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Linn da Quebrada1
1
Trecho da música “Bomba Pra Caralho”
RESUMO
Madame Satã, filha de Iansã e Ogum, foi uma transformista emblemática e um dos
personagens mais representativos da vida noturna e marginal da Lapa carioca na primeira
metade do século XX, sendo uma representação subalternizada da fetichização do corpo
negro, que revelam um retrato cruel de solidão conferida a essas identidades na
sociedade segregacionista em que vivemos. A escolha da personagem Satã se deu em conta às
constantes violações de direitos humanos de travestis e transexuais pretas que vivem a
margem da sociedade, que não tem a atenção ou a proteção adequada e tampouco se sentem
seguras em existir e viver em uma sociedade cissexista, que desumaniza essas existências,
incluindo os crueldade. A conceder a homenagem a personagem, faz do que as lutas de
pessoas marginalizadas sejam reconhecidas, promovendo que seus direitos sejam respeitados.
ABSTRACT
Madame Satã, daughter of Iansã and Ogum, was an emblematic transformist and one of the
most representative characters of the nightlife and marginal life of Lapa in Rio de Janeiro in the
first half of the 20th century, being a subalternized representation of the fetishization of the
black body, which reveals a cruel portrait of loneliness conferred on these identities in the
segregationist society in which we live. The choice of the character Satã took into account the
constant human rights violations of black transvestites and transsexuals who live on the
margins of society, who do not receive adequate attention or protection nor do they feel safe
existing and living in a cissexist society, that dehumanizes these existences, including cruelty.
By granting the tribute to the character, the struggles of marginalized people are recognized,
promoting that their rights are respected.
INTRODUÇÃO............................................................................................................................ 1
BIOGRAFIA................................................................................................................................ 4
JUSTIFICATIVA........................................................................................................................ 14
REFERÊNCIAS.........................................................................................................................18
INTRODUÇÃO
Num caso judicial, de 1946, quando Madame Satã foi apreendida por
perturbar a ordem, após ter sido barrada de entrar no Cabaret Brasil porque
não estava vestido apropriadamente, o comissário de polícia fez uma descrição
que era comum de se atribuir a ela:
2
Frase que Green utiliza em sua obra, que descreve Madame Satã logo em seu prefácio.
3
O termo “Bicha” foi usado para referenciar gays afeminados e transformistas.
4
Identidades sexuais e de gênero que não são heterossexuais e cisgênero.
1
seus vícios. É visto sempre entre pederastas, prostitutas, proxenetas e
outras pessoas do mais baixo nível social.” 5
5
Cabral. Op. cit. p. 3.
6
O Pasquim foi um jornal da imprensa alternativa, que se opôs à ditadura brasileira pela crítica
dos costumes.
7
PAEZZO, Syvan. Memórias de Madame Satã, 1972.
8
KER, João. Madame Satã, Presente!
2
para cantar nos cabarés e bares da Lapa. Satã esteve sempre ali na
história, fosse brindando na Lapa madrugada afora com Chico Anysio e
Noel Rosa, fosse espreitando dos cabarés e dos becos do bairro.
Suspeito, tenho quase certeza, que se Satã não fosse preto, pobre e
travesti, a história teria lhe tratado com mais respeito, talvez ao ponto
de que ele conseguisse mudar a sua própria”.
3
BIOGRAFIA
Aos 13 anos, João Francisco deixou a pensão e foi viver nas ruas,
dormindo em degraus de casas de aluguel, na Lapa. Durante seis anos,
trabalhou em serviços esporádicos na vizinhança, desde carregar sacolas de
compras do mercado até vender potes e panelas de porta em porta. Em 1916,
quando o garoto tinha dezesseis anos, ocorreu a primeira gravação de um
samba, chamado Pelo Telefone.
9
Machado, Elmar. “Madame Satã para O Pasquim: ‘Enquanto eu viver, a Lapa viverá’”. Pasquim,
n. 357, 30 de abril de 1976. p. 9.
4
jovens homossexuais para trabalhar como garçons, cozinheiros, camareiros e
inclusive como eventuais prostitutos, caso um cliente assim o desejasse
(GREEN, 2003). Muitos desses jovens haviam adquirido certos maneirismos
tradicionalmente femininos, supunha-se que eles podiam desempenhar tarefas
domésticas com facilidade e eficiência e viver entre as prostitutas sem criar
uma tensão sexual (DURST, 2005).
