1) O documento descreve a história do cinema brasileiro, desde as primeiras exibições no final do século XIX até o movimento Cinema Novo na década de 1960.
2) O Cinema Novo surgiu para se opor à influência cultural norte-americana e promover um cinema autoral e crítico às desigualdades sociais do Brasil.
3) Filmes do Cinema Novo como Vidas Secas e Terra em Transe ganharam projeção internacional e ajudaram a revelar o potencial criativo do cinema brasileiro.
1) O documento descreve a história do cinema brasileiro, desde as primeiras exibições no final do século XIX até o movimento Cinema Novo na década de 1960.
2) O Cinema Novo surgiu para se opor à influência cultural norte-americana e promover um cinema autoral e crítico às desigualdades sociais do Brasil.
3) Filmes do Cinema Novo como Vidas Secas e Terra em Transe ganharam projeção internacional e ajudaram a revelar o potencial criativo do cinema brasileiro.
1) O documento descreve a história do cinema brasileiro, desde as primeiras exibições no final do século XIX até o movimento Cinema Novo na década de 1960.
2) O Cinema Novo surgiu para se opor à influência cultural norte-americana e promover um cinema autoral e crítico às desigualdades sociais do Brasil.
3) Filmes do Cinema Novo como Vidas Secas e Terra em Transe ganharam projeção internacional e ajudaram a revelar o potencial criativo do cinema brasileiro.
A relação entre o Brasil e o cinema data do final do século XIX, no
contexto das primeiras exibições vinculadas ao cinematógrafo 1. De acordo com Kreutz (2019), foi entre 1907 e 1910 que se deu a estruturação de um mercado exibidor no país, sendo que, naquela época, a falta de eletricidade dificultava a implantação de salas de cinema. A autora ainda afirma que a maior parte dos filmes exibidos em solo nacional era importada de países da Europa, já que os primeiros filmes gravados aqui foram o curta-metragem Os Estranguladores (1908), de Francisco Marzullo e Antônio Leal (primeira película brasileira de ficção) e o longa O Crime dos Banhados (1914), de Francisco Santos. No fim da década de 1920 e início de 1930 o país se depara com a chegada do cinema sonoro nas salas de cinema de São Paulo e do Rio de Janeiro, especificamente com a produção nacional Acabaram-se os otários (1929), de Luís de Barros. A obra, pioneira e inovadora por sincronizar fitas com diálogos já gravados e imagens, atraiu um considerável número de espectadores que buscavam a novidade do som no filme e o entretenimento da comédia, gênero da obra (FREIRE, 2003). Outro importante acontecimento na mesma década foi a criação da Cinédia, primeiro grande estúdio do país (KREUTZ, 2019) que revezava suas produções entre comédias musicais, antecessoras das chanchadas e dramas populares. É valioso destacar a relevância do estúdio no país, visto que era a primeira vez que se tentava organizar uma indústria cinematográfica no Brasil e que, para tanto, buscou-se fora os mais modernos equipamentos de cinema do período (CINÉDIA, 2021). A Cinédia destaca-se também por levar astros da rádio para o cinema, como a cantora e atriz Carmem Miranda (1909-1955). O diretor mineiro Humberto Mauro (1897-1983) é outra importante figura da companhia que produziu no estúdio obras singulares do cinema nacional como Ganga Bruta (1933). Outras duas companhias cinematográficas essenciais para entendermos a história do cinema do nosso país são: a companhia Atlântida cinematográfica, nascida em 1941, e a companhia Vera Cruz, fundada em 1949. A primeira foi a companhia que mais desfrutou de reconhecimento nacional por meio de uma receita de sucesso que transformava qualquer enredo em carnaval: as famosas 1 dispositivo capaz de obter e visualizar impressões cronofotográficas. chanchadas eram o carro-chefe da Atlândida. Com tramas fáceis, de registro popular, maniqueístas e superapelativas (DESBOIS, 2016), as chanchadas não demandavam uma complexa estrutura de produção e eram consumidas facilmente em todos os lugares em que estreavam. Dispondo ainda de dois grandes ícones da época, Oscarito (1906-1970) e Grande Otelo (1915-1993), a companhia lançou diversas comédias