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Resumo
INTRODUÇÃO
O filme Última Parada 174, lançado no ano de 2008 e dirigido por Bruno Barreto,
narra a história de Sandro Barbosa do Nascimento, que ficou conhecido nacional e
internacionalmente no dia 12 de junho de 2000, ao tomar de assalto um ônibus municipal do
Rio de Janeiro, da linha 174, e fazer onze passageiros do coletivo reféns por cerca de quatro
horas. O sequestro, que foi acompanhado e transmitido ao vivo por várias emissoras
brasileiras e algumas estrangeiras, foi finalizado com uma ação desastrada do Batalhão de
Operações Policiais Especiais (BOPE), em que uma refém acabou baleada, vindo a falecer em
seguida, e o próprio Sandro, após detido, foi asfixiado até a morte na viatura policial que o
levava preso.
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Trabalho preparado para apresentação no 1º Encontro Internacional de Estudos Foucaultianos: governamentalidade e
segurança, organizado pelo Departamento de Ciências Sociais e pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 13 a 15 de maio de 2014.
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Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba. E-mail:
gfagra@yahoo.com.br
Apesar de baseado em fatos reais, o filme dirigido por Bruno Barreto não pode ser
visto como retrato fiel dos acontecimentos. Inicialmente, porque nenhum relato ou documento
realmente garante uma reprodução real dos eventos dos quais eles tratam, sendo apenas
representações dos mesmos: imagens produzidas acerca dos eventos, das pessoas e de suas
práticas. A representação, portanto, enquanto presentificação de uma ausência, ou seja,
enquanto maneira de vivificar o que já está morto, tornar presente o passado (CHARTIER,
1990), constrói uma certa imagem sobre o acontecido, imagem produzida a partir de uma
série de interesses que informam os elaboradores na consolidação de uma maneira de
representar, ou apresentar, o real.
Por outro lado, o cinema trabalha não apenas com o discurso oral, através das
falas que são passadas pelo seu roteiro, mas também com discurso imagético, com imagens
que são dispostas na tela favorecendo a construção de certas subjetividades no telespectador
que fazem parte do próprio discurso produzido pelo filme.
No presente ensaio, realizo uma breve imersão no filme Última Parada 174, a fim
de analisar a produção discursiva que este filme elabora acerca da figura do Sandro do
Nascimento. Com isto, pretendo analisar como, apesar de pretender denunciar as condições
sócio-econômicas de exclusão dos grupos marginalizados na sociedade, que conduziriam
esses grupos a condições subumanas de vida diante das quais a criminalidade seria uma
escapatória quase certa, o filme acaba por acaba por naturalizar e atualizar o discurso
conservador e burguês do século XIX de que o crime cometido pelo personagem principal
consistia no resultado da ineficácia das instituições docilizadoras sobre a formação do sujeito.
Analisarei, portanto, os sentidos atribuídos ao evento na sua construção como obra
cinematográfica, pensando o impacto da circulação desse tipo de discurso na sociedade.
A devassa sobre a vida de Sandro que ocorreu logo em seguida à sua morte
revelou eventos ligados à vida daquele rapaz brutalmente interrompida aos 21 anos de idade.
Origem humilde na favela do Rato Molhado; infância marcada pelo abandono do pai e pelo
assassinato da mãe; tornou-se morador de rua, usuário de drogas e passou a cometer pequenos
furtos; escapou da chacina da Candelária; ficara apreendido em uma instituição para menores
infratores, bem como, já maior de idade, fora preso, condenado por furto e por roubo a mão
armada. Esses eventos passaram a ser veiculados pela mídia de maneira geral como degraus
de uma escada a qual Sandro vinha subindo e que levariam necessariamente ao sequestro do
ônibus 174. A união de todos aqueles eventos deveria explicar o crime cometido, as razões
humanas que levariam um sujeito a trilhar tal marcha ascensional ao delito.
Dois anos após o evento, o documentário dirigido por José Padilha, Ônibus 174
(2002), reuniu uma série de entrevistas para compreender o ocorrido no evento do ônibus.
Foram entrevistados tanto pessoas que conheciam pessoalmente Sandro do Nascimento,
dentre familiares e amigos das ruas, quanto reféns do sequestro do ônibus e policiais militares
e membros do BOPE ligados à operação daquele fatídico dia. O documentário, cujo teor é de
denúncia às miseráveis condições sociais em que vive grande parte da população do Brasil, ao
despreparo psicológico e ao não incentivo financeiro com que os policiais militares são postos
nas ruas e ao grande silenciamento e invisibilidade com que cotidianamente tratamos essas
questões até que elas explodam em atos brutais, como no caso do ônibus. O filme de Padilha,
por sua vez, é grande reflexo desse método regressivo, como diria Marc Bloch, em busca das
causas geradoras do evento (BLOCH, 2001): a película está o tempo todo trabalhando com
idas e vindas, deslocando a sua narrativa entre o momento do sequestro do ônibus e eventos
passados que possibilitariam compreender o complexo desastroso em que aquele
acontecimento resultou. O ir e vir narrativo com o qual o filme de Padilha trabalha, portanto,
possibilita perceber como o próprio discurso do filme escolhe o momento do sequestro do
ônibus como central, como ponto de entrelaçamento em uma série de acontecimentos que se
alastrava há tempos e que eclode naquele ato criminoso.
O filme de Bruno Barreto, por outro lado, utiliza-se de outro tipo de narrativa, a
linear. Apesar de o próprio diretor ter afirmado que muito do roteiro de seu filme ter sido
produzido a partir do documentário de Padilha, várias coisas foram alteradas entre a história
do Sandro de Ônibus 174, e a história do Sandro de Última Parada 174.
