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Leia em português: Le Monde descortina bastidores da

Lava Jato

Originalmente publicado no jornal francês Le Monde, por


Gaspard Estrada e Nicolas Bourcier

Sob o título “No Brasil, o naufrágio da operação anticorrupção


Lava Jato”, o jornal francês Le Monde mostra os motivos, os
interesses e como a Lava Jato atendeu aos interesses
geopolíticos e econômicos norte-americanos

Existe algo podre no Reino do Brasil. Todo o país é atingido


por uma série de crises simultâneas, uma espécie de
tempestade perfeita – recessão econômica, desastres
ambientais, polarização extrema da vida política, Covid-19… A
isso deve ser adicionado o naufrágio do sistema judicial. Um
trovão adicional em um céu já pesado, mas carregado de
esperança há sete anos, quando um jovem magistrado
chamado Sergio Moro lançou, em 17 de março de 2014, uma
vasta operação anticorrupção chamada “ Lava Jato”,
envolvendo a gigante do petróleo Petrobras, construtoras e um
número expressivo de lideranças políticas.

De uma só tacada, dizia-se, o requerente e sua equipe de


investigadores, apoiados pelo judiciário e pela mídia, iam
limpar e salvar o Brasil, finalmente! Foram emitidos 1.450
mandados de prisão, apresentadas 533 denúncias e 174
pessoas foram condenadas. Nada menos que 12 chefes ou ex-
chefes de Estado brasileiros, peruanos, salvadorenhos e
panamenhos foram implicados. E a colossal soma de 4,3
bilhões de reais (610 milhões de euros) foi recuperada dos
cofres públicos de Brasília. Até o ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, adorado pela maioria de opinião, não resistiu à onda,
e foi parar atrás das grades.

E então, de repente, quase nada. Em menos de dois meses, a


extensa investigação desmoronou como uma explosão. No
início de fevereiro, o Ministério Público Federal deixou estourar
o anúncio do fim do “Lava Jato” , desmontando-a com uma
frieza que não se conhecia sequer a principal equipe de
promotores. Em seguida, um juiz do Supremo Tribunal Federal
ordenou a anulação das acusações contra Lula. Quinze dias
depois, em 23 de março, foi a vez da mais alta corte brasileira
decidir que o juiz Moro foi “tendencioso” durante sua
investigação.

Irregularidades e confusões
A maior investigação anticorrupção do mundo, como a chamou
um magistrado sênior, tornou-se o maior escândalo jurídico da
história do país. Depois de mais de sete anos de processos, o
próprio cerne da Justiça brasileira acaba de se retrair tanto na
substância quanto na forma, abrindo um abismo de
questionamentos sobre seus métodos, seus meios e suas
escolhas.

É certo que o site de notícias The Intercept – criado por Glenn


Greenwald, jornalista americano radicado no Rio de Janeiro e o
bilionário do Vale do Silício Pierre Omidyar – não parou, nos
últimos dois anos, de apontar irregularidades e equívocos à
investigação. Cento e oito artigos publicados até o momento,
por sua vez, levantaram o véu sobre as mensagens
comprometedoras trocadas entre promotores e o juiz Moro,
lançando luz sobre os vínculos mantidos, às vezes fora de
qualquer quadro legal, por investigadores brasileiros com
agentes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos
(DoJ), ou mesmo sublinhou o viés político de alguns
integrantes da “Lava Jato”, obcecados com a ideia de bloquear
o Partido dos Trabalhadores (PT).

A independente Agência Publica, agência de jornalismo


investigativo, fundada em São Paulo por repórteres mulheres,
também mostrou como o processo foi marcado por
irregularidades e inúmeras confusões. Após essas revelações
deslumbrantes, no entanto, permanece um forte gosto pelo
inacabado, a sensação de um julgamento fracassado e uma
bagunça ontológica para uma investigação que queria ser um
modelo de seu tipo.

Para compreender essas voltas e reviravoltas sucessivas,


temos que voltar às origens desta novela político-jurídica.
Estabelecer o arcabouço e distinguir como seus principais
atores encontraram subsídios e arcabouço jurídico com
juristas e personalidades influentes, primeiro no Brasil, depois
com agentes de uma administração norte-americana que
desejam continuar seu trabalho de aproximação com seu
grande vizinho do sul.
Quando assumiu a Presidência da República em 2003, Lula
sabia que era esperado na virada, principalmente no combate à
corrupção.