10
O Uso de navalhas debaixo da língua é comum entre as travestis e transexuais, sendo uma
forma delas se defenderem de ataques que podem sofrer diariamente nas ruas.
5
Sua identidade marginalizada, generalizada de forma anômala, coexistia
confortavelmente com as francesas, polacas e mulatas que trabalhavam nos
vários bordéis que funcionavam na Lapa (GREEN, 2003). Nos anos 20 e 30, a
topografia homoerótica do Rio de Janeiro estendia-se num semicírculo que
começava na praça Floriano Peixoto, passando pelo bairro boêmio e operário
da Lapa, até a praça Tiradentes, as duas pontas dessa longa área arqueada, a
Cinelândia e o antigo Largo do Rossio, ofereciam ambientes públicos para
interações homossociais e homossexuais (DURST, 2005).
11
Paezzo. Op. cit. p. 17.
6
No Rio de Janeiro, onde o desemprego era elevado e a pobreza
disseminada entre as classes mais baixas, o malandro sobrevivia praticando o
jogo, a prostituição, a caftinagem, roubando, compondo sambas ou aplicando
eventualmente algum golpe. Sua imagem sugeria masculinidade e virilidade
(DURST, 2005). Sua arma, a faca, estava sempre pronta para acabar com o
destino de alguém que ofendesse a sua honra, o enganasse no jogo ou traísse
a sua confiança. Porém, em 1928, se meteu em uma confusão, que acabou
resultando na morte do vigilante noturno Alberto. Após o crime, Madame Satã
foi condenada a 16 anos, marcando o fim da sua carreira artística.
7
Com inspiração em um morcego do Nordeste do país, precisamente da região
de Glória de Goitá, João Francisco recebeu o prêmio máximo do concurso: um
rádio e um tapete de mesa.
8
voltou a atentar novamente para Satã. As autoridades acreditavam que a
pensão, na verdade, seria um prostíbulo, sendo acusado de lenocínio.12
Satã muda-se para São Paulo e acaba sendo detida mais uma vez por
atirar em um policial, passando treze meses na prisão e foi obrigado a assinar
um termo de compromisso, afirmando que não voltaria ao estado nos
próximos dez anos. Aos cinquenta anos, retornou para o Rio de Janeiro e
começou a viver uma rotina mais tranquila, sem as malandragens da Lapa.
Anos mais tarde, após deixar a prisão pela última vez, a imitação de
Madame Satã da cantora Carmem Miranda virou show na boate Cafona’s. Em
1975, Madame Satã atuou no musical Lampião no Inferno, escrito por Jairo
Lima, e dirigido por Luiz Mendonça, onde interpretou o papel do próprio
Satanás, contracenando com Elba Ramalho (KER, 2018). Luiz Mendonça
convidou Madame Satã para fazer parte da peça, pois acreditava que ele era
“uma personalidade muito próxima de Lampião”, e que fosse “o Lampião
urbano” (GREEN, 2003).
12
Prática criminosa que consiste em explorar, estimular ou facilitar a prostituição.
13
O Pasquim era um tablóide semanal, moldado no formato das publicações estrangeiras
underground voltadas para jovens dos anos 60 e que articulavam as aspirações de uma geração rebelde.
9
Lapa. Aos 71 anos, Madame Satã continuava um tipo interessante, com seus
cabelos brancos e pele escura, num intenso contraste com suas camisas de
seda colorida e suas joias reluzentes. Ela ainda podia contar histórias sobre o
uso de cocaína, os cabarés e os cassinos, que reviviam a Lapa decadente dos
anos 70 na imaginação da juventude e dos intelectuais da boemia carioca.
Green (2003) em sua obra retrata que Madame Satã era uma bicha,
uma travesti, e não tinha problemas para se referir a si mesma dessa forma,
naquela época, uma entrevista em O Pasquim14 era o caminho para a fama,
ainda que não para a fortuna. Madame Satã morreria cinco anos mais tarde,
de câncer no pulmão, famoso, mas sem um tostão.
14
O Pasquim tinha uma história complicada na sua relação com a homossexualidade, o
historiador de O Pasquim José Luiz Braga argumenta que o jornal popularizou a expressão “bicha” de
forma pejorativa no país inteiro.
