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A GENIALIDADE DA REDE GLOBO

DA REDAÇÃO 4P

Publicado em 11 de fev de 2021

Por Dandara Palmares*


Muitos de nós já sabemos que quem controla o discurso
controla o poder. Quem detém o poder de projetar,
visibilizar vozes, narrativas e determinadas
representações sociais detêm o poder de definir o que
merece ser discutido e o que deve ganhar importância.
A Rede Globo, desde que foi criada, por exercer
hegemonia no campo da comunicação, tem grande
controle sobre os discursos e as representações sociais
no país. Ela tem um papel fundamental na construção
do nosso imaginário, do nosso inconsciente coletivo,
porque é a maior produtora de narrativas, de
telenovelas, que fazem tanto sucesso junto ao povo
brasileiro. Como diz o mestre Antônio Cândido,
precisamos nos nutrir de narrativas para suportar a
vida, e as telenovelas são antes de tudo, narrativas
feitas para nos entreter e nutrir o nosso imaginário.
E, qual foi o imaginário, ou seja, que imagens, a Globo
promoveu nos anos de sua existência? Apenas para
citar dois exemplos recentes, trago aqui duas
telenovelas que estão sendo reprisadas, justamente
porque foram campeãs de audiência: Laços de família e
A força do querer. O recorte que eu vou fazer aqui é
racial, diz respeito a que imagens a Rede Globo produz
sobre pessoas negras, a partir de suas telenovelas.
Na novela Laços de Família, exibida no ano de 2000,
há quatro personagens negras: a empregada doméstica
Zilda, vivida por Thalma Freitas, a Irene, vivida pela
saudosa atriz Cléa Simões, que na trama é babá de
Ciça, filha do Miguel (Tony Ramos), e o médico
Laerte, vivido pelo ator Luciano Quirino. A quarta
personagem é uma jovem negra, que atua como
trabalhadora doméstica, também na casa do Miguel,
mas, que não eu não vi ainda ser mencionada, sequer
pelo nome.
Nos papéis exercidos pelos personagens, no caso da
Zilda e da Irene, chama a atenção o fato de que elas não
têm família, não tem presente passado e futuro. As suas
vidas resumem-se a viver as vidas dos seus patrões.
Zilda sofre quando o filho da patroa é espancado, sofre
quando a filha da patroa tem leucemia. Mas, ninguém
sabe quais são as suas próprias dores. Elas não são
representadas na trama. Pela forma como é
representada, Zilda não tem dramas pessoais, não tem a
sua própria história, a sua existência se justifica para
que ela seja reduzida a serviçal da protagonista, em
todos os sentidos. A vida dela está a serviço da
branquitude.
No caso de Irene, isso é levado às últimas
consequências porque ela, durante longo tempo, foi a
babá de Ciça, a filha impertinente do Miguel. Ela não
teve os próprios filhos. Na velhice, ela é transformada
em “parte da família”, porque foi o que lhe restou. Ela,
assim como Zilda, não tem os próprios dramas, os
próprios projetos, a própria vida, representados. A vida
de Irene é o que será a vida de Zilda. Uma velhice na
casa dos patrões, por não ter dito o direito de viver a
própria existência. Qualquer semelhança com a história
de Madalena, que foi explorada por mais de 30 anos,
por uma família mineira, que achava muito natural
fazê-lo, não é mera coincidência.
O personagem negro que foge a essa representação
subalterna é o médico Laerte, vivido por Luciano
Quirino. Mas, observem que, apesar de ser médico,
Laerte não se relaciona com uma médica, não tem
contato com o núcleo destacado da trama. Em alguns
episódios ele aparece exatamente no lugar onde a
branquitute costuma colocar negros bem sucedidos. Ele
aparece com os funcionários da clínica, aqueles que são
representados nas tramas da emissora como sendo os
que têm menos prestígio social, porque são sempre
reduzidos a coadjuvantes.
E, embora a Globo tenha editado a cena, na praia, em
que as atendentes conversam sobre ele, a gente se
lembra de que, na exibição original da novela, ele era
tratado como o garanhão, o bem dotado que suscitava a
desejo das mulheres ao seu redor. Não é a condição de
médico bem sucedido a camada mais evidente do
personagem, é a história do homem que cria o filho
sozinho, e que se enquadra no estereótipo do preto
desejado, porque bem dotado. No diálogo cortado pela
Globo, uma das personagens, Márcia, diz: “Uma vez,
eu era bem mocinha, tinha uns 18 anos, eu namorei um
negro. Namorico de escola. Foi tão bom. Nós vivemos
momentos intensos, ardentes para ser mais precisa (…)
Dizem que eles são umas coisas, que Deus foi
extremamente generoso com a raça. Uma coisa assim…
Notável”.
Eu poderia ainda colocar em discussão o caso da
Juliana Paes, que vive a Ritinha, e ocupa o lugar
