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ELES NÃO USAM BLACK-TIE: A PEÇA, O FILME

Edição e comentários: Reinaldo Cardenuto

Em setembro de 1983, no âmbito da mostra “O operário no cinema alemão e


brasileiro”, Leon Hirszman e Gianfrancesco Guarnieri participaram de um debate
sobre o filme Eles não usam black-tie. Dois anos após a circulação comercial do
longa-metragem no Brasil, o cineasta e o dramaturgo se encontraram no Museu da
Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP) para responder às perguntas de um público
interessado em conhecer o processo de criação que ambos desenvolveram entre os
anos de 1978 e 1981. Em um contexto histórico atravessado por grandes inquietações,
fosse em relação ao futuro do movimento operário ou ao processo de
redemocratização da sociedade brasileira, os espectadores dividiram-se entre elogios e
críticas à obra cinematográfica, provocando questionamentos acerca da visão política
que os dois procuraram incluir na versão fílmica de Black-tie.
A conversa no MIS-SP, material nunca antes publicado, existente em duas
fitas cassete armazenadas na midiateca do museu, torna-se uma rara oportunidade
para entrar em contato com os intensos debates que foram travados, na primeira
metade da década de 1980, em torno desse longa-metragem vencedor de vários
prêmios internacionais. A partir da leitura do documento, levando-se em consideração
que Hirszman nunca escreveu textos sobre seu próprio cinema, é possível obter novas
informações acerca da realização do filme e das decisões que foram tomadas para a
adaptação fílmica de uma peça escrita originalmente em 1956. Para além das
reflexões em torno da arte política, o cineasta e o dramaturgo detalham suas visões de
mundo, expondo inquietações relacionadas à condição de um país que ainda se
encontrava submetido aos desmandos do regime militar.
Em função de problemas técnicos existentes na gravação original, em que
parte das questões do público é inaudível, optei nesta edição por acrescentar algumas
perguntas, formuladas a partir das respostas oferecidas pelos artistas. Também inclui
um pequeno conjunto de notas de rodapé, informações extras para a melhor
compreensão do conteúdo presente no debate. Com a recente descoberta de novos
documentos, cavoucados em acervos públicos e privados, redefinem-se as possíveis
leituras sobre o lugar ocupado por Hirszman na história do cinema.

Guarnieri, como se deu o processo de criação da peça Eles não usam black-tie?

GIANFRANCESCO GUARNIERI – No geral, o fato de escrever uma peça não vem


precedido de nenhuma organização mental, de nenhuma ideia pré-estabelecida. Eles
não usam black-tie foi escrita por uma necessidade de me expressar a partir daquilo
que eu conhecia, a partir do meu engajamento. Na época, eu exercia uma militância
que se voltava para o movimento estudantil, mas que chegou a ter um contato muito
grande com as lutas operárias no Rio de Janeiro, onde se concentravam os sindicatos
mais fortes. Eu era muito garoto e não me passava pela cabeça fazer da peça uma
análise sociológica do problema. O que eu tentava jogar, e não tenho vergonha de
dizer, era todo o amor e solidariedade que sentia [pela causa popular]1. Eu comecei a

1 Devido a partes inaudíveis na gravação original, mas também com o intuito de complementar
informações para o leitor, no decorrer do texto optei por inserir algumas palavras entre colchetes. Tais
fazer teatro quase como uma tarefa [política], porque descobri que o trabalho cultural,
particularmente o artístico, era uma das melhores formas de organização dos
estudantes e da juventude. Aos poucos, fui me apaixonando por esse meio,
começando a trabalhar como ator e vendo a imensa possibilidade que o teatro oferecia
para falar das coisas.

Nessa época, brasileiro escrever uma peça de teatro era visto como um hobby muito
engraçadinho, mas que jamais poderia chegar a um resultado. O que se pensava era
que teatro só poderia ser feito por intelectuais de países desenvolvidos. Black-tie foi
escrita na calada da noite, [em 1956]. Eu chegava dos ensaios no Teatro de Arena e,
sozinho no quarto, durante a madrugada, preparava a peça com a minha maquininha
de escrever, uma Remington que eu havia ganhado de presente. Eu me divertia muito,
chorava diante do que havia escrito. Para mim, aquilo era algo que terminaria na
gaveta. A montagem de Black-tie só ocorreu dois anos depois, quando o Teatro de
Arena ia encerrar as suas atividades. A companhia não tinha mais condições de
prosseguir e resolveu encenar a peça para não fechar as portas de forma melancólica.
Fecharia mostrando o que realmente queria fazer, incentivar a dramaturgia brasileira,
especialmente aquela realizada por jovens.