estreladas pela dupla que levou milhares de espectadores às salas de cinema. Os dois personificavam de maneira única, na personalidade e na cor, dois Brasis, um branco e outro negro (DESBOIS, 2016), em uma parceria que dava ares de casamento perfeito. A longevidade da companhia é outro marco importante na indústria cinematográfica no Brasil; ao todo, foram 21 anos de atividades que só cessaram em 1962 devido ao esgotamento gerado no público pela mesma formula imutável das chanchadas que já não condiziam com as mudanças sofridas pelo país nos últimos anos. A companhia Vera Cruz apareceu no cenário paulista com o ideal de fazer filmes inspirados na qualidade e tecnologia das películas europeias da época. Para tanto, dispôs de uma equipe de técnicos e diretores, em sua maioria, estrangeiros, que conflitavam com a sistemática de produção e consumo cinematográfico no Brasil. Todavia, a companhia foi a primeira a lançar filmes nacionais que desfrutariam de reconhecimento internacional vencendo os mais importantes festivais mundo a fora. O filme O Cangaceiro, de 1953 (vencedor da categoria Melhor filme de aventura, do Festival de Cannes), de Lima Barreto, é um bom exemplo do potencial da companhia porquanto ele trouxe, pela primeira vez, grande prestígio internacional para uma obra realizada em território brasileiro. Caiçara (1950), de Adolfo Celi, Tom Payne e John Waterhouse, anterior ao filme de Lima Barreto, conquistou em 1951 o prêmio de Melhor filme sul-americano no Festival de Punta del Este, no Uruguai. No Brasil, no entanto, o filme não foi bem recebido tanto pelo público quanto pela crítica que alegou haver um excesso de "folclore" na obra (DESBOIS, 2016). Em seus cinco anos de existência, breves como quase toda empreitada no cinema brasileiro, a Vera Cruz produziu dezoito longas-metragens que, no geral, conseguiram redefinir as técnicas e o modo de fazer filmes no país removendo a etiqueta de artesanal e barato dos filmes brasileiros no cenário internacional. Entretanto, os altos investimentos da companhia nas produções desencadearam uma crise interna e financeira na empresa levando-a à falência em 1954. Apesar de todos os esforços das companhias nacionais no sentido de estabelecerem uma indústria cinematográfica de qualidade e de sucesso no Brasil, os filmes estrangeiros, em especial os norte-americanos, impuseram primazia nas salas de cinema do país desde o fim da Primeira Guerra Mundial. O pioneirismo dos equipamentos, as técnicas mais avançadas, a narrativa linear de fácil acesso e os altos investimentos da indústria americana na propagação de suas obras fizeram com que as películas estrangeiras, legendadas ou dubladas, encontrassem nas salas de projeção brasileiras terreno fértil para criarem raízes significativas até hoje aqui encontradas. Entretanto, em determinados momentos da nossa história cinematográfica, alguns movimentos contestaram e se opuseram à importação de uma estética pré-moldada, como é o caso do Cinema Novo. O Cinema Novo surge no fim da década de 1950 em um Brasil que, cinematograficamente, importava e promovia superproduções norte- americanas metamorfoseando cinema estrangeiro em comédia musical a exemplo das chanchadas das décadas de 1940 a 1950. O Brasil desse período se inspirava culturalmente no modo de ser e consumir dos Estados Unidos construindo no circuito internacional a imagem de um país sem identidade nas produções cinematográficas. Para Pedro Simonard (2003), podemos dizer que:
O Brasil era visto como um país colonizado culturalmente e
esta característica era muito marcante com relação ao cinema. A ideia de uma cultura colonizada está intimamente subordinada às ideias desenvolvimentistas, então em voga. Em nome do desenvolvimento brasileiro, era preciso mudar uma atitude resignada para com a realidade do país. Esta conjuntura não poderia ser transformada enquanto não se alterasse a atitude das pessoas frente ao american way of life, que moldaria o imaginário da burguesia e das camadas médias da população brasileira e tinha no cinema americano um de seus mais importantes instrumentos de difusão (SIMONARD, 2003, n.p.).
