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e ns a i o p e la me m ó r ia de M ar ie l le Franco
Thamy Frisselli
FEMINISMO E DEMOCRACIA
A luta incessante por uma sociedade antirracista e justa
[ensaio pela memória de Marielle Franco]
FEMINISMO E DEMOCRACIA
A luta incessante por uma sociedade antirracista e justa
CADERNOS
SOCIAIS
CADERNOS
SOCIAIS
Brasília - DF
AGRADECIMENTOS
2020. Todos os direitos reservados à autora. Sou grata pelas que passaram e pelas que virão!
Minhas companheiras de trincheira, ativistas da Assembleia
Imagem da Capa
“Atlântico Negro” - ilustração de Raiany dos Anjos Popular Pela Vida de Todas as Mulheres do DF e Entorno.
Professoras da rede pública como Neiry Alves (tia Neirynha) –
Edição sua biblioteca foi base para isso acontecer! Companheiras da
Selo Cadernos Sociais Marcha Mundial das Mulheres, da Marcha das Margaridas,
do MST, jornalistas, mulheres cutistas, escritoras, psicólogas,
sociólogas, assistentes sociais, artistas, deputadas, senadoras,
presidenta, assessoras, esquerdistas, do Juntas/DF – Coletivo
de Estudo Feminista que coloca em prática a exigência das
políticas públicas na capital federal.
À Ana Júlia, parceira de debates feministas, re-
visões acadêmicas e confidente dos maiores segredos do
cotidiano. Melhor amiga. Eu pedi uma irmã mais nova e as
Deusas me presentearam com um amor pra minha vida!
À que sem ela eu não estaria aqui. Minha genito-
ra, mãe, mulher que lutou pra me criar sozinha e mesmo
ela não reconhecendo o termo feminista, foi meu primeiro
exemplo do que é ser uma mulher livre. Grata pela vida!
Grata sou por existirem as mulheres no rap, que
expandem minha mente com ensinamentos diários e laten-
tes. Vera Verônika, Realleza, Flora Matos, Stéfanie, Cris SNJ,
Kamila CDD, Preta Rara, Tássia Reis, Dina Di (in memorian),
Drika Barbosa, Karol de Souza, Gabz, ABRONCA.
Ser artista, viver de arte no Brasil, não
deveria ser privilégio de uns poucos
escolhidos. Ocupar esse espaço é uma
batalha diária. Mas fazer arte Instagram Oficial
independente só é possível quando existe @feminismoedemocracia
apoio. Exaltar escritoras mortas e obras
póstumas é muito bom, mas já
experimentou apoiar o trabalho de uma
escritora que vive a mesma época que
você? A forma mais efetiva de contribuir
para a diversidade na produção artística
nacional é garantir que as artistas que você Whatsapp
Adquira sua versão impressa
admira possam produzir agora.
A INIQUIDADE DE GÊNERO E
composição de Douglas Germano
P r a qu e ilu dir ?
E vio le n t a r
MARIELLE FRANCO:
UM FEMINICÍDIO POLÍTICO 53
P r a n o s o pr im ir ?
P ra q u e s uja r o c h ã o da pr ó p ria sala?
N o s s o país , n o s s o lu g ar de fala
MANIFESTAÇÕES CULTURAIS E ARTÍSTICAS
COMO FORMA DE CONSTRUÇÃO
DA IDENTIDADE DO JOVEM BRASILEIRO
65
O me u país é m e u lu g ar de fala
CONCLUSÃO
75
LUTAR
pelo
Brasil
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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LUTO
PANORAMA DO
MOVIMENTO FEMINISTA,
A INIQUIDADE DE GÊNERO
E A DISCRIMINAÇÃO
RACIAL NO BRASIL
FEMINISMO E DEMOCRACIA | Thamy Frisselli
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CADERNOS SOCIAIS FEMINISMO E DEMOCRACIA | Thamy Frisselli
expõe, ao pensarmos em feminismo pensamos também em mais importante, nos guia pelo caminho da autocompre-
trabalho, pois faz parte de uma sociedade que impõe isso ensão. E se pensarmos em renovação, com a capacidade de
como necessidade. Passa longe de ser um prazer e é exem- transformação mundial, o feminismo é peça fundamental
plo de um problema de gênero. Essa consciência da condi- nesse processo. Ainda de acordo com Marcia Tiburi (2019),
ção feminina na sociedade, quem teve foram as mulheres,
principalmente as feministas, que fizeram o trabalho das
mulheres sair do discurso e virar estudo de análise.
