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JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE E O CINEMA NOVO

A relação entre o Brasil e o cinema data do final do século XIX, no


contexto das primeiras exibições vinculadas ao cinematógrafo 1. De acordo com
Kreutz (2019), foi entre 1907 e 1910 que se deu a estruturação de um mercado
exibidor no país, sendo que, naquela época, a falta de eletricidade dificultava a
implantação de salas de cinema. A autora ainda afirma que a maior parte dos
filmes exibidos em solo nacional era importada de países da Europa, já que os
primeiros filmes gravados aqui foram o curta-metragem Os Estranguladores
(1908), de Francisco Marzullo e Antônio Leal (primeira película brasileira de
ficção) e o longa O Crime dos Banhados (1914), de Francisco Santos.
No fim da década de 1920 e início de 1930 o país se depara com a
chegada do cinema sonoro nas salas de cinema de São Paulo e do Rio de
Janeiro, especificamente com a produção nacional Acabaram-se os otários
(1929), de Luís de Barros. A obra, pioneira e inovadora por sincronizar fitas
com diálogos já gravados e imagens, atraiu um considerável número de
espectadores que buscavam a novidade do som no filme e o entretenimento da
comédia, gênero da obra (FREIRE, 2003). Outro importante acontecimento na
mesma década foi a criação da Cinédia, primeiro grande estúdio do país
(KREUTZ, 2019) que revezava suas produções entre comédias musicais,
antecessoras das chanchadas e dramas populares. É valioso destacar a
relevância do estúdio no país, visto que era a primeira vez que se tentava
organizar uma indústria cinematográfica no Brasil e que, para tanto, buscou-se
fora os mais modernos equipamentos de cinema do período (CINÉDIA, 2021).
A Cinédia destaca-se também por levar astros da rádio para o cinema, como a
cantora e atriz Carmem Miranda (1909-1955). O diretor mineiro Humberto
Mauro (1897-1983) é outra importante figura da companhia que produziu no
estúdio obras singulares do cinema nacional como Ganga Bruta (1933).
Outras duas companhias cinematográficas essenciais para entendermos
a história do cinema do nosso país são: a companhia Atlântida cinematográfica,
nascida em 1941, e a companhia Vera Cruz, fundada em 1949. A primeira foi a
companhia que mais desfrutou de reconhecimento nacional por meio de uma
receita de sucesso que transformava qualquer enredo em carnaval: as famosas
1
dispositivo capaz de obter e visualizar impressões cronofotográficas.
chanchadas eram o carro-chefe da Atlândida. Com tramas fáceis, de registro
popular, maniqueístas e superapelativas (DESBOIS, 2016), as chanchadas não
demandavam uma complexa estrutura de produção e eram consumidas
facilmente em todos os lugares em que estreavam. Dispondo ainda de dois
grandes ícones da época, Oscarito (1906-1970) e Grande Otelo (1915-1993), a
companhia lançou diversas comédias estreladas pela dupla que levou milhares
de espectadores às salas de cinema. Os dois personificavam de maneira única,
na personalidade e na cor, dois Brasis, um branco e outro negro (DESBOIS,
2016), em uma parceria que dava ares de casamento perfeito. A longevidade
da companhia é outro marco importante na indústria cinematográfica no Brasil;
ao todo, foram 21 anos de atividades que só cessaram em 1962 devido ao
esgotamento gerado no público pela mesma formula imutável das chanchadas
que já não condiziam com as mudanças sofridas pelo país nos últimos anos.
A companhia Vera Cruz apareceu no cenário paulista com o ideal de
fazer filmes inspirados na qualidade e tecnologia das películas europeias da
época. Para tanto, dispôs de uma equipe de técnicos e diretores, em sua
maioria, estrangeiros, que conflitavam com a sistemática de produção e
consumo cinematográfico no Brasil. Todavia, a companhia foi a primeira a
lançar filmes nacionais que desfrutariam de reconhecimento internacional
vencendo os mais importantes festivais mundo a fora. O filme O Cangaceiro,
de 1953 (vencedor da categoria Melhor filme de aventura, do Festival de
Cannes), de Lima Barreto, é um bom exemplo do potencial da companhia
porquanto ele trouxe, pela primeira vez, grande prestígio internacional para
uma obra realizada em território brasileiro. Caiçara (1950), de Adolfo Celi, Tom
Payne e John Waterhouse, anterior ao filme de Lima Barreto, conquistou em
1951 o prêmio de Melhor filme sul-americano no Festival de Punta del Este, no
Uruguai. No Brasil, no entanto, o filme não foi bem recebido tanto pelo público
quanto pela crítica que alegou haver um excesso de "folclore" na obra
(DESBOIS, 2016).
Em seus cinco anos de existência, breves como quase toda empreitada
no cinema brasileiro, a Vera Cruz produziu dezoito longas-metragens que, no
geral, conseguiram redefinir as técnicas e o modo de fazer filmes no país
removendo a etiqueta de artesanal e barato dos filmes brasileiros no cenário
internacional. Entretanto, os altos investimentos da companhia nas produções
desencadearam uma crise interna e financeira na empresa levando-a à falência
em 1954.
Apesar de todos os esforços das companhias nacionais no sentido de
estabelecerem uma indústria cinematográfica de qualidade e de sucesso no
Brasil, os filmes estrangeiros, em especial os norte-americanos, impuseram
primazia nas salas de cinema do país desde o fim da Primeira Guerra Mundial.
O pioneirismo dos equipamentos, as técnicas mais avançadas, a narrativa
linear de fácil acesso e os altos investimentos da indústria americana na
propagação de suas obras fizeram com que as películas estrangeiras,
legendadas ou dubladas, encontrassem nas salas de projeção brasileiras
terreno fértil para criarem raízes significativas até hoje aqui encontradas.
Entretanto, em determinados momentos da nossa história cinematográfica,
alguns movimentos contestaram e se opuseram à importação de uma estética
pré-moldada, como é o caso do Cinema Novo.
O Cinema Novo surge no fim da década de 1950 em um Brasil que,
cinematograficamente, importava e promovia superproduções norte-
americanas metamorfoseando cinema estrangeiro em comédia musical a
exemplo das chanchadas das décadas de 1940 a 1950. O Brasil desse período
se inspirava culturalmente no modo de ser e consumir dos Estados Unidos
construindo no circuito internacional a imagem de um país sem identidade nas
produções cinematográficas. Para Pedro Simonard (2003), podemos dizer que:

