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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

Instituto de Filosofia

Prof. Dott. Gianni Fresu

Tópicos especiais de filosofia política 7

Fascismo: ideologia, povo e nação

Aula III

O fascismo: ascensão e crise

1.2 A Marcha sobre Roma

Como antes observado, os anos que se seguem à guerra são marcados por crescentes conflitos sociais
e, ao mesmo tempo, pelo nascimento de uma nova organização política, que utiliza métodos militares
para afirmar-se e bloquear a subversão social. Todos os fascismos surgiram, no clima inflamado que
precedeu, acompanhou e seguiu a primeira guerra mundial, como desenvolvimento do nacionalismo
moderno no contexto novo da política de massa, caracterizada pela inédita participação política das
grandes massas populares. Os fascismos afirmaram primeiramente o conceito básico do
nacionalismo: “a Nação acima de tudo”. Nesse sentido se afirmou antes de mais nada como
movimento antissocialista porque, sendo baseado nos princípios do internacionalismo proletário
desde a elaboração do “Manifesto do partido comunista” em 1848, os representantes desse movimento
eram considerados “forças antinacionais”. Além disso, no seu nacionalismo exasperado, todos os
fascismos consideram o conflito social entre capital e trabalho (ponto nevrálgico da história do
movimento operário) não só uma dialética destruidora dos interesses nacionais, mas um câncer que
precisa de ser extirpado com a violência devastadora da cruzada. Definir o nazismo ideologia de
esquerda é como considerar o satanismo uma religião cristã.
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Uma fase de profunda instabilidade política na qual Giolitti e o seu governo, representantes
de uma fraca maioria parlamentar, perdem progressivamente o habitual suporte do mundo das
empresas e das camadas conservadoras. No período de 1921-1922, uma parte importante das classes
dirigentes, incluídos a Monarquia e o Exército, decide mudar de rumo – considerando os velhos
equilíbrios dos partidos liberais inadequados para enfrentar a luta social e as transformações
produzidas pela política de massa –, voltando-se decididamente para o movimento de Benito
Mussolini.

Entre os trabalhos de aprofundamento sobre o fascismo escritos no período do seu


desenvolvimento, o livro de Angelo Tasca ̶ dirigente sindical, e também filiado ao Partido
Comunista e depois ao Partido Socialista ̶ , publicado em Paris em 19381, é seguramente um dos
mais significativos, e isto também pelo debate que suscitou em nível internacional. Um clássico da
historiografia sobre o fascismo, por muito tempo a única história verdadeiramente orgânica sobre as
origens do movimento de Mussolini.

Uma vez que o fascismo não fora uma fatalidade, Tasca buscou esclarecer o drama social e
político que o produziu e as suas causas fundamentais que, em síntese, podem ser resumidas em três
pontos:

1) a debilidade orgânica do país;

2) a falta de uma classe dirigente digna deste nome;

3) o distanciamento nunca encurtado entre as massas populares e o Estado do pós-


Risorgimento.

Como Gramsci e Piero Gobetti ̶ liberal de esquerda, amigo e colaborador de Gramsci ̶ ,


também Tasca fala de um Risorgimento como conquista monárquica, acontecida por particulares
condições internacionais e não pela força da sua burguesia. E a natureza doentia do novo equilíbrio
nacional se manifestou com clareza nos anos de afirmação dos conflitos sociais, com a emersão do
nacionalismo que precede o ingresso da Itália na guerra e a limitação das liberdades fundamentais (de
reunião e imprensa).

Com o fim do conflito bélico, Mussolini tenta explorar politicamente o mal-estar reinante. Ele
se apropria dos motivos ideológico-sentimentais do “arditismo” (uma tendência política dos
combatentes durante a guerra), mas ao mesmo tempo procura uma saída possível para apresentar-se
em um novo papel político. Marginalizado pelo PSI e a CGL, em sua desesperada busca de potenciais

1
Angelo Tasca, Nascita e avvento del fascismo, Laterza: Bari, 1972.
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aliados, Mussolini anseia por uma divisão entre o PSI e o sindicato, ou pelo menos uma maior
autonomia desse último do partido. No ano de 1919, na CGL, foi debatida a hipótese de um Partido
Trabalhista, como na Inglaterra, e Mussolini a apoiou com artigos no seu jornal. Com o fim da guerra
ele perdera o seu velho contato com as massas, e ainda sem uma linha política definida, tentava
recuperá-lo voltando-se para o mundo operário. Ao mesmo tempo, também pela impossibilidade da
primeira via, experimentou sempre com maior convicção a ideia de um socialismo nacional. É neste
período que começa a se definir a guinada do seu confuso horizonte ideológico, a ponto de, escreve
Tasca, “Mussolini, sem ter consciência disso”, aparecer como o “precursor de todos os fascismos”. E
certamente o esquerdismo inicial não está em contradição com este horizonte. Isto porque Mussolini
não tem nunca uma ideologia definida. Ele é, afirma novamente Tasca, um “demagogo oportunista
que quer achar na agitação violenta, na sublevação, uma via para voltar ao jogo”2. Por isto, neste
período, o futuro Duce sustenta todas as reivindicações do mundo do trabalho. A sua palavra da ordem
é “fazer com que os ricos paguem”. E é assim que afirma um programa de expropriação dos lucros
de guerra e uma taxação bastante progressiva contra os grandes patrimônios, tudo em competição
com os socialistas para capturar as simpatias do movimento operário.

Mussolini já não é socialista, ele não é mais que mussoliniano. Do partido


socialista, ele escolheu a esquerda, sobretudo porque os velhos líderes
estavam à direita e poderiam atrapalhar o seu caminho. Recém-chegado ao
“Avanti!” elimina Cláudio Treves, de quem rejeita os artigos porque deseja
dirigir sozinho o jornal, o seu jornal, o que resulta logo em um duelo. Expulso
do partido, ele sonha em “fazê-los pagar” a humilhação sofrida, e a luta
amarga que trava para isso é marcada pelo enfrentamento e pela obsessão pela
vingança. Mussolini não só passa para o campo oposto, como torna-se o
capitão da fortuna do Renascimento; ele rompera, simultaneamente, com sua
vida de boêmio e de “desclassificado”. Conhece o bem viver, tem suas
amantes. Sua “vontade de potência” encontra-se com o gosto pela vida, pela
bela vida, afastada da sujeira e da miséria. O dinheiro não lhe basta, e não
determina, por si só, sua conduta, mas ele não pode fazer nada sem ele, porque
sabe que “o dinheiro faz a guerra” e que sem o financiamento de Naldi e
Barrère, em 1914, quedou-se reduzido à impotência. Quem o conheceu em
1912-13, com seu aspecto miserável, rosto fino e olhos febris e o encontra
agora, na Galleria, em Milão, em terno negro, com o colo robusto que se

2
Angelo Tasca, Nascita e avvento del fascismo, Laterza: Bari, 1972, p. 11.
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eleva de um tronco poderoso, o rosto inchado e cheio, tem dificuldade em


reconhecê-lo, tamanha foi a transformação. Se adula as paixões populares não
é porque as divide; quer ganhar tempo, para não ser refutado imediatamente.
Segue a corrente, por vezes avança sem rompê-la, até a excita, para melhor
despistar, porque todos os seus gostos e desejos o impelem ao outro lado da
barricada.3

Mas a sorte de Mussolini está ligada ao mito da “vitória mutilada”, ou seja, à falta de
reconhecimento por parte dos aliados da contribuição fornecida pela Itália à guerra, em termos de
ampliações territoriais e de influência política. Mussolini explora com frieza este tema pondo-se na
esteira do poeta Gabriele D’Annunzio, inicialmente o verdadeiro chefe do intervencionismo
nacionalista, famoso por suas pregações místicas sobre o destino imperial da Itália. Com o tempo o
ex-socialista subtrai este primado, roubando a ele sua retórica, as poses teatrais, as liturgias funerais
e militares. Mussolini faz suas todas as iconografias e as palavras de ordem do movimento de
D’Annunzio, que depois foram consideradas características do fascismo. Todos os degradados
sociais, os oficiais de guerra agora sem função na sociedade civil, os estudantes desadaptados,
pequeno-burgueses proletarizados, buscam no fascismo aquele conteúdo novo, não conformista, para
subtrair-se à sociedade liberal e assumir uma atitude de combate capaz de enfrentar o socialismo nas
ruas. Mas Mussolini se monstra hábil, porque não se limita a excitar a pequena burguesia perturbada.
Ele adulou os industriais e os proprietários de terra, afirmando a impossibilidade do Estado de gerir
os serviços públicos, entregando estas funções aos setores privados, despojando o Estado de todas as
atividades econômicas assumidas na “era giolittiana”. Neste contexto de medos e ódio, o fascismo
acha uma definição, buscando o seu motivo econômico na aliança com os industriais e os
proprietários agrários, enquanto no campo ideológico afirmava o antibolchevismo.