Desta forma, o Cinema Novo buscava, a princípio, se distanciar da
colonização cultural norte americana e da estética das chanchadas, promovendo uma crítica às produções das companhias cinematográficas aqui consolidadas como a Vera Cruz e a Atlântica cinematográfica. Ele se inspira, até certo ponto, nas vanguardas europeias do pós-guerra como o Neorrealismo italiano e a Nouvelle vague da França, para levar a cabo o projeto de construir um cinema autoral e desprendido das amarras do mercado. Para tanto, os diretores do Cinema Novo recorreram a um fazer-cinema fora dos grandes estúdios da época, experimentando um baixo orçamento nas suas produções e, até certo ponto, um certo amadorismo nas implicações técnicas. Não obstante, é a partir do Cinema Novo que o cinema brasileiro ganha relevância no cenário internacional com filmes como Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, indicado em 1964 à Palme d'Or no festival de Cannes, Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, ganhador do prêmio de melhor filme em 1967 no Festival de Havana, e Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, que, em 1970, levou o prêmio de melhor filme no Festival Internacional de Mar del Plata; tais filmes desvelaram ao mundo o potencial criativo e realizador do cinema brasileiro. Tal movimento foi tão importante que, entre os anos de 1960 e 1972, o cinema novo ganhou 45 prêmios internacionais (CINEMA NOVO, 2020) e aproveitou sua visibilidade global para denunciar as mazelas enfrentadas por um país com profundas desigualdades sociais, onde fome, pobreza e analfabetismo imperavam, sobretudo, no sertão profundo do território nacional. Assim, em 1965, surgiu o manifesto Uma estética da fome, de Glauber Rocha, o mais importante libelo até então divulgado sobre o Cinema Novo e suas concepções estéticas. O texto foi apresentado em Gênova, na Itália, durante o Seminário Terceiro Mundo e Comunidade Social da V Resenha do Cinema Latino-Americano. Para o cinemanovista, é relevante entender que:
A fome latina [...], não é somente um sintoma alarmante: é o
nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida (ROCHA, 1965, n.p.).
Essa preocupação com a miséria existencial da população mais pobre e
a miséria moral da burguesia aparece constantemente nas narrativas e na estética das produções do movimento. Notamos facilmente a busca dos diretores pela denúncia da vida pobre de seus personagens ou a escassez da existência traduzida em cenários pouco ou nada decorados, além da simplicidade da mise-en-scène, sobretudo dos filmes que se consagraram no início do movimento buscando retratar de forma fiel a realidade brasileira. Foi também buscando descentralizar as produções, a visibilidade do eixo Rio-São Paulo, que alguns diretores do movimento usaram como cenário o interior brasileiro, ganhado destaque nas filmagens o interior do Nordeste, como os sertões de Alagoas e da Bahia, e cidades do interior de Minas Gerais. Muitas dessas filmagens quebraram o vínculo do cinema nacional com a lógica do cinema de estúdio, bem decupados e cheios de componentes técnicos tradicionais do fazer cinema. A preocupação em expor o real, descortinando a situação da sociedade brasileira fez com que os diretores optassem por atores não profissionais ou mesmo sujeitos reais de determinadas locações de filmagens para conseguirem o efeito desejado de veracidade. Salvo essas especificidades, poucas coisas dão unidade aos filmes do movimento uma vez que o pressuposto de autoria nos filmes empregava uma liberdade de expressão nas formas e conteúdo individualizando cada diretor. Ainda assim, um ponto notável nas narrativas do Cinema Novo é a tentativa de conscientizar seus espectadores sobre a situação de subdesenvolvimento encenada na vida real pelos mesmos, para que, assim, através de uma tomada de consciência, pudessem reagir à opressão imposta pela burguesia dominante. Entretanto, o diálogo entre o movimento e as massas nunca gerou muitos efeitos práticos, já que havia uma dificuldade por parte dos diretores de se fazerem entendidos pelo público. Jean-Claude Bernardet (2009), a propósito dessa questão, aponta que:
O público sempre foi preocupação do Cinema Novo, mas o
desinteresse do público pelo Cinema Novo e a consequência econômica desse desinteresse fizeram evoluir o tema a ponto de transformar o público numa palavra vazia de sentido ou num mito indefinido em nome do qual se aprova e desaprova qualquer coisa (BERNARDET, 2009, p. 219).