O Brasil era visto como um país colonizado culturalmente e


esta característica era muito marcante com relação ao cinema.
A ideia de uma cultura colonizada está intimamente
subordinada às ideias desenvolvimentistas, então em voga. Em
nome do desenvolvimento brasileiro, era preciso mudar uma
atitude resignada para com a realidade do país. Esta
conjuntura não poderia ser transformada enquanto não se
alterasse a atitude das pessoas frente ao american way of life,
que moldaria o imaginário da burguesia e das camadas médias
da população brasileira e tinha no cinema americano um de
seus mais importantes instrumentos de difusão (SIMONARD,
2003, n.p.).

Desta forma, o Cinema Novo buscava, a princípio, se distanciar da


colonização cultural norte americana e da estética das chanchadas,
promovendo uma crítica às produções das companhias cinematográficas aqui
consolidadas como a Vera Cruz e a Atlântica cinematográfica. Ele se inspira,
até certo ponto, nas vanguardas europeias do pós-guerra como o Neorrealismo
italiano e a Nouvelle vague da França, para levar a cabo o projeto de construir
um cinema autoral e desprendido das amarras do mercado. Para tanto, os
diretores do Cinema Novo recorreram a um fazer-cinema fora dos grandes
estúdios da época, experimentando um baixo orçamento nas suas produções
e, até certo ponto, um certo amadorismo nas implicações técnicas.
Não obstante, é a partir do Cinema Novo que o cinema brasileiro ganha
relevância no cenário internacional com filmes como Vidas Secas (1963), de
Nelson Pereira dos Santos, indicado em 1964 à Palme d'Or no festival de
Cannes, Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, ganhador do prêmio de
melhor filme em 1967 no Festival de Havana, e Macunaíma (1969), de
Joaquim Pedro de Andrade, que, em 1970, levou o prêmio de melhor filme no
Festival Internacional de Mar del Plata; tais filmes desvelaram ao mundo o
potencial criativo e realizador do cinema brasileiro.
Tal movimento foi tão importante que, entre os anos de 1960 e 1972, o
cinema novo ganhou 45 prêmios internacionais (CINEMA NOVO, 2020) e
aproveitou sua visibilidade global para denunciar as mazelas enfrentadas por
um país com profundas desigualdades sociais, onde fome, pobreza e
analfabetismo imperavam, sobretudo, no sertão profundo do território nacional.
Assim, em 1965, surgiu o manifesto Uma estética da fome, de Glauber Rocha,
o mais importante libelo até então divulgado sobre o Cinema Novo e suas
concepções estéticas. O texto foi apresentado em Gênova, na Itália, durante o
Seminário Terceiro Mundo e Comunidade Social da V Resenha do Cinema
Latino-Americano. Para o cinemanovista, é relevante entender que:

A fome latina [...], não é somente um sintoma alarmante: é o


nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica
originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa
originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta
fome, sendo sentida, não é compreendida (ROCHA, 1965,
n.p.).