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Diante de um processo histórico complexo, movimento, além de amor ao mundo, é uma questão de
o feminismo se desenvolveu dando significado a muitas inteligência sociopolítica (TIBURI, 2019). Portanto, o pa-
coisas. Mesmo quando ainda não se classificava o termo, pel do feminismo é desestabilizar uma série de injustiças,
foi por ele que as mulheres se tornaram pessoas com ci- mostrando que o sistema silenciou mulheres da história e
dadania política e deixaram de ser coisas-objetos (TIBU- as impediu — e ainda impede — de ocupar um espaço rele-
RI, 2019). Definir o feminismo é lembrar de ética-política, vante de expressão na sociedade.
pois essa contribui estruturalmente para melhorar a com-
Durante o século XIX as brasileiras começaram a transfor-
preensão da forma que as pessoas expressam sua felicida-
mar seus destinos, e o Rio de Janeiro foi o palanque para
de, em meio a uma sociedade opressiva, e que engendram
essa nova forma de atuação feminina no país. Desde 1808,
sofrimento nos seres que compõem o ecossistema, sendo
o poder, a política e a economia eram temas exclusivos do
eles humanos ou não. Para exemplificar essa afirmação, Ti-
universo masculino, mas já passavam por grandes alvo-
buri (2019) traz à tona o peso do patriarcado — sistema
roços. Enquanto os negros eram empregados em repar-
que sempre ditou o que era melhor para as mulheres — e
tições para dar pensões ao tesouro, algumas centenas de
das práticas que perpetuam ao longo da história a injustiça
mulheres — professoras, parteiras, as modistas francesas,
desvelada contra o gênero feminino, com um cruel arsenal
as comerciantes e as quituteiras — aproveitaram para ocu-
de punição para as mulheres, especialmente as negras, po-
par espaços públicos e outros lugares até então proibidos
bres ou diferentes em geral.
a elas na rotina da cidade (SHUMAHER; CEVA, 2015. p.
Quando aderimos à causa feminista, independente de gê- 15). Como observam as autoras Schumaher e Ceva (2015),
nero, estamos nos politizando, já que lutar é um ato políti- a primeira onda do movimento feminista no final dos
co, e as feministas são pessoas que lutam constantemente anos de 1800, período no qual mulheres eram julgadas e
buscando equidade salarial, representatividade e liberda- questionadas por sua capacidade intelectual, consagrou a
de. Fazer uma crítica contra as ideologias já é uma forma luta pela emancipação política e pela cidadania plena das
de feminismo. É com muita luta que se conquistam os es- mulheres. No Brasil, após muito esforço e suor, […] em
paços. Para pensarmos no feminismo em comum, é preci- meio a polêmicas e embates, tanto na sociedade quanto no
so dialogar e lutar. É preciso entender que fazer parte do Congresso Nacional, em 24 de fevereiro de 1932 as mu-
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lheres deram os primeiros passos para concretizar a maior igualdade, englobando desde a antiga Associação de Donas
conquista feminina do século XX: o direito de votar e se- de Casa, criada em 1960 em São Paulo, passando pelo mo-
rem votadas (SHUMAHER; CEVA, 2015. p. 87). vimento de luta por creches, até as ações das exiladas re-
cém-chegadas. Nessa efervescência política, nasceu o Mo-
Em um momento de repressão e restrição das liberdades vimento Feminino pela Anistia, articulado principalmente
democráticas, foi na década de 1970 que o feminismo co- pela advogada Therezinha Zerbini. Isso posto, o Brasil já
meçou a brotar no Brasil. A Organização das Nações Uni- não ocupava mais uma posição tão sólida no regime mili-
das (ONU) propôs a realização de uma Conferência Inter- tar: caía por terra o bipartidarismo e a esquerda se organi-
nacional sobre a Mulher, na cidade do México em 1975, e zava fazendo surgir diversos partidos. A campanha Diretas
indicou a data como o Ano Internacional da Mulher, ini- Já! dominava as ruas (SHUMAHER; CEVA, 2015). Como
ciando a década da mulher que perdurou por todo o mun- relembram as autoras, nos anos seguintes a multiplicidade
do até 1985. Tal acontecimento culminou com a segunda nos formatos de organização foi incorporando outros seg-
onda do feminismo no Brasil. Como trazem Shumaher e mentos importantes da comunidade, como os grupos de
Ceva (2015), para a Câmara dos Deputados foram eleitas mulheres negras, trabalhadoras urbanas e rurais, educado-
quatro mulheres […] e Laélia Alcântara foi considerada a ras populares, prostitutas, empresárias, lésbicas, produto-
primeira mulher negra no Senado Federal. Assim sendo, ras culturais e donas de casa.