Em Black-tie, pela primeira vez o operário era apresentado como protagonista [no
teatro brasileiro]. Na peça, ao invés do ponto de vista do patrão, que era o mais
comum, temos o ponto de vista da classe operária. Isso realmente causou um impacto
muito grande naquele momento. O público percebeu isso. O resultado é que até hoje,
mesmo depois de dez anos de censura [durante o regime militar], a peça continua a
ser montada. Eu atribuo esse interesse à honestidade do texto, a algo que vem de
dentro sem escamotear, sem querer ser o que não é. Há qualidades que levam Black-
tie a emocionar e que interessaram o Leon, [em 1978]2, a adaptá-la para o cinema.

Leon, quando você começou a pensar na adaptação de Black-tie para o cinema?


Como aconteceu o processo de criação do filme?

LEON HIRSZMAN – Foi depois de realizar S. Bernardo (1972) que eu comecei, de fato,
a me aproximar da temática operária, [a pensar na adaptação de Black-tie]. Eu tinha
visto a peça em 1959, com 22 anos, e me recordo de ter chorado muito. Quando

acréscimos procuraram respeitar as ideias desenvolvidas por Hirszman e por Guarnieri durante o
debate no MIS.
2 Antes de Hirszman iniciar, no ano de 1978, o processo de adaptação de Black-tie para o cinema, três
outros artistas procuraram levar adiante tal projeto. Após uma primeira tentativa malsucedida de Carlos
Hugo Christensen, realizador argentino que deteve os direitos da peça até meados dos anos 1960, a
adaptação também passaria, sem sucesso, pelas mãos do diretor teatral Alberto D’Aversa, encenador
italiano que atuou no Teatro Brasileiro de Comédia, e do cineasta Roberto Santos, com quem Guarnieri
trabalhou como ator em O grande momento (1958) e como dialoguista na transposição fílmica do livro
A hora e a vez de Augusto Matraga (1965). O fracasso dessas tentativas não parece, no entanto, se
restringir somente a possíveis dilemas pessoais enfrentados pelos artistas durante o processo de criação
dos seus filmes: nos três casos, de modo mais dramático no segundo deles, para o qual já havia um
roteiro pronto, a desistência se deu sobretudo como resultado da decisão do regime militar em proibir
categoricamente a circulação da peça de Guarnieri, deslocando-a para um limbo histórico que durou
cerca de doze anos, entre 1964 e 1977. Em 30 de agosto de 1994, Guarnieri concedeu essas
informações sobre as adaptações malsucedidas de Black-tie para o projeto “Memória da teoria e da
prática cinematográfica”, criado pelo MIS-SP para registrar depoimentos de cineastas e dramaturgos. O
filme de Hirszman ficaria pronto somente no ano de 1981.
resolvi que faria Black-tie, que começaria a conversar com o Guarnieri [sobre esse
projeto], a peça ainda estava sob intervenção. Em 1974, já havia o processo de
distensão, mas o texto acabaria liberado pela censura apenas em 1977. Realizar um
filme como esse foi um desafio muito grande porque era preciso fazer uma avaliação
do que tinha mudado no país entre 1956, [ano em que a peça foi escrita], e 1980,
quando estávamos trabalhando na adaptação [para o cinema]. Precisávamos atualizar
os problemas políticos, atualizar a questão da mulher e o personagem do pai, [o líder
sindical Otávio].

Para isso, Guarnieri e eu fizemos um longo trabalho de debate. Nos encontramos com
cientistas sociais e políticos, nos reunimos com lideranças operárias, tentamos nos
aproximar daquela realidade nova que estávamos vivendo no Brasil do pós-milagre,
da crise posterior a 1974. Para mim, foi muito importante ter acompanhado [e
filmado] a greve dos metalúrgicos ocorrida na região do ABC, em 19793. Ali eu me
senti participando, entrando em contato direto com os operários. Essa experiência me
enriqueceu muito. Vivi momentos fortes que me capacitaram a perceber essa nova
realidade. [Depois disso], me reuni com o Guarnieri por quase um ano para debater a
realidade brasileira e a dramaturgia popular. A partir desses encontros pudemos
pensar nas necessidades de reformulação e de atualização da peça Black-tie4.

Guarnieri, passados tantos anos da escrita da peça Black-tie, como você a vê


hoje?