Este último filme, por exemplo, não centra mais a sua narrativa no sequestro do
ônibus, que, se tomou toda a narrativa do documentário de quase duas horas de Padilha, no
filme de Barreto é retratado em breves dez minutos de película. O filme de Barreto, portanto,
centra a sua narrativa não no ônibus e, portanto, na morte de Sandro, mas privilegia a
narrativa sobre a vida deste, mostrando, de forma progressiva, como vários eventos foram se
sucedendo no biográfico do sujeito, tornando-se, assim, o seu crime mais famoso meramente
um resultado de seu próprio biográfico.
Os eventos de que trata o filme, portanto, atendem à percepção de que Sandro foi
paulatinamente sendo excluído ou mesmo fugindo das várias instâncias que a sociedade
dispõe para um “bom caminho”, instâncias de produção de “cidadãos corretos”, de membros
da sociedade civil. A delinquência de Sandro, desta maneira, viria justamente dessa sua
exclusão do sistema oficial, desse seu perambular pelas margens, da sua não conformação aos
institutos de adestramento e docilização.
A primeira cena do filme em que Sandro aparece é justamente quando ele, ainda
criança, é alertado que o comércio de sua mãe está sendo assaltado. Acorrendo para lá, o
garoto, após esbarrar em uma mesa e derrubar um copo, que se estilhaça quando encontra o
chão, depara-se com o corpo da mãe, no solo, banhado em sangue, já sem vida. Esta é a
primeira exclusão que Sandro tem com relação à instituição familiar, a subtração violenta da
mãe de sua vida.
Passando a morar com a sua tia, Sandro, demonstrando certos sinais do trauma
sofrido com a morte da mãe, não se acostuma no novo espaço, nem mesmo é bem recebido
pelo marido da tia. Num certo momento, quando deveria ir à escola, toma uma embarcação
em direção a Copacabana, abandonando, definitivamente, a casa da tia, a qual, nesta narrativa,
jamais voltaria a rever. Esta é a segunda exclusão da instituição familiar, o abandono da casa
dos parentes.
Tornando-se morador de rua, Sandro passa a conviver com várias outras crianças
que habitavam as localidades próximas da Igreja da Candelária. As relações estabelecidas
com essas outras crianças, com as quais aprende a viver na rua, a drogar-se, a furtar, a
sobreviver, enfim, constroem espaços de sociabilidade que Sandro perdera há muito com a
morte da mãe. A ajuda mútua e a fraternidade estabelecida com essas outras crianças
substituem o espaço familiar que o garoto não mais possuía. O que ele aí aprende, entretanto,
está à margem da legalidade. Nesta nova realidade, Sandro é submetido a pequenos crimes, à
violência, ao uso de drogas, à vida sexual etc.
Há, ainda, uma última tentativa de construção de uma instituição familiar que,
entretanto, também deságua em decepção para o jovem: crendo ser Sandro o seu filho,
retirado de seus braços quando ainda bebê, a personagem Marisa abriga-o em sua casa e passa
a tratar-lhe como verdadeiro filho, a contragosto de seu marido, Jaziel, pastor de um Igreja,
que vê nele apenas um criminoso pronto a, a qualquer momento, roubar-lhe o lucro da Igreja.
A família que Sandro tenta construir, entretanto, consiste em uma mãe enganada, uma
namorada prostituta e um amigo homicida. A instituição não se sustenta sob os moldes da
disciplinarização planejada para existir e docilizar os corpos: a namorada se deita com o
amigo; a mãe o rejeita, não quer “saber de filho bandido”. A instituição familiar dá o seu
último suspiro. Sua ineficácia está atestada.
Sandro é construído pelo filme como um personagem sem bases fixas. As diversas
modificações que se sucederam em sua vida o tornaram um nômade, sem lugar estável. Suas
bases são instáveis, sua situação muda o tempo todo. Até mesmo o seu nome é passível de
constantes mudanças: durante a maior parte do filme, Sandro é chamado de “Alê”, em
decorrência de sua semelhança com Alessandro, “Alê-Monstro”, imediatamente identificada
quando o garoto se junta aos demais meninos de rua da Candelária. “Sandro”, “Alê”, “Alê da
Candelária”, “Alê-Beijo”, “Sérgio” são os vários nomes com os quais o mesmo personagem é
conhecido nos diversos espaços por onde transita.
Desta maneira, Sandro é construído como alguém que foi privado e abandonou as
duas primeiras instituições docilizadoras que o adestrariam nas regras sociais, a família e a
escola. Em virtude dessas exclusões, a família e a escola com as quais o garoto passou a ter
contato foram as que viviam à margem da sociedade. O adestramento aí recebido, por sua vez,
introduziu-o no mundo das drogas, do sexo, do tráfico, da violência, do espetáculo.
Alessandro, por sua vez, completara esse trajeto há mais tempo. Sandro ficara no
meio do caminho, no meio termo, no meio nome.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
MORETTIN, Eduardo Victorio. “O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro”.
História: Questões & Debates. n. 38. Curitiba: Editora UFPR, p. 11-42, 2003.
ÔNIBUS 174 (Bus 174). Direção: José Padilha e Felipe Lacerda. BRA: 2002. Zazen, 1 DVD
(150 min.), son., color., doc.
ÚLTIMA parada 174 (Última parada 174). Direção: Bruno Barreto. Intérpretes: Michel
Gomes, Chris Vianna, Marcello Melo Júnior. BRA, FRA: 2008. Moonshot Pictures, 1 DVD
(104 min.), son., color., drama.