Por vezes os diretores do movimento esqueciam ou não se atentavam
ao perfil dos seus espectadores. Estes, tradicionalmente consumidores de filmes musicais e carnavalescos como as chanchadas, gênero oposto aos filmes "intelectuais" do Cinema Novo, não entendiam a lógica artística utilizada para retratar a realidade. Além disso, as dificuldades de distribuição das produções no mercado nacional associadas à má vontade das empresas quanto à divulgação/distribuição de filmes tidos como pouco comerciais para a época, contribuíam para o desinteresse da população pelas produções do movimento. Se não havia interesse em distribuir os filmes, logo, tal produção ficava cada vez mais inacessível à população, em geral. Os conflitos de comunicação entre autor e espectador, tão comuns nas produções artísticas, não foram diferentes no Cinema Novo, provocando, ao lado de outras causas, o fim precoce do movimento; contudo, seu legado de resistência e inovação foi firmemente transmitido às produções posteriores. Glauber Rocha, ainda em Uma estética da fome, reflete sobre um possível “germe” que teria sido deixado pelo movimento: Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta e por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração. A integração econômica e industrial do Cinema Novo depende da liberdade da América Latina (ROCHA, 1965, n.p.).
Alguns nomes se destacaram como expoentes de tal produção
cinematográfica no país. Seja por sua participação na formação do movimento, ou por sua estética inovadora, certos cineastas, como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Leon Hirszman, Carlos Diegues e David Neves assinaram seus nomes na história do Cinema Novo. Cada um, à sua maneira, buscou imprimir nas suas produções o lema uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, o qual era defendido inicialmente por Glauber Rocha e, posteriormente, tornou-se fala comum a todos. Um cineasta, em específico, acha-se no centro de interesse da presente pesquisa porquanto suas produções exerçam um diálogo significativo com outro campo artístico de nosso interesse: a literatura. Seu nome é Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988). Fluminense e físico por formação, Joaquim Pedro escolhe ainda na faculdade a linguagem cinematográfica para se expressar. Sua aproximação com o cinema começa nos cineclubes e na escrita crítica sobre cinema no jornal da faculdade (BENTES, 1996). Em 1957 trabalha pela primeira vez com cinema de forma profissional sendo escolhido como assistente de produção do filme Rebelião em Vila Rica, de Renato Santos Pereira e Geraldo Santos Pereira. Já em 1959 se lança como diretor com dois curtas-metragens: O Poeta do Castelo e O mestre de Apipucos. Em seguida, participa com o seu curta Couro de Gato (1962) do projeto Cinco Vezes Favela do CPC – Centro Popular Cultural no Rio de Janeiro. Seu primeiro longa-metragem viria ainda no mesmo ano com o documentário Garrincha, Alegria do Povo – filme que levou o famoso jogador botafoguense, astro entre as massas, para as telas. Em 1965, já com alguma experiência em montagem, o diretor filma no interior de Minas Gerais seu primeiro longa-metragem de ficção: O Padre e a Moça, adaptação do célebre poema de Carlos Drummond de Andrade “O Padre, a Moça”, de 1962. Poesia literária traduzida em poesia cinematográfica, o filme estabelece na filmografia do diretor uma relação ainda mais enraizada com a literatura. O Documentário Cinema Novo – Improvisiert und Zielbewusst [Improvisado e Engajado], de 1967, mostrava aos céticos as proporções do movimento e o quão longe ele havia chegado. Já, Brasília, Contradições de uma Cidade Nova, do mesmo ano, configura-se uma espécie de documentário-encomenda solicitado pela empresa de origem italiana Olivetti do Brasil. Convidado para dirigir o documentário em plena ditadura militar, Joaquim Pedro se envereda no caminho do documentário social e desvela