GG – Eu acho que Black-tie é uma peça profundamente política. No entanto, não a


escrevi com a intenção de fazer [um texto didático]. Minha preocupação foi jogar para
fora o que estava sentindo. Acho que é impossível falar da luta operária sem falar em
luta de classe. Mas também acho que é impossível falar da libertação do operariado
sem entrar em questões para além da política, em questões profundamente filosóficas.
[Na peça Black-tie], cada personagem representa um segmento, representa os diversos
confrontos nas relações de produção e as várias formas como o mundo pode operar
modificações [nas pessoas]. O que eu acho legal na peça é a sua espontaneidade.
Nunca houve, da minha parte, a preocupação em defender a classe operária mostrando
o operário bom e o patrão mau. Bastou colocar concretamente a realidade social, a
realidade da luta operária, para se chegar a mil conclusões. Felizmente, nunca tive a
pretensão de ditar regras, de dizer que a verdade está ali ou o mal acolá. [Como
dramaturgo], sempre fugi do maniqueísmo e procurei olhar as coisas de dentro.
Sempre tive essa consciência. No geral, as pessoas caem do cavalo quando escrevem
uma peça política para demonstrar tal e tal coisa.


3 Hirszman se refere à paralisação metalúrgica ocorrida entre março e maio de 1979, filmada por ele
para a composição do documentário ABC da greve. Essas gravações, que lhe ofereceram uma
oportunidade de aproximação com o operariado, também serviriam como estudo para a preparação do
roteiro de Black-tie.
4 Hirszman e Guarnieri escreveram o roteiro do filme Black-tie no ano de 1979. As gravações do
longa-metragem ocorreram entre 17 de março e 14 de junho de 1980. Para maiores informações,
consultar o sétimo capítulo de minha tese de doutorado, intitulada O cinema político de Leon Hirszman
(1976-81): engajamento e resistência durante o regime militar brasileiro. Disponível para download
em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27161/tde-02022015-160846/en.php
Que alterações vocês fizeram ao adaptar Black-tie do teatro para o cinema?

GG – [Na versão de Black-tie para o cinema], o personagem que mais sofreu


modificações foi a Maria. Penso que não foi apenas ela que mudou, mas também o
modo como hoje olhamos para ela. Na minha opinião, não se pode mais encarar a
questão da mulher como se fazia há vinte anos. [No texto de 1956], Maria era uma
costureira. O máximo que podia fazer era trabalhar numa pequena oficina ou ajudar
nos afazeres domésticos. Na versão da peça, a consciência [política] de Maria ainda é
passiva. Embora ela se rebele contra a atitude de Tião, [que decide furar a greve], essa
rebeldia não passa de uma liçãozinha [de moral]. Na peça, ela continua dizendo que
não quer deixar o seu pessoal, não quer deixar o cruzeiro lá do alto, não quer deixar o
violão do Juvêncio. Hoje, essa Maria [romântica] não é mais verdade não. Hoje ela
tem uma participação muito maior. Foi durante a greve no ABC, [em 1979], que eu
encontrei a motivação para modificar esse personagem. Certo dia vi meia dúzia de
operárias de mãos dadas, uma delas grávida de nove meses, indo em frente a um
cordão policial e chamando os caras pra briga. Pensando hoje na participação da
mulher, no lugar ocupado por elas nesses movimentos todos, percebemos que a Maria
não poderia mais ser tratada como há vinte anos. Seria um descompasso, uma coisa
falsa. Esse personagem teria que ser modificado.

LH – Independentemente das alterações ocorridas nos personagens, houve também


[na versão para o cinema] uma mudança geral que está relacionada ao problema da
violência. É que no Brasil dos últimos 20 anos houve uma mudança no caráter da
dominação de classe. O novo problema foi a violência do regime militar, dos bolsões
autoritários, que [agiu diretamente] sobre o povo. Surgiu uma violência interna ao
próprio povo. Se agravou um processo que está relacionado com o Estado autoritário,
com o Estado policial. [Em 1956] já existia, claro, a repressão na porta da fábrica.
Mas o fato do sujeito roubar por centavos, cruzeiros, é uma coisa que hoje é muito
comum. Esse fator é uma costura geral do filme. Tivemos que lidar com esse novo
caráter da violência, com o fato do povo pagar um preço, não ter condições de
autodefesa e nem de controle democrático. Uma questão que se encontra no filme e é
muito complexa tem a ver com a defesa do povo perante a dominação do Estado. De
que forma a organização da classe trabalhadora pode enfrentar o regime militar sem
cair na provocação que interessa ao próprio governo?