Essa preocupação com a miséria existencial da população mais pobre e


a miséria moral da burguesia aparece constantemente nas narrativas e na
estética das produções do movimento. Notamos facilmente a busca dos
diretores pela denúncia da vida pobre de seus personagens ou a escassez da
existência traduzida em cenários pouco ou nada decorados, além da
simplicidade da mise-en-scène, sobretudo dos filmes que se consagraram no
início do movimento buscando retratar de forma fiel a realidade brasileira. Foi
também buscando descentralizar as produções, a visibilidade do eixo Rio-São
Paulo, que alguns diretores do movimento usaram como cenário o interior
brasileiro, ganhado destaque nas filmagens o interior do Nordeste, como os
sertões de Alagoas e da Bahia, e cidades do interior de Minas Gerais.
Muitas dessas filmagens quebraram o vínculo do cinema nacional com a
lógica do cinema de estúdio, bem decupados e cheios de componentes
técnicos tradicionais do fazer cinema. A preocupação em expor o real,
descortinando a situação da sociedade brasileira fez com que os diretores
optassem por atores não profissionais ou mesmo sujeitos reais de
determinadas locações de filmagens para conseguirem o efeito desejado de
veracidade. Salvo essas especificidades, poucas coisas dão unidade aos filmes
do movimento uma vez que o pressuposto de autoria nos filmes empregava
uma liberdade de expressão nas formas e conteúdo individualizando cada
diretor.
Ainda assim, um ponto notável nas narrativas do Cinema Novo é a
tentativa de conscientizar seus espectadores sobre a situação de
subdesenvolvimento encenada na vida real pelos mesmos, para que, assim,
através de uma tomada de consciência, pudessem reagir à opressão imposta
pela burguesia dominante. Entretanto, o diálogo entre o movimento e as
massas nunca gerou muitos efeitos práticos, já que havia uma dificuldade por
parte dos diretores de se fazerem entendidos pelo público. Jean-Claude
Bernardet (2009), a propósito dessa questão, aponta que:

O público sempre foi preocupação do Cinema Novo, mas o


desinteresse do público pelo Cinema Novo e a consequência
econômica desse desinteresse fizeram evoluir o tema a ponto
de transformar o público numa palavra vazia de sentido ou num
mito indefinido em nome do qual se aprova e desaprova
qualquer coisa (BERNARDET, 2009, p. 219).

Por vezes os diretores do movimento esqueciam ou não se atentavam


ao perfil dos seus espectadores. Estes, tradicionalmente consumidores de
filmes musicais e carnavalescos como as chanchadas, gênero oposto aos
filmes "intelectuais" do Cinema Novo, não entendiam a lógica artística utilizada
para retratar a realidade. Além disso, as dificuldades de distribuição das
produções no mercado nacional associadas à má vontade das empresas
quanto à divulgação/distribuição de filmes tidos como pouco comerciais para a
época, contribuíam para o desinteresse da população pelas produções do
movimento. Se não havia interesse em distribuir os filmes, logo, tal produção
ficava cada vez mais inacessível à população, em geral.
Os conflitos de comunicação entre autor e espectador, tão comuns nas
produções artísticas, não foram diferentes no Cinema Novo, provocando, ao
lado de outras causas, o fim precoce do movimento; contudo, seu legado de
resistência e inovação foi firmemente transmitido às produções posteriores.
Glauber Rocha, ainda em Uma estética da fome, reflete sobre um possível
“germe” que teria sido deixado pelo movimento:
Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer
procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço
das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do
Cinema Novo. A definição é esta e por esta definição o Cinema
Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do
Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração. A
integração econômica e industrial do Cinema Novo depende da
liberdade da América Latina (ROCHA, 1965, n.p.).