por meio de suas lentes as contradições do progresso. Mas é em 1969, que o diretor estreia seu filme mais aclamado pelo público e pela crítica: Macunaíma. Adaptando o "herói sem nenhum caráter" do modernista Mário de Andrade, o cineasta faz mais que a transposição de uma obra literária para as telas, pois atualiza (de forma engajada) o romance de 1928 ao fazê-lo dialogar com o Brasil de 1969. Nos anos seguintes, Joaquim Pedro filma A linguagem da Persuasão (1970), Os Inconfidentes (1972), Guerra Conjugal (1975), Vereda Tropical (1977), O Aleijadinho (1978) e O Homem do Pau Brasil (1981), documentários, curtas e longas-metragens pós-Cinema Novo (Cinema Novo enquanto movimento), mas nutridos pelas significativas transformações que o movimento produziu no cinema brasileiro. O CINEMA DE JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE
Joaquim Pedro de Andrade ajudou a desenhar de forma muito pessoal
os contornos que formaram o Cinema Novo. Seu cinema poético, mutante, multifacetado, construiu e descontruiu a imagem do indivíduo brasileiro por diversas vezes, em diversas narrativas. Do sociólogo burguês ao poeta solitário, do jogador estrela ao padre angustiado, do herói sem caráter ao herói inconfidente, Joaquim Pedro capturou, através de suas lentes, os significados de existir enquanto brasileiro; ao afirmar "Só sei fazer cinema no Brasil, só sei falar de Brasil, só me interessa o Brasil" (apud PARANAGUÁ, 2014, p. 120) o cineasta deixou expresso seu compromisso em retratar as numerosas representações encarnadas em um único país. Para trazer às telas os diversos Brasis, recorreu o diretor, muitas vezes, à apropriação da literatura enquanto fonte de suas obras empregando profusas interpretações aos textos literários. No exercício de conciliar linguagem literária com linguagem cinematográfica, o cineasta percorreu o caminho da desconstrução de significados e renovação de sentidos em um trabalho de reelaboração crítica a exemplo de Macunaíma, seu filme mais famoso. Ao compararmos as obras de Mário de Andrade e a de Joaquim Pedro, notamos um destoamento alegórico em relação à antropofagia modernista que permeia ambas as narrativas. Segundo Ivan Marques (2019), para Joaquim Pedro, o agente da antropofagia não é mais o nativo (o brasileiro), mas o capitalismo internacional, representado no filme pelo empresário Venceslau Pietro Pietra. O cineasta atualiza o mito e vai além, desconstruindo o já descontruído personagem romanesco: É preciso ter “calma e munheca rija”, diria Mário, para entender tantas metamorfoses e variações interpretativas. Pois não se trata aqui de uma simples adaptação, passagem da literatura ao cinema. Do modernismo ao Cinema Novo, muita coisa mudou. Houve uma mudança de eixo, apontada por Heloisa Buarque de Hollanda no seu livro Macunaíma: da literatura ao cinema. Se a questão modernista era a independência cultural, diz Heloísa, o Cinema Novo, ou melhor, o contexto histórico dos anos 60 acrescentaria o social e o econômico como questões decisivas para um pensamento sobre o Brasil (BENTES, 1996, p. 65). Entre todos os cinemanovistas, Joaquim Pedro foi quem mais se relacionou com a literatura sobretudo com as obras modernistas admitindo sua aproximação com o movimento da semana de 22. Filho de Rodrigo Mello Franco de Andrade, que foi amigo próximo de várias figuras do movimento modernista e fundador do SPHAN –Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual IPHAN), Joaquim não renegou seus laços de berço com o movimento e a partir dele produziu seis de suas treze produções. Entre transposições, documentários e referências, suas obras relacionam-se com Manuel Bandeira (aliás, padrinho do diretor), Gilberto Freyre, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Pedro Nava e Oswald de Andrade no viés da construção de sentido da identidade brasileira ou melhor, das identidades, assim como idealizou o movimento da década de 