o feminismo negro cresce enquanto movimento indepen-
dente; pois, ao mesmo tempo em que as feministas negras Ainda de acordo com Shumaher e Ceva (2015), no ano de
se apoiavam em análises materiais, empíricas e históricas 1982 os movimentos de mulheres restabelecem sua relação
para explicar sua opressão, também se fortalecia a busca com o Estado por meio da convocação de eleições diretas
pela ancestralidade — para fins, justamente, de fortaleci- para governadores. Um grupo de feministas paulistas pro-
mento da própria identidade negra e, mais especificamen- pôs a criação de órgão exclusivo para a defesa da cidadania
te, da mulher negra. feminina e para implementação de políticas públicas para
as mulheres. Com as experiências regionais repercutindo,
Na mesma década, grupos de mulheres começavam a luta ganhando dimensões nacionais e acolhendo a pressão das
a favor da redemocratização e por direitos de cidadania e feministas, em agosto de 1985 o presidente José Sarney
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propôs a criação de um Conselho Nacional dos Direitos dos anos 1990, a América Latina já estava
da Mulher (CNDM), vinculado ao Ministério da Justiça, se recuperando da crise, no entanto, recon-
com autonomia administrativa e financeira. Em outubro
figurou a paisagem econômica da região:
do mesmo ano, uma das primeiras iniciativas do CNDM
os países que antes eram potências regio-
foi o lançamento da campanha nacional “Constituinte sem
mulher fica pela metade”, cujo propósito era aumentar a
nais como Argentina, México e Venezue-
representação feminina no Congresso. A agitação não agra- la ficaram com várias consequências que
dou empresários e deputados que, tentando desestabilizar não foram superadas, enquanto países
o grupo de mulheres que fazia pressão, passaram a chamá- mais atrasados como Chile, Brasil, Peru e
-lo de “lobby do batom”, apelido depreciativo que, para as Colômbia se destacaram nas últimas déca-
feministas, serviu de instrumento de militância política e das por um alto crescimento econômico e
luta (SHUMAHER; CEVA, 2015. p. 155-156).
um bem-estar social maior.
O fim da União Soviética e a queda do muro de Berlim im- (IPEA, 2012)
pactaram o sistema internacional, marcando o fim do pe-
ríodo conhecido como Guerra Fria. A partir de uma lente
mais regional, por sua vez, as ditaduras na América Lati- Tais mudanças na sociedade ocidental na
na também sofreriam abalos no que se caracterizou como década de 1990 evidenciaram as garotas rebeldes da ter-
a “década perdida”, período de grande crise financeira na ceira onda. Tecnologicamente, a internet causou uma
América Latina durante a década de 1980. revolução em termos de comunicação, e o feminismo não
demorou a fazer parte desse mundo também. A entrada do
A crise se dava por dívidas externas exorbi- século XXI é marcada pelo aumento da participação políti-
tantes, grandes déficits fiscais e volatilida- ca das mulheres na sociedade civil nos mais diversos cam-
de inflacionária e cambial, que na maioria pos dos movimentos sociais, como direito das mulheres,
dos países da região eram fixos. No início combate ao racismo, defesa dos direitos humanos e dos di-
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reitos sexuais, e do direito ecológico, popular, comunitário ram as mulheres em um protagonismo de combate à discri-
e sindical. Mesmo assim, como expõem Shumaher e Ceva minação e todas as formas de violência. Como relembra a
(2015), a sub-representação feminina nas estruturas for- autora Lívia Magalhães (2017), pensar a condição da mu-
mais políticas ainda era um desafio a ser enfrentado pelos lher hoje é pensar em aspectos centrais da nossa sociedade
países democráticos. como um todo: é pensar em minoria, direitos civis, precon-
ceito e violência. Feminismo é a palavra que engloba a re-
A realidade brasileira é que, embora ocupem posições de ação a tudo o que violenta a mulher. Trata-se de um fazer
destaque em todas as profissões, as mulheres ainda rece- político. E no Brasil, país dos mais contraditórios, quando
bem menos que os homens na mesma função. São maioria o assunto é mulher, falar disso é urgente!