reservado às mulheres negras, na maioria das
telenovelas globais, que é o lugar de empregada
doméstica. Por ser lida como uma mulher negra de pela
clara, Ritinha não vive só uma condição de
subalternidade, mas é assediada sexualmente de
maneira implacável pelo patrão, até que sede aos apelos
dele. O núcleo de empregadas da trama define bem o
ditado popular do Brasil colonial: “As brancas são para
casar, as pretas são para a cozinha e as mulatas para os
prazeres da carne”.
Esse foi o imaginário coletivo que a Rede Globo
ajudou a construir: mulheres e homens negros em
posições subalternas, hipersexualizados,
desumanizados, a serviço da existência da branquitude.
Mas, alguém poderia achar que isso é algo do passado,
afinal a novela foi produzida e exibida há 20 anos. No
entanto, se olharmos para a A Força do Querer, exibida
em 2017, portanto, recentemente, a gente vai observar
que, para a Rede Globo, mulheres negras reduzidas a
serviçais da branquitude é a tônica das suas produções.
Na novela, que também está sendo reprisada agora, a
personagem negra que aparece mais recorrentemente na
trama é Marilda, vivida pela atriz Dandara Mariana.
Marilda é a melhor amiga de Ritinha (Isís Valverde) a
personagem boa de coração, mas, completamente
inconsequente, que está sempre se metendo em
confusões e encrencas que envolvem a história entre o
Zeca (Marco Pigossi) e o Ruy (Fiuk). Marilda, assim
como Zilda, Ritinha e Irene de Laços de Família é
representada como alguém que não tem história, nem
passado, nem futuro. Não se tem registro de que ela
tenha família, de que ela tenha seus dramas e conflitos
pessoais. Ela vive como a “dama de companhia” de
Ritinha e atua remendando, apaziguando e remediando
as trapalhadas dela. Só agora que a novela caminha
para os capítulos finais é que ela está sendo paquerada
por um personagem secundário feito pelo ator
Mussunzinho.
Racismo Estrutural é sobre isso, é sobre ter uma
sociedade que naturaliza que pessoas negras sejam
reduzidas a serviçais de pessoas brancas. A Globo, que
tem em toda a sua cúpula homens brancos, talvez não
se reconheça racista, porque para ela, racismo é
espancar um homem negro no Supermercado ou xingar
um jogador de futebol de macaco em uma partida com
visibilidade internacional. A maioria das pessoas está
presa a essa ideia de que ser racista é assumir
comportamentos extremos. Mas, é preciso lembrar de
que, como crime perfeito que é, o Racismo opera
meticulosamente, nos detalhes, mantendo pessoas
negras no lugar que a branquitude lhes reservou: o
lugar da subalternidade.
Na última “Década”, como informou a Folha de São
Paulo, pessoas negras acessaram em número muito
maior à Universidade. O primeiro governo de esquerda,
em quase 500 anos de história do Brasil, criou a
Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, colocou
dentro de sua estrutura institucional Matilde Ribeiro,
uma mulher com a vida dedicada à causa do
Movimento Negro. Esse movimento social é o grande
protagonista de uma luta histórica que redundou nas
políticas de promoção de equidade étnico-racial, como
as cotas raciais, as políticas afirmativas, a presença de
pessoas negras nas universidades públicas. A chegada
de mais pessoas negras à universidade provocou a
mudança nas agendas de pesquisa e deu visibilidade
para a causa, colocando o debate na ordem do dia. De
uma forma ou de outra, toda a sociedade foi provocada
a pensar sobre racismo de uma maneira nunca vista
antes.
Em 2020, com o Movimento “Vidas Negras
Importam”, serviu de lente de aumento e catalisador da
luta do Movimento Negro. O país foi tomando um
pouco mais de consciência da necessidade de ouvir as
narrativas e prestar atenção às histórias de pessoas
negras. Elas, então, conquistam destaque nos Reality
Shows, Thelminha vence o BBB 20, Jojo Todinho,
conquista o prêmio máximo em “A Fazenda”, Lucy
Ramos é campeã na Dança dos Famosos, Jenifer, em
2019 tinha conquistado o “Pop Star”.
Finalmente era possível jogar por terra a narrativa de
que os brancos são superiores aos pretos- porque no
Brasil, a narrativa promovida pelas nossas telenovelas é
de que a beleza, a inteligência, a força, a
intelectualidade, o talento são brancos. A Globo se vê,
então, pressionada a aumentar o número de pessoas
negras na sua grade de programação e opta pelo que a
gente chama de Tokenismo, que é quando você coloca
alguns negros em determinados espaços para se livrar
da acusação de que seja racista.
Por outro lado, se nem a pauta e nem a luta antirracista
são um valor real para a emissora, que pactuou com a