Me parece que [na versão de Black-tie para o cinema tivemos que lidar] com outro
substrato geral, com uma crise mais ampla da própria sociedade brasileira. É como se
hoje não houvesse força possível e o Otávio refletisse isso. Antes, [em 1956], o
Otávio era uma forma de onipotência, representava uma prepotência ideológica.
Naquele momento, os partidos – marxistas ou não – disputaram muito esse tipo de
intelectual. [Passados vinte anos, no entanto, ficou claro] que essa atitude prepotente
serviu, na maior parte das vezes, para muito retrocesso e não para a efetiva
acumulação de forças. Me parece que o Otávio teve então que perceber isso. Já o
jovem que tem hoje condições de se manifestar contra as demissões em massa, o
jovem que cresceu durante a ditadura e se manifesta contra a não participação política
dos trabalhadores, não possui a [experiência] vivida por intelectuais orgânicos [como
o Otávio]. Embora o personagem Sartini esteja com razão ao se opor à dominação [de
classe], ele não possui a [memória] necessária para criticar a prepotência e
[compreender] a necessidade de organização. A história não foi passada para ele pelos
partidos de massa. Sem ter um conteúdo ideológico, Sartini vai ocupar o novo espaço
da prepotência.

GG – [Vale a pena acrescentar que o filme é muito parecido com o texto de 1956]. A
peça só não continha a morte do Bráulio. É que o Brasil passou por uma situação tão
traumática nos últimos anos que seria um equívoco, hoje, não colocar essa morte na
nova versão de Black-tie. Na peça, o Otávio era um personagem menos experiente e
mais parecido com o Sartini do filme. Lá ele tinha aquela sanha de resolver as coisas
de qualquer maneira.

A contraposição entre Otávio e Sartini já existia na peça de 1956? Ou seja: já


havia no teatro o confronto entre um personagem que defende a maior
organização política dos operários e outro mais dado à ação imediata?

GG – Não existia. Na peça, o Otávio continha, dentro dele, os dois elementos. Acho
que precisamos entender um pouco o que significava um partido operário no ano de
1956. Vivia-se, naquele momento, uma unidade monolítica. Não havia
fracionamentos no movimento operário. Era uma militância marcada pela certeza: a
história já estava traçada e o negócio era apenas mirar naquela estrada e seguir
adiante. Os obstáculos estavam presentes apenas como um parque de diversão. Com
jeitinho, poderíamos superá-los porque chegaríamos de qualquer modo ao ponto
desejado. A história, no entanto, veio demonstrar que não é bem assim, que é o
próprio homem que constrói [o futuro] a partir de suas lutas. O problema é que o
Otávio da peça conservava muito dessa crença na história como algo já traçado. Para
ser franco, ele era stalinista e estava louco da vida porque declarações negativas a
respeito de Stálin haviam aparecido [em 1956], no XX Congresso [do Partido
Comunista da União Soviética]. Os rachas, porém, não existiam. Na peça, o
personagem que tentava encarar as coisas de forma um pouco mais objetiva era o
Bráulio. No filme, nós tivemos que dividir o personagem Otávio em dois. Agora ele é
o Otávio de um lado e o Sartini de outro. O Sartini é aquele que não tem realmente
uma consciência política. Ele tem vigor e ódio de classe. Já o Otávio...

No filme, vocês caricaturaram o Sartini. Ao contrário do Otávio, que é um


personagem mais complexo, o Sartini sequer expressa a argumentação política
do grupo que ele representa, vocês o estereotiparam...
GG – Não houve a intenção de fazer uma caricatura. Se a gente colocasse no filme
tanta complexidade para os personagens, ele ficaria com umas cinco horas de
duração.
LH – Mas essa caricatura existe. Eu já vi essa caricatura. Eu acompanhei de perto...
GG – Realmente isso existe. Não é brincadeira.
LH – Eu gostaria de dar um depoimento sobre o personagem Sartini. Porque o
dogmatismo, o sectarismo e a falsa prepotência existem sim. E existem
principalmente no jovem sem formação história, que não compreende o caráter de
dominação do regime militar, e que acredita que [a ditadura] já acabou. Esse jovem
que pensa que para lutar basta ter vontade e ponto. Ele não entende o problema da
práxis e da acumulação. Para ele, as alianças políticas não são necessárias. Isso é uma
herança do pior marxismo, para o qual existe apenas a questão da vanguarda. Embora
tenhamos respeito pelo vigor do Sartini, [criamos esse personagem] para mostrar isso.
[No filme Black-tie], o Sartini não é um sujeito sem força. Pelo contrário. Uma das
riquezas do nosso trabalho foi salientar a postura do conflito, ou seja, a necessidade
obrigatória de se lutar contra uma situação opressiva, economicamente injusta e que
não pode mais ser sustentada. [Essa rebeldia] é verdadeira no Sartini, mas também é
verdadeira para um personagem como o Tião, que tem direito a uma vida digna, a
comprar coisas, a se casar. No filme, a partir de mediações políticas, tentamos mostrar
as tensões entre os personagens sem dar razão ideológica a nenhum deles. Tanto é que
até o Otávio se transforma no final, quando vai participar dos [afazeres domésticos],
quando separa o feijão. A Romana, que não tinha se mobilizado durante o filme, a não
ser nas relações interfamiliares, vai se transformar também. Cada um deles sofre uma
transição sem que se diga “isto é justo e aquilo injusto”. No filme, os conflitos se
tornam vivos e o espectador, diante dessas tensões, terá ele mesmo que realizar a sua
opção.
Terá que fazer uma escolha que vem da práxis política e não mais apenas da
ideologia. Uma opção que leve em conta as condições reais de um país
subdesenvolvido onde a luta de classes tem um caráter específico. [Hoje em dia] não
dá para ignorar as questões culturais e a formação das pessoas. Esse é um dado
crucial. É verdade que o Sartini é esquemático. Num filme operário, num filme de
conflito social, há personagens que funcionam como “tipo”. É impossível desenvolver
todos os personagens com um delineamento muito tênue e preciso. Evidentemente
recebemos uma série de críticas. Em uma delas, fui acusado de anti-esquerdismo [por
ter construído o Sartini desse modo]. Fui acusado de ser um homem de partido
quando, na verdade, não realizei o filme em função de tendências partidárias. O
personagem do Sartini é muito importante. Ele nos adverte de que podemos cair em
um vazio ideológico e nos diz que não podemos avançar sem ideologia. Essa é a
dialética5.