Excitar os medos e confusões da multidão e também os interesses determinados das classes


proprietárias foi o golpe de sorte de Mussolini, que precisava de muito dinheiro para fazer um salto
de qualidade e que logo compreende a que parte da sociedade deve dirigir-se. Não é por acaso que a
reunião constitutiva do Movimento dei fasci di combattimento se faz na sala do círculo dos interesses
industriais e comerciais, na Piazza San Sepolcro, em Milão. O primeiro programa trazia a postura
radical da maioria dos delegados, muito mais à esquerda do que Mussolini gostaria, mas que ele
aceitou para não romper com eles. Todavia, logo Mussolini interpreta o programa em uma direção
social oposta, sempre mais orientada para posições reacionárias e imperialistas. Gramsci sintetizou

3
Id. Ib, p. 44.
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tudo isso num célebre retrato de Benito Mussolini dentro de um artigo escrito para a morte de Lênin
em 1924:

Temos na Itália um regime fascista; temos, no comando do fascismo, Benito


Mussolini; temos uma ideologia oficial na qual o líder é divinizado, declarado
infalível, preconizado organizador e inspirador de um renascido Sacro
Império Romano. Olhamos as fotografias: a máscara endurecida de um rosto
que víramos nos comícios socialistas. Conhecemos aquela face: conhecemos
aquele girar de olhos que no passado faziam, com seu feroz movimento,
corroer-se a burguesia e o faz, hoje, ao proletariado. Conhecemos aqueles
punhos sempre cerrados e ameaçadores. Conhecemos todo esse mecanismo,
toda essa parafernália, e entendemos que isso possa impressionar e
movimentar as entranhas da juventude das escolas burguesas; é realmente
impressionante de perto e causa espanto. Mas líder? Acompanhamos a
semana vermelha de junho de 1914. Mas de três milhões de trabalhadores
estavam na praça, atendendo ao chamado de Benito Mussolini que, passado
um ano da carnificina de Roccagorga, havia preparado essa grande jornada,
com todo o aparato de tribunas e jornalístico à disposição do “líder” do partido
socialista de então, de Benito Mussolini. [...]. Três milhões de trabalhadores
estavam reunidos na praça: falhou o “líder”, não como indivíduo, porque
contam que como indivíduo foi corajoso e em Milão enfrentou os cordões e
os mosquetões dos soldados. Falhou como “líder” porque não o era, porque,
como ele mesmo confessara, no seio da direção do Partido Socialista, não
tinha sequer razão nas miseráveis intrigas de Arturo Vella ou de Angelica
Balabanouff. Ele era naquele momento, como hoje, o típico pequeno-burguês
italiano, raivoso, feroz, constituído por todo o detrito deixado em solo
nacional pelos vários séculos de dominação de estrangeiros e padres: não
podia ser o chefe do proletariado; tornou-se o ditador da burguesia, que ama
a face feroz quando ela se torna bourbônica, que espera ver na classe operária
o mesmo terror que ela sentia por aquele revirar de olhos e por aqueles punhos
fechados ameaçadores.4

O salto de qualidade esperado acontece com os recursos dos setores agrários da Planície
Padana, um território onde o fascismo alcança o seu primeiro enraizamento territorial e uma

4
Gramsci A, La costruzione del partito comunista (1923-1926), Einaudi, Torino, 1971, p. 15.
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arregimentação militar que o torna a espinha dorsal do seu movimento. A outra orientação clássica
do fascismo, o imperialismo, se define no curso do ano de 1921. Antes, no movimento fascista,
existiam correntes heterogêneas: nacionalistas, intervencionistas de esquerda, e também wilsonianos.
Todavia, uma vez obtido o apoio da indústria, desejosa de novas aventuras expansivas, Mussolini
abandona cada ambiguidade lançando-se em violentos comícios e discursos contra “as velhas
potências que esfomeavam as jovens nações proletárias”5. É assim que reivindica para a Itália a
hegemonia no Mediterrâneo e o seu direito ao imperialismo.

Neste clima inflamado, em maio de 1921 o presidente do conselho, Giovanni Giolitti,


apresentou a sua demissão com o objetivo de decretar novas eleições na esperança de conseguir uma
redução dos deputados socialistas no Parlamento. Ele buscava aproveitar o episódio da cisão
socialista e do nascimento do PCd’I, ocorrido no Congresso de Livorno em 21 de janeiro. Na
realidade a situação não mudara. A única novidade fora o ingresso de 35 deputados fascistas no
Parlamento pela hospitalidade da mesma lista eleitoral de Giolitti, o que confirma a ambiguidade dos
liberais diante do fascismo nascente. Novamente a instabilidade política tornou-se o problema
principal, com o governo sem maioria efetiva até o último gabinete que precedeu a ascensão do
fascismo ̶ o governo Facta ̶ , num clima marcado pela violência das esquadras fascistas em todo o
país contra sedes dos partidos da esquerda, sindicatos, anarquistas, redações de jornais, ligas operárias
e camponesas. Escreve Tasca que Mussolini se candidatou a representar em primeira pessoa os
interesses das camadas ricas, contra a subversão social, e com duas jogadas definiu o seu alinhamento
conservador. Com a sua primeira intervenção no Parlamento, no dia 21 junho de 1921, ele afirma as
coincidências entre muitos pontos programáticos do fascismo e do Partido Popular (o partido dos
católicos), enquanto ao mesmo tempo se apresenta como o defensor dos interesses fortes do país. Não
só reivindica à Itália o direito à expansão territorial como declara que o fascismo não prega nem
pratica o anticlericalismo, que a tradição imperial da antiga Roma está encarnada do catolicismo e,
portanto, isto exigia uma relação sinérgica entre Estado e Igreja, uma abordagem totalmente diferente
daquela do anticlericalismo ostentado só dois anos antes. Mas a passagem mais significativa está no
violento ataque contra socialismo e comunismo, com o qual ele se proclama paladino da defesa da
ordem social. Mussolini não só defende a superioridade do capitalismo contra a abstração do
socialismo; ele afirma a necessidade de voltar à concepção da escola de Manchester, ou seja, uma
ideia de Estado que não interfere na economia, deixando este campo livre para a iniciativa privada.
Uma posição totalmente diferente do anticapitalismo de 1919-20, mas também diversa em

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B. Mussolini, La nuova politica dell’Italia. Discorsi e dichiarazioni. Giannini, A. (org.), Milano: Alpes, 1928.
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comparação com a linha de Mussolini depois de 1926, quando, pelo contrário, ele reivindica a função
total do Estado e o seu direito de plasmar toda a existência da sociedade.

Tasca ainda descreve o segundo momento do alinhamento conservador de Mussolini no


Congresso do Partido Nacional Fascista em Roma (de 7 a 9 novembro de 1921), que leva à definitiva
liquidação dos vestígios socialistas presentes no programa de 1919. As teses, publicadas no jornal do
movimento Popolo d’Italia em 9 de outubro, afirmavam novamente a necessidade de que o Estado
abandonasse os instrumentos de intervenção na economia. Mas não só. Esta afirmação vinha
acompanhada do pedido de revogação de todas as leis que taxavam rendas e lucros, consideradas
“demagógicas”, bem como da proposta de cancelar o direito de greve para os empregados públicos.
Junto a isto, nas questões das relações entre Estado e Igreja, como na política internacional, a virada
pela direita foi completa e sem nenhuma ambiguidade.