1920. Mas Joaquim Pedro não caminha na via da simples transposição, passagem de uma mídia a outra. Seu trabalho intelectual na construção de sentido entre uma obra literária e uma obra cinematográfica revela seu complexo procedimento estético e crítico à medida em que seus filmes vão tomando forma com montagens atonais e intelectuais, planos abertos e fechados, enquadramentos que beiram o poético e narrativas delineadas a partir de movimentos sutis entre câmera objetiva e subjetiva. Tudo é intencional no cinema do diretor, até filmar o “infilmável”, adaptar o inadaptável, como apontou Airton Paschoa (2004), já que suas escolhas literárias fogem dos romances mais propensos à narrativa na tela. Joaquim "problematiza textos em si já altamente problemáticos a qualquer empresa cinematográfica" (PASCHOA, 2004, p. 147), como um poema ou um livro com a complexidade de Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, por exemplo. Desse exercício de "quase impossibilidade", o diretor fez surgir, em 1981, O homem do Pau-Brasil, filme hermético, junção de biografia com obra do escritor modernista Oswald de Andrade e fruto de muita pesquisa e revisão bibliográfica sobre o ícone modernista. O filme destoa de qualquer obra já produzida até então no cinema brasileiro a começar pelo emprego de dois atores, Flávio Galvão e Ítala Nandi, no papel do protagonista, neste caso, Oswald. Importante ressaltar que, para levar a ideia a cabo, Joaquim arriscou e perdeu um de seus produtores, que abandonou o projeto levando cerca de trinta por cento do investimento da produção, além de ganhar uma enxurrada de críticas partilhadas entre conservadores e liberais, amantes e críticos do escritor que tiveram dificuldades em apreender as dimensões do projeto do cineasta. Seja como for, de certo modo, Joaquim não ajudou muito na elaboração da construção de sentido do filme se levarmos em conta a eleição de uma montagem descontínua na obra, de cenas soltas e de uma narrativa irregular. O filme era oswaldiano em excesso e não salvou Oswald da incompreensão uma vez mais. Outra propensão significativa do cinema de Joaquim Pedro constitui-se a tentativa de apreensão da identidade nacional por meio de documentários. Nestes, figuras complexas do nosso imaginário foram interpretadas e ressignificadas através das lentes do diretor por meio de trabalhos estéticos singulares. O Mestre dos Apipucos, de 1959, aponta um certo senso irônico do cinemanovista ao filmar o "cotidiano" do sociólogo Gilberto Freyre em sua casa-grande em Apipucos. O Freyre de Joaquim Pedro desfruta enquanto sujeito-personagem, dos privilégios de uma sociedade patriarcal e burguesa, de uma mulher serva e de serviçais prestativos. Entretanto, tudo no sociólogo soa dissimulado, mecânico, tudo muito próprio de uma classe favorecida e também rasa, revelando uma certa comicidade na obra. Já em O Poeta do Castelo, do mesmo ano, Manuel Bandeira é quem permite ter seu cotidiano filmado pelo diretor. Com uma narrativa muito mais poética, Joaquim Pedro intercala cenas do modesto dia a dia do escritor com trechos de seus poemas, compondo na tela uma obra onde literatura e cinema se fundem gerando uma linguagem ímpar no ecrã. Outro documentário relevante na cinematografia do diretor é Garrincha, Alegria do povo, de 1962, no qual o jogador botafoguense Mané Garrincha figura como o herói da narrativa. Para documentar a vida do jogador, Joaquim empregou certas técnicas do cinema direto mesclando imagens de arquivo sobre a atuação de Garrincha nos campos e cenas de seu ordinário cotidiano enquanto pai de família e morador do Rio de Janeiro. Vale ressaltar que foi esse o primeiro documentário sobre um jogador no país, impactando vigorosamente o espectador brasileiro da época. Joaquim Pedro fez, no entanto, um trabalho muito mais profundo com a figura do jogador do que simplesmente mostrar sua genialidade com os dribles; o Garrincha que