O filme parece ter um final em aberto. Como se quisessem mostrar que a luta
operária ainda está em processo.
GG – A proposta do filme é transmitir uma experiência da vida operária sem mostrar
o seu desfecho. As coisas não terminam porque matam um companheiro ou porque
uma família é quase estraçalhada. Pelo contrário. É a partir da dor e da luta que a
classe operária se tempera para prosseguir adiante. Quanto mais ela tiver consciência
de que o desemprego está relacionado a outras questões [sociais], mais ela percebe
que precisa se organizar no sentido de solucionar os problemas. Esse é um dos apelos
principais do filme. Ele não procura [defender] a greve [a qualquer custo]. O filme
mostra que a greve pode ser um retrocesso quando utilizada de forma desorganizada,
solitária e voluntarista. Porque a greve pode ser uma grande arma de luta quando
realmente corresponde à vontade [popular], à necessidade de organização de todos os
trabalhadores. Claro que o filme não pretende resolver a questão de como se faz


5 O leitor pode encontrar uma análise de Black-tie no oitavo capítulo da minha tese. Dentre as questões
estudadas, há uma longa reflexão sobre as dimensões políticas e ideológicas presentes no longa-
metragem. Disponível para download em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27161/tde-
02022015-160846/en.php
política. A realidade histórica coloca novos problemas para a classe operária e é ela
quem precisa resolver as suas questões a partir da luta e da escolha em um verdadeiro
partido político de massas.

Guarnieri, você procurou, na peça e no filme, justificar o desejo individualista do


Tião como algo que vem de fora da classe operária?
GG – Creio que esse é um ótimo ponto para o debate. Sempre penso se não foi um
erro meu, na peça ter justificado que o desejo de ascensão social do Tião nasceu do
fato dele ter vivido um tempo com os padrinhos ricos. Como se a meta burguesa, no
seio da classe operária, só fosse possível [quando a pessoa experimentasse] outro tipo
de formação [social]. Hoje, entre os operários – que obviamente não viveram com
padrinhos – não encontramos a necessidade de ascensão, de passar em cima do outro,
perdendo inclusive o sentido de solidariedade de classe? Essa ideologia que está aí há
vinte anos, essa sociedade de consumo propagada pela ditadura, não penetrou na
classe operária? Na peça, não terei sido romântico [ao considerar o desejo burguês
como algo distante do proletariado]? Eu acho que fizemos uma autocrítica disso no
filme, minimizando um pouco essa questão.

