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Cidade de Deus (2002)

Título Original: Cidade de Deus


País de origem: Brasil

Ano de lançamento: 2002


Direção: Fernando Meirelles, Kátia Lund
Elenco: Alexandre Rodrigues (Buscapé), Leandro Firmino (Zé Pequeno), Douglas Silva
(Dadinho), Alice Braga (Angélica), Seu Jorge (Mané Galinha), Matheus Nachtergaele
(Cenoura), Phellipe Haagensen e Michel Gomes (Bené), Darlan Cunha (Filé com fritas),
Jonathan Haagensen (Cabeleira), Roberta Rodrigues (Berenice), Daniel Zettel (Thiago),
Renato de Souza (Marreco), Rubens Sabino (Neguinho), Graziella Moretto (Marina Cintra),
Emerson Gomes (Barbantinho), Micael Borges (Integrante do Caixa Baixa), Babu Santana
(Grande), Mumuzinho (Palito), Gero Camilo (Paraíba).
Roteiro: Bráulio Mantovani
Produção: Andrea Barata Ribeiro, Maurício Andrade Ramos
Fotografia: César Charlone
Montagem: Daniel Rezende
Trilha Sonora: Antonio Pinto, Ed Côrtes
Locação das filmagens: Brasil
Gênero: Drama, Ação, Policial
Duração: 130 minutos (2h10)
Classificação: 16 anos

Sinopse:
Buscapé é um jovem pobre, negro e sensível, que cresce em um universo de muita
violência. Ele vive na Cidade de Deus, favela carioca conhecida por ser um dos locais mais
violentos do Rio. Amedrontado com a possibilidade de se tornar um bandido, Buscapé é
salvo de seu destino por causa de seu talento como fotógrafo, o qual permite que siga
carreira na profissão. É por meio de seu olhar atrás da câmera que ele analisa o dia a dia
da favela em que vive, onde a violência aparenta ser infinita.

Comentários:
“Assistir Cidade de Deus é um dever cívico.” - Zuenir Ventura
“Faça um favor a si mesmo e assista a Cidade de Deus. Você não apenas terá duas horas
incrivelmente divertidas (sim, o filme prende a atenção e funciona como entretenimento),
como também aprenderá muito mais sobre este outro país que existe dentro do nosso velho
e sofrido Brasil” - Pablo Villaça
"Cidade de Deus deveria ganhar muitos prêmios, porque é um dos filmes mais vitais e
empolgantes não apenas dos últimos anos, mas que já vi em toda minha vida. Mas ele
enfrenta a montanha intransponível O Senhor dos Anéis", comenta Michael Bonner, editor
de cinema da revista Uncut. - BBC

Contextualização (trazer o panorama político e social do Brasil nessa época)

– Criminalização dos sujeitos periféricos

– Infância perdida
– Tráfico de armas

– Corrupção policial

– Narcotráfico

– Preconceito Racial

– Grupos disputando para que sua representação seja hegemônica

Resenha Crítica:

Panorama Geral:

Ao analisar a adaptação cinematográfica Cidade de Deus, é importante observar o


contexto de roteirização, produção e exibição do filme. Comecemos ressaltando o fim do
governo de FHC e início do primeiro governo Lula, superando crises anteriores e trazendo
poder de compra para a população, além de pintar o país com outra cor para o cenário
internacional. Apesar de tais melhorias, o filme retrata especialmente a classe de cidadãos
pobres, moradores de favela e comunidades, porém numa outra época (décadas de 60 e
70, período em que a ditadura militar era vigente). Ainda que essa divisão temporal
marcasse diferenças, a situação retratada no filme continuava presente nas favelas e
comunidades dos anos 2000: a precariedade do transporte público, falta de saneamento
básico, baixa escolaridade, analfabetismo, insegurança alimentar, crime, tráfico de drogas,
violência, repressão policial e racismo fizeram parte do panorama do Brasil no ano em que
o filme foi lançado - e até hoje estão presentes nessa classe. Esses temas estavam em
debate no cenário político, e já eram reivindicações das camadas populares, ocasionando a
criação de projetos como Fome Zero e Bolsa Família, além de fomentar o debate para a Lei
de Cotas (que só seria promulgada dez anos depois).

A criminalidade vista nas primeiras cenas do longa tem história e somos


apresentados à historicidade do lugar para compreender a complexidade que este território
imputa nas relações dos sujeitos que nele vivem. Nesse início conhecemos o trio Ternura,
que faz assaltos regulares para sobreviver e ajudar a comunidade, e no caso desta cena
específica, estão distribuindo botijões de gás. Completamente à margem e sem recursos, o
trio Ternura encontra no crime uma forma de subverter tal cenário, ainda que contra os
valores de suas famílias, uma vez que não enxergam no trabalho uma maneira viável para
viver com conforto. E é nesta prática que encontram prestígio, pois, ao realizarem assaltos,
se tornam uma referência alternativa para as crianças e ganham fama na Cidade de Deus.
Ganhar dinheiro com facilidade atrai a atenção, principalmente em um contexto de
assalariados com serviços precarizados. A glorificação que essa via alternativa cria coloca
respeito e importância no trio, e extrapolando para a realidade, numa favela onde os
traficantes e assaltantes são respeitados da mesma forma os moradores se dividem no
respeito, alguns admiram com vontade de ser igual, enquanto outros têm medo.

O motivo de tal ato se explica na narração do protagonista, que denuncia uma


prática necropolítica do governo da época: “E a filosofia do governo naquela época consistia
no seguinte raciocínio: não tem onde pôr? Manda pra Cidade de Deus!”. Observando mais
de perto, podemos pensar nas possibilidades que o trio possui, e assim nos deparamos
com a completa discriminação do Estado para com esses moradores. Um local distante de
tudo, sem escolas, unidades básicas de saúde, saneamento, luz elétrica e nem transporte
público. Quais cidadãos são tratados assim? Deste modo, o longa desnuda a realidade do
racismo, uma vez que a maioria dos habitantes é composta por negros, tendo que viver na
precariedade de todas as necessidades enquanto os centros urbanos ofertam o inverso
para aqueles que detém capital, e a cor do capital.

A classe trabalhadora nesta película é apresentada próxima à uma prática


escravista, percorrendo quilômetros para ir trabalhar pela madrugada, e voltando tarde para
sua cidade dormitório. Se formos ainda mais realistas, estamos apenas assistindo a
exploração do trabalho dentro do sistema capitalista, algo rotineiro. Aqui podemos trabalhar
o conceito de verossimilhança e veracidade da autora Sandra Pesavento, já que o filme é
baseado no romance homônimo. No livro, Paulo Lins narra de forma semi-autobiográfica
sua infância, contrastando os personagens com pessoas reais. A trama é atravessada por
diversos personagens fictícios e situações criadas pelo autor para engendrar a narrativa,
chegando até sua representação do real, que é a guerra das facções.

É possível observar que a obra possui ambos conceitos, ora apresenta


ficcionalmente a realidade vivida (verossimilhança), ainda que não reproduza exatamente
como ocorreu, ora retrata com detalhes e precisão histórica (veracidade). Por exemplo, no
terceiro ato do filme, com a guerra entre as facções, Mané Galinha vai preso e dá uma
entrevista para o Jornal Nacional. A reportagem original da cena é mostrada nos créditos
com o Mané Galinha, em carne e osso. Apesar de oscilar entre ficção e realidade, em seus
momentos ficcionais, a obra não deixa de representar a vivência dos moradores da favela,
suas dores, preocupações e embates, sendo inegável sua crueza em expor essa nudez nas
telas, de modo tão explícito que chega a incomodar. Essa estrutura que o longa nos
apresenta, seja em veracidade ou verossimilhança, entrega conjuntamente a cultura
popular, os costumes de comemorações, vestimentas e dialetos, elementos que dão o tom
do filme.

A significação do termo cultura popular carrega um peso pejorativo, isso porque


sempre foi lida como inferior, e por consequência os indivíduos que a constroem são lidos
de igual modo. Mas não é assim para os estudiosos do tema. Para o autor Carlo Ginzburg,
a cultura popular se define antes de tudo pela sua oposição à cultura letrada ou oficial das
classes dominantes. Mas a cultura popular se define também, pelas relações que mantém
com a cultura dominante, filtrada pelas classes subalternas de acordo com seus próprios
valores e condições de vida, o que se aproxima de seu conceito de circularidade cultural.
Nesse sentido, podemos fazer uma leitura do longa focalizando os aspectos da ascensão
social, que para alguns personagens se dá por meio do trabalho honesto, ignorando as
oportunidades desiguais e o racismo, enquanto para outros, como o trio Ternura e Zé
Pequeno, é através da criminalidade. Por fim, podemos dizer que os dois perfis buscam a
qualidade de vida através do dinheiro, mas a ideia de acumulação de bens, status social e
dignidade conquistada pelo esforço e trabalho são provenientes de outra classe social,
funcionando muito bem na lógica capitalista.

Representação e a morte da infância:


Ao relacionar o conceito de representação de Roger Chartier com o filme Cidade de
Deus, é possível explorar como as representações culturais mediadas pelo filme refletem a
complexidade das interações sociais, as negociações de identidade e as múltiplas camadas
de significado presentes nas histórias dos personagens e na vida nas favelas. Para o autor,
a representação compreende o modo como os homens constroem intelectualmente seus
mundos, ou seja, a partir de sua realidade e contexto social. A representação é a leitura de
mundo que vai se construindo a partir da estrutura social de cada sujeito, sendo fortemente
influenciada por ela. No longa, é possível fazer uma análise da representação da infância.

As crianças são um dos motores do longa, e em diversos momentos sua


representação na película nos aponta aspectos importantes para problematização. Somos
apresentados a pobreza, falta de escolarização, e até mesmo ao abandono, um cenário
fértil para o trabalho infantil. Dessa forma a narrativa nos choca com crianças no tráfico na
década de 70. As crianças, deste modo representadas, sustentam um dos temas mais
indigestos do longa: a morte da inocência e a perda da infância. Suas referências dentro da
favela são as lideranças do narcotráfico, seus gerentes e traficantes. Uma representação
que na realidade se torna palpável.

Para o caixa baixa, um grupo de crianças órfãs, o plano de ascensão social era
entrar para o mundo do crime, mas sem passar pelo “plano de carreira”. O objetivo deles
era ter o poder e prestígio de Bené e Zé Pequeno, suas referências. Assim, eles começam
a fazer assaltos pelas padarias e mercearias do bairro, contrariando as regras da favela que
proibiam roubar dentro da comunidade. Essa lei, proveniente do poder paralelo, é muito
comum em diversos bairros e favelas do Brasil. Um bairro tranquilo para os moradores é um
bairro tranquilo para o tráfico, porque é nesta calmaria que podem realizar seus negócios,
além de serem os promotores da segurança local.

Numa das cenas, Zé Pequeno vai com seu bando cobrar os meninos do caixa baixa
por quebrarem as regras e leva junto Filé com Fritas, uma das crianças que era aviãozinho
na boca de fumo. Ao encontrarem o grupo, os garotos correm com medo, restando apenas
dois. Esse é um dos momentos mais tensos do filme. Zé Pequeno diz que eles precisam
pagar, e pergunta se querem o tiro no pé ou na mão. De forma tirana e fria, atira no pé de
ambos, mesmo que eles tenham escolhido a mão. A dor, o medo e o pânico são nítidos no
olhar das crianças, é desesperador. O mérito fica para o ator mirim Felipe Paulino, que
demonstra pavor de forma visceral. Após um certo tempo, Zé Pequeno introduz Filé com
Fritas ao mundo do crime ordenando que ele escolha um dos garotos para matar. Essa
cena, considerada como uma das mais brutais do cinema nacional, demonstra o momento
em que a infância destas crianças é violentamente assassinada. O encontro com a violência
e a morte através do mundo do crime rouba a perspectiva de vida, e no caso do grupo caixa
baixa, os coloca de vez nesse universo, começando a planejar uma vingança contra Zé
Pequeno.

Podemos concluir, assim, que a criminalização dos sujeitos nesse contexto possui
diversas motivações, e o longa não poupa recursos para construir uma narrativa que
envolva toda a problemática social envolvida neste processo. A figura de Buscapé foge
dessa lógica com muito esforço e conta com o protagonismo para isso. O longa consegue
estruturar uma imagem pura da realidade brasileira e seus abismos sociais, a presença do
Estado na repressão e violência policial, as profundas complexidades da infância no mundo
do crime e a insegurança para os moradores causada pela guerra de facções. Tais
aspectos, analisados pelo prisma da história cultural, penetram numa compreensão madura
e realista das desigualdades do Brasil, além de confirmarem a obra-prima que é Cidade de
Deus.

Bibliografia

Carlo Ginzburg - Mitologia germânica e nazismo

Roger Chartier - O mundo como representação

Sandra Pesavento - O mundo como texto

Delidio Pereira Nery - Aspectos Culturais do filme Cidade de Deus

Carolina Marcello - Cidade de Deus: resumo e análise do filme

Pablo Villaça - Cidade de Deus (Site Cinema em Cena)

Luiz Zanin Oricchio - Entenda por que 'Cidade de Deus' entrou para a história (Terra)

Elegante - A cidade de Deus é um inferno (vídeo)

Refúgio Cult - Cidade de Deus, A OBRA-PRIMA PERTURBADORA DO CINEMA


BRASILEIRO (vídeo)

Wikipédia - Cidade de Deus filme

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