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A noite das Taras

O ciclo da pornochanchada no Brasil

Credito do autor:
Gustavo Alonso
Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense
Autor do livro “Simonal: Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga“. Rio de
Janeiro: Record, 2011, fruto da dissertação de mestrado. Autor da tese: “Cowboys do asfalto:
música sertaneja e modernização brasileira” (2011). História, UFF.

Em 1981, o prefeito de Votorantim, pequena cidade industrial de 50 mil habitantes a


100 quilômetros de São Paulo decidiu tirar do ar o
A pornochanchada e a repressão
canal 7, TV Record de São Paulo, às sextas-feiras a moralista: O cineasta David Cardoso,
um dos principais galãs do ciclo da
partir das 23 horas. Pressionado pelos seus cidadãos, o pornochanchada, lembra que a censura
prefeito agiu por conta própria e, tendo o controle do aos filmes não eram só feitas pelos
órgãos institucionais, de cima para
transmissor local, fez a vontade de seus habitantes. Os baixo, mas também baixo para cima, ou
seja, parte da sociedade também
telespectadores estavam indignados com o programa repudiava essa produção. Em sua
autobiografia, Cardoso recorda que em
Sala Especial, especializado em exibir “explícitas e alguns estados houve apreensão de
cartazes dos seus filmes por autoridades
freqüentemente grosseiras pornochanchadas locais, apesar aprovação da Censura.
nacionais”. A gota d´água teria sido o filme A Em outra ocasião, houve ameaça
anônima de bomba no Cine Plaza, em
Superfêmea, filme de 1973, estrelado por Vera Fischer. Curitiba, devido à exibição de seu filme
Noite das Taras, de 1980, quando a
Parte da sociedade se sentia ofendida com a exibição Censura começava a diminuir a
repressão às artes.
desses filmes.
Nos anos 70 artistas que apareciam em novelas tevisivas também eram vistos fazendo
papéis eróticos no cinema. Dentre os atores que se destacaram nos dois segmentos houve
Reginaldo Farias, Leila Diniz, Renata Sorrah, Flávio Migliaccio, Antônio Fagundes, Cecil
Thiré, Vera Fischer, Xuxa, Consuelo Leandro, Jorge Dória, Zezé Macedo, Lady Francisco,
José Lewgoy, Sandra Bréa, Stephan Nercessian, Ary Fontoura, Marco Nanini, Alexandre
Frota, Andréa Beltrão, Carla Camurati, Paulo César Grande, Marcos Frota, Pedro Cardoso,
John Herbert e vários outros.
Alguns, no entanto, procuram se desvincular
A pornochanchada e o mundo infantil:
Xuxa não foi a única artista do ciclo da dessa memória inconveniente que se tornou a
pornochanchada que mais tarde
trabalhou com crianças. O escritor pornochanchada. Depois de famosa como
Marcos Rey, roteirista de filmes como
As secretárias... que fazem de tudo apresentadora de programas infantis, Xuxa teve
(Alberto Pieralisi, 1975) e Cada um dá
o que tem (Ivan Cardoso e John Herbert, problemas com o filme Amor estranho amor (Walter
1975), tornou-se autor de livros infantis
Hugo Khouri, 1982). A então modelo interpretava uma
nos anos 80.
prostituta que tem relações sexuais com uma criança de cerca de 10 anos. Também Zezé
Motta procurou se esquecer dos filmes que fez: “Na época eu estava fazendo teatro, ganhando
pouco, aí me ofereceram três vezes mais do que eu ganhava, então eu topei. (...) Quando me
perguntam que filmes eu fiz, nem me lembro de citá-los”.
A atriz Vera Fischer, que iniciou sua carreira fazendo Sinal vermelho - As fêmeas
(1972), também mudou de opinião e renegou seu passado quando disse em 1977: “o cinema
explorou minha nudez”. Cinco anos antes, em 1972, ela dizia: “Por que eu não posso
aparecer [nua]? Só porque estou no Brasil e aqui existem muitos problemas de falsa moral?”.
Mais importante do que a contradição das atrizes, deve-se pensar por que alguns atores
renegam esse legado da pornochanchada. Penso que para além da questão moral, há outra
questão importante.
O moralismo e a crítica ao “vulgar” pareciam unir esquerdas e direitas contra o cinema
popular. Hoje, a pornochanchada raramente é lembrada quando se fala do período ditadura
dos anos 70 no Brasil, preferindo-se as imagens de guerrilheiros heroicos, da sociedade
vitimizada e do governo algoz. Quase sempre prefere-se a imagem da ditadura como um
período “negro”, época do “terror”, das torturas e da repressão. De fato, os anos 70 foram
tudo isso. Mas ao se analisar o ciclo da pornochanchada outro Brasil parece abrir-se diante
dos olhos. Um Brasil que vivia menos a polarização política hoje demarcada em livros e
filmes, uma sociedade pouco marcada pelas batalhas de 68.
Quase sempre as análises sobre a pornochanchada demarcam a pobreza estética e o
caráter “comercial” dessas produções. Este tipo de argumento reproduz uma memória que
prioriza as inovações da década anterior, quando surgiram vanguardas estéticas e políticas na
produção cinematográfica brasileira, sobretudo o Cinema Novo e o cinema marginal, muito
Cinema Novo: Concebendo a sétima mais contemplados pelas discussões sobre o período.
arte como veículo de reflexão sobre a
realidade brasileira, o chamado Cinema A pornochanchada atingiu um enorme
Novo desenvolveu-se a partir de fins dos
anos 50 numa convergência entre a
público, apesar das restrições da Censura. Foi através
defesa do cinema de autor, dos filmes de dessa produção que se criou uma indústria
baixo orçamento, a renovação da
linguagem, a busca do povo brasileiro e cinematográfica auto-suficiente no país, garantindo