Mas vocês mantiveram essa leitura no filme. Não houve crítica. No cinema há a
mesma explicação mecanicista.
GG – Isso apareceu no filme de forma muito atenuada. Na época em que escrevi a
peça, eu realmente não podia admitir que um operário [tivesse desejo de ascensão
burguesa]. Para justificar o pensamento do Tião, precisei [retirá-lo do morro e]
colocá-lo no bairro do Flamengo. [Em 1956,] eu tinha uma tendência a glorificar [o
povo]. Não tinha condições de escrever a peça de outro modo.
LH – Gostaria de destacar algo que as pessoas costumam ignorar: a riqueza do
personagem Tião na peça do Guarnieri. Entre 1955 e 56, na época em que está
subindo ao poder o Juscelino Kubitschek, no momento em que a ideologia
imperialista do desenvolvimentismo vai se tornar a base para o individualismo, o
Guarnieri percebe [a condição brasileira] do ponto de vista poético e não da
sociologia ou da economia política. Esse é o dado fundamental do personagem Tião.
Um dado que se mantém vivo até hoje. Quando você realiza um filme ou uma peça
não pode ver as coisas somente a partir de uma face. A determinação concreta é a
unidade do diverso. Na arte, isso é mais verdadeiro do que na sociologia. [Na peça
Black-tie] há uma visão poliédrica.
[O Tião, portanto,] não se explica apenas por aspectos históricos da formação
psicológica. Colocar as coisas apenas no nível histórico do desenvolvimentismo não é
suficiente, pois acaba-se por cair em mecanicismos. Há inclusive inter-relações
edipianas que não podem simplesmente ser jogadas pela janela. Marx não jogou fora
a mitologia e nós também não podemos fazer isso. Não podemos descartar a
psicologia moderna, o que seria um absurdo para a constituição dos personagens. Se
construíssemos o Tião apenas pelo desenvolvimentismo ou pela crise brasileira
faríamos algo esquemático. Ele é rico porque é polifacético, porque tem múltiplas
determinações. Essa é uma das genialidades da peça do Guarnieri. Trata-se de um
protagonista que está inserido no processo do Plano Marshall, em um [modelo] de
desenvolvimentismo no qual o processo político, [ainda] que democrático, solidificou
certo tipo de dominação ideológica e deu lugar à constituição de um tipo de
individualismo. É o processo real de constituição de uma classe e de um povo.
A obra de arte tem que partir da realidade objetiva e não da ideia. O marxismo não
[pode] continuar idealista. Esse é o seu atraso. Até quando prosseguirá voluntarista?
Não vai nunca [absorver] a realidade cultural e a formação histórica do país? Essas
questões [centrais], a peça iluminava com os seus caminhos. [Vinte anos depois], esse
foi o ponto de partida do filme. [No cinema, Black-tie] foi popular por conta disso.
Ele emociona as pessoas na medida em que mostra, sem ser naturalista e de forma
crítica, uma determinada realidade. O filme faz com que os espectadores se movam
dentro dos conflitos, se emocionem e assumam um grau de consciência sem cair em
descrições políticas. Black-tie não é um clube político no qual a pessoa sai edificada
[da experiência]. Não é a redução da realidade em nome do prazer ou da manipulação
cultural. Normalmente os filmes políticos, incluindo os norte-americanos, manipulam
a linguagem. O cinema sobre a classe operária controla muito a relação com o
espectador, por vezes [exaltando] a vitória do povo. Black-tie não é isso. [Nós
quisemos] olhar para a cabeça da Medusa, olhar para essa face cheia de serpentes. Se
a obra de arte não partir da realidade, se ficar apenas na vontade, não há condições de
construir nada. Esse é o ponto fundamental em relação ao Tião6.
GG – O Tião é um sujeito que não faz nada com segundas intenções. Ele é daquela
maneira e acredita estar completamente certo. Não justifica [as suas ações] e no fundo
não entende o porque da Maria [ficar brava]. Não compreende os motivos de ser
xingado [por ter se colocado contra a greve]. Na cabeça do personagem, ele também
fez isso [pelo bem-estar da namorada grávida]. O seu desabafo é dar um murro no
espelho ou na parede. [Ele demora] para entender que o conflito chegou num ponto
que só pode ter um desenlace, que a crise chegou num grau de rompimento que o
impedirá de continuar [morando com a família]. E ele sente isso de cabeça erguida.
Sai muito machucado, mas realça que não furou a greve por covardia. O tempo inteiro
ele leva o negócio para o lado moral. Realmente acredita que [a greve não é a
solução], que as famílias dos operários continuarão numa porcaria de vida. Acaba,
então, optando por uma saída [individualista].
E o seu pai, [o Otávio], compreende perfeitamente o pensamento do filho. [Ele
expulsa o Tião de casa] porque acha que não há mais a possibilidade do convívio.
Não é uma questão de castigo ou de ódio. Pelo contrário. Expulsa por conta de um
amor danado. Esse é o modo como vejo as coisas. Claro que há interpretações as mais
diversas. [Em 1958], no teatro, eu interpretava o Tião com a maior vontade de dar um
beijo naquele pai. Minha motivação, como ator, era chegar para o Otávio, abraçá-lo e
dizer: “não é nada disso, pai. Me entenda, pelo amor de Deus. Não estou errado, não
sou um filho da mãe”. [Já em 1981], dessa vez ao atuar como Otávio, o meu