aparece nas telas é humano, tem ao lado das filhas e dos amigos uma existência comum. O herói brasileiro era do povo, era o próprio povo. Outro ponto importante do documentário é a elaboração da ideia de paixão do brasileiro pelo futebol; Joaquim argumenta por meio de imagens dos torcedores nos estádios a concepção do futebol como símbolo cultural. Em síntese, não é o futebol o objeto de análise do filme e sim o efeito dele sobre o povo. Brasília, contradições de uma cidade nova (1967) é mais um documentário que testifica o olhar social do diretor através de uma performance sensível por trás das câmeras, marca estética de Joaquim Pedro de Andrade. Brasília aparece no documentário, então com pouco mais de um ano de inauguração, precocemente dividida e igualando-se às demais capitais do país. O sonho de modernidade, de superação dos empecilhos socioeconômicos que perseguiam as atrasadas metrópoles, mostrou-se utópico em meio aos traçados arquitetônicos de Oscar Niemeyer. A apresentação da cidade se dá através da narração do poeta Ferreira Gullar, há entrevistas com imigrantes, imagens do Palácio do Planalto e casas de madeira construídas na zona periférica, Maria Bethânia cantando a canção "Viramundo", de Gilberto Gil e Capinan – isto é: várias perspectivas que ajudam a formar a concepção de contradição da qual o diretor tanto gostava. Brasília, por Joaquim Pedro, era a cidade nova que já nasceu nos moldes das velhas, apesar dos esforços. Por meio de curtas e longas, documentários e muito trabalho bibliográfico, Joaquim Pedro de Andrade foi uma das mentes criadoras e definidoras do Cinema Novo e do Brasil enquanto "projeto estético-literário- cinematográfico-existencial" (BENTES, 1996, p. 130) que impulsionou toda uma geração. Entretanto, ao explanar sobre as produções do diretor, percebemos que o mesmo não estagnou na prerrogativa de cinema "instrumento" do movimento de 1960. Podemos afirmar enfim, que, Joaquim Pedro se permitiu experimentar (nas últimas produções, sobretudo) o cinema enquanto "objetivo", desprendido de tudo e de todos. O desprendimento, por certo, pode ser visto como uma das marcas principais do diretor enquanto artista. REFERÊNCIAS
BENTES, Ivana. Joaquim Pedro de Andrade: a revolução intimista. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 1996.
BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: Proposta para uma história. 2.
ed São Paulo: Companhia das Letras, 2009. CINEMA NOVO. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo14333/cinema-novo. Acesso em: 05 de maio de 2022. Verbete da Enciclopédia.
CINÉDIA. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São
Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/instituicao637286/cinedia. Acesso em: 24 de junho de 2022. Verbete da Enciclopédia.
DEBOIS, Laurent. A odisséia do cinema brasileiro. Da Atlântida à Cidade de
Deus. São Paulo: Companhia das letras, 2016.
FREIRE, Rafael de Luna. Acabaram-se os otários: compreendendo o primeiro
longa-metragem sonoro brasileiro. Rebeca – Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. v.2, n. 3, 2003, p. 104-128.
KREUTZ, Katia. A história do Cinema Brasileiro. Academia Internacional de
MARQUES, Ivan Francisco. Joaquim Pedro de Andrade e o modernismo.
INTINERÁRIOS – Revista de literatura, Araraquara, n. 49, jul/dez. 2019, p.115- 133.
PARANAGUÁ, P. A. A invenção do cinema brasileiro: Modernismo em três
tempos. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014.
PASCHOA, Airton. A estreia de Joaquim Pedro: gigante adormecido e bandeira
popular. Revista USP, n. 63, 2004, p. 144-156.
ROCHA, Glauber. Uma estética da fome. Revista Civilização Brasileira, v. 3,
1965, p. 165-170.
SIMONARD, Pedro. Origens do Cinema Novo: A Cultura Política dos anos 50
até 1964. Revista de Ciência Política Achegas.net. n. 9, julho de 2003. Disponível em: http://www.achegas.net/numero/nove/pedro_simonard_09.htm. Acesso em: 18 de maio de 2022.