10
RELAÇÃO DO PERSONAGEM COM A CULTURA E HISTÓRIA
AFRO-BRASILEIRA
A época que Satã vivia, havia o uso político da identidade desses povos
marginalizados, com a tentativa de criminalizar a sua existência, que datam
inúmeros casos assustadores de assassinatos que corroboram até hoje, o
funcionamento e a manutenção do projeto colonial arquitetado para aniquilar
essas existências, tendo a violência como a principal ferramenta na tentativa
de extinguir qualquer traço de dissidência social.
Ademais de ser negro, João era uma transformista, desse modo, além
de ser vítima do racismo instituído desde da invasão do Brasil, Satã sofre a
perseguição de sua existência alimentada pela ideologia cristã de família e
moral. Essa caçada segue em curso, tratando de um extermínio que conta com
a participação de agentes sociais importantes, como a família, representantes
de uma soberania instituída pela cisgeneridade heterossexual branca
(Fernanda Dantas VIEIRA, 2015, n.p.).
11
“Atualmente, se vê a insistência de negar ou criminalizar a existência de
pessoas trans, as colocando como responsáveis por uma suposta
“desordem moral”, e ao impedir a possibilidade da construção de
políticas públicas que atendam a reais necessidades dessa população, à
violência tem sido usada como o principal mecanismo de controle e
poder sobre esses corpos, colocando pessoas trans como antagônicas
aos direitos de pessoas cisgêneras”.
Era uma prática comum para a polícia no Rio e em São Paulo perseguir
os homossexuais, malandros e prostitutas nas áreas do centro e detê-los
durante várias semanas, de modo que pudessem usar seus serviços para
limpar as delegacias de polícia (GREEN, 2003). Madame Satã se recusava a
submeter-se a tamanha humilhação e abuso, ultrajando seus inimigos e a
polícia, rendendo assunto para a imprensa precisamente porque ele não se
conformava ao estereótipo-padrão do homossexual (DURST, 2005). Ainda hoje,
Madame Satã é referência, inspira e incomoda, sua história foi utilizada pela
companhia mineira Grupo dos Dez16 para debater a homoafetividade da
população negra (KER, 2018).
16
Grupo teatral dedicado à pesquisa de linguagem acerca do teatro musical.
12
Oliveira (2023)17 traz a tona que:
17
Megg Rayara Gomes de Oliveira é Travesti preta, Mestra e Doutora em Educação pela
Universidade Federal do Paraná; professora adjunta no Setor de Educação na Universidade Federal do
Paraná; Pesquisa e orienta pesquisas em relações étnico-raciais, gênero e diversidade sexual.
18
MBEMBE, Achille. Necropolítica – biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte.
São Paulo: N- 1 Edições, 2019.
13
JUSTIFICATIVA
Por que nomear o auditório com um nome de uma
transformista?
14
observado uma intensa mobilização entre diversos grupos que, sob pretexto de
proteção da infância (cisgênera), violam direitos e deixam as crianças e
adolescentes trans desprotegidas (BENEVIDES, 2019).
20
JUNQUEIRA, Rogério Diniz. "Educação e homofobia: o reconhecimento da diversidade sexual
para além do multiculturalismo". In: ______. Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a
homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009a. p. 367-444.
21
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais é uma instituição brasileira voltada a suprir as
necessidades da população de travestis e transexuais, assim como combater a transfobia.
15
Diante da grave situação causada pela conjunção do racismo com a
transfobia, a situação das pessoas trans negras acaba sendo ainda mais
agravada em relação às violações às quais estão submetidas. Principalmente
porque, em nossa perspectiva, não é possível analisar como essas opressões
afetam de forma isolada os corpos trans. Ser transexual significa enfrentar
todos os estigmas possíveis em um país considerado como o da diversidade,
do acolhimento, mas que não possui políticas efetivas para sua população.
Imagine ser uma negra e ainda trans? É saber que eu preciso lutar duplamente
para conseguir políticas efetivas (Paulett Furacão, Salvador, 2018).
16
forma de operação diferente, pois envolve questões de gênero, identidade de
gênero e orientação sexual, dentre outros, da mesma maneira que discutir
políticas de enfrentamento da transfobia exige pautar questões de etnias.
— Erica Malunguinho
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REFERÊNCIAS
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