no mercado de trabalho, nas universidades, mas enfrentam
muito mais dificuldades para inserção e crescimento pro- Uma das fundadoras da União de Mulheres do Município
fissional. Tanto na iniciativa privada como na administra- de São Paulo, Amelinha foi perseguida e torturada durante
ção pública, principalmente na política, são pouco valori- o regime militar (CISCATI, 2020). Nos anos 70 publicou
zadas para cargos de diretoria e de decisão. Infelizmente, o jornal “Brasil Mulher” que trazia temas até hoje debati-
as mulheres são discriminadas e vítimas de uma cultura dos, desde o direito das trabalhadoras domésticas à criação
machista, sexista e misógina. O que o movimento feminista de políticas públicas de saúde específica feminina. Em sua
pretende é se organizar, fortalecer, proporcionar formação primeira edição, a capa trazia a fotografia de uma mulher
e incentivar a participação feminina na atividade partidá- jovem, negra e grávida. Mesmo sendo escassas as referên-
ria para construir candidaturas representativas de todos os cias, deve-se lembrar que foram as feministas as primeiras
segmentos. a irem às ruas durante a ditadura militar. Como coloca a
Rádio Missioneira (2020), Maria Amélia de Almeida Teles
A respeito da quarta onda do movimento, em 2015 ini- afirma que “pouco se fala nisso hoje em dia, mas as femi-
ciava-se a primavera feminista no Brasil, quando mais mu- nistas foram as primeiras a irem para a rua durante a dita-
lheres começaram a indagar as fatídicas imposições sociais dura militar”.
e lutar por seus direitos. O fenômeno da globalização, a
ampliação dos meios de comunicação e a internet coloca-
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No ano de 2019, mulheres denunciaram publi- da ocultos, e que historicamente foram levados a termo por
camente homens poderosos em incontáveis casos de assé- mulheres negras e indígenas contra o colonialismo, ela joga
dios. Elas organizaram manifestações em diferentes países luz sobre esses aspectos que podem servir de fonte de ins-
contra o feminicídio e pela manutenção e ampliação de piração para ações políticas feministas descolonizadoras.
seus direitos. Temos como maior exemplo desse fato o mo- Segundo Lélia Gonzalez (1988), existem duas formas de
vimento #MeToo, que ganhou força no ano de 2017 entre racismo que sustentam os pilares da violência racial, sendo
as atrizes de Hollywood contra a cultura de assédio sexual, elas o racismo aberto e o disfarçado. Este é percebido nas
escancarando as barbaridades no principal cenário do ci- sociedades de origem latina, enquanto aquele perdura nos
nema mundial e rapidamente tomando conta das platafor- Estados de origem anglo-saxônica.
mas digitais, com repercussão em todos os cantos do plane-
ta (BBC News Brasil, 2018). Redes de apoio foram criadas No racismo disfarçado, “prevalecem as
para ajudar vítimas de violência doméstica, de agressões ‘teorias’ da miscigenação, da assimilação
e de estupros. Unidas, as mulheres desenvolveram grupos e da ‘democracia racial’”, e essa forma de
de debate e de apoio mútuo nas redes sociais. Discutiram e se manifestar, afirma, ao pensar o Brasil,
condenaram o machismo, o racismo e a homofobia. E trou- impede a “consciência objetiva desse
xeram força para a nova onda de um movimento que tem racismo sem disfarces e o conhecimento
mudado mentalidades, comportamentos e relações.
direto de suas práticas cruéis” pois a
crença historicamente construída sobre a
Temos como maior referência no tema discutido até então,
miscigenação criou o mito da inexistência
Lélia Gonzalez, intelectual, política, professora e antropó-
do racismo em nosso país. No racismo
loga brasileira, graduada em História e Filosofia, mestre
em Comunicação e doutora em Antropologia Social. De- latino-americano, continua Lélia Gonzalez,
fensora de um feminismo afro-latino-americano compro- a alienação é alimentada através da
metido com a recuperação dos processos de resistência e ideologia do branqueamento cuja eficácia
insurgência aos poderes estabelecidos, em sua maioria ain- está nos efeitos que produz: “o desejo
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preconceito e discriminação por parte da partir de certas noções que, forçando sua emergência em
família do esposo, que se suicidou pouco nosso discurso, nos levaram a retornar a questão da mu-
lher negra numa outra perspectiva” (GONZALEZ, 1984. p.
tempo depois. Lélia manteve o sobrenome
224).
