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Ion de Andrade
waltersorrentino.com.br/2022/05/10/24798/
Nas cidades está o fulcro do dilema histórico vivido pelo país. Para afastar o golpismo,
há que promover cidadania radical a partir de lutas urbanas, poder local e uma nova
relação com a natureza. A ciência política tem algo a ensinar a respeito
Vamos tratar essa temática, no plano teórico, por meio de uma visita a conceitos que
explicitam esse processo e põem em evidência a conexão entre a cidadania e a
Revolução Urbana, apontando para a centralidade da inclusão social e do Direito à
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Cidade nesse processo; e tentaremos demonstrar, como já há muito sabemos, como as
intervenções que alteram a “existência” das pessoas devem preceder e alteram também,
e em definitivo, a sua consciência, o que torna o Direito à Cidade, conceituado de
maneira ampla, estratégico para a construção da estabilidade da democracia e do seu
aprofundamento.
Essa é a forma pela qual o Estado escravocrata, egresso da Casa Grande, continua vivo
tratando o seu dipolo, as Senzalas contemporâneas (periferias, zonas rurais e bairros
populares) como sempre tratou as senzalas nas fazendas: a insalubre morada da
escravaria, local onde o escravo podia (e continua podendo) ser açoitado, reprimido e
morto e onde só tinha (e só tem) o direito ao mínimo para continuar vivo e
suficientemente saudável para trabalhar.
Vamos considerar aqui que o mínimo a que esse trabalhador/escravo tem direito (para
servir ao trabalho) é historicamente definido e evolui com o tempo, com as conquistas
das lutas pela sobrevivência e com as necessidades do próprio mercado de trabalho que
pode exigir, por exemplo, mais formação escolar, gerando a falsa impressão de que as
coisas estão melhorando, quando não atingem a alma do ordenamento Casa Grande e
Senzala que continua matriciando todo o processo e que, portanto, produz “mudança”
precisamente para que tudo permaneça como sempre foi, mantendo intacta a sujeição
escravocrata em tudo que é essencial.
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Vamos considerar também que enquanto mecanismo central da reprodução da
sociedade brasileira como ela é (o abandono público para o subdesenvolvimento e a
exclusão social), que se trata de uma política de Estado “invisível” mas real, consensual
e longeva, a invisibilidade de que desfruta a “ideologia” no conceito que Marx e Engels
desenvolveram em A ideologia alemã, o que a faz gozar de um inacreditável consenso
que se expressa em toda parte, explícita ou implicitamente, mas sempre de forma
excludente e massacrante de corpos e de almas.
Sem criar esse lastro, no entanto, a barca da democracia é frágil e pode virar ante os
ventos golpistas típicos do que Gramsci chamou de crise orgânica do capitalismo — que
é o que vivemos hoje. Por outro lado, com uma massa crítica de cidadania suficiente, a
democracia tem mais chances de resistir e o processo democrático pode se estabilizar e
se aprofundar.
Isso é precisamente o que se produziu nos governos Lula no Nordeste quando aquelas
políticas de saída da miséria encontraram adequação em relação às necessidades reais
do povo nordestino de então, o que não somente o retirou da pobreza extrema, como
também o politizou. O processo mostrou também a necessidade da adequação real e
histórica das políticas emancipatórias ao seu contexto social e histórico, pois, tendo sido
as mesmas para o Brasil como um todo, não tiveram papel de politizar o povo de outras
regiões onde a necessidade de saída da miséria já não gritava como no Nordeste.
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Segundo Gramsci, a ampliação do Estado se dá pelo surgimento da sociedade civil que
obrigou o Estado capitalista a evoluir de um governo pela força para um governo pelo
consenso. O Estado ampliado é aquele em que a sociedade civil se constitui como uma
densa rede à sua volta. Ele denominou o Estado ampliado de Ocidental e concluiu que
nele a revolução não poderia ser explosiva, o que obrigaria o proletariado a uma longa
jornada política para consolidar-se como força hegemônica antecedendo a sua
supremacia. O Estado restrito, ao contrário, é aquele em que a sociedade civil é
rudimentar, no qual o governo se dá muito mais pela força do que pelo consenso por
estar centrado na sociedade política, que reagrupa as forças repressivas do Estado.
Gramsci denominou esse Estado restrito de Oriental, vendo o Estado russo da época da
revolução de 1917 como seu exemplo ilustrativo.
Nossa crítica a essa compreensão repousa no fato de que Gramsci classificou como
geográfico (Ocidental x Oriental) um processo que é na verdade “cronológico” e que, na
verdade, estabelece duas fases no capitalismo, uma inferior, com predomínio da
sociedade política e outra superior, com o predomínio da sociedade civil. A isso
acrescentamos o fato de que essa ampliação do Estado tem autoria e se deu
essencialmente pelas lutas do próprio proletariado que não somente é o principal
beneficiário da passagem do governo pela força ao governo pelo consenso, como
também é a força mais interessada na democratização do Estado, conceito que se
confunde com a governança estatal pelo consenso. A ampliação ou democratização do
Estado é, por isso, a maneira pela qual a revolução proletária se dá no interstício do
Estado capitalista, obrigando-o a essa transição interna de sua fase inferior a sua fase
superior.
É claro que esse modelo de revolução conflita com o entendimento leninista que o vê
num processo explosivo, culminando com uma tomada de poder, como também com o
modelo de Gramsci que enxerga como desfecho possível na crise orgânica a tomada do
poder por um partido de tipo leninista.