Nos acontecimentos marcados pelas crises de governo, entre 1921 e 1922, Mussolini tentou
uma convergência com o Vaticano para obter um acordo com membros do Partido Popular,
principalmente com a sua direita. Foram os jesuítas que saudaram com entusiasmo a novidade do
movimento de Mussolini. A morte do papa Bento XV (22 janeiro de 1922) ofereceu a Mussolini
ocasião para ligar-se à missão universal do catolicismo e para reafirmar a importância dos sentimentos
religiosos contra o ateísmo dos bolcheviques. Nesta fase Mussolini demonstra uma elasticidade tática
e uma determinação pessoal não encontrável nos seus adversários políticos. Ele consegue aproveitar-
se da interminável condição de crise e instabilidade governamental, lutando para não ser
marginalizado e utilizando todos os instrumentos à disposição para alcançar o seu objetivo de
conquista do poder. A linha do chefe fascista desorienta as velhas classes dirigentes liberais, porque
cada conteúdo ideológico, programático e propagandista é por ele utilizado apenas em relação às
exigências imediatas. Ele não se prende nunca a uma afirmação ou abordagem ideológica, está sempre
pronto a mudar, a derrubar sua posição precedente, se isso lhe serve estrategicamente.

A violenta campanha antibritânica do verão de 1922, quando condena o desconhecimento das


compensações coloniais para Itália e a política débil do seu governo, é uma antecipação das futuras
ambições imperialistas do Duce. Para Mussolini a Inglaterra é uma nação plutocrática e burguesa que
já alcançou os seus objetivos e agora vive de renda, opondo-se a cada mudança no status quo
internacional. Pelo contrário, a Itália é uma jovem nação proletária, prefigurando nessa oposição a
inevitabilidade do futuro choque entre os respectivos interesses.

Ainda segundo a análise de Tasca, escrita em tempo real, na fase do máximo sucesso interno
e internacional do fascismo, destaca-se o reluzente delírio estratégico do seu chefe: Mussolini anuncia
o fim do “século da democracia” e o início do “século aristocrático”, que, depois de ter reduzido a
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cinzas a ideologia do progresso, teria destruído o mito da democracia e do protagonismo popular. Ele
define a massa como “um rebanho tomado de instintos e impulsos primitivos”, e para quem não existe
futuro. Um material inerte e sem forma que o chefe tem que plasmar eliminando cada autonomia sua
e cada capacidade de autodeterminação, substituindo a mentalidade política pela guerreira. Para
conseguir o seu objetivo Mussolini precisa de todo o poder, destruindo o movimento operário, o
movimento popular católico e cada sobrevivência do pacifismo. A assunção da fisionomia militar,
sua consideração de um quartel bem disciplinado, é a prefiguração de como o fascismo quer
transformar o país.

Assim, quando foi proclamada a greve geral do dia 31 de julho contra as violências fascistas,
Mussolini se empenhou para derrotá-la com as expedições esquadristas, bem como obrigando, pela
força, operários e camponeses a não aderirem. Neste clima, no mês de setembro, a cúpula do Partido
Nacional Fascista lançou uma mobilização geral nas cidades italianas com o propósito de conquistar
militarmente as prefeituras, mas o verdadeiro objetivo era a tomada do poder central. No dia 16 de
outubro em Milão, numa reunião com os outros dirigentes do movimento e os chefes das esquadras,
foi decidido um plano de ação para impedir que Giolitti voltasse ao governo. Mussolini tinha certeza
do apoio de uma parte do mundo liberal (Salandra, por exemplo), da Monarquia, da Confederação
dos industriais, do Exército. Em 24 de outubro, em Nápoles, foram feitos os ensaios gerais da Marcha
sobre Roma, que na mitologia e iconografia do fascismo é apresentada como uma revolução, mas que
na realidade foi só um golpe de Estado extraparlamentar, tecnicamente uma mudança no pessoal
político administrativo, sem nenhuma mudança dos equilíbrios sociais fundamentais e também
estatais. Desde o início Mussolini tinha em mente a tratativa, não o choque com o Estado. Por isso
ele entregou a direção das operações a dois dirigentes com origem social militar e com relações muito
estreitas com as Forças Armadas, Cesare De Vecchi e Emilio De Bono. Roma estava bem protegida
militarmente e sem um acordo com o rei, nunca os poucos milhares de fascistas podiam conquistar a
cidade e chegar ao poder. Diante do perigo fascista, o primeiro-ministro Facta, ainda no cargo, mas
já demitido pela Monarquia, submeteu ao rei o pedido de intervenção do exército para varrer o perigo
do golpe de Estado. Todavia, Vítor Emanuel III não só se recusou a assinar o pedido como ofereceu
diretamente a Mussolini, representante de uma minoria parlamentar (só 5% dos deputados), o encargo
de formar o novo governo. Só depois deste acordo, em 30 de outubro, as esquadras fascistas entraram
triunfalmente em Roma e Mussolini, para além da retórica guerreira da iconografia fascista, chega na
capital confortavelmente no vagão-leito de um trem. Nasceu assim o primeiro governo da era fascista,
um executivo em coligação com liberais e católicos de direita, que nada tinha de uma revolução. Pelo
contrário, os primeiros atos do governo deixaram logo claras as verdadeiras bases sociais do fascismo.
Todas as intervenções foram para favorecer as camadas proprietárias, como a abolição da lei sobre
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conhecimento nominal dos proprietários dos títulos acionários, a anulação das providências fiscais
sobre os lucros de guerra e das que tratavam a progressividade das taxas sobre os rendimentos, bem
como a eliminação de todas as leis para a reforma agrária em discussão no Parlamento.

2.2 Corporativismo e arregimentação das massas, o desenvolvimento do fascismo.

Depois da Marcha sobre Roma, a rendição do mundo liberal é embaraçosa. Mas desastrosas
também foram a imobilidade dos socialistas e a inabilidade dos comunistas; muitos liberais estiveram
logo disponíveis para apoiar e também fazer parte do governo Mussolini, com o intuito de restabelecer
a ordem. Os comunistas, sob a direção sectária de Amadeo Bordiga, até o dia 28 de outubro,
afirmavam que nunca aconteceria a Marcha sobre Roma, e no dia seguinte à tomada do poder por
Mussolini lançaram a ordem de não se tomar qualquer iniciativa e, sobretudo, de não se misturar com
as outras forças antifascistas, o que fez morrer a experiência do movimento Arditi del popolo, uma
organização de resistência armada proletária formada por socialistas, anarquistas e comunistas, que
conseguia enfrentar militarmente o fascismo em muitas cidades. Além da inércia da direção
maximalista dos socialistas, entre os reformistas, várias personalidades tornaram-se dispostas para
colaborar com Mussolini e para assumir diretamente cargos no governo. É este o caso do socialista
Dino Badesi que, antes de ser renegado por seu partido, aceitou a proposta de Mussolini para ser o
seu ministro da Economia. Até obter o monopólio dos sindicatos fascistas, Mussolini tentou conseguir
a colaboração da CGL e por isso se encontrou com seus dirigentes, como D’Aragona e Buozzi,
propondo conceder ao sindicato a direção do Ministério da Economia Nacional, e com isso implantar
o modelo corporativo fascista. Segundo muitos historiadores, esta perspectiva falhou não por
indisposição dos sindicalistas socialistas, mas pela contrariedade da Confederação dos Industriais.

Já no poder, Mussolini seguiu servindo-se das violentas esquadras fascistas contra os


opositores. Todavia, formalmente, a liberdade constitucional permanecia ainda em vigor. No ano de
1924 foram convocadas as eleições para o novo Parlamento, logo após a aprovação da Lei Acerbo,
de julho 1923, que atribuía um enorme prêmio de maioria (os 2/3 dos deputados) ao partido ou à
coalizão que tivesse superado 25% dos votos. Entre violências, fraudes de todo tipo, a lista eleitoral
nacional de Mussolini conseguiu 65% dos votos, e a despeito de todas as violações do direito eleitoral,
socialistas e católicos ganharam dois milhões e 500 mil votos. Em seguida as fraudes foram
denunciadas no Parlamento pelo deputado socialista Giacomo Matteotti, junto a um pedido formal de
anulação das eleições. Além disso, Matteotti recolheu um dossiê sobre os financiamentos ilegais
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feitos ao movimento fascista. Em represália, Matteotti foi raptado no dia 10 de junho de 1924, e dois
meses depois (em 16 de agosto) o seu corpo, já desfigurado, foi encontrado sem vida. A grande
repercussão deste acontecimento, no qual desde o primeiro momento ficou claro o envolvimento de
Mussolini, provocou a indignação e uma reação inesperada da opinião pública, fazendo balançar o
governo. Os deputados da oposição constitucional (republicanos, socialistas, populares, radicais)
abandonaram o Parlamento (a Retirada do Aventino) na convicção de que iriam obter uma
intervenção do rei para suspender Mussolini do seu cargo e reafirmar a ordem constitucional. Só os
comunistas, conduzidos agora por Gramsci, não deixaram o Parlamento, propondo, sem resultado, a
convocação de uma greve geral e de um Parlamento alternativo antifascista. A tática de espera inerte
dos constitucionais se revelou um grande erro. Os meses passaram, a revolta moral da opinião pública
se acabou, o rei não fez nada, e assim o fascismo superou a crise, se reorganizou e passou logo à
contraofensiva.

Assim é que, numa intervenção na Câmara dos Deputados no dia 3 de janeiro de 1925,
Mussolini tomou a si a responsabilidade política e moral do acontecido a Matteotti, anunciando a
vontade de passar à ofensiva contra todos os seus adversários. Todas as liberdades individuais,
associativas e de reunião foram suprimidas, todas as organizações políticas (partidos, círculos,
associações e ligas) foram postas fora da lei, e foi cancelada a liberdade de imprensa, assim como o
arbítrio da violência das esquadras fascistas não encontrava mais qualquer limite. A instauração da
ditadura direta, com a promulgação das Leis fascistíssimas, põe no vértice do Estado um novo
organismo bastante restrito, chamado Gran Consiglio del Fascismo, formado por colaboradores de
Mussolini e que suprimiam quase todos os poderes do Parlamento. Para reprimir o dissenso e a
oposição ao regime, foi instituído o Tribunal Especial para a Defesa do Estado, com uma jurisdição
sobre os delitos políticos, a reintrodução da pena de morte, a institucionalização da milícia paramilitar
do Partido Fascista, agora chamada Milícia Voluntária para a Segurança Nacional. Além disso, foram
fascistizados os Códigos Civil e Penal. Com a supressão das liberdades individuais e coletivas foi
eliminada também a liberdade sindical. Assim, a lei de 2 de junho de 1926 atribuiu ao sindicato
fascista o direito exclusivo de estipular contratos de trabalho, uma lei incrivelmente aprovada com o
consenso dos chefes reformistas da CGL, que um ano depois declaram dissolvido o sindicato,
afirmando reconhecer-se na política sindical do fascismo. Uma rendição unilateral e sem condições,
uma traição às bases do sindicato, que então se organizou de forma clandestina em fevereiro 1927.
Assim é que, na primavera-verão seguinte, as novas greves e as manifestações dos trabalhadores
contra o fascismo foram reprimidas com sangue e os trabalhadores perseguidos e presos.

Suprimidos todos os sindicatos (exceto o fascista) no ano de 1927, e a partir da aprovação da


Carta del Lavoro no mesmo ano, é realizado um sistema de intermediação entre capital e trabalho
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chamado corporativismo,6 bem como a substituição do próprio parlamento com uma Camera dei
Fasci e delle Corporazioni, em janeiro de 1939. A Carta del Lavoro do 1927 é um dos documentos
mais importantes da história do fascismo. Ela criava o Tribunal do Trabalho com a tarefa de julgar os
conflitos de interesses entre capital e trabalho e eliminar cada forma de conflito entre eles, assim
como as formas tradicionais de reivindicações, como o direito de greve.

O corporativismo era a teoria político-social do fascismo, e na concepção de Mussolini deveria


ser uma terceira via entre o socialismo e o capitalismo, capaz de superar o conflito de classe
desagregador da unidade nacional e contrário aos interesses nacionais. Segundo esta teoria, o
liberalismo e o marxismo afirmavam uma concepção da sociedade baseada sobre o domínio de uma
classe, a burguesia ou o proletariado, enquanto o corporativismo afirmava a necessidade de superar
o conflito entre as classes para alcançar uma conciliação dos interesses através da intermediação do
Estado, com instituições paritárias de empresários e trabalhadores. Com o corporativismo o fascismo
abandona a sua abordagem liberal na economia, característica do período 1921-1925, para voltar a
uma concepção de Estado forte que participa da economia, com o primado do público sobre o privado.
O corporativismo tem a sua origem na teoria social da Igreja Católica e em particular na encíclica
Rerum Novarum, de 1892, do papa Leão XIII, na qual, além da condenação do modernismo e das
teorias liberais e socialistas, se afirmava a tarefa da solidariedade social, ou seja, a exigência de juntar,
e não dividir, as classes através da criação de corporações das profissões com a simultânea presença
de proprietários e operários. Para Mussolini o corporativismo, superando os interesses menores, teria
garantido, com o crescimento econômico, a afirmação dos interesses gerais da nação que a grandeza
imperial da Itália precisava. Na realidade, o sistema corporativo não constrói um sistema de paridade
entre capital e trabalho. As afirmações ideológicas do fascismo se traduzem em uma função
prevalentemente litúrgica e demagógica dos sindicatos, bem como no completo domínio econômico
e social do capital. Também a retórica do sindicalismo trabalhista ficou sempre e só formal, porque
na verdade Mussolini teve sempre o cuidado de comprimir as funções dos sindicatos e, sobretudo, de
não favorecer a popularidade dos sindicalistas fascistas entregando-lhes poder.

Como vamos ver nos capítulos mais à frente, nos Cadernos do cárcere Gramsci afirmou que
a função do corporativismo é essencialmente de “polícia econômica”, ou seja, não funcional a uma
reorganização mais racional das relações entre capital e trabalho, mas preventiva e repressiva. Para
além das afirmações demagógicas da ditadura, não era um instrumento destinado ultrapassar os restos
semifeudais – pelo contrário, no fascismo o corporativismo favoreceu a sobrevivência das camadas

6
Como se sabe, muito importante para a história do Brasil, já que foi um modelo para as leis trabalhistas de Getúlio
Vargas na década de 1930.
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improdutivas (pequena burguesia) e parasitárias (latifundiários rurais) – mas somente para controlar
e inibir os trabalhadores. Mais que uma renovação real da política econômica, escreve Gramsci:

O estado fascista cria novos rentistas, promove as velhas formas de


acumulação da poupança, e cria quadros sociais fechados. Na realidade, a
orientação corporativa tem funcionado para sustentar posições periclitantes
das classes médias, não para eliminá-las, tornando uma máquina de
conservação do existente e não uma mola de propulsão. Por quê? Porque a
orientação corporativa está na dependência do desemprego: defende aos
empregados um mínimo de vida que, se fosse livre a concorrência, ruiria
também ele, provocando graves sublevações sociais; cria (no Estado)
empregos de novo tipo, organizativo e não produtivo, aos desempregados das
classes médias.7

Mas esta tarefa nunca foi verdadeiramente alcançada, porque formas de conflitos e
reivindicações dos trabalhadores continuavam a existir, não obstante a repressão durante toda a
história do fascismo. E isto também porque muitos delegados sindicais foram hábeis em aproveitar
as contradições produzidas entre o partido e o sindicato, as recíprocas invejas e ambições de poder, e
a luta pelo primado da primeira ou da segunda instituição. Por isso, a partir de 1930, os comunistas
em clandestinidade decidem entrar nos sindicatos e nas organizações de massa do regime com
objetivo de se juntar aos trabalhadores e desenvolver as contradições do fascismo com as lutas
econômico-sociais.

O fascismo apontava para arregimentar o povo italiano nas organizações de massa do regime
que, desde a infância, tinham a tarefa de construir o homem novo fascista, pronto a crer, obedecer e
combater pela nação. Como escreveu Emilio Gentile, um dos maiores historiadores do fascismo, o
problema das massas era para o regime um desafio. Elas desafiavam a sua capacidade revolucionária
de construir uma nova civilidade política, por meio da articulação de muitas organizações sociais nas
quais afiliar os italianos desde a infância. A concepção fascista das massas excluía a possibilidade de
que essas pudessem governar-se por si próprias, alcançando uma autoconsciência autônoma, mas
considerava possível mudar a mentalidade delas, educá-las a viver no Estado, mediante a construção
cotidiana do mito.

7
A. Gramsci, Quaderni del carcere, Torino: Einaudi, 1975, p. 2158.
13

O homem novo fascista não era um indivíduo tornado consciente por si e patrão do próprio
destino, mas o cidadão-soldado, que esvazia a própria individualidade para deixar-se absorver
integralmente na comunidade totalitária.8 Por isso o regime centralizou as funções da educação com
a reforma escolar realizada pelo filósofo fascista Giovanni Gentile. E organizou estruturas como os
“filhos das lobas” e os jovens balilla para crianças e meninos, grupos de universitários fascistas, os
littoriais da cultura, a obra do pós-trabalho fascista e muitas outras articulações com a tarefa de
garantir sempre uma participação passiva na vida política e cultural do regime. O fascismo é uma
forma nova e moderna de regime autoritário, típica de uma fase histórica marcada pela política de
massa, porque se impõe a tarefa de envolver o povo em todas as manifestações de existência e
autorrepresentação do regime, organizando todos os aspectos da vida individual em função do
interesse nacional. O fascismo investiu grandíssimos recursos para desenvolver uma autônoma
indústria do cinema nacional, capaz de difundir valores culturais independentes do padrão da outra
grande indústria mundial, a dos Estados Unidos. Assim foram criados os grandes estúdios da Cinecittà
e a Mostra Internacional do Cinema de Veneza, lançando os fundamentos de uma grande tradição
que encontrou a sua fase de maior sucesso e desenvolvimento depois da Segunda Guerra Mundial. O
aspecto mais moderno do fascismo é exatamente a utilização dos instrumentos da comunicação de
massa, cinema, rádio, jornais, artes figurativas, para construir o consenso e o mito da invencibilidade
do Duce. Para isso é constituído o Ministério da Cultura Popular, Imprensa e Propaganda, que será
a inspiração fundamental para o regime nacional-socialista de Hitler e em particular do seu
propagandista Goebbels.

Como escreveu Tasca, o fascismo tornado regime eliminou a ideia da participação ativa do
povo na política, já que depois de 1926 não se limita a substituir um sistema político, mas
simplesmente cancela a vida política até transformá-la em “função e monopólio de Estado”. À
participação se substitui com a razão de Estado, a técnica do treinamento, o enquadramento para a
mobilização militar, as reuniões, os desfiles. A transfiguração coreográfica do povo representa a
supressão mesmo da ideia da nação, que na concepção ideal do século XIX não podia ser separada
da ideia de povo livre. Esta ideologia absorve e suprime o conteúdo democrático e jacobino de nação,
assim como transfigura algumas categorias da tradição socialista, substituindo a teoria do conflito de
classes (proletariado x burguesia) pelo conflito de nações (nações proletárias x nações plutocráticas).

A orientação para a autarquia e a guerra é o triunfo natural desta mudança e, segundo Tasca,
o elemento mais novo da sua ideologia é que a guerra não é mais um meio, mas um fim em si, para o
qual é necessário mudar profundamente a estrutura econômica, social e política do país. Todos os

8
Gentile, E. La via italiana al totalitarismo. Roma: Carocci, 2008, p. 148.
14

parâmetros da economia são funcionais à guerra. Mussolini afirma isso nos seus discursos: conseguir
o máximo de autonomia econômica no tempo de paz para preparar “a suprema necessidade da
guerra”. Assim, o lucro mesmo tem o seu valor em relação à potência. Não pela produção ou a riqueza
em si, mas para a reorganização militar total da sociedade e também como um modo para atribuir um
posto (na burocracia estatal, militar e política) e um papel à sua base social, ou seja, à classe média
que não tinha mais uma função na produção. A pequena burguesia encontra na direção do partido,
dos sindicatos, das instituições do corporativismo, das organizações de massa do fascismo uma via
para ser classe dirigente como no período da guerra. É exatamente a autarquia e a preparação da
guerra que tornam possível a hipertrofia das funções políticas, satisfazendo a pequena burguesia, o
mundo militar, a velha aristocracia rural e todas as estratificações improdutivas e parasitárias
essenciais para o seu bloco de poder.

3.2 Repressão e consenso

Com a promulgação das Leis fascistíssimas, começa a duríssima repressão que leva dirigentes,
quadros e simples partidários das forças de oposição ao cárcere, ao confinamento em determinados
lugares, ou em vários casos à morte violenta. É exatamente na luta contra o fascismo, superada a
direção sectária de Amadeo Bordiga entre os anos de 1924 e 1926, que o Partido Comunista se torna
um sujeito capaz de conservar uma estrutura clandestina no país e, em razão da sua capacidade de
resistência, de atrair em torno de sua órbita jovens estudantes, operários, artistas, intelectuais. Em
particular, na luta de libertação nacional, aquele que foi um pequeno e marginal partido de quadros
revolucionários, com poucas ligações de massa, presente limitadamente em algumas realidades do
país, torna-se a principal organização política de esquerda na Itália, até transformar-se, depois da
guerra, no maior partido comunista do Ocidente.

Parece quase impossível esta mudança. Todavia, depois de uma fase marcada pelo duríssimo
choque entre duas concepções opostas de organização e também de marxismo, a de Bordiga e a de
Gramsci, o Partido Comunista começa um processo de crescimento progressivo, embora ainda com
muitas contradições e em presença da crescente capacidade repressiva da polícia política fascista, que
ciclicamente consegue dizimar o seu centro interno. Uma primeira explicação pode ser encontrada no
espírito tenaz com que, também nos anos mais duros da repressão fascista, o partido lutou para manter
na Itália uma estrutura operativa clandestina, em vez de limitar-se a transferir para o exílio toda a sua
organização, como fizeram os outros partidos antifascistas. O Congresso de maior virada do PCd’I,
15

em Lyon, acontece no vivo momento do segundo golpe de Estado de Mussolini, quando ele se livra
das poucas tutelas constitucionais e da pluralidade democrática, cancelando também por via jurídica
as liberdades individuais e coletivas de fato já pisadas nos anos precedentes.

A ocasião para o salto de qualidade autoritário foi um malsucedido atentado contra Mussolini
no dia 31 de outubro de 1926, para muitos estudiosos uma operação planejada do regime para
justificar o estado de emergência. Todavia, já em agosto Antonio Gramsci havia previsto a virada
autoritária, propondo a necessidade de preparar-se para uma condição de atividade ilegal e clandestina
do partido. Em poucas semanas fora encaminhada uma eficiente máquina repressiva, preparada com
as leis dos meses precedentes; foram aperfeiçoados os instrumentos legais de perseguição das
oposições, a partir da anulação de todos os passaportes; e foi aberta uma verdadeira caça ao homem,
rua por rua.

As esquadras fascistas, agora com a cobertura jurídica, tornaram-se totalmente livres para
fazer o que quisessem, devastando sedes de partidos, sindicatos, jornais, e praticando o uso sem
limites do terror contra os opositores. O grupo dirigente do Partido Comunista, em primeiro lugar
Gramsci, foi preso e começou o calvário nos tribunais especiais do regime, entre cárcere e
confinamento. A ação repressiva foi muito eficaz. Em dezembro 1926 um terço dos filiados ao
Partido Comunista já haviam sido capturados pela polícia política, os outros vivem na clandestinidade
ou escolhem a via do exílio, em ambos os casos uma existência com muitas dificuldades e perigos
cotidianos9. Em 13 de março de 1927 começam os grandes processos e o Tribunal Especial trabalha
sem pausa e em ritmo frenético. Isso paralelamente às ondas repressivas da OVRA (a eficientíssima
polícia política fascista), conduzida por Bocchini, que consegue infiltrar espiõess e provocadores nas
organizações antifascistas, facilitando o controle e a destruição deles em todo o país.

Durante o ano de 1927, no Norte como no Centro e no Sul do país, todos os dirigentes
antifascistas sobreviventes que ainda não tinham partido para o exílio foram presos. Mas a ação
repressiva se intensifica novamente depois do malsucedido atentado contra o rei em Milão, em 12 de
abril de 1928, quando uma bomba matou 20 pessoas, enquanto Vítor Emanuel III se salvou. A
dinâmica do atentado nunca foi esclarecida. E também entre os antifascistas foi impossível saber
quem eram os mandantes. Mas depois começou a firmar-se a hipótese de que se tratava de uma bomba

9
Continuam a trabalhar na Itália Camilla Ravera, Paolo Ravazzoli, Alfonso Leonetti, Ignazio Silone, Luigi Ceriana, Carlo
Venegoni, Pietro Tresso e Teresa Recchia. Camila Ravera, que assume a tarefa de organizar o centro interno do Partido
Comunista, adota uma série de medidas importantes. É escolhida a cidade de Gênova como sede do secretariado e de
outras secretarias, enquanto a secretaria sindical dirigida por Ravazzoli se constitui em Milão. Spriano, P. Storia del
Partito comunista italiano. Gli anni della clandestinità, Vol. II, Editori Riuniti: Roma, 1969.
16

lançada pelas correntes mais intransigentes do fascismo, desejosas de livrar-se da presença do rei para
passar diretamente à fase mais avançada da revolução fascista.10

Estranhamente a eficiente polícia não consegue encontrar os responsáveis pelo atentado, mas
isso serviu também como ocasião para desencadear novamente o terror contra o antifascismo, com
mais de 600 prisões em poucos dias e a utilização sistemática da tortura para extrair confissões. Ainda
uma vez a organização comunista foi a mais golpeada, sofrendo com o maior número de presos e a
eliminação do centro interno do partido, reconstituído depois da primeira onda repressiva. O
malogrado homicídio do rei foi utilizado para criar um clima de reprovação na opinião pública,
necessário para preparar o grande processo contra o grupo dirigente comunista. Gramsci entre eles,
acusado de conspiração, propaganda subversiva, instigação à luta armada de classe, ultraje, vilipêndio
e criação de um exército revolucionário com a tarefa de subverter a ordem constituída.

A grande crise do capitalismo mundial, com o colapso da bolsa de valores de Wall Street em
1929, teve também repercussões sobre o fascismo. Todavia, este já estava empenhado num processo
de reformas antiliberais com o objetivo de subtrair os setores estratégicos da economia à instabilidade
das leis do mercado. Em particular, a reforma do sistema bancário consolidou esse processo, e assim
protegeu a produção interna das oscilações das trocas e do comércio internacional, o que não impediu,
entretanto, uma fase de estagnação da economia e de aumento do desemprego. A crise mundial
empurrou ainda mais a uma virada econômica nacionalista e protecionista, a partir do sistema
financeiro com ligações no sistema industrial, que foi nacionalizado, bem como da emissão de novos
títulos de Estado para garantir a solvência dos bancos e o controle dos preços. E foi lançado um grande
plano keynesiano de obras públicas, com as despesas neste âmbito triplicando nos primeiros cinco
anos, superando com isso as despesas militares e tornando-se o principal item de gasto nas contas do
governo.

Entre 1931 e 1936 foram criadas empresas estatais (IMI e IRI) nos principais setores da
economia: energia, química, transporte, siderurgia, comunicações, estaleiros navais, todas destinadas
a viver bem além do fascismo, até a década de 1990. O Instituto para Reconstrução Industrial (IRI)
recolheu e concentrou todas as velhas participações acionárias do setor público nos bancos e nas
empresas privadas. Na verdade, esta grande e eficaz ação de intervenção pública na economia, que
diretamente ou indiretamente chegou a controlar mais da metade do sistema das empresas, não foi
obra dos dirigentes fascistas, mas de um sistema de administração paralelo conduzido por
funcionários do Estado com origem pré-fascista, como Alberto Beneduce e Domenico Menichella,
que subtraíram a direção da economia aos ministérios e às instituições do corporativismo. Para além

10
Hipótese posteriormente ventilada pelo então ministro Luigi Federzoni.
17

da função ideológica, ou melhor, demagógica, do corporativismo, toda a direção da economia foi


centralizada sob a direção pública do Banco da Itália, que não tinha uma orientação ideológica, ou
seja, não fora fascistizada. Ele esteve sempre nas mãos dos funcionários da burocracia estatal que aí
trabalhavam já antes da tomada do poder por Mussolini, e que continuaram a exercer este poder
também depois do fracasso do fascismo, tornando-se os protagonistas do milagre econômico italiano
nos anos de 1950 e 1960.

4.2 Autarquia e guerra

Desde 1934, o objetivo do regime era a autarquia, ou seja, a autossuficiência agrária, industrial
e em geral econômica do país, que foi sustentada com o protecionismo e a imposição das barreiras
comerciais para aumentar a competitividade dos produtos italianos no mercado interno. Em 1935,
depois da agressão imperialista à Etiópia, a Sociedade das Nações estabeleceu sanções comerciais
contra a Itália, fato que fez avançar ainda mais a política de autarquia, robustecendo o significado
ideológico da luta para a autonomia nacional e limitando ao máximo a importação dos produtos
estrangeiros. E isso encontra expressão também no setor artístico, como no cinema e na música, que
começa uma dura campanha de propaganda contra as mercadorias estrangeiras, dando curso a um
trabalho que há alguns anos o fascismo já realizava no campo linguístico, tentando purificar a língua
italiana da utilização de palavras de outros idiomas (principalmente francês e inglês). Com a
eliminação das sanções, em julho de 1936, a política de autarquia não mudou. Pode-se afirmar que o
estabelecimento delas pela Sociedade das Nações na verdade ajudou Mussolini a instaurar um regime
econômico nacionalista que ele já tinha vontade de realizar, aproveitando-se do descontentamento
popular para criar um clima político favorável à autarquia.

Assim é que, nos anos da grande crise econômica mundial, ainda sem superar todos os seus
efeitos negativos, o fascismo não só resistiu como conseguiu consolidar o seu poder.

Em 1932 Mussolini celebrou o décimo aniversário da Marcha sobre Roma num clima de
otimismo e estabilidade, já que os dados econômicos haviam melhorado e a base de consenso se
ampliara. Além disso, também no âmbito internacional a figura do Duce foi elogiada pelos primeiros-
ministros das potências democráticas, que consideravam o seu regime uma barreira contra o perigo
do comunismo. O sistema de vigilância e repressão fora aperfeiçoado e a OVRA podia dispor de uma
rede sempre mais ampla e eficaz de informantes e espiões implacáveis. O clima de suspeição tornou-
se tão forte que, conforme uma recente descoberta dos historiadores nos arquivos do Estado italiano,
18

mesmos dirigentes fascistas, e até o chefe da polícia política, foram objeto de constante investigação.
Um exemplo disso está no fato de que todas as ligações telefônicas eram interceptadas, registradas e
comunicadas diretamente a Mussolini.

A estabilidade do regime foi tanta que Mussolini pôde anunciar a anistia para uma parte dos
presos políticos. Mas, para além desta segurança, as tensões sociais continuavam a existir. Em
particular, o projeto da valorização da moeda (a lira), associada à diminuição de 10% dos salários,
provocou o aumento dos preços e uma significativa redução do poder de compra dos trabalhadores.
No verão de 1931 isso produziu uma grande mobilização popular entre as trabalhadoras rurais no
Centro-Norte da Itália, que paralisou a produção do arroz. Em geral as dificuldades econômicas
sofridas em razão dos sacrifícios impostos pelo regime criaram muito descontentamento entre os
trabalhadores. Por isso Mussolini anunciou a segunda fase da revolução social fascista apontando
para a ideologia corporativa. Era uma volta ao velho sindicalismo fascista, acompanhado da palavra
da ordem “ir ao povo”, com a recuperação da crítica ao egoísmo individualista do capitalismo e a
reafirmação dos mitos sobre nação proletária, constrita nos seus limites pelas grandes potências
plutocratas.

Segundo esta ideologia, só construindo uma nação grande e forte, capaz de afirmar-se ao nível
internacional diante da prepotência das nações plutocratas, o proletariado italiano poderia obter uma
melhoria das suas condições de vida e trabalho, completando a revolução fascista. Era a velha
tentativa de amarrar os trabalhadores ao fascismo trocando a ideia do conflito social entre as classes
pela ideia do conflito entre as nações jovens e proletárias e as potências ricas e velhas. Era o início
da campanha para “garantir à Itália o seu lugar ao sol” e uma política colonial agressiva, que levou à
intervenção militar na Etiópia em outubro de 1935, um estado antigo e plenamente soberano, e depois
à proclamação do Império, em maio de 1936.