Gonzalez em homenagem ao marido e esta
experiência a “enegreceu” e a impeliu a Ainda sobre o feminismo negro no Brasil, contamos com a
entrar na luta política contra o racismo. escrita de Sueli Carneiro, filósofa, escritora e ativista antir-
(MAEDA, 2020) racismo do movimento social negro brasileiro, fundadora
e atual diretora do Geledés — Instituto da Mulher Negra.
Como é abordado na matéria realizada por Camila Eiroa
A partir das informações coletadas na Pesquisa para a Revista Trip (2018), com a participação de Sueli
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), di- Carneiro,
vulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) com base em dados de 2019, aponta-se que mais da
metade dos brasileiros era de pretos ou pardos: 56,10%. As “O lugar que nos foi destinado,
desigualdades podem ser verificadas em diversas estatísti- como o limite da exclusão, nos faz
cas, contudo, elas são ainda mais gritantes quando se tra- portadoras de uma visão crítica
ta da mulher preta. De acordo com Lélia Gonzalez (1984), da sociedade brasileira, com a
para uma melhor interpretação sobre o duplo fenômeno do
radicalidade que somente esse lugar
racismo e sexismo, temos que determinar o lugar que nos
encontramos. Considerando que o racismo se caracteriza
contém. Trazemos dessa realidade
como uma neurose cultural brasileira, temos que essa jun- narrativas que ainda não foram
ção com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher contadas, personagens insondáveis
negra em particular. A partir disso, “[…] o lugar de onde em sua grandiosidade humana”,
falaremos põe um outro […] E a mudança foi se dando a declara Sueli, que acredita que a
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as hierarquias de gênero na nossa sociedade. Ou então es- lheres negras, seguirmos sendo alvo de constantes ata-
tarão apenas contribuindo para manter as relações entre ques, a humanidade toda corre perigo (RIBEIRO, 2018. p.
as mulheres hierarquizadas, reproduzindo o discurso he- 27). Como traz Djamila Ribeiro (2018, p. 52), segundo a
gemônico. socióloga Núbia Moreira, no Brasil o feminismo negro co-
meçou a ganhar força nos anos 1980 quando as mulheres
O falar não se restringe ao ato de negras estabelecem uma relação com o movimento femi-
emitir palavras, mas a poder exis- nista a partir o III Encontro Feminista Latino-Americano,
tir. Pensamos lugar de fala como em Bertioga, 1985, de onde emerge a organização atual de
refutar a historiografia tradicional mulheres negras como expressão coletiva, com intuito de
e a hierarquização de saberes con- adquirir visibilidade política no campo feminista.
sequente da hierarquia social. […] Os anos entre 1990 e 2000 foram considerados a década
O alto índice de feminicídio de mu- das mulheres na política, pois até o momento a luta femi-
lheres negras e a constatação de nista já havia promovido mudanças profundas na socie-
que as mulheres negras ainda são dade brasileira. Agora escolarizadas, trabalhadoras e com
maioria no trabalho doméstico e menor número de filhos, as mulheres tomaram a cena pú-
blica. A autonomia e a independência ganhavam forma,
terceirizado são exemplos do lugar
modificando as relações familiares, quebrando paradig-
que ainda se ocupa.
mas, como o velho tabu da virgindade, e encarando a cul-
(RIBEIRO, 2019. p. 64-65)
tura do patriarcado (SHUMAHER; CEVA, 2015. p. 186).
Como colocam as autoras Shumaher e Ceva (2015), já não
era preciso declarar-se feminista para aderir à causa dos
No livro Quem tem medo do feminismo negro?,
direitos das mulheres.
a autora Djamila Ribeiro afirma que ao perder o medo do
feminismo negro, as pessoas privilegiadas perceberão que
nossa luta é essencial e urgente, pois enquanto nós, mu-
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PARTICIPAÇÃO FEMININA
NA POLÍTICA BRASILEIRA
E AS CONDIÇÕES
TRABALHISTAS
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Como é trabalhado por Flávia Biroli (2018. p. 17), discutir ticipação política das mulheres, a restrição ao atuar e a au-
os obstