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A história do cinema brasileiro sempre foi turbulenta, com altos e baixos artísticos e
econômicos. O cinegrafista italiano Affonso Segretto, portando o cinematógrafo dos Irmãos
Lumière, filmou, em 1898, as primeiras imagens de que se têm conhecimento no cinema
brasileiro: a chegada do navio francês Brésil à Baía de Guanabara2. O início da filmografia
nacional como modelo de entretenimento aconteceu a partir de 1912, quando os primeiros
filmes ficcionais começaram a ser produzidos, sendo a maior parte deles adaptações de
clássicos da literatura, principalmente das obras românticas de José de Alencar, como: A
Viuvinha ( 1914), Lucíola (1916) e várias versões de O Guarani (1908, 1911, 1916, 1920 e
1926). No entanto, não demorou até a colonização norte-americana atrasar o
desenvolvimento da produção artística e mercadológica do cinema no Brasil, quando em
1916, a Paramount, vendo nele enorme potencial econômico, abriu uma filial em território
brasileiro. Junto a isso, as revistas populares, difundindo propaganda massificada do star
system hollywoodiano, deflagraram um processo de alienação da mentalidade do público
local, que passou a ter preferência pelas fitas estrangeiras. A situação se agravou durante a
primeira fase do governo de Getúlio Vargas, quando foram feitos acordos comerciais de
isenção fiscal aos filmes americanos.
Segundo o crítico e teórico de cinema Jean-Claude Bernardet (1978, p. 21): “Não é possível
entender qualquer coisa que seja no cinema brasileiro, se não se tiver sempre em mente a
presença maciça e agressiva, no mercado interno, do filme estrangeiro [...] Essa presença não
só limitou as possibilidades de afirmação de uma cinematografia nacional, como condicionou
em grande parte suas formas de afirmação.” 3 Ou seja, desde sua origem, a produção
cinematográfica do Brasil (e da maioria dos países do Terceiro Mundo) oscila conforme a
política local e a opinião pública dos próprios espectadores (que ora se apaixonam pelo
cinema nacional, ora o rejeitam em favorecimento das produções estrangeiras).
Marcado por muitas contradições políticas em várias esferas, o Governo Vargas, mesmo que
tenha contribuído com a perpetuação da colonização cultural norte-americana no Brasil, em
1932 criou a primeira lei protecionista envolvendo o cinema brasileiro — a que chamou de
“complemento nacional”. Esta lei determinava que todo longa-metragem exibido no país
deveria ser precedido, na sessão, por um cinejornal de propaganda do governo e por um
curta-metragem brasileiro.
Após esse primeiro incentivo de Vargas ao cinema nacional, surgiram sonhos utópicos da
criação de verdadeiros impérios cinematográficos no Brasil — todos, é claro, seguindo os
moldes hollywoodianos: primeiro, veio a Cinédia, fundada por Adhemar Gonzaga, no Rio de
Janeiro, e visitada por Orson Welles — quando começou a produzir, em solo nacional, seu
malfadado documentário, É Tudo Verdade, que nunca chegou a ser completado. Em seguida
despontou a Brasil Vita Filmes, fundada por Carmen Santos, também proveniente da capital
carioca. Ambas realizaram, respectivamente, dois sucessos de crítica e bilheterias, dirigidas
pelo pioneiro Humberto Mauro: Ganga Bruta (1933) e Favela dos Meus Amores (1938). E
nessa época de crescimento artístico e de típica insanidade idealista do processo de
pensamento terceiromundista, pipocaram várias outras empresas, também nascidas do
dinheiro privado de investidores impulsivos, ingênuos e com muita fé no cinema, com o
intuito de construir uma indústria cinematográfica tão poderosa quanto a dos Estados Unidos.
O resultado? Todas elas, sem exceção, foram à falência. Em meio a um país tão instável
política e economicamente, ainda que não tenham conseguido erigir um império
cinematográfico sólido, essas empresas deixaram uma marca indelével na cultura
cinematográfica brasileira. A Vera Cruz e a Atlântida são, com certeza, as duas mais
importantes e de influência mais duradoura.
A Vera Cruz foi fundada em São Paulo por um produtor e empresário italiano chamado
Franco Zampari, com a intenção de não só imitar a linguagem cinematográfica estrangeira,
como também abrir um mercado de exportação para as suas produções, de modo que pudesse
universalizá-las, mesmo (e principalmente) quando elas tratavam de temas brasileiros. Por
4
BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema (1967). São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.
31-33
5
Afinal, o que é o fenômeno Globo Filmes senão uma perpetuação ainda mais massificada do mesmíssimo
processo de importação cultural que gerou as chanchadas da Atlântida?
causa da competência técnica de profissionais importados da Itália, e da volta do diretor
Alberto Cavalcanti para o solo nacional — cineasta brasileiro que fazia sucesso na Europa
com seus documentários vanguardistas franceses e requintadas produções britânicas,
realizadas pelos Estúdios Ealing6 — o projeto da Vera Cruz entusiasmou muitos investidores
da alta burguesia paulista, e conseguiu obter apoio financeiro para a construção de enormes
estúdios e a compra de equipamentos sofisticados do exterior. Seu maior sucesso de bilheteria
foi o épico passado no Nordeste (nordestern) O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, que
também repercutiu mundo afora — sobretudo no Japão e nos Estados Unidos. Por mais que
tenha produzido cerca de vinte e dois filmes em apenas cinco anos, devido à má gestão
financeira da distribuição de seus longas, o estúdio foi à falência, enterrando a única
promessa brasileira de cinema em escala industrial que vingara internacionalmente.
Em termos estéticos (da representação fílmica das realidades brasileiras), os filmes da Vera
Cruz foram questionados pelos componentes do Cinema Novo, que viam neles um reflexo
claro do colonialismo cultural e da falta de brasilidade na produção nacional. Sobre O
Cangaceiro, Glauber Rocha foi especialmente incisivo: “Lima Barreto nada mais fez do que
repetir um daqueles épicos mexicanos nos planaltos paulistas vestidos de Nordeste: e
conservou o espírito melodramático, o pitoresco fácil, a chantagem dos grandes planos
armados numa montagem de choque, que aproveitava efeitos do velho cinema russo e outros
mais imediatos do cinema mexicano. [...] Sendo um produto industrial, fundado sobre uma
ideologia nacionalista tipicamente pré-fascista, O Cangaceiro é um filme negativo para o
cinema brasileiro, assim como toda a obra de Lima Barreto. Se nos considerarmos um povo
já livre do complexo colonial, vejamos que uma habilidade técnica (e ainda mais de técnicos
estrangeiros como o sonoplasta [Erik] Rasmussen, o fotógrafo [Chick] Fowle, o montador
[Oswald] Haffenrichter) não pode ser o suporte de uma expressão como o cinema.”7 Embora
Glauber tenha alguma razão, é muito radicalismo ideológico de sua parte querer
desconsiderar a importância cultural e estética que a Vera Cruz e O Cangaceiro tiveram no
imaginário popular brasileiro. E mesmo que oferecessem produtos datados, com uma
linguagem claramente importada, conseguiram dialogar com o público brasileiro em nível
representativo da cultura nacional, de modo que criaram um folclore próprio e
bem-intencionado dentro de sua tradição cinematográfica (o que já é mais do que se pode
dizer de muitas das produções da Globo de hoje em dia).
Em oposição aos épicos paulistas da Vera Cruz, surgiu no Rio de Janeiro a empresa
responsável por redefinir totalmente a relação da camada popular brasileira com o próprio
cinema: a Companhia Atlântida. Fundada por José Carlos Burle, Moacir Fenelon e Alinor
Azevedo, a Atlântida se especializou em comédias musicais populares — as quais a crítica
profissional denominou, pejorativamente, ‘chanchada’—, muitas vezes estreladas pela dupla
cômica Oscarito e Grande Otelo. Sem dúvida, a inspiração para essas produções vinha dos
musicais da Era de Ouro de Hollywood, de Vincente Minnelli e Busby Berkeley, mas a
inclusão de sambas, marchinhas de carnaval, danças tradicionais brasileiras, cenários
tropicais hiper-estilizados e um humor físico inconfundivelmente nacional, as chanchadas da
Atlântida fizeram o que a nossa cultura sempre fez tão bem: antropofagizaram as referências
estrangeiras para a criação de algo novo e brasileiro. Além disso, foram responsáveis por um
6
VELOSO, Geraldo. O cinema universal do brasileiro Cavalcanti (2006). Recine : revista do Festival
Internacional de Cinema de Arquivo. 3 (3) p. 142-147
7
ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro ( 1963). São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 92, 96
dos momentos de paixão mais ardente entre o público médio do Brasil e o próprio cinema; a
dupla Oscarito e Grande Otelo era capaz de atrair filas e filas para os cinemas de rua. E não é
porque eram direcionados para as camadas populares que os filmes não podiam ser
socialmente conscientes: algumas vezes, desferiram comentários sociopolíticos contundentes,
como no clássico antirracista Também Somos Irmãos (1949), de José Carlos Burle, anos à
frente de seu tempo8. Após muitos anos de sucesso, a fórmula da chanchada (assim como
quase todos os fenômenos dentro do cinema de gênero popular) começou a perder a novidade
e o estúdio foi à falência.
Mas os tempos mudam e surgem novos questionamentos. Nelson Pereira dos Santos, jovem
de 27 anos, rodou Rio, 40 Graus (1955), estrelado por não-atores da favela e usando um
estoque de filme contrabandeado. Distante da tradição hiper-estilizada das produções
americanas e bastante influenciado pelo neorrealismo italiano, Pereira dos Santos ensejou
uma revolução na forma de se pensar o cinema no Brasil. A despeito de ser altamente realista
e narrado com a estrutura de um filme-coral9, esta crônica sobre a capital carioca é um filme
popular, sem o formalismo alegórico e político que caracterizaria a corrente cinematográfica
que ajudou a fundar: o Cinema Novo. O longa foi censurado pelos militares (nove anos antes
do golpe), pois, segundo eles, ao mostrar a criminalidade e a pobreza, pintava uma imagem
negativa da cidade, passível de afastar possíveis turistas.
Influenciados por Rio, 40 Graus, pela nouvelle vague francesa, pelo neorrealismo italiano e
pela literatura modernista brasileira, os cinemanovistas foram responsáveis pelo ápice da
criação artística do cinema nacional, com filmes intelectualizados, políticos, subversivos, e
portanto de difícil digestão. A relação do público com os filmes do Cinema Novo era
instável, já que o movimento cinematográfico em si era também extremamente descontínuo.
Se por um lado o otimismo de Todas as mulheres do mundo ( 1967), de Domingos de Oliveira
e a poesia de rua de A Grande Cidade (1966), de Carlos Diegues, agradou as camadas mais
populares, a melancolia de A Falecida (1965), de Leon Hirszman e a agressividade da
estética intelectualizada de Glauber Rocha não ressoou entre o público-médio. A própria
crítica especializada brasileira mantinha uma atitude contraditória com o movimento, seja
rasgando elogios a alguns de seus filmes, seja destruindo a reputação de alguns de seus
diretores. Embora tenha sido a primeira vez em que o cinema nacional adquiriu uma
brasilidade específica a todos os seus componentes temáticos e estéticos, a influência externa
(principalmente de cineastas modernistas como Jean-Luc Godard10 e Michelangelo
8
DESBOIS, Laurent. A Odisséia do Cinema Brasileiro (2011). São Paulo: Companhia das Letras, 2016,p.43
9
Gênero que se caracteriza por apresentar várias narrativas simultâneas, levemente correlacionadas.
10
O cineasta Glauber Rocha foi pessoalmente convidado a fazer uma pequena ponta em um filme do Coletivo
Dziga Vertov, Vento do Leste ( 1970)
Trecho do filme disponível em https://www.youtube.com/watch?v=KzIIclcK0pY. Acesso em 04/09/2020.
Antonioni) continuava muito acentuada em sua linguagem cinematográfica. Não foi por
acaso que o movimento fez um retumbante sucesso na França, até mais do que no Brasil.
Os filmes mais importantes do período inicial são Vidas Secas, d e Nelson Pereira dos Santos
— adaptação crua e árida do clássico de Graciliano Ramos —, Deus e O Diabo na Terra do
Sol, de Glauber Rocha — alegoria mítica do sertão, cuja linguagem cinematográfica
revolucionária e sofisticada gerou apreciação universal e foi responsável por vender o
Cinema Novo para os países da Europa — e Os Fuzis, d e Ruy Guerra, — parábola violenta
sobre a ocupação militar no Nordeste, inspirado na estética de g uerrilha do cinema-verité.
Todos os três foram lançados em 1963, um ano antes do golpe de Estado que iria mudar
radicalmente a história do país — e de seu cinema.
Após o Golpe Militar, o curto período antes da implementação do Ato Institucional Número
Cinco foi um duro momento de autocrítica para a esquerda, em relação ao seu
comportamento desorganizado e populista, que não conseguiu impedir a tomada de poder dos
militares. Foi quando saíram os filmes mais reflexivos, angustiados e poéticos. É o caso de
Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha; até hoje é uma das obras que melhor define o
jogo político terceiromundista. O filme dividiu a crítica, predominantemente de esquerda, que
acusou Glauber de reacionarismo, hipocrisia e irresponsabilidade estética. Alegou-se que o
barroquismo da apresentação formal fugia muito da ‘estética da fome’ que originou o Cinema
Novo, além de seu ponto de vista narrativo partir de um poeta pequeno-burguês atormentado
pela vida em um país que despreza a poesia e vive em eterna alienação massificada. Nelson
Rodrigues, notório conservador de direita, foi um dos únicos que conseguiu perceber, na
época, a genialidade inovadora de Glauber Rocha: “Nós estávamos cegos, surdos e mudos
para o óbvio. Terra em transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danações
hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares,
pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito
triunfal. Os sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para
ter sentido no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda.”11
Um ano depois veio o AI-5, e com ele, o sonho de um cinema politicamente consciente e
frontalmente crítico chegou ao fim. Vários dos jovens diretores revolucionários, correndo
risco de vida, decidiram se exilar na Europa. Até conseguiu-se fazer alguns filmes da
chamada Terceira Fase do Cinema Novo, a qual se apropriou da corrente estética tropicalista,
focalizando temáticas mais folclóricas, aproveitando adaptações literárias de renome e
utilizando linguagem completamente abstrata, para então tecer críticas indiretas ao governo e
passar pela censura. Os filmes mais representativos dessa fase são Macunaíma (1969), de
Joaquim Pedro de Andrade e O Dragão Da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber
Rocha. Mas durou pouco, e as articulações cinemanovistas foram se dissolvendo com a
relocalização dos cineastas. Muitos deles nunca mais conseguiram fazer filmes com a mesma
qualidade artística.
Por concisão, não poderemos explorar a fundo a interessantíssima corrente estética oposta ao
Cinema Novo: o cinema marginal (apelidado por Glauber Rocha de udigrudi) . Seus longas
surgiram após o AI-5, com a pretensão de desintelectualizar o cinema, desglamourizar a
classe intelectual — inefetiva durante o regime ditatorial — e mostrar o grotesco entranhado
11
RODRIGUES, Nelson. Memórias: A menina sem estrela (1967) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2020. p.
228-230
na sociedade brasileira por meio de seus próprios termos, sem a sofisticação formalista do
cinema até então hegemônico no país. São filmes anárquicos, provocativos, experimentais e
profundamente satíricos. Entre seus melhores exemplos estão O Bandido da Luz Vermelha
(1968), de Rogério Sganzerla — divertida fusão entre o cinema B americano de Samuel
Fuller e a pop art subversiva de Jean-Luc Godard, combinando essas influências estrangeiras
com a estética do lixo paulista — e Matou a Família e Foi ao Cinema ( 1969), d e Júlio
Bressane — longa fascinante que retrata os perigos da alienação midiática sensacionalista em
tempos de ditadura. Também está associado ao movimento (não oficialmente, mas por conta
do teor vanguardista e grotesco de seus trabalhos) o diretor José Mojica Marins, ou Zé do
Caixão: com certeza uma das figuras mais importantes do imaginário popular brasileiro no
cinema. Vários desses filmes underground foram implacavelmente perseguidos pelo governo,
e os cineastas responsáveis por eles acabaram no exílio, tal qual os integrantes do Cinema
Novo.
Nesta época de crise, quando o cinema brasileiro ameaçava ruir, sofrendo violenta pressão da
censura, foi criada a Empresa Brasileira de Filmes: a primeira estatal direcionada ao cinema
nacional. Foi um período de abertura comercial para o governo, que agora visava negociar
com os cineastas, por perceber que as medidas protecionistas no cinema poderiam gerar
receita se os filmes fizessem bilheteria. Para a direção artística da empresa foi escalado
Roberto Farias, que havia assinado o ótimo O Assalto ao Trem Pagador ( 1962) e a insólita
trilogia estrelada pelo cantor Roberto Carlos. Enquanto isso, na Boca do Lixo12, em São
Paulo, fazendo oposição às produções mais requintadas da Embrafilme, eram lançadas no
circuito comercial do país comédias populares de baixíssimo orçamento, com alto teor
erótico, que foram apelidadas de pornochanchadas. Esse gênero peculiar e extremamente
brasileiro gerou muita bilheteria, e influenciou, de forma indireta, a estética dos longas da
estatal. Uma sucessão de hits d espontou nessa época, que foi o caso de amor mais intenso
entre a camada popular e o cinema brasileiro desde a época da Atlântida.
Um novo star system vinha sendo edificado com a ascensão da teledramaturgia nas indústrias
Globo. Este novo modelo mais ajudou a segregar o público do cinema do público da televisão
do que a conciliar as duas formas artísticas. Entretanto, as estrelas das novelas da Rede Globo
transitaram com sucesso entre os diversos filmes produzidos pela Embrafilme. A atriz mais
famosa nesse momento foi Sônia Braga, que graças ao seu carisma e sex appeal, conseguiu
cativar 11 milhões de espectadores, com Dona Flor e seus Dois Maridos ( 1976), de Bruno
Barreto e A Dama do Lotação ( 1978), de Neville D’Almeida. Além disso, fez sucesso
internacional e se tornou um dos maiores sex symbols latino-americanos, chegando a ser
convidada para participar de longas estrangeiros.
12
Região da Cidade de São Paulo, localizada no bairro da Luz, que virou um polo de cinema independente nas
décadas de 70 e 80.
invade as nossas telas. O movimento do Cinema Novo, que era internacionalmente
importante nos anos 60, e que criou o cinema brasileiro, foi destruído por várias correntes.
[...] [Estou] chamando a atenção, inclusive, de importantes cineastas brasileiros que se
entregaram à pornochanchada, ou ao sub-cinema comercial: hoje colaboram com as
multinacionais, e falam mal do Cinema Novo: prato do qual comeram e se fizeram, e do qual
não podem sobreviver sem voltar a comer do mesmo prato. [...] Um cinema estatal depende
de uma economia política dirigida ao desenvolvimento cultural. Do contrário, os verdadeiros
autores cinematográficos devem sair do Brasil. [...] Sou um dos principais artífices da
Embrafilme, realizei alguns filmes de repercussão internacional, e me encontro, no Brasil,
marginalizado e sem ver nenhuma perspectiva de saída para o cinema e para o atual sistema
econômico. ”13
Existe uma cena muito interessante em Terra em Transe, q ue já antecipava esse embate
cultural entre os interesses dos artistas pequeno-burgueses e o público-médio das classes
populares. Nas palavras de Nelson Rodrigues: “Fiquei maravilhado com uma das cenas finais
de Terra em transe. Refiro-me ao momento em que dão a palavra ao povo. Mandam o povo
falar e este faz uma pausa ensurdecedora. E, de repente, o filme esfrega na cara da platéia esta
verdade, mansa, translúcida, eterna: - o povo é débil mental. Eu e o filme dizemos isso sem
nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será assim, eternamente. O povo pare os gênios, e só.