de traços do processo histórico nacional,
em sintonia com experiências e debates trabalho a cineastas, diretores, roteiristas, atores,
trazidos por realizadores em diferentes
regiões do mundo. Entre os artistas iluminadores, câmeras etc. A indústria da
ligados a esta estética estiveram Glauber
pornochanchada funcionava em dois polos distintos.
Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá
Diegues, Ruy Guerra, Leon Hirszman, Em São Paulo, a base ficava na chamada Boca do
Joaquim Pedro de Andrade, entre outros
Lixo, quarteirão no centro da cidade (entre as ruas
São João e Triunfo), onde funcionavam os escritórios das produtoras, distribuidoras e
exibidores. O equivalente no Rio de Janeiro era a Cinelândia, também no Centro. Algumas
produções se tornaram marcos na época, como: Emmanuelle tropical (J. Marreco, 1977), A
noite das taras (David Cardoso e John Doo, 1980), Me deixa de quatro (Fauzi Mansur, 1981)
e Mulher objeto (Silvio de Abreu, 1981), Com as calças na mão (Carlo Mossy, 1975), Anjo
loiro (Alfredo Stehnheim, 1973), Vítimas do prazer (Cláudio Cunha, 1977) A Superfêmea
(Anibal Massaini Neto, 1973), O Bem dotado, o homem de Itu (José Miziara, 1979), entre
outros. São ícones de uma época em que o cinema nacional arrebanhava multidões para as
salas, abocanhando até 45% do mercado.
Junto com os filmes dos Trapalhões e os de Mazaroppi, as pornochanchadas
marcaram a década de 1970. Diferentemente dos Trapalhões, seus produtores não estavam
vinculados a uma grande rede de televisão, e sua produtividade era muito maior do que a dos
quatro palhaços globais. David Cardoso, ator e produtor de diversos filmes, e conhecido
como o “rei da pornochanchada” tem saudades do período: “na época do regime militar
chegou-se a fazer mais de 100 filmes por ano. (...) A produção artesanal, do povão, hoje,
acabou; o filme com o intuito de divertir desapareceu. Poucas pessoas foram tão
incomodados pela censura. Mas, paradoxalmente, tenho saudades do regime militar, com
censura e tudo. Não desejo a volta de um regime militar nem tenho saudades de nenhum tipo
de arbítrio, mas com relação ao cinema tenho minhas saudades”.
Nos idos dos anos 1970 e 80, as mulheres da pornochanchada eram mitos. Com suas
curvas convidativas e seus olhares lânguidos Helena Ramos, Vera Fischer, Matilde Mastrangi,
Aldine Müller, Rose Di Primo e outras estrelas povoaram o imaginário masculino em filmes
de alto teor erótico e humor desbragado.
A temática sexual era de fato um tema caloroso nos anos 1970. Depois da invenção da
pílula e da libertação sexual, falar de sexo tornou-se
Garganta Profunda: havia nos
primeiros filmes pornôs a busca do atraente, desejável, demandado, quase exigido. Era o
auto-conhecimento típica dos anos
70 e as cenas de “Garganta tempo de se libertar dos antigos modelos moralistas e a
profunda”, embora explícitas, não
eram “gratuitas”. O mote do filme revolução sexual era uma das esferas de libertação.
era a história da protagonista que
sofria muito por não sentir prazer
Acompanhando esta onda, em 1972 foi lançado nos EUA
sexual, até descobrir que tinha o o primeiro filme pornográfico moderno, o clássico
clitóris na garganta. O enredo se
enquadrava na estética da libertação “Garganta profunda”, estrelado por Linda Lovelace.
sexual, da descoberta do corpo
enquanto lugar de prazer, do Embora a pornochanchada estivesse dentro deste
autoconhecimento e da luta contra
os poderes repressivos. referencial sexual dos anos 70, sua origem tem outras
Ver: Garganta profunda (1972), de
Gerard Damiano; Para uma análise,
matrizes. Havia clara influência da chanchada, gênero de
da repercussão do filme, ver o ótimo
documentário: Inside Deep Throat
(2005), de Fenton Bailey & Randy
Barbato
comédia do cinema popular brasileiro que nos anos 40 e 50 notabilizou artistas como Oscarito
e Grande Otelo. Somado a isso, havia a temática sexual. Diferentemente dos EUA, onde,
apesar da repressão inicial, os filmes pornográficos puderam circular, no Brasil a Censura os
impedia. As cenas e o textos mais “abusados” das pornochanchadas eram cortados pelos
censores e havia “apenas” insinuações sexuais.
Apesar do sucesso popular, a ditadura quase não favorecia a indústria da
pornochanchada e a Embrafilme era vista, pelos
Em 1976 foi extinguido o Instituto
Nacional de Cinema e criado o Conselho próprios cineastas da pornochanchada como um bastião
Nacional de Cinema, responsável por
normas e fiscalização. Neste
dos cineastas das “esquerdas”, especialmente dos artistas
enxugamento, ampliação e centralização influenciados pelo Cinema Novo.
de órgãos, caberia à Embrafilme o papel
de financiadora, co-produtora e Paradoxalemente, apesar do sucesso popular, a
distribuidora de filmes brasileiros. Foi o
passo definitivo do Estado em direção ao pornochanchada não usufruía dos benefícios da
cinema, assumindo a direção da
Embrafilme o cineasta Roberto Farias, Embrafilme, que preferia conceder as benesses dos
apoiado por produtores culturais fortes
como Luís Carlos Barreto e Nelson
estatais a produções ditas “de bom gosto” e de “alto
Pereira dos Santos. valor artístico”. Os beneficiados foram os cineastas
críticos da relação cinema-mercado, influenciados pelas inovações estéticas e críticas do
Cinema Novo, da década anterior. Este fato paradoxal, ou seja, um governo de direita que
financiava artistas das esquerdas, vem sendo subestimado por grande parte dos historiadores.