Meses de investigação, entrevistas e pesquisas foram


necessários para que o Le Monde desenhasse o outro lado
dessa cena. Se algumas áreas permanecem nas sombras,
alguns episódios de Lava Jato evidenciam cumplicidades
vergonhosas. Outros, ao contrário, revelam como certos juízes
e investigadores têm por vezes aproveitado a sua
independência – muito real – a serviço de um projeto político,
embarcando numa corrida louca, estabelecendo os motivos, os
meios e os desmentindos. “Foi como uma bola atirada em um
jogo de boliche”, admite, em condição de anonimato, um ex-
assessor próximo ao governo Obama, responsável por
questões jurídicas em relação à América do Sul. Um “jogo” que
virou armadilha.

Quando assumiu a Presidência da República em 2003, Lula


sabia que era esperado que mudasse. Principalmente no que
diz respeito ao combate à corrupção, antigo demônio da vida
política brasileira e um de seus principais argumentos de
campanha. Assim, confiou ao seu novo ministro da Justiça,
Marcio Thomaz Bastos, a tarefa de reformar o sistema
judiciário, aceitando a nomeação como chefe de acusação de
um procurador nomeado pelos seus pares, enquanto os seus
antecessores costumavam escolher quem fosse mais
complacente com o poder.

Uma das primeiras traduções concretas desse compromisso é


a criação de cursos dedicados ao combate à lavagem de
dinheiro e ao crime organizado. Sergio Moro seria um dos
primeiros juízes indicados para presidir esses tribunais. Ao
mesmo tempo, uma estratégia nacional de luta contra a
lavagem de dinheiro e a corrupção foi posta em prática com o
objetivo assumido de “facilitar as trocas informais” dentro da
administração, e tornar mais eficiente o exame dos casos.

O jovem magistrado radicado em Curitiba, responsável à época


do caso Banestado, investigação sobre lavagem de dinheiro
em banco público regional, está entre os mais fervorosos
adeptos dessa estratégia, que permite obter com mais rapidez
o fornecimento de impostos e ativos informações e
compartilhá-las com várias autoridades, inclusive estrangeiras.

Medo do terrorismo
É verdade que, no mundo da cooperação judiciária
internacional, a luta contra a corrupção, a lavagem de dinheiro
e o terrorismo ocupa um lugar especial. Após os ataques de 11
de setembro, os Estados Unidos estavam procurando por
todos os meios neutralizar ataques futuros, em particular
visando as redes financeiras dessas organizações. Porém, no
Brasil, a inteligência americana estava preocupada com a
presença, na tríplice fronteira entre Argentina, Paraguai e
Brasil, de possíveis células do Hezbollah, entidade apoiada
pelo Irã e colocada por muito tempo na lista negra americana.

O governo Bush busca então aumentar a ação contraterrorista


de Brasília que, na época, polidamente se recusa a fazê-lo. Para
contornar a frieza das autoridades brasileiras – que
consideram que o risco terrorista é deliberadamente exagerado
pelos Estados Unidos – a embaixada americana em Brasília
estava tentando criar uma rede de especialistas locais, capazes
de defender as posições americanas “sem parecer peões” de
Washington, para usar a frase do embaixador Clifford Sobel em
um telegrama diplomático americano que o Le Monde pôde
consultar.

Sergio Moro, que estava então colaborando ativamente com as


autoridades americanas no caso Banestado, é então abordado
para participar de um programa de relacionamento financiado
pelo Departamento de Estado. Ele aceita. Foi organizada então
uma viagem aos Estados Unidos em 2007, durante a qual fez
uma série de contatos dentro do FBI, do DoJ e do
Departamento de Estado, ou seja, relações exteriores.

Em dois anos, a Embaixada dos Estados Unidos em Brasília


formou uma rede de magistrados e advogados convencidos da
relevância do uso das técnicas americanas.

A Embaixada dos Estados Unidos está procurando aumentar


sua vantagem. No desejo de estruturar uma rede alinhada às
suas orientações no meio jurídico brasileiro, cria nela o cargo
de assessor jurídico ou assessor jurídico residente. A escolha
recaiu sobre Karine Moreno-Taxman, procuradora
especializada na luta contra a lavagem de dinheiro e o
terrorismo.