6 Em complemento à essa fala de Hirszman, reproduzo aqui um trecho da entrevista que ele concedeu,
em dezembro de 1981, para o número 102 da revista Cine cubano: “No hay una dramaturgia popular si
no existe un respeto al personaje y sus contradicciones. Si yo me coloco dentro del personaje y lo
resuelvo de acuerdo a mis ideas se acabó la contradicción, y se rompe el proceso interno del personaje.
Se convierte entonces en un discurso ilustrativo de una idea mía. Y no se trataba de eso. Se trataba de
exponer contradicciones y profundizar en ellas, intentando una comunicación popular efectiva, en la
que el interés por las contradicciones se mantuviera internamente vivo en los espectadores (...).
Cualquier tipo de idealización radicalizante sería destructiva para la identificación popular con la
película. Y me parece que la perspectiva de un cine nacional y popular - que es la perspectiva que Ellos
no usan smoking propone y asume - es una perspectiva universalista, en el sentido de que un obrero de
cualquier parte del mundo encuentra puntos de identificación, de autorreconocimiento humano”.
pensamento ao falar com o Tião era: “mas eu não posso te entender, filho, não posso
entrar na sua. Não há mais condições de você ficar aqui. Como posso te manter na
minha casa? Como ficariam as relações com os companheiros? Vá procurar o seu
caminho...”. Diversos críticos, incluindo um aqui presente, já analisaram como em
minhas peças eu constantemente apresento relações entre pais e filhos.

Não são apenas os operários que sofrem exploração. No Brasil, é muito forte a
dominação política sobre os estudantes. Há um paralelo muito grande entre o
filme Black-tie e o movimento estudantil. Essa ligação foi intencional? Vocês
buscaram um ponto em comum entre o movimento estudantil e a luta operária?
GG – Para falar honestamente, nunca pensei neste paralelo. Mas é evidente que todo
sujeito explorado tem problemas em comum. É claro que há especificidades dentro da
luta operária, mas tanto a peça como o filme [não se restringiram] apenas ao
sindicalismo. Não tive a intenção de explicitar isso, mas concordo que pensei [em
política] como uma questão mais ampla. O correto não é a divisão política. Os
problemas precisam ser compartilhados e enfrentados em conjunto.

Da peça para o filme, uma das mudanças foi em relação ao personagem Alípio.
No teatro, ele surge como oposto a Otávio. Parece haver uma contraposição
entre o militante proletário-revolucionário e o comerciante pequeno-burguês. No
cinema, já não há mais essa hostilidade e ele aparece como uma figura simpática,
como um amigo. O que os levou a modificar esse personagem?
GG – Ontem mesmo nós estávamos em Vila Brasilândia, [na cidade de São Paulo], e
o que se nota é aquilo que colocamos no filme Black-tie: existe uma solidariedade
típica do comerciante, do dono da loja que realmente faz fiado. São figuras muito
simpáticas. Quando escrevi a peça, que se passa num morro do Rio de Janeiro [e não
num bairro paulistano como no filme], me inspirei em divisões que havia na própria
favela, em especial na presença de figuras que [tinham pequenos negócios] e
exploravam os operários. Leon e eu pensamos que no cinema o vendeiro daria mais
certo se fosse solidário às pessoas...

Mas na peça ele era o personagem pequeno-burguês...