Alguns nomes se destacaram como expoentes de tal produção


cinematográfica no país. Seja por sua participação na formação do movimento,
ou por sua estética inovadora, certos cineastas, como Glauber Rocha, Joaquim
Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Leon Hirszman, Carlos Diegues e
David Neves assinaram seus nomes na história do Cinema Novo. Cada um, à
sua maneira, buscou imprimir nas suas produções o lema uma câmera na mão
e uma ideia na cabeça, o qual era defendido inicialmente por Glauber Rocha e,
posteriormente, tornou-se fala comum a todos.
Um cineasta, em específico, acha-se no centro de interesse da presente
pesquisa porquanto suas produções exerçam um diálogo significativo com
outro campo artístico de nosso interesse: a literatura. Seu nome é Joaquim
Pedro de Andrade (1932-1988). Fluminense e físico por formação, Joaquim
Pedro escolhe ainda na faculdade a linguagem cinematográfica para se
expressar. Sua aproximação com o cinema começa nos cineclubes e na escrita
crítica sobre cinema no jornal da faculdade (BENTES, 1996).
Em 1957 trabalha pela primeira vez com cinema de forma profissional
sendo escolhido como assistente de produção do filme Rebelião em Vila Rica,
de Renato Santos Pereira e Geraldo Santos Pereira. Já em 1959 se lança
como diretor com dois curtas-metragens: O Poeta do Castelo e O mestre de
Apipucos. Em seguida, participa com o seu curta Couro de Gato (1962) do
projeto Cinco Vezes Favela do CPC – Centro Popular Cultural no Rio de
Janeiro. Seu primeiro longa-metragem viria ainda no mesmo ano com o
documentário Garrincha, Alegria do Povo – filme que levou o famoso jogador
botafoguense, astro entre as massas, para as telas.
Em 1965, já com alguma experiência em montagem, o diretor filma no
interior de Minas Gerais seu primeiro longa-metragem de ficção: O Padre e a
Moça, adaptação do célebre poema de Carlos Drummond de Andrade “O
Padre, a Moça”, de 1962. Poesia literária traduzida em poesia cinematográfica,
o filme estabelece na filmografia do diretor uma relação ainda mais enraizada
com a literatura.
O Documentário Cinema Novo – Improvisiert und Zielbewusst
[Improvisado e Engajado], de 1967, mostrava aos céticos as proporções do
movimento e o quão longe ele havia chegado. Já, Brasília, Contradições de
uma Cidade Nova, do mesmo ano, configura-se uma espécie de
documentário-encomenda solicitado pela empresa de origem italiana Olivetti do
Brasil. Convidado para dirigir o documentário em plena ditadura militar,
Joaquim Pedro se envereda no caminho do documentário social e desvela por
meio de suas lentes as contradições do progresso. Mas é em 1969, que o
diretor estreia seu filme mais aclamado pelo público e pela crítica: Macunaíma.
Adaptando o "herói sem nenhum caráter" do modernista Mário de Andrade, o
cineasta faz mais que a transposição de uma obra literária para as telas, pois
atualiza (de forma engajada) o romance de 1928 ao fazê-lo dialogar com o
Brasil de 1969.
Nos anos seguintes, Joaquim Pedro filma A linguagem da Persuasão
(1970), Os Inconfidentes (1972), Guerra Conjugal (1975), Vereda Tropical
(1977), O Aleijadinho (1978) e O Homem do Pau Brasil (1981),
documentários, curtas e longas-metragens pós-Cinema Novo (Cinema Novo
enquanto movimento), mas nutridos pelas significativas transformações que o
movimento produziu no cinema brasileiro.
O CINEMA DE JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE

Joaquim Pedro de Andrade ajudou a desenhar de forma muito pessoal


os contornos que formaram o Cinema Novo. Seu cinema poético, mutante,
multifacetado, construiu e descontruiu a imagem do indivíduo brasileiro por
diversas vezes, em diversas narrativas. Do sociólogo burguês ao poeta
solitário, do jogador estrela ao padre angustiado, do herói sem caráter ao herói
inconfidente, Joaquim Pedro capturou, através de suas lentes, os significados
de existir enquanto brasileiro; ao afirmar "Só sei fazer cinema no Brasil, só sei
falar de Brasil, só me interessa o Brasil" (apud PARANAGUÁ, 2014, p. 120) o
cineasta deixou expresso seu compromisso em retratar as numerosas
representações encarnadas em um único país.
Para trazer às telas os diversos Brasis, recorreu o diretor, muitas vezes,
à apropriação da literatura enquanto fonte de suas obras empregando profusas
interpretações aos textos literários. No exercício de conciliar linguagem literária
com linguagem cinematográfica, o cineasta percorreu o caminho da
desconstrução de significados e renovação de sentidos em um trabalho de
reelaboração crítica a exemplo de Macunaíma, seu filme mais famoso. Ao
compararmos as obras de Mário de Andrade e a de Joaquim Pedro, notamos
um destoamento alegórico em relação à antropofagia modernista que permeia
ambas as narrativas. Segundo Ivan Marques (2019), para Joaquim Pedro, o
agente da antropofagia não é mais o nativo (o brasileiro), mas o capitalismo
internacional, representado no filme pelo empresário Venceslau Pietro Pietra. O
cineasta atualiza o mito e vai além, desconstruindo o já descontruído
personagem romanesco:
É preciso ter “calma e munheca rija”, diria Mário, para entender
tantas metamorfoses e variações interpretativas. Pois não se
trata aqui de uma simples adaptação, passagem da literatura
ao cinema. Do modernismo ao Cinema Novo, muita coisa
mudou. Houve uma mudança de eixo, apontada por Heloisa
Buarque de Hollanda no seu livro Macunaíma: da literatura ao
cinema. Se a questão modernista era a independência cultural,
diz Heloísa, o Cinema Novo, ou melhor, o contexto histórico
dos anos 60 acrescentaria o social e o econômico como
questões decisivas para um pensamento sobre o Brasil
(BENTES, 1996, p. 65).
Entre todos os cinemanovistas, Joaquim Pedro foi quem mais se
relacionou com a literatura sobretudo com as obras modernistas admitindo sua
aproximação com o movimento da semana de 22. Filho de Rodrigo Mello
Franco de Andrade, que foi amigo próximo de várias figuras do movimento
modernista e fundador do SPHAN –Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (atual IPHAN), Joaquim não renegou seus laços de berço com o
movimento e a partir dele produziu seis de suas treze produções. Entre
transposições, documentários e referências, suas obras relacionam-se com
Manuel Bandeira (aliás, padrinho do diretor), Gilberto Freyre, Carlos Drummond
de Andrade, Mário de Andrade, Pedro Nava e Oswald de Andrade no viés da
construção de sentido da identidade brasileira ou melhor, das identidades,
assim como idealizou o movimento da década de 1920.
Mas Joaquim Pedro não caminha na via da simples transposição,
passagem de uma mídia a outra. Seu trabalho intelectual na construção de
sentido entre uma obra literária e uma obra cinematográfica revela seu
complexo procedimento estético e crítico à medida em que seus filmes vão
tomando forma com montagens atonais e intelectuais, planos abertos e
fechados, enquadramentos que beiram o poético e narrativas delineadas a
partir de movimentos sutis entre câmera objetiva e subjetiva.
Tudo é intencional no cinema do diretor, até filmar o “infilmável”, adaptar
o inadaptável, como apontou Airton Paschoa (2004), já que suas escolhas
literárias fogem dos romances mais propensos à narrativa na tela. Joaquim
"problematiza textos em si já altamente problemáticos a qualquer empresa
cinematográfica" (PASCHOA, 2004, p. 147), como um poema ou um livro com
a complexidade de Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, por exemplo.
Desse exercício de "quase impossibilidade", o diretor fez surgir, em
1981, O homem do Pau-Brasil, filme hermético, junção de biografia com obra
do escritor modernista Oswald de Andrade e fruto de muita pesquisa e revisão
bibliográfica sobre o ícone modernista. O filme destoa de qualquer obra já
produzida até então no cinema brasileiro a começar pelo emprego de dois
atores, Flávio Galvão e Ítala Nandi, no papel do protagonista, neste caso,
Oswald.
Importante ressaltar que, para levar a ideia a cabo, Joaquim arriscou e
perdeu um de seus produtores, que abandonou o projeto levando cerca de