Influências e fim da pornochanchada

Apesar das intensas disputas, o que permaneceu no imaginário coletivo é que os


cineastas da pornochanchada não eram “verdadeiros” artistas, mas pessoas mais interessadas
no lucro fácil, na grosseria e nudez explícitas. Paradoxalmente, o abuso de cenas sexuais, o
apelo ao nu, especialmente feminino, as ironias e humor não ficaram restritos ao cinema da
pornochanchada. Essa imagem chegou a ficar associada ao cinema nacional por um longo
período. Apesar da oposição ao gênero, a temática sexual foi largamente incorporado no
cinema nacional. Cineastas influenciados pelas vanguardas dos anos 1960 também
incorporaram o sexo, o nu, a ironia e humor em suas obras. Filmes como Joanna Francesa e
Xica da Silva (Cacá Diegues, 1973 e 1976), Como era gostoso o meu francês (Nelson Pereira
dos Santos, 1971), Toda nudez será castigada (Arnaldo Jabour, 1972), Dona Flor e seus dois
maridos (Luis Carlos Barreto, 1976), A dama do lotação (Neville de Almeida, 1978),
Bonitinha mas ordinária (Braz Chediak, 1981), Rio Babilônia (Neville de Almeida, 1982),
entre outros, são exemplos da influência da temática sexual.
Saiba mais: Memórias e biografias:
O ciclo da pornochanchada acabou na década Cardoso, David. Autobiografia do rei da
pornochanchada. Letra livre. Mato
de 1980, quando a Censura diminuiu, gradualmente, a Grosso do Sul. 2006; Lyra, Marcelo.
Carlos Reichenbach: o cinema como
proibição aos filmes pornográficos estrangeiros. razão de viver. Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo. São Paulo. 2004.
Alguns diretores e artistas tentaram competir com o Sternheim, Alfredo. David Cardoso:
produto externo, sem sucesso. Foi o fim da união entre persistência e paixão. Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo: Cultura –
comédia e sexo no cinema nacional. Fundação Padre Anchieta. São Paulo.
2004.
Livros sobre a pornochanchada: Ramos,
Fernão. (org.) História do cinema
brasileiro. Rio de Janeiro: Art/SEC –
SP, 1990. Sales Filho, Valter Vicente.
Pornochanchada: doce sabor da
transgressão. São Paulo: Unicamp,
1995; Sales Filho, Valter. Estudo de
caso sobre a representação de
preconceitos e exclusão social na
pornochanchada. São Paulo: USP, 1994.
Dissertação de Mestrado; Seligman,
Flávia. O Brasil é feito de pornôs:o ciclo
da pornochanchada no país dos
governos militares. São Paulo: USP,
2000. Tese de Doutorado; Abreu, Nuno
C. Boca-do-Lixo – cinema e classes
populares. Campinas: Unicamp, 2000.
Tese de Doutorado; Sugimoto, Luiz.
“Boca dos sonhos: o cinema da Boca-
do-Lixo” . Jornal da Unicamp.16 a 22
de dezembro de 2002 - Edição 202.

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