Desde 2008, esta especialista desenvolve um programa


denominado “Projeto Pontes” que, a fim de apoiar as
necessidades das autoridades judiciárias brasileiras, organiza
cursos de formação que lhes permitem se apropriar dos
métodos de trabalho americanos (grupos de trabalho
anticorrupção) , a sua doutrina jurídica (as delações premiadas,
em particular), bem como a sua vontade de partilhar
informação de forma “informal”, isto é, fora dos tratados
bilaterais de cooperação judiciária.

A embaixada passa então a aumentar o número de seminários


e reuniões com juízes, promotores e altos funcionários
especializados, com foco nos aspectos operacionais da luta
contra a corrupção. Sergio Moro participa como palestrante. No
espaço de dois anos, o trabalho de Karine Moreno-Taxman dá
frutos: a embaixada constitui uma rede de magistrados e
advogados convencidos da relevância do uso das técnicas
americanas.

Em novembro de 2009, o assessor jurídico da embaixada é


convidado a falar na conferência anual de policiais federais
brasileiros. O encontro estava sendo realizado em Fortaleza,
uma cidade litorânea e sem charme do Nordeste do Brasil,
onde cerca de 500 profissionais da manutenção da ordem, da
segurança e do direito são convidados a debater o tema “luta
contra a impunidade”.

“Em um caso de corrupção, é preciso correr atrás do ‘rei’ de


forma sistemática e constante para derrubá-lo”, afirma o
assessor jurídico da embaixada dos Estados Unidos em
Brasília

Sergio Moro está lá, presente desde a primeira hora do


congresso. É ele mesmo quem abre os debates, pouco antes
de passar a palavra ao deputado norte-americano. O juiz de
Curitiba se lança citando o ex-presidente norte-americano
Franklin Delano Roosevelt, depois ataca desordenadamente os
crimes do colarinho branco, a ineficiência e as falhas de uma
justiça brasileira doente, segundo ele, de um sistema de
“recursos infinitos” muito favorável aos advogados de defesa.
Ele defende a reforma do Código Penal, destacando que as
discussões nessa direção estão ocorrendo paralelamente no
Congresso de Brasília. Aplausos na sala.

Na frente da platéia, a senhora Moreno-Taxman está sentada.


Ela fala em um tom muito menos seco e sério do que seu
antecessor, mas tão direto: “Em um caso de corrupção” – ela
diz – “você tem que correr atrás do ‘rei’ de uma maneira
sistemática e constante para derrubá-lo”. E é mais explícita:
“Para que o Judiciário possa condenar alguém por corrupção,
é necessário que o povo odeie essa pessoa”. Finalmente: “A
empresa deve sentir que realmente abusou de sua posição e
exigir sua condenação”. Mais uma vez aplausos do público.

O nome do presidente Lula, enredado no escândalo do


“Mensalão”, caso de suborno e compra de votos no
Congresso, revelado em 2005, não é citado em nenhum
momento. Mesmo que ele esteja presente na mente de todos,
ninguém imagina então que este se tornará o “rei” designado
pela senhora Moreno-Taxman. No entanto, é isso que vai
acontecer.

Espionagem ilegal
Por enquanto, o governo petista não vê nada chegando. Três
meses depois da reunião de Fortaleza, em vez de fazer uma
reforma política para acabar com o financiamento ilegal de
campanhas eleitorais, o partido prefere fazer promessas à
opinião pública apresentando um projeto de lei anticorrupção.
Espera, assim, responder às críticas recorrentes desde que o
PT assumiu o poder e ganhar influência na cena internacional
ao cumprir, em particular, os padrões da OCDE, onde o grupo
de trabalho contra a corrupção (Grupo de Trabalho da OCDE
sobre Suborno em Transações Comerciais Internacionais),
fortemente influenciada pelos Estados Unidos, está
pressionando o Brasil a reformar sua legislação nessa área.

Sergio Moro, por sua vez, se posiciona publicamente no


sentido de endurecer as penas previstas no projeto de lei e
garantir a adoção das confissões premiadas como instrumento
jurídico válido. Aquele que agora se tornou uma das figuras do
debate brasileiro sobre questões de lavagem de dinheiro usa
métodos que beiram a legalidade – usurpação das
prerrogativas do Ministério Público, instrução de ordens
preventivas de prisão apesar da oposição de autoridades
superiores, escuta telefônica de advogados ou personalidades
com parlamentares imunidade – e com isso desperta a
desconfiança de alguns dos magistrados.