Ditadura Militar, que chancelou o golpe contra a
presidenta Dilma e, que produziu o antipetismo e o
antilulismo, movimentos que foram decisivos para que
Bolsonaro chegasse ao poder, ela não deixaria que a
agenda antirracista seguisse em um crescente,
ganhando cada vez mais terreno e visibilidade, e
forçando-a a rever a sua política interna, organizada a
partir do Racismo Estrutural. Para a Globo, assim como
para a elite econômica brasileira, discutir racismo
significa reconhecer e abrir mão de determinados
privilégios. Isso seria pedir demais para quem sempre
promoveu e lucrou com estruturas sociais injustas.
Qual a melhor forma de frear, ou mais ainda
desqualificar, silenciar e deslegitimar a pauta
antirracista no Brasil, de forma que isso influencie as
próximas eleições? O caminho mais rápido e mais
efetivo seria dar um grande palco e destaque para
aquelas pessoas que se sabe que prestariam um
desserviço à causa. Lumena é conhecida como a
“ativista lacradora”. Antes de entrar no BBB 21 já tinha
grande fama de extremista, fundamentalista, fama essa
bem conhecida pela emissora. Karol Conká é alguém
com quem a Globo já fez várias parcerias e conhecia
bem o temperamento, a performance e a dinâmica.
Nego Di, antes do BBB, tinha se envolvido em uma
grande polêmica, por durante uma live, assumir
comportamentos machistas.
Todos eles tinham o perfil ideal para que, no lugar de
narrativas qualificadas sobre uma agenda antirracista,
fossem evidenciadas representações, discursos e
práticas que ressuscitassem o Mito da Democracia
Racial, a ideia de que, no Brasil, para o bem e para o
mal somos todos iguais, portanto, cotas raciais e ações
afirmativas são iniciativas injustas e desnecessárias. É
verdade que a Globo não teria como prever o
andamento de tudo dentro do BBB, mas, ao fazer a
seleção dos participantes, ela definiu que narrativas
queria privilegiar. E ela escolheu exatamente aquelas
narrativas que serviriam para ridiculizar, desqualificar a
agenda antirracista e suscitar ainda mais ódio por
pessoas negras.
O Brasil foi um país escravocrata por quase 400 anos,
explorou pessoas negras até a morte, e mais, depois de
alforriá-las, naturalizou as interdições cotidianas de
liberdade, na esperança de que morressem e pudesse
ser criado um Estado Branco Supremacista, em que a
presença negra fosse varrida da história. O Brasil é um
país tão racista que a Constituição Brasileira de 1934
defendia uma educação eugenista, ou seja, uma
educação que tivesse como princípio a celebração da
supremacia branca.
Somos um país que criou Fazendas de Estupro, onde
mulheres negras eram violentadas para procriar
escravos, como se fossem animais. Nos últimos anos
do processo de escravidão no país, o Brasil privilegiou
o tráfico de meninas, porque era uma forma de garantir
o nascimento de mais pessoas negras para serem
escravizadas e que, em sendo escravizadas, desde a
infância, teriam uma vida útil e produtiva por mais
tempo. Somos o país que a cada 12 minutos mata um
jovem negro.
Nós, pessoas negras conhecemos bem a crueldade e a
perversidade histórica desse país contra o povo negro.
Não nos surpreende que a Rede Globo que é racista e
supremacista branca transforme o BBB 21 em uma
arena que, ao mesmo tempo em que explora o
sofrimento psíquico de pessoas negras, ridiculariza,
tripudia e desqualifica a agenda antirracista no Brasil,
privilegiando representações práticas e discursos que
endossam os estereótipos de que negros são violentos,
agressivos, bárbaros, tacanhos, mesquinhos e rasteiros.
Ignorar a diversidade e a complexidade de pessoas
negras, negando-lhes o direito de ser quem são, e
impondo-lhes a obrigação de que sejam o que se espera
que elas sejam, é uma forma perversa de racismo. O
que o BBB 21 está fazendo, é o que o Brasil faz há
mais de 500 anos, e a Rede Globo faz desde que foi
fundada- desumanizar, explorar e matar pessoas negras
(começando pela morte simbólica).
Você, como eu, pode odiar a Globo por ela ser racista,
por ter produzido o antipetismo, por ter apoiado à
Ditadura Militar, mas nós temos que admitir, ela sabe
bem como reinventar e alimentar o Racismo Estrutural.
Quando o assunto é lucrar com a exploração dos corpos
negros, a Globo usa toda a sua “genialidade”. Não
subestimem o racismo. Ele é dinâmico e de mãos dadas
com a busca pelo lucro a qualquer custo, sabe bem o
que fazer para continuar vivo e operante.
Dandara dos Palmares é pseudônimo de uma
grande escritora que insiste em não assinar seus
artigos publicados neste humilde Midia 4P
Depois de ler o texto responda as seguintes questões:

1. Pesquise no texto e em outras publicações os elementos que


caracterizam o racismo estrutural no Brasil?
2. Quais os elementos que a autora fundamenta a afirmativa que as
novelas reproduzem de forma simbólica o racismo estrutural?
3. Identifiquem a caracterização simbólica da inferioridade do povo
negro veiculada nas novelas globais.
4. Qual a relação feita pela autora entre o conservadorismo e a
manutenção das bases do racismo estrutural no Brasil?
5. Como a autora caracteriza historicamente a existência do racismo
estrutural em nosso país?
6. Qual o papel exercido pela Rede Globo na manutenção da
dominação branca simbólica existente no Brasil?
7. Qual a estratégia criada pela Rede Globo no BBB 21 para fortalecer
os valores simbólicos do Racismo estrutural?
8. É possível afirmar que os movimentos internacionais acontecidos
nos últimos anos, Vidas Negras Importam, têm forçado a Rede
Globo e a Publicidade de modo geral a mudarem a narrativa que
sustenta a racismo estrutural no país?
9. Como as novelas e a publicidade brasileira poderiam veicular um
discurso mais próximo aos valores da DUDH?
10.É possível se falar em Direitos Humanos para a população negra em
uma realidade de Racismo Estrutural?

Orientações –

1. Cada resposta deverá ter no mínimo cinco linhas, corpo 12, espaço
1,5.
2. O Trabalho deverá ser remetido até o dia 26.01. Para o e-mail:
coelhodebarros19@gmail.com.
3. O trabalho poderá ser feito em dupla.
4. A aula de 24.01 será online, com a leitura do texto e a elaboração das
respostas deste questionário.

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