trinta por cento do investimento da produção, além de ganhar uma enxurrada
de críticas partilhadas entre conservadores e liberais, amantes e críticos do
escritor que tiveram dificuldades em apreender as dimensões do projeto do
cineasta. Seja como for, de certo modo, Joaquim não ajudou muito na
elaboração da construção de sentido do filme se levarmos em conta a eleição
de uma montagem descontínua na obra, de cenas soltas e de uma narrativa
irregular. O filme era oswaldiano em excesso e não salvou Oswald da
incompreensão uma vez mais.
Outra propensão significativa do cinema de Joaquim Pedro constitui-se a
tentativa de apreensão da identidade nacional por meio de documentários.
Nestes, figuras complexas do nosso imaginário foram interpretadas e
ressignificadas através das lentes do diretor por meio de trabalhos estéticos
singulares. O Mestre dos Apipucos, de 1959, aponta um certo senso irônico
do cinemanovista ao filmar o "cotidiano" do sociólogo Gilberto Freyre em sua
casa-grande em Apipucos. O Freyre de Joaquim Pedro desfruta enquanto
sujeito-personagem, dos privilégios de uma sociedade patriarcal e burguesa,
de uma mulher serva e de serviçais prestativos. Entretanto, tudo no sociólogo
soa dissimulado, mecânico, tudo muito próprio de uma classe favorecida e
também rasa, revelando uma certa comicidade na obra.
Já em O Poeta do Castelo, do mesmo ano, Manuel Bandeira é quem
permite ter seu cotidiano filmado pelo diretor. Com uma narrativa muito mais
poética, Joaquim Pedro intercala cenas do modesto dia a dia do escritor com
trechos de seus poemas, compondo na tela uma obra onde literatura e cinema
se fundem gerando uma linguagem ímpar no ecrã.
Outro documentário relevante na cinematografia do diretor é Garrincha,
Alegria do povo, de 1962, no qual o jogador botafoguense Mané Garrincha
figura como o herói da narrativa. Para documentar a vida do jogador, Joaquim
empregou certas técnicas do cinema direto mesclando imagens de arquivo
sobre a atuação de Garrincha nos campos e cenas de seu ordinário cotidiano
enquanto pai de família e morador do Rio de Janeiro.
Vale ressaltar que foi esse o primeiro documentário sobre um jogador no
país, impactando vigorosamente o espectador brasileiro da época. Joaquim
Pedro fez, no entanto, um trabalho muito mais profundo com a figura do
jogador do que simplesmente mostrar sua genialidade com os dribles; o
Garrincha que aparece nas telas é humano, tem ao lado das filhas e dos
amigos uma existência comum. O herói brasileiro era do povo, era o próprio
povo. Outro ponto importante do documentário é a elaboração da ideia de
paixão do brasileiro pelo futebol; Joaquim argumenta por meio de imagens dos
torcedores nos estádios a concepção do futebol como símbolo cultural. Em
síntese, não é o futebol o objeto de análise do filme e sim o efeito dele sobre o
povo.
Brasília, contradições de uma cidade nova (1967) é mais um
documentário que testifica o olhar social do diretor através de uma performance
sensível por trás das câmeras, marca estética de Joaquim Pedro de Andrade.
Brasília aparece no documentário, então com pouco mais de um ano de
inauguração, precocemente dividida e igualando-se às demais capitais do país.
O sonho de modernidade, de superação dos empecilhos socioeconômicos que
perseguiam as atrasadas metrópoles, mostrou-se utópico em meio aos
traçados arquitetônicos de Oscar Niemeyer.
A apresentação da cidade se dá através da narração do poeta Ferreira
Gullar, há entrevistas com imigrantes, imagens do Palácio do Planalto e casas
de madeira construídas na zona periférica, Maria Bethânia cantando a canção
"Viramundo", de Gilberto Gil e Capinan – isto é: várias perspectivas que
ajudam a formar a concepção de contradição da qual o diretor tanto gostava.
Brasília, por Joaquim Pedro, era a cidade nova que já nasceu nos moldes das
velhas, apesar dos esforços.
Por meio de curtas e longas, documentários e muito trabalho
bibliográfico, Joaquim Pedro de Andrade foi uma das mentes criadoras e
definidoras do Cinema Novo e do Brasil enquanto "projeto estético-literário-
cinematográfico-existencial" (BENTES, 1996, p. 130) que impulsionou toda
uma geração. Entretanto, ao explanar sobre as produções do diretor,
percebemos que o mesmo não estagnou na prerrogativa de cinema
"instrumento" do movimento de 1960. Podemos afirmar enfim, que, Joaquim
Pedro se permitiu experimentar (nas últimas produções, sobretudo) o cinema
enquanto "objetivo", desprendido de tudo e de todos. O desprendimento, por
certo, pode ser visto como uma das marcas principais do diretor enquanto
artista.
REFERÊNCIAS

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