“Os crimes ligados ao poder são por natureza, tendo em vista a


posição de seus autores, difíceis de comprovar por meio de
provas diretas”, daí “a maior elasticidade na aceitação de
provas por parte do Ministério Público”

O magistrado de Curitiba é, porém, nomeado, no início de 2012,


desembargador assistente de Rosa Weber, recém-eleita juíza
do Supremo Tribunal Federal. Esta última, especialista em
direito do trabalho, pretendia ter um perito em direito penal que
a pudesse apoiar no julgamento final do “Mensalao”. Sergio
Moro escreverá assim em parte a polêmica decisão da juiza
neste caso. “Os crimes ligados ao poder são por natureza,
tendo em vista a posição de seus autores, difíceis de
comprovar por meio de provas diretas”. Portanto, especifica o
texto: “a maior elasticidade na aceitação de provas por parte
da acusação”. Um precedente que será levado ao pé da letra
pelo juiz e pelos promotores de “Lava Jato” à época da
denúncia e condenação de Lula.

O processo foi iniciado em 2013. Os parlamentares brasileiros,


que debatem o projeto de lei anticorrupção há três anos,
decidiram votar em meados de abril. Para ficarem bem em
relação ao grupo de trabalho da OCDE, eles incluem a maioria
dos mecanismos previstos em uma lei americana, que está
começando a ser falada no meio empresarial: a Lei de Práticas
de Corrupção no Exterior (FCPA).

Criada em 1977 a partir de Watergate, o objetivo principal


dessa lei era combater atos de corrupção de empresas
americanas no exterior, impondo-lhes sanções financeiras. Até
o final da Guerra Fria, isso raramente era aplicado. Tudo
mudou na década de 1990. O governo Clinton começou a
reformar a FCPA, o que iria acompanhar a adoção de uma
convenção anticorrupção dentro da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a fim de
“multilateralizar os efeitos”, de acordo com um telegrama da
embaixada americana.
É o critério de competência da lei que detona: qualquer
empresa que tenha qualquer ligação com os Estados Unidos e
que tenha pago um funcionário estrangeiro para fins de
corrupção pode ser objeto de uma acusação. Qualquer vínculo
é entendido como o trânsito de fundos por uma conta bancária
americana, ou a transmissão de um e-mail cujo servidor esteja
localizado em solo americano.

Na verdade, praticamente todas as empresas ao redor do


mundo estão expostas à lei, incluindo aquelas que competem
com empresas dos Estados Unidos por grandes contratos,
como venda de armas e equipamentos, construção e serviços
financeiros. Esse desenvolvimento levará a um aumento das
penalidades vinculadas à implementação da FCPA: de alguns
milhões de dólares na década de 1990, passamos a vários
bilhões na década de 2010. E, neste contexto, a América Latina
em geral e o Brasil em particular será de interesse para os
promotores do DoJ.

Violações das regras de procedimento


Estes últimos, que dependem do poder executivo, embora
sejam considerados “autônomos” do resto da administração
americana, sabem que a próxima implementação da lei
anticorrupção brasileira lhes permitirá sancionar as empresas
brasileiras nos termos da lei FCPA. Em novembro de 2013, por
ocasião da Conferência da FCPA, o encontro anual de
personalidades do mundo jurídico americano, o procurador-
geral adjunto do DoJ, James Cole, anunciou que o chefe da
unidade da FCPA dos Estados Unidos faria uma viagem ao
Brasil na esteira, com o objetivo de “treinar promotores
brasileiros” no uso da lei.

Poucos meses antes, Sergio Moro retomou um antigo caso de


lavagem de dinheiro, ligado ao “Mensalão”, que deixava de
lado desde 2009. Diz respeito às relações de vários
intermediários desonestos (Carlos Chater e Alberto Youssef),
com José Janene, membro do Partido Progressista (partido de
direita que apoia a coligação governamental). O juiz curitibano
está interessado nos investimentos dos dois empresários na
empresa Dunel Indústria, feitos por meio das contas bancárias
de um posto de gasolina chamado “Posto da Torre”, em
Brasília. A pedido do senhor Moro, Chater é grampeado de
julho a dezembro de 2013: trata-se de saber se esses
investimentos servem para mascarar possíveis atos de
lavagem de dinheiro em favor do senhor Janene.

É fazendo a ligação entre a Dunel Indústria, com sede no


Estado do Paraná, e o posto de abastecimento, por onde
passam grandes somas, inclusive para determinados
executivos da Petrobras, que Sergio Moro afirma sua
competência para julgar o caso. Manipulação curiosa: a maior
parte dos atos de lavagem de dinheiro e corrupção de MM.
Chater e Youssef acontecem em São Paulo. De acordo com o
processo penal brasileiro, isso deveria ter levado um juiz
daquela jurisdição a tratar do caso – e não Sergio Moro. Mas o
magistrado de Curitiba entendeu os meandros do judiciário
brasileiro. Ele sabe que, ao ocultar a localização dessas
empresas de fachada, poderá manter o controle da
investigação. Desde que os tribunais superiores o permitam. E
é isso que vai acontecer.

Seduza a opinião pública


A partir de agosto de 2013, alguns juristas viram o perigo
decorrente da implementação da nova lei anticorrupção. Uma
nota premonitória, publicada pelo escritório de advocacia
americano Jones Day, prevê que terá efeitos deletérios para a
justiça brasileira. Alerta contra seu funcionamento
“imprevisível e contraditório” devido ao seu caráter de
“influência” no plano político, bem como a ausência de
procedimentos de “aprovação ou controle” . Segundo o
documento, “cada membro do Ministério Público é livre para
iniciar o processo segundo as suas próprias convicções, com
reduzida possibilidade de ser prevenido por uma autoridade
superior” .

Apesar dos alertas, o governo e seus aliados seguem em


frente. A presidente Dilma Rousseff, sempre nessa vontade de
acariciar uma opinião pública cada vez mais crítica, decide até
endurecer seus critérios de aplicabilidade. Os parlamentares
acreditam que esta lei não os afetará mais do que as
anteriores.

Após seis meses de investigação, o juiz de Curitiba tem


informações suficientes para expedir os primeiros mandados
de prisão. Em 29 de janeiro de 2014, a lei anticorrupção entra
em vigor. No dia 17 de março, o grupo de trabalho “Lava Jato”
é formalmente criado pelo Procurador-Geral da República,
Rodrigo Janot. À sua cabeceira, ele nomeia o procurador Pedro
Soares, que se opõe a que Sérgio Moro receba o tratamento do
caso, uma vez que os supostos crimes de Alberto Youssef
ocorreram fora de Curitiba. Sua abordagem falhará. Ele será
substituído por outro procurador, Deltan Dallagnol, 34, que não
só será favorável a Moro no caso, mas também se tornará o
principal sustentáculo do magistrado.

Para os Estados Unidos, trata-se de reduzir a influência


geopolítica do Brasil na América Latina, mas também na África

Desde o nascimento, a Lava Jato atrai a atenção da mídia. A


orquestração das prisões e o ritmo das acusações do
Ministério Público e de Moro transformam a operação em uma
verdadeira novela política e judicial fora do comum. Enquanto
o Brasil se prepara para embarcar em uma campanha
presidencial e legislativa, a elite política e econômica do país
de repente parece tomada de medo com a ideia de ser varrida
por essa cascata interminável de revelações. E a lista continua.

Ao mesmo tempo, o governo de Barack Obama viu um


aumento nos protestos de países aliados, destacando-se a
França, preocupada com a proliferação de sanções impostas
pelo DoJ, no âmbito do combate à corrupção, visando certas
bandeiras nacionais, como o Grupo Alstom. Para sinalizar seu
apoio político às ações anticorrupção empreendidas por seu
governo, a Casa Branca publicou uma “agenda anticorrupção
global” em setembro de 2014.

Lá está escrito que a luta contra a corrupção no exterior (por


meio da FCPA) pode ser usado para fins de política externa, a
fim de defender os interesses de segurança nacional. Um mês
depois, Leslie Caldwell, então procurador-geral adjunto do DoJ,
faz um discurso na Duke University: “A luta contra a corrupção
estrangeira não é um serviço que prestamos à comunidade
internacional, mas sim uma ação de fiscalização necessária
para proteger nossos próprios interesses de segurança
nacional e a capacidade de nossas empresas americanas de
competir no futuro”.