Depois de os parir, volta a babar na gravata.”14
13
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nzeVQ9tyCLI. Acesso em 05/09/2020
14
RODRIGUES, Nelson. Op.cit.
15
PAIVA, Salvyano Cavalcanti de. Il Cinema Brasiliano ( 1961) (apud DESBOIS, Laurent. Op.cit, p.307)
O grande colapso econômico (e, por conseguinte, cultural) continuou depois da
redemocratização do Brasil, e atingiu seu ápice durante o governo Collor, quando, em 1992, o
presidente cancelou qualquer forma de incentivo fiscal às produções cinematográficas e
fechou a Embrafilme, deixando o cinema nacional na mais completa improdutividade por
dois anos inteiros.
Segundo Cacá Diegues, “Quando Nelson Pereira dos Santos era jovem e queria fazer cinema,
dizia-se que o brasileiro não era cinematográfico. Os filmes foram aparecendo e negando a
tese, passaram a dizer que a língua portuguesa que não servia para o cinema. Dominou-se a
língua [...] disseram que os diretores até que tinham talento, mas o nível técnico era muito
baixo. Os laboratórios melhoraram, surgiram grandes fotógrafos (o Brasil já está até
exportando alguns!), acusaram o som de má qualidade. Descobriu-se que o som ruim era
problema das salas, colonizadamente preparadas apenas para o filme estrangeiro com suas
legendas, o filme para ser lido e não ouvido. Agora, a mania é de falar mal dos roteiros, que
nós não sabemos escrever. O que é que eles ainda querem de nós?”16 Diegues deixa claro que
o problema do cinema nacional não está fundamentado na suposta falta de qualidade artística
e técnica dos filmes (porque mesmo que a precariedade de muitas das pornochanchadas em
relação às produções estrangeiras fosse, de um modo geral, reconhecida pelo grande público,
elas ainda geravam receita). A existência de um cinema nosso, pertencente ao imaginário
coletivo brasileiro, já é, por si só, rejeitada por um público que sente certa vergonha de
pertencer ao Terceiro Mundo. E com a globalização exacerbada, perpetuada pelo grande
avanço nas áreas da tecnologia, esse efeito colonizador só tende a piorar.
O fato de a proposta de fechamento da Cinemateca Brasileira não ter gerado uma convulsão
pública é um sintoma alarmante do problema. Um povo que não consegue aceitar as raízes da
própria cultura, que não quer s e identificar com a representação estética de sua própria
realidade precária, tende a procurar modelos ideais nas produções estrangeiras. Por causa
disso, o colonialismo continua a se perpetuar pela arte brasileira, e não há nada que uma
‘estética da fome’ intelectualizada possa concretizar, a longo prazo.
SALEM, Helena. Nelson Pereira dos Santos: O sonho possível do cinema brasileiro (1987). Rio de Janeiro:
16
Não podemos afirmar que o cinema brasileiro como um todo, em sua atual conjuntura
artística, esteja atravessando uma crise. Embora o público-médio seja majoritariamente
atraído pelas comédias pastelão da Globo Filmes — que faturam milhões nas bilheterias e são
produzidas a toque de caixa, a partir de uma estética importada de estúdio —, o cinema da
pós-retomada ainda oferece alguns sucessos internacionais de crítica, como O Som ao Redor
(2012), Aquarius (2016) e Bacurau, (2019) de Kléber Mendonça Filho, Que Horas ela volta?
(2015), de Anna Muylaert e A Vida Invisível (2019), de Karim Ainouz. Mas em termos
estéticos e formais, de que maneira essas obras se aproximam da linguagem cinematográfica
criada no Brasil e quantas delas são feitas com a intenção política de ocupar espaço nos
festivais europeus?