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O terceiro mundo explodiu, mas não queremos admitir

Entre trancos e barrancos, o cinema nacional completou 125 anos no dia 19


de junho. A data é marcada pela primeira filmagem cinematográfica no país, feita
pelos irmãos italianos Paschoal Affonso e Segreto. Esse registro é um pequeno
curta da chegada na Baía de Guanabara.
O clima desse aniversário é meio estranho; se for pesquisar o termo “cinema
brasileiro”, no Youtube, encontrará uma miríade de vídeos clamando que o cinema
nacional é, em si, ruim, um lixo, raso e limitado. Interessante destacar que essa
crítica pode vir de dois lugares bem diferentes: uma elite intelectual que diz que o
apelo popular dos filmes brasileiros restringem a arte e um grupo que não vê uma
produção refletindo aquilo feito lá fora (lá fora é só um sinônimo para Hollywood,
filmes de super-herói, grandes produções e filmes que usam efeitos visuais
exuberantes). Mesmo que esses dois perfis sejam diferentes, eles concordam no
ponto de que o cinema nacional é ruim. Curiosamente, existe um filme dos anos 60
que, de certa forma, resolve os problemas que os grupos possuem com o cinema
brasileiro: O Bandido da Luz Vermelha, dirigido por Rogério Sganzerla em 1968.

Inspirado pelo cinema de Orson Welles e de Jean-Luc Godard, o jovem de 22


anos, Sganzerla, lança seu primeiro filme, que é baseado na história real de João
Acácio, um criminoso que, durante o início dos anos 60, aterrorizou São Paulo
cometendo 4 assassinatos, 77 assaltos e mais de 100 estupros. Esse filme é um
clássico marcante do movimento do Cinema Marginal que conseguiu, ao mesmo
tempo, ser um sucesso entre o público e ter uma linguagem altamente experimental,
que misturava diversos gêneros.
Esse longa é categorizado como um suspense policial, no IMDb, e, junto com
a minha descrição da inspiração por trás do filme, pode-se pensar que esse é uma
obra é um simples filme de investigação policial noir onde a polícia caça o ladrão.
Ledo engano! Esse filme é uma comédia, um faroeste, um estudo de personagem,
uma crítica social, uma maçaroca que une, de forma tão coesa, quase todos os
gêneros possíveis para criar algo único. A única coisa que eu consigo comparar a
esse filme de 92 minutos, é a cena marcante de 2001: uma odisséia no espaço,
onde o personagem viaja no tempo e tudo vira uma explosão de cores que são tão
rápidas que nos confundem, mas passam a ideia de uma jornada.

Outras coisas influenciam para explosão sensorial. Por exemplo, o filme inicia
com um painel publicitário de led anunciando “Os personagens não pertencem ao
Mundo, mas ao Terceiro Mundo”, “Guerra total na Boca do Lixo” e continua com
uma apresentação da ficha técnica do filme. Acompanhado a isso, tem a narração
de um homem e uma mulher, que ficam alternando a fala entre um e outro,
emulando a narração de um rádio: “Decretado, hoje, Estado de Sítio, no país”,
“Trata-se sobre um faroeste sobre o Terceiro Mundo”. No momento em que o
primeiro narrador para de falar, outra voz masculina chega: “Eu sei que fracassei.
Minha mãe tentou me abortar para mim não morrer de fome”. Assim, esses vários
estímulos sensoriais que brincam entre mídias fazem com que o espectador fique
desorientado, o que é a proposta de ambiente do filme.
É uma obra extremamente frenética. As coisas acontecem e não podem ser
processadas. De certa forma, essa ideia de explosão sensorial se mantém mais
atual do que nunca; a mistura naturalizada de mídias - o uso de vídeo junto ao
áudio, a televisão ligada junto ao computador, o jornal televisivo que usa materiais
da internet para se estruturar - está mais presente do que nos anos 60. Além disso,
acho que a barreira de ficção e realidade é um outro ponto muito atual: os
narradores passam de falar sobre o golpe militar para falar sobre o filme de maneira
tão natural que nos deixa desorientado; hoje em dia, a gente olha para o celular e vê
notícias que podem ser falsas ao lado de verdadeiras deixando a gente atordoados
de tanta informação.
Se já não ficou claro, eu acho que esse é um filme muito inteligente. Ele se
manteve muito atemporal durante esses 55 anos. O sensacionalismo midiático que
é retratado, na obra, me lembra muito os casos do Lázaro e dos massacres nas
escolas. É um filme que olha para a realidade do Brasil dos anos 60, já na ditadura
militar, e ri. Como o bandido diz: “Quando a gente não pode fazer nada, a gente
avacalha”.
Junto a essa fala, outro discurso que me marcou muito foi o “O terceiro
Mundo vai explodir!”. As duas frases me passam muito a ideia de crise social, de
uma instabilidade generalizada, no ar, e de que as pessoas estão insatisfeitas com
seu horizonte de possibilidades. Acho que isso é outro ponto que se relaciona com o
presente brasileiro; o clima político da época de golpe militar recém decretado e
chegada dos militares, de novo, no governo com o Bolsonaro. Mas, mesmo assim,
não poder fazer nada, só avacalhar, se refere muito à esquerda, também. Nos anos
60, a esquerda brasileira falhou e não conseguiu fazer as reformas necessárias,
enquanto, atualmente, ela teve que ir para o centro para conseguir se eleger.
A forma que ele consegue fazer uma sátira ácida, forte e apocalíptica. De
certa forma, é um filme extremamente fatalista. Ele disse que o terceiro Mundo ia
explodir, que não tinha o que fazer impedir e que não via nada para ser feito e
melhorar sua realidade. Assim, o caos é a única saída, como quem diz “já que
estamos aqui, vamos rir da situação”.

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