Além do real significado dessa propaganda, a nova ofensiva ideológica do fascismo se revelou
eficaz para amarrar e ativar politicamente as novas gerações. Jovens intelectuais, sobretudo
estudantes, colocados no âmbito sindical ou empenhados socialmente, encontraram nas palavras de
ordem contra o egoísmo burguês e na promessa de uma revolução social as razões da própria
militância. Neste clima foram criadas as condições para o renascimento de um fascismo de esquerda
alimentado por um universo ideológico (atuação do corporativismo, controle público da economia,
redução da liberdade de iniciativa para empresas e empresários privados) muito confuso, mas capaz
de seduzir muitos jovens desejosos de empenhar-se politicamente, num contexto dominado pela
maior crise econômica mundial do capitalismo. Como escreveu Paolo Spriano, o maior historiador
do Partido Comunista Italiano:
19

O filósofo Ugo Spirito é o líder dessa tendência, que reúne ao seu lado as
forças intelectuais juvenis fascistas que queriam transformar em realidade as
veleidades sociais do regime [...]. Ugo Spirito afirma que existe um
parentesco de inspiração entre bolchevismo e corporativismo, mas que o
“amanhã pertence àquele regime que entre os dois conseguir incorporar e
superar o outro”. Emerge nessa tendência uma clara simpatia pela União
Soviética acompanhada de uma concepção anticapitalista que teve uma
ligação com a situação que a classe operária vivia na Itália.11

A contradição entre a realidade de um regime empenhado na defesa violenta da ordem social


existente, “contra o perigo bolchevique”, e esta vertente herética do pensamento fascista, que não
encontrou obstáculos por parte de Mussolini, era evidente. Mas para Spirito a correspondência entre
fascismo e a realidade era grande demais para limitar-se a negar a existência do socialismo. Pelo
contrário, o movimento tinha que reivindicar o mérito de ter resolvido no seu interior as suas
exigências vitais.12 O reconhecimento jurídico do sindicato e a decisão de pôr no mesmo plano capital
e trabalho era para ele a tradução desta dialética superada pelo fascismo.13

Para Spirito, a superioridade da revolução fascista em comparação com a soviética estava na


natureza historicista da primeira e no abstracionismo ideológico da segunda. Se o fascismo exprimia
a sua essência na superação histórica, enriquecendo e reavaliando a tradição espiritual, o bolchevismo
era só negação destrutiva, a ilusão de poder reconstruir em termos materialistas a sociedade nova
sobre as ruínas da velha sociedade já abatida. Esta vertente política tinha a ambição de atrair as
simpatias dos jovens que olhavam com interesse para o comunismo e a experiência soviética enquanto
uma nova fronteira da justiça social. Por isso precisava valorizar o caráter radical do fascismo,
apresentando-o como um fenômeno social de vanguarda que superava o socialismo e o bolchevismo
depois de tê-los absorvidos. Portanto, não só um movimento reacionário, simplesmente contraposto
a eles.

O fascismo de fato exerceu certa influência entre os jovens, muitos dos quais, como veremos
adiante, começaram a afastar-se por volta de 1936, até abandoná-lo para passar em bloco ao
antifascismo, em particular ingressando no Partido Comunista. Ter semeado tantas promessas,
sustentando uma retórica fascinante mas muito diferente do que realmente o regime fazia na

11
P. Spriano, Storia del Partito comunista italiano. Gli anni della clandestinità, op. cit. p. 345.
12
U. Spirito, Capitalismo e corporativismo, Sansoni, Firenze, 1934.
13
U. Spirito, I fondamenti dell’economia corporativa, Treves, Milano, 1932.
20

sociedade, terminou por resultar em uma operação que depois se virou contra o próprio fascismo.
Embora em um primeiro momento tenha tido o efeito de renová-lo profundamente, ampliando a base
do seu consenso para assim superar a crise, não obstante as muitas contradições e o crescente mal-
estar do mundo do trabalho.14

Analisando este processo em alguns artigos de 1934, Ruggero Grieco, chefe do centro exterior
do Partido Comunista em Paris, esclareceu que a tarefa do antifascismo era exatamente interceptar
este mal-estar e ao mesmo tempo mostrar claramente as contradições do corporativismo fascista.

O fascismo era uma forma moderna de poder autoritário em comparação com os velhos
regimes reacionários, dada a sua constante pesquisa do consenso popular e o uso hábil da demagogia.
O corporativismo cabia nesta exigência e, não obstante a sua presença desde o início do movimento,
é preciso não esquecer que a teoria do “terceiro sistema” (nem comunismo, nem capitalismo) foi
desenvolvida só depois de 1930, objetivando afrontar a crise e o descontentamento popular, dadas as
piores condições de vida e trabalho imperantes. A afirmação da paridade entre capital e trabalho foi
só retórica e a exigência de conciliar os interesses contrapostos na verdade mal escondia a tarefa
primária de suprimir o conflito social da subjetividade política dos trabalhadores. O mais interessante,
já nestes artigos de 1934 do dirigente comunista Ruggero Grieco, é o significado apenas demagógico
do corporativismo, funcional à preparação das forças produtivas para a guerra. Um processo
favorecido pela arregimentação do trabalho, único “fator de produção” que era possível explorar de
uma perspectiva nacionalista, em um país sem matérias-primas. Vejamos diretamente as palavras de
Grieco:

O chamado corporativismo tem duas necessidades urgentes. A primeira:


utilizar todos os recursos econômicos e toda a população ativa no esforço de
guerra, criando o trabalhador soldado. A segunda: aperfeiçoar o sistema das
correias de transmissão que ligam as massas ao Estado, quando se entende
pedir novos sacrifícios econômicos às massas na perspectiva de pedir, por
fim, o sacrifício da vida. Dar às massas objetivos ideológicos muito distantes
para tê-las afastadas, hoje, das lutas econômicas, e para que sejam preparadas
a marchar amanhã para a guerra.15

14
Accame, G. Il fascismo immenso e rosso, Settimo Sigillo: Roma, 1990.
15
Grieco, R. Note sull’ordinamento corporativo, in Scritti scelti, Editori Riuniti: Roma, 1966, p. 418.
21

A característica mais moderna do projeto autoritário do fascismo está na capacidade de abrir


novas trincheiras para a tarefa de controlar as massas. E aqui está o papel das palavras de ordem,
voltadas a prospectar um futuro de grandeza. Portanto, a habilidade de exercer também domínio e
direção, falando com categorias gramscianas: força mais hegemonia.

O fascismo teve o objetivo de juntar as camadas sociais necessárias ao regime, em particular


aquelas que mais sofriam os efeitos da exploração capitalista, anunciando a superação do capitalismo
e o advento de uma economia nova. Todavia, na metade dos anos 30, embora fortalecido no plano
interno e internacional, o fascismo mostrava já com clareza algumas contradições entre palavras e
realidade social. E é a partir da valorização destas contradições que se reorganiza o movimento
antifascista, que irá superar seus erros e mostrar-se capaz de se inserir novamente no tecido social da
realidade italiana, logrando esvaziar lentamente o fascismo da sua base de consenso.

O fascismo: interpretações historiográficas em comparação

O fascismo é provavelmente o tema que na história contemporânea italiana produziu a maior


quantidade de estudos. Uma enorme produção com diferentes abordagens e muitas implicações
interdisciplinares.

Na historiografia isso tem produzido múltiplos cânones interpretativos, caracterizados por


concentrar a atenção sobre este ou aquele elemento – histórico, econômico, social ou moral –
constitutivo ou predominante do fenômeno do fascismo. Apesar dessa riqueza, o historiador Emilio
Gentile se interrogou acerca da pouca atenção reservada pelos especialistas à história do Partido
Nacional Fascista e, portanto, da falta de trabalhos orgânicos e mais sistemáticos neste campo. Isso
teria produzido consequências negativas no que diz respeito à definição de um quadro analítico mais
completo, favorecendo leituras bastante superficiais. Ao problema do partido estão vinculados temas
muito importantes, como a natureza do fascismo, o seu sistema político, as suas relações com as
massas, o seu lugar entre as formas do autoritarismo moderno.16

Renzo De Felice, o historiador que mais indagou o fascismo (embora com mais de uma
contradição), se confrontou com diferentes interpretações historiográficas para chegar a uma primeira
formulação de caráter geral: o fascismo é um dos grandes fenômenos do século XX, todavia, ele não
é dilatável para além da Europa e do período temporal do entreguerras17. As raízes do fascismo seriam
tipicamente europeias e ligadas à crise produzida pela emergência das sociedades de massa. Em
particular, o fascismo pertenceria àquelas sociedades condicionadas pelo atraso, pela debilidade

16
Id. Ib., p. 28.
17
De Felice, R. Le interpretazioni del fascismo, Bari: Laterza, 1995.
22

política e econômica – herança da própria história – , que viveram (ou melhor, sofreram) as profundas
transformações desse período histórico. A bibliografia sobre o fascismo é imensa, a ponto de a
expressão de Ernst Nolte, “época do fascismo”, parecer correta, embora a questão fundamental seja
analisar as particularidades nacionais do fenômeno. Neste sentido, De Felice fala sempre da
especificidade do fascismo italiano, das suas profundas diferenças diante de outras experiências
semelhantes, até considerar impossível uma comparação com o nacional-socialismo alemão.

Outro historiador importante, Nicola Tranfaglia, afirma que para além das diferenças
realmente existentes, se pode falar de um padrão europeu do fascismo, com características de fundo
comuns. Afinal, o que é preciso evitar é um uso demasiado desenvolto desta categoria, buscando
cobrir com o adjetivo “fascista” cada tipologia de regime autoritário e reacionário. Num livro
intitulado Fascismos e modernização, Tranfaglia sublinha a exigência científica da comparação. Ele
parte dos processos de modernização verificados na Europa entre as duas guerras mundiais para
concentrar sua análise sobre as três principais experiências históricas de fascismo.

A primeira é aquela verificada entre a Espanha de Franco e a Itália de Mussolini. Não obstante
suas diferenças, ambas caracterizadas (antes ainda da virada autoritária) pela crise das velhas classes
dirigentes e pelo medo das possíveis saídas revolucionárias. Em ambas as confusas camadas da
pequena burguesia viram no movimento antibolchevique a encarnação das suas exigências de luta.
Embora os dois ditadores tivessem histórias diferentes – Mussolini era um ex-revolucionário
socialista; Franco um clássico homem da ordem burguesa – ambos chegaram ao poder com o apoio
das instituições tradicionais: Igreja, Magistratura, Burocracia. Diferentemente do que aconteceu na
Alemanha de Hitler, nas duas nações latinas estas instituições conservaram um papel relativamente
autônomo também na ditadura e, segundo Tranfaglia, exatamente por esta razão se pode falar de um
padrão débil ou elástico de fascismo.

Deslocando a comparação também para Alemanha, o denominador comum seria a débil


tradição democrática. No fascismo espanhol, o predomínio das camadas mais parasitárias da velha
propriedade agrária, assim como o traço tradicionalista das instituições por ela criada, são mais
evidentes. Na Itália as contradições estiveram mais bem definidas: o ponto de partida, além da
profunda crise econômica, foi o afastamento das velhas classes dirigentes liberais quando da
afirmação dos partidos de massa, o que ocorreu por meio da lei eleitoral que estabelecia o sufrágio
universal. Mussolini criou um partido único de massa, mas, segundo Tranfaglia, ele conseguiu
consolidar o seu poder servindo-se mais dos aparatos do Estado do que do seu próprio partido,
marginalizado a uma função puramente coreográfica de mobilização. Na Itália, apesar do pleno
acordo com as instituições tradicionais, o fascismo esteve menos marcado pela presença da Igreja e
23

do Exército, como se observou na Espanha. Na Alemanha de Weimar havia uma contradição


destinada a explodir no contexto da crise econômica de 1929-30; uma contradição entre a persistente
cultura autoritária das classes dirigentes e a promulgação de uma das constituições mais avançadas
(socialmente e politicamente) do período do entreguerras. Ainda para Tranfaglia, se na Itália as
condições para o desenvolvimento do fascismo estiveram essencialmente na crise do pós-guerra, na
Alemanha o problema maior foi a transformação das relações sociais em referência ao observado no
sistema produtivo.

O elemento comum aos três movimentos esteve em primeiro lugar na violenta cultura
anticomunista, nacionalista e adversa ao pluralismo democrático dos partidos, bem como na função
insubstituível do chefe carismático e na exigência da eliminação de todas as liberdades individuais e
coletivas. Todavia, estas características são encontráveis também em outras formas de regimes
autoritários. A novidade está na mobilização plebiscitária não só das camadas médias mas também
das massas populares nos rituais do regime, no recurso sistemático a campanhas políticas, sociais e
culturais para formar a opinião pública, com a ocupação permanente dos modernos meios de
comunicação, de modo a angariar o consenso popular. Se alguns estudiosos, como Zeev Sternhell e
De Felice, localizam nas origens de esquerda o dado primordial do fascismo, a ponto de tê-lo definido
como “totalitarismo de esquerda”, ainda assim o elemento ideológico de fundo do fascismo para estes
autores está no anticomunismo e no nacionalismo. Mussolini justapôs o método de luta e as ambições
revolucionárias do proletariado às palavras de ordem do seu movimento, fornecendo pela primeira
vez à pequena burguesia um instrumento de autodefesa política que depois se tornou igualmente
atrativo para industriais, latifundiários, velhos aparatos apodrecidos do Estado.

A década mais importante na história do fascismo, desde a promulgação das Leis


fascistíssimas até a proclamação do Império, coincide com uma fase de aceleração contraditória nos
processos de modernização encaminhados desde o final do século XIX. Exatamente na época da
consolidação do regime é que é possível localizar uma involução e decadência na vitalidade do
fascismo, bastante clara na marginalização do partido, reduzido a instrumento de propaganda. O
Partido Nacional Fascista vai progressivamente perder as suas feições de organização política, bem
como a seleção dos grupos dirigentes torna-se secundária nas relações hierárquicas entre o chefe do
regime e o vértice do Partido. “A partir de 1926-27 Mussolini faz do Partido uma grande máquina
parasitária, voltada mais para instrumento de organização do consenso do que centro de exercício do
poder”18. A mesma coisa acontece no Conselho dos Ministros, onde o Duce se livra das
personalidades mais representativas do primeiro fascismo, circundando-se de figuras de segundo

18
Tranfaglia N. Fascismi e modernizzazione, Laterza, Bari, 1955. p. 44-45.
24

plano, sem a importância e a respeitabilidade necessárias para instaurar uma relação dialética e não
só subalterna com o chefe. Além disso, era evidente a ineficiência do regime, que facilitou a emersão
da administração paralela, proveniente da burocracia do Estado e não do fascismo, conduzida, como
antes dissemos, por personalidades de alto nível e capacidade, como Beneduce e Guarnieri. A lei
bancária e a criação das empresas públicas, não casualmente conhecidas como “Institutos Beneduce”,
deslocaram a substância do poder político e econômico dos organismos supremos do fascismo para
as estruturas dos Grand Comis (os altos funcionários) de Estado. São estes os organismos a realizar
uma modernização profunda e corajosa, introduzindo um padrão de desenvolvimento e interação
entre público e privado que fez escola, permanecendo mesmo depois do fracasso do fascismo.

Desde o seu surgimento, o fascismo é objeto de um debate inflamado sobre sua natureza,
características ideológicas e origem social. De Felice demarca os trabalhos de interpretação do
fascismo em dois tipos: aqueles realizados pelos contemporâneos do fascismo; e aqueles realizados
pelos historiadores após o desaparecimento do fenômeno.19 As interpretações feitas pelos
contemporâneos foram fundamentais para a mobilização política de milhões de pessoas na luta de
resistência e na luta armada contra o regime, mas também para os estudos e obras realizadas nas
décadas seguintes ao fim do movimento conduzido por Mussolini.

Sem entrar aqui em todas as variantes, é importante assinalar, para os propósitos de nossa
análise, que para compreender a particularidade e complexidade da leitura gramsciana, é útil sublinhar
dentre as interpretações fundamentais três leituras deste fenômeno:

1) o fascismo como doença moral da Europa;

2) o fascismo como produto lógico e inevitável do desenvolvimento de alguns países;

3) o fascismo como evolução da sociedade capitalista e reação antiproletária.

19
De Felice, R. Il fascismo. Le interpretazioni dei contemporanei e degli storici. Laterza: Bari, 1970.

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