou resultado.
“Quero ver como você vai resolver isso”, disse. Múcio
prometeu que quando Lula voltasse de Roraima, onde

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se descobrira o surto de doença e fome que vinha


matando os yanomamis, “o problema estará resolvido”.
Àquela altura, Cid já estava sob investigação do
Supremo por participação das maquinações do golpe,
mas Múcio queria reverter sua indicação de modo
diplomático. Fez chegar ao ministro Alexandre de
Moraes um pedido para que fizesse constar nos autos do
inquérito, explicitamente, que Cid era investigado.
Assim, Múcio poderia contestar a promoção com
argumentos jurídicos. Moraes topou. Mas, antes disso,
Múcio chamou o general Arruda para uma conversa.
Ouviu uma desculpa de ordem administrativa para
manter a indicação de Cid. Múcio resistiu. A conversa
azedou e, sem outra saída, Múcio demitiu o general do
comando do Exército ali mesmo. À noite, Lula disse a
Múcio que naquele dia, ao cortar a cabeça de Arruda,
ele havia, de fato, assumido como ministro da Defesa.
O telefonema de Múcio convidando o general Tomás
Paiva para substituir o general Arruda pegou-o
desprevenido, de bermuda, fazendo compras no
supermercado, em São Paulo. Paiva pediu uns minutos
para pensar e consultou Arruda, de quem é amicíssimo.
Os dois se formaram na Academia Militar das Agulhas
Negras, em Resende, no mesmo ano. Na conversa com
Arruda, tomou pé da situação e, em seguida, ligou para
Múcio aceitando o cargo. Paiva tinha as mesmas
credenciais militares que o antecessor, mas havia uma
diferença crucial: era um legalista, já defendera
publicamente a democracia e a soberania do voto
popular. Naquela tarde, tomou um avião para Brasília,
conversou com Lula e saiu comandante do Exército. A
mudança, comunicada ao Alto Comando em uma
reunião virtual, chegou sem sobressalto. Até para os
militares, era uma demissão óbvia.

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17/06/2023, 14:43 A teia do golpe de 8 de janeiro

Os personagens mencionados nesta reportagem tiveram


destinos diversos. O general Dutra permaneceu como
comandante militar do Planalto até o dia 12 de abril.
Depois de deixar o cargo, foi convocado pela CPI da
Câmara Distrital para explicar a relação entre o Exército
e o acampamento. A caserna fez gestões para mudar a
“convocação” para “convite” – uma diferença sutil, que
demonstra a dificuldade dos militares em assumir
qualquer responsabilidade sobre o ocorrido naqueles
dias. Em seu depoimento, Dutra mentiu à vontade.
Disse que a Polícia Militar “nunca combinou conosco
de desmobilizar o acampamento” e que o Exército não
deu “vida fácil aos manifestantes”. Negou, inclusive,
que o Exército tenha apontado seus tanques para a PM
na dramática noite de 8 de janeiro. Alegou que a tropa
estava ali para proteger o quartel dos vândalos.
Anderson Torres passou 117 dias preso depois que a
polícia encontrou em sua casa uma minuta para decretar
“estado de defesa” e intervir no TSE – era a “minuta do
golpe”, como ficou conhecida. O general G. Dias
acabou pedindo demissão do GSI, depois que um vídeo
revelado pela CNN Brasil o mostrou caminhando
tranquilamente no Planalto no auge das depredações. O
coronel Cid, cujo nome aparece envolvido em todos os
escândalos desenterrados do governo Bolsonaro, está
preso desde o início de maio.
O general Júlio Cesar Arruda, o ex-comandante do
Exército, está na reserva e continua impávido. Durante a
apuração desta reportagem, a piauí perguntou a todos
os entrevistados sobre o seu caso. Afinal, o general
protegeu um ninho de manifestantes – que incluía
criminosos, como promotores de atentados –, resistiu à
ordem do interventor de prender os golpistas, chegou ao
extremo de usar o batalhão de choque do Exército para

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17/06/2023, 14:43 A teia do golpe de 8 de janeiro

arreganhar os dentes para uma tropa da Polícia Militar –


e, mesmo assim, atravessou a tempestade sentado na
cadeira de comandante do Exército. Dentre todas as
respostas, a de Cappelli dá uma ideia de como é tênue a
teia da democracia:
– Você tira a tampa da panela de pressão com ela
fervendo? – ele pergunta, e ele mesmo responde: – Não,
você espera a temperatura baixar.
Esse conteúdo foi publicado originalmente
na piauí_201 com o título “A teia do golpe”.

Ana Clara Costa


Repórter da piauí. Foi editora de política na Veja,
editora do Globo em Brasília e editora-chefe
na Época

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