No terreno sul-americano, as gigantes brasileiras da


construção Odebrecht, OAS ou Camargo Correa, em plena
expansão, entraram diretamente na linha de fogo das
autoridades norte-americanas. Não só porque ganham mais
contratos, mas também porque participam do fortalecimento da
influência geopolítica do Brasil na América Latina e na África,
ao financiar, ilegalmente na maioria das vezes, as campanhas
eleitorais de personalidades próximas ao PT, lideradas pelo
consultor de comunicação da legenda, João Santana. Só em
2012, o estrategista eleitoral, confortavelmente financiado pela
Odebrecht, organizou três campanhas presidenciais na
Venezuela, República Dominicana e Angola, sem falar no
município de São Paulo. Todas vencidas pelos candidatos de
Santana.

Promessas de boa vontade


Diante de diversos jornalistas que integram o Consórcio
Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), Thomas
Shannon, embaixador americano estacionado em Brasília de
2010 a 2013, disse que o projeto político brasileiro para a
integração econômica da América do Sul suscita sérias
preocupações no Departamento de Estado. Este último
“considerou o desenvolvimento da Odebrecht parte do projeto
de poder do PT e da esquerda latino-americana”, afirma o
diplomata.

“Se somarmos a tudo isso as péssimas relações pessoais


entre Barack Obama e Lula, e um aparato petista que ainda
desconfia do vizinho norte-americano, podemos dizer que
tínhamos trabalho a fazer para remediar a situação. Barre” ,
reconhece um ex-membro do DoJ encarregado de casos latino-
americanos. A tarefa será ainda mais difícil a partir das
revelações do informante Edward Snowden, em agosto de
2013, sobre a espionagem da Agência de Segurança Nacional
Americana (NSA) contra Dilma Rousseff, que sucedeu Lula em
2011, e a Petrobras, ainda mais frias as relações entre Brasília
e Washington.

Várias alavancas de influência são ativadas. Há a FCPA e as


redes de promotores e magistrados treinados em técnicas de
investigação implantadas nos últimos anos. Para atingir seus
objetivos, o DoJ usa uma grande isca: o compartilhamento das
multas que serão impostas pelas autoridades americanas às
empresas brasileiras no âmbito da FCPA.
Para prestar garantias de boa vontade às autoridades
americanas, os investigadores brasileiros estão organizando a
visita confidencial a Curitiba, em 6 de outubro de 2015, de
dezessete membros do DoJ, do FBI e do Ministério da
Segurança Interna para que este receba um explicação
detalhada dos procedimentos atuais. Eles dão acesso a
advogados de empresários potencialmente chamados a
“colaborar” com a justiça americana, sem que o Poder
Executivo brasileiro seja informado. Mas isso tem um preço:
cada uma das multas impostas às empresas brasileiras pela
FCPA terá que incluir uma parcela destinada a Brasília, mas
também à operação “Lava Jato”. Os americanos aceitam. Com
o negócio fechado, os promotores brasileiros irão pescar
empresas que possam estar sob o controle do DoJ.

“Os policiais devem estar cientes de todas as ramificações


políticas potenciais desses casos, já que os casos de
corrupção internacional podem ter efeitos importantes que
influenciam as eleições e as economias”, disse um funcionário
do FBI.

Enquanto sua maioria parlamentar derrete como neve ao sol


diante da proliferação de negócios, a presidente Dilma
Rousseff decide convidar seu mentor, Lula, para participar do
governo. Uma manobra vista como a última tentativa de salvar
sua coalizão. Ao mesmo tempo, membros da Polícia Federal,
por ordem dos promotores, grampearam – fora de qualquer
marco legal – os telefones dos advogados de Lula (vinte e
cinco defensores no total), e até mesmo do próprio presidente.
Sergio Moro vai, assim, monitorar uma conversa entre este e
Dilma Rousseff. Uma troca de palavras enigmáticas sobre o
futuro de Lula, que o magistrado envia prontamente à Rede
Globo e que selará a demissão da presidenta poucos meses
depois.

Durante este período conturbado, os promotores do DoJ estão


monitorando de perto a situação política no Brasil. De acordo
com Leslie Backshies, então chefe da unidade internacional do
FBI, que desde 2014 tem a tarefa de ajudar os investigadores
de Lava Jato, “os oficiais devem estar cientes de todas as
ramificações políticas potenciais desses casos, porque os
casos de corrupção internacional podem ter grandes efeitos
que influenciam as eleições e as economias”. O especialista
esclarece: “Além de conversas regulares de negócios, os
supervisores do FBI se reúnem com os advogados do DoJ
trimestralmente para analisar possíveis ações judiciais e
possíveis consequências”.

É, portanto, com pleno conhecimento dos fatos que estes


últimos encerram sua denúncia contra a Odebrecht nos
Estados Unidos. No entanto, os líderes do grupo relutam em
assinar o acordo de “colaboração” proposto pelas autoridades
americanas, que inclui o reconhecimento de atos de corrupção
não só no Brasil, mas em todos os países onde esta gigante da
construção está instalada.

Para dobrá-los, os magistrados ordenam ao banco Citibank,


responsável pelas contas da subsidiária americana da
empresa, que dê à Odebrecht trinta dias para encerrá-los. Em
caso de recusa, os valores depositados nessas contas serão
colocados em liquidação judicial, situação que excluiria o
conglomerado do sistema financeiro internacional e, portanto,
o colocaria em falência.

A Odebrecht concorda em “colaborar”, o que permite aos


promotores de Curitiba, embora não tenham competência
normativa para julgar atos de corrupção ocorridos fora do
Brasil, para obter as confissões premiadas dos executivos da
empresa. Confissões que irão posteriormente enriquecer a
acusação do DoJ sob a FCPA.

O comunicado foi divulgado na véspera das festas de fim de


ano de 2016. A Operação Lava Jato está na capa da mídia
internacional. Sergio Moro é convidado para a lista das cem
personalidades mais influentes da revista Time. O semanário
New York Americas Quarterly dedica sua capa a ele. Por sua
vez, os promotores do DoJ acolhem publicamente essa
cooperação sem precedentes. Em conferência realizada nas
instalações do Atlantic Council, em Washington, Kenneth
Blanco, então procurador-geral adjunto do DoJ, declarou que
“Brasil e Estados Unidos trabalharam juntos para obter provas
e construir negócios” . E diz: “É difícil imaginar uma
cooperação tão intensa na história recente como a que ocorreu
entre o DoJ e o Ministério Público brasileiro”.
Moro e sua equipe começam 2017 com confiança. Não que
tenham obtido provas contundentes contra Lula – suas
conversas privadas via Telegram provam o contrário –, mas
sim porque sua influência política e midiática é tal que eles vão
tirar vantagem, às vezes desafiando a maioria dos princípios.

Ameaças do Exército
Quando Lula foi condenado por “corrupção passiva e lavagem
de dinheiro” em 12 de julho de 2017, poucos jornalistas
relataram que essas acusações foram pronunciadas “por fatos
indeterminados”. O argumento é, no entanto, explicitamente
declarado no documento de 238 páginas detalhando a decisão
do Sr. Moro. Nos anexos à condenação, o magistrado esclarece
que “nunca afirmou que os valores obtidos pela empresa OAS
com os contratos com a Petrobras foram usados para pagar
vantagens indevidas ao ex-presidente”.

Outra estranheza que revela o peso adquirido pela operação


Lava Jato no judiciário brasileiro: a prisão do ex-presidente
Lula, embora seja contrária à Constituição brasileira. O artigo 5
diz, de fato, que nenhum litigante pode ser preso antes do final
do processo. No entanto, sob a intensa pressão da opinião
pública conquistada pela operação Lava Jato, o Supremo
Tribunal Federal alterou sua jurisprudência na matéria, em
2016.

O pedido de habeas corpus dos advogados de Lula é rejeitado


por seis votos contra cinco na sequência de um tweet de o
comandante do Exército ameaçando a Suprema Corte de
“assumir suas responsabilidades institucionais” no caso de
esta decidir a favor do ex-presidente.