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O Estado fascista nada mais é do que o Estado ampliado no qual a sociedade civil
foi enfeixada (por isso a imagem do fascio) num consenso obrigatório. Não se trata da
ditadura (o Estado restrito) + ideologia orgânica como expressou Gramsci, mas de algo
muito mais perigoso, trata-se da democracia (o Estado ampliado) pervertida pela
ideologia orgânica: uma democracia macabra em que todos foram convertidos em
rinocerontes, como percebeu Ionesco, ou simplesmente The Walking Dead.
De forma muito livre, para sintetizar tudo isso poderíamos dizer que o Direito à Cidade,
num conceito abrangente, seria: existência digna e vida plena.
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“Educando o partido operário, o marxismo forma a vanguarda do proletariado,
capaz de tomar o poder e de conduzir todo o povo ao socialismo, capaz de dirigir e
de organizar um novo regime, de ser o instrutor, o chefe e o guia de todos os
trabalhadores, de todos os explorados, para a criação de uma sociedade sem
burguesia, e isto contra a burguesia”.
E voltou a se ampliar novamente em Gramsci que, prevendo uma longa luta no Ocidente,
entendeu que o proletariado devia aprender a fazer política e atribuiu à cultura um papel
central no processo emancipatório.
O conceito que propomos de cidadania emerge mais do jovem Marx do Manifesto do que
de Gramsci (que preserva ainda elementos dessa disciplina leninista do processo
emancipatório) o que, na verdade, também o incomodava, como ele mesmo diz
nos Cadernos do Cárcere em “Maquiavel: notas sobre o Estado e a Política” (que pode
ser encontrada na edição de Carlos Nelson Coutinho com Marco Aurélio Nogueira e Luiz
Sérgio Henriques, Editora Civilização Brasileira, 2011, à página 23):
Gramsci via, portanto, dificuldades nesse processo ambivalente que ele próprio defendia,
como leninista que era, de criar o “homem coletivo” (afinal a classe para si) e o militante
disciplinado ao mesmo tempo, refletindo a ideia da revolução em duas fases em que a
guerra de posição deve ser seguida de uma guerra de movimento no topo da crise
orgânica. A dualidade do modelo de revolução em duas fases produziu um conceito dual
e problemático de emancipação…
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Esses três componentes — classista, ecológico e identitário — compõem uma nova
totalidade inseparável das ideias que vão surgindo no processo emancipatório. O
conceito mostra também que na crise orgânica só há dois desfechos possíveis: (a) a
fascistização do Estado ou (b) a consolidação do Estado ampliado (o Estado de direito) e
a sua contínua ampliação, ou seja, o aprofundamento da democracia e não a ditadura do
proletariado.
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O que fazer?
Em primeiro lugar, é preciso entender que se trata de um processo que tem urgência
para começar (há muito sofrimento em jogo) que deverá contaminar de forma sistêmica o
quanto possível o ente estatal como um todo, que se trata de uma construção de início
urgente e sem data de término, mas que pode ser iniciada no microcosmos de qualquer
prefeitura, materializando um processo multifocal enquanto “aguarda” tornar-se
sistêmico.
O poder local tem por isso grande importância, pois o processo que ele pode disparar
poderia ser assimilado pelo consenso que será capaz de gerar, a um efeito dominó. O
impacto mundial do Orçamento Participativo de Porto Alegre, que incorporou elementos
do que aqui apresentamos, é testemunho da necessidade histórica desses valores cuja
carência e incompreensão vem produzindo uma deformidade sociopolítica expressa em
pontes, viadutos e folguedos em lugar do enfrentamento da tarefa estratégica de colocar
o povo de pé.
Em terceiro lugar, é preciso entender que esse processo só pode ser encarnado no
desenvolvimento (conceito qualitativo) local. Por que? Porque a exclusão social,
enfrentada por uma luta na adversidade, construiu um mosaico extremamente variado de
realidades territoriais e uma multiplicidade de sujeitos comunitários, que materializam
dipolos território/comunidade únicos cada um com a sua prioridade e emergência, que
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devem, obviamente, ser os alvos específicos da ação do Estado sob um governo
popular. Isso significa que, a bem do processo de multiplicação da cidadania em nível
populacional, tal processo deverá ser obrigatoriamente participativo e deverá se
caracterizar por intervenções “território-específicas” e não por políticas unívocas focando
essa ou aquela prioridade única surgida do sacrossanto ambiente da cabeça do
planejador.
Por último é preciso constatar que esse é um processo difícil porque se choca com a
Política do Abandono e do subdesenvolvimento para a exclusão, que é o meio pelo qual
a sociedade brasileira racista e excludente se reproduz como ela é, fazendo
contemporâneo e atual o Estado escravocrata.
Essa é a razão pela qual as periferias continuam abandonadas à sua própria sorte, seja
qual for o governo. Para que não haja dúvidas, queremos reavivar na memória do leitor o
fato emblemático de que o morticínio de pretos no Brasil converteu-se em algo natural e
endêmico no conjunto dos estados brasileiros sem nenhuma exceção e, em toda parte e
no todo, só fez piorar nos últimos vinte anos.
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alcance da mão de qualquer prefeitura. A sua inviabilidade universal se dá pela adesão
consciente ou inconsciente das autoridades públicas à Política de Estado do Abandono e
do subdesenvolvimento para a exclusão social, a mesma que, como já dissemos,
reproduz a sociedade brasileira como ela é e mantém intacto o Estado escravocrata,
racista e excludente em toda parte até os nossos dias.
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