GG – Exato. Mas eu não encararia o Alípio do filme como um pequeno-burguês. Ele
é um vendeiro que sofre junto aos demais. Penso que já conheci diversos Alípios. Me
recordo, inclusive, de um sujeito que era dono de uma padaria na Vila Guilherme e
que sustentou vários funcionários do canal 9 quando a emissora ficou meses sem
pagar salários. Ele acabou indo à falência e teve que passar adiante o seu negócio.
Tempos depois, quando as pessoas conseguiram novos trabalhos, começaram a pagá-
lo para que ele refizesse a vida. É um tipo de solidariedade que ultimamente tenho
notado muito. [Em 1956,] eu pensava nesse sujeito [apenas] como exploração. Algo
próximo ao livro Quarto de despejo (1960), escrito por Carolina Maria de Jesus, no
qual está retratada uma exploração [desenfreada]. Até quando ela ia vender o lixo
sofria exploração. [Para a nova versão de Black-tie], repensei o personagem Alípio.
LH – Nosso trabalho não é de análise e descrição do real. Nossos parâmetros, [ao
adaptar Black-tie], não foram no sentido de ilustrar uma realidade específica, como se
tivéssemos que cumprir bem uma tarefa sociológica. Há questões que envolvem
problemas de narrativa e de dramaturgia. Nossa proposta não foi ilustrar um
comportamento pequeno-burguês determinado. Isso é uma deformação de certo tipo
de realismo socialista. Nós nos concentramos em construir conflitos dramáticos, em
evoluir a narrativa própria ao filme. Mesmo que 90% dos pequenos proprietários [de
São Paulo] sejam monstros, o personagem Alípio não precisa ser assim. Ao fazer uma
obra de arte você tem a liberdade de evitar as ilustrações do real. Esse dado
fundamental da liberdade criativa nunca é debatido no cinema ou no teatro brasileiro.
O atraso dramatúrgico é generalizado. A própria crítica parece não compreender isso.
Pensam que a arte está aí para [imitar] o real. [Esse é o pensamento] de uma velha
forma de naturalismo já criticado neste século por vários pensadores, incluindo alguns
bem mecanicistas, até mesmo [alguns escritos] do Lukács.
Acho que o Guarnieri é um grande mestre da dramaturgia brasileira. Ele, o Augusto
Boal e outros companheiros me ensinaram muito, muito, muito, muito a respeito
disso. [Em 1959], quando tive a oportunidade de participar durante um ano dos
seminários de dramaturgia do Teatro de Arena, dos seminários ocorridos em São
Paulo e no Rio de Janeiro, o que aprendi foi isso: a arte possui uma autonomia
relativa. Depois, o próprio Vianinha [Oduvaldo Vianna Filho] também aprofundou
essa questão. Não se trata de uma simples imitação da vida, na qual você faz da arte
uma repetição dos instrumentos sociológicos de conhecimento. [Ao fazer um filme],
você não deve a cada momento estabelecer os conflitos de classe e ilustrá-los. Quem
fez isso foi um mau cinema, feito na China popular da década de 1950. Na União
Soviética, na época em que Serguei Eisenstein teve seus filmes censurados,
[predominou] certa visão do Proletkult a partir da qual os filmes se tornaram mera
ilustração da luta de classes. A expressão artística [deve ser uma superação disso].

Por que vocês optaram por fazer do Bráulio um personagem negro? Foi algo
simbólico relacionado à questão racial brasileira?
GG – No filme estamos tratando da questão da luta operária, na qual participam
negros, brancos, amarelos. Todos participam. Nós pensamos que o negro tem uma
importância enorme, mas tão grande quanto os demais. Se optamos por um
personagem como o Bráulio é justamente para também colocar a participação do
negro [no movimento operário]. No entanto, não vejo isso como simbólico. O
personagem assassinado poderia ser um branco. Acontece que Bráulio era um sujeito
com grande liderança, alguém que conseguia convencer os companheiros a resistir às
provocações. Era um cara a ser sacrificado. Eu não veria nisso um problema de raça,
mas de luta de classe em geral.
LH – O fundamental é o problema do regime militar. A arma que assassina
[representa os interesses] do dono da fábrica e da ditadura. Quer dizer: a autoridade da
polícia é política. Quem assassinou o operário Santo Dias [em 1979]? Não foram os
fardados, mas gente civil7. No Brasil, por causa da formação histórica, as questões
social e racial caminham juntas, encontram-se imbricadas. Só pude sentir isso
intensamente porque fui criado em um subúrbio do Rio de Janeiro, na Vila Isabel.
Meus pais eram imigrantes judeus, pobres, o que tornou intenso o meu contato com o


7 Hirszman se refere a um episódio ocorrido em 30 de outubro de 1979, quando na cidade de São
Paulo, durante uma greve sem apoio do sindicato metalúrgico pelego, o operário Santo Dias da Silva
foi morto pela polícia militar. Em Black-tie, na sequência em que Bráulio é baleado, o cineasta prestou
uma homenagem ao sindicalismo assassinado.
povo, em especial durante a infância e juventude. Penso que a gente só consegue
perceber essa ligação entre classe, cultura e etnia quando vamos a um país como o
Peru, onde todos os que te servem são índios. Não há um branco servindo. Há ali uma
articulação histórica determinante entre raça e classe. E é isso que muitas vezes não
vemos [no Brasil]. No Rio de Janeiro, [nas eleições estaduais de 1982], o Leonel
Brizola e o Darcy Ribeiro colocaram [a questão da raça no centro] de suas campanhas
[para o governo]. Com isso, conseguiram uma penetração política maior do que ficar
apenas no discurso da classe ou [da redemocratização]. [Aí está] uma questão que
hoje desafia [a esquerda] e que não soubemos ainda compreender de fato.

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