Poucas horas após a decisão dos juízes, Sergio Moro emite


seu mandado de prisão: Lula é preso no dia 7 de abril. Ele não
poderá participar da eleição presidencial de 2018. Enquanto o
magistrado parece ter sido conquistado pela arrogância, a
máquina infernal é lançada. Jair Bolsonaro vence a eleição
presidencial com folga e nomeia aquele que eliminou Lula
como chefe do Ministério da Justiça. Do lado americano, nos
congratulamos por ter minado os sistemas de corrupção
implantados pela Petrobras e pela Odebrecht, bem como suas
capacidades de influência e projeção político-econômica na
América Latina.
Para os procuradores de Curitiba, o DoJ planejou reembolsar
80% de todas as multas impostas ao grupo petrolífero pela
FCPA, que eles podem administrar como entenderem. Uma
fundação de direito privado deve ser criada para administrar
50% desse maná. Os membros da diretoria dessa fundação são
nada menos que os próprios promotores da Lava Jato e vários
líderes de ONGs, inclusive da seção brasileira da
Transparência Internacional, que ao longo dos anos se tornou
um dos principais guardiões. Dois procuradores da equipe, o
senhor Dallagnol e Roberson Pozzobon, chegam a pensar em
criar uma estrutura jurídica em nome de seus respectivos
cônjuges, a fim de cobrar por serviços de consultoria na área
de “anticorrupção”.

Um denunciante preso
Eleito Bolsonaro, a imprensa internacional não demora a se
distanciar do “vigilante de Curitiba”. Vem sublinhar a sua
inconsistência ética ao aliar-se, assim, a um presidente de
extrema direita, membro, há décadas, de uma pequena
formação especialmente conhecida por ter estado envolvida
em inúmeros casos de corrupção.

Por sua vez, os juízes do STF não escondem o espanto ao


tomarem conhecimento, em março de 2019, do conteúdo do
acordo negociado em segredo entre os promotores de Lava
Jato e seus congêneres do DoJ. O juiz Alexandre de Moraes
decidirá suspender a criação da fundação da Lava Jato e
colocará em liquidação as centenas de milhões de dólares em
multas pagas pela Petrobras.

É neste contexto que a primeira revelação de The Intercept


estoura. Em maio de 2019, o Sr. Greenwald recebeu de um
denunciante, Walter Delgatti, 43,8 gigabytes de dados de
conversas privadas, via Telegram, da equipe Lava Jato. Após
verificação, três artigos são publicados em um domingo de
junho. Moro e os promotores não reconhecem a veracidade
das trocas. Eles afirmam não ter cometido ilegalidade, embora
se recusem a entregar seus telefones para exame.

Várias semanas depois, quando o Sr. Greenwald decide


oferecer acesso aos dados a vários meios de comunicação,
ficamos sabendo de um comunicado à imprensa do governo
que Sergio Moro foi aos Estados Unidos de 15 a 19 de julho.
Aproveitou esta estadia para consultar os seus homólogos? As
autoridades americanas, solicitadas pela Agência Publica, se
recusarão a confirmar ou negar as informações. Mesmo assim,
o Sr. Delgatti foi preso pouco tempo depois pela Polícia
Federal.

Embora essas revelações não tenham afetado


significativamente a popularidade do magistrado, a aura do juiz
continua a se desgastar na imprensa internacional. Por sua
vez, o Supremo Tribunal Federal acaba reconhecendo a
inconstitucionalidade da prisão de Lula. Ele foi libertado em 8
de novembro de 2019. O ex-presidente foi absolvido de sete
das onze acusações contra ele (a promotoria apelou em quatro
casos). Lula ainda não foi julgado em quatro casos que os
especialistas consideram menos importantes.

Sergio Moro acabou renunciando ao cargo em abril de 2020. A


elite política de Brasília dá as costas e as pesquisas se
invertem. Segue-se na ponta dos pés, rumo a Washington,
onde reproduz o modelo das portas giratórias, esses gateways
que permitem que ex-magistrados do DoJ que trabalharam em
casos relacionados à FCPA revendam as informações
privilegiadas obtidas durante suas investigações para grandes
escritórios de advocacia e ganhem muito dinheiro.

O anúncio cai em novembro de 2020, em meio às eleições


municipais no Brasil. Ficamos sabendo que o ex-juiz de
Curitiba foi recrutado pelo escritório Alvarez & Marsal. Agência
especializada em assessoria empresarial e contencioso com
sede na capital federal em 15 Shet NW, em frente ao Tesouro
dos Estados Unidos e a 200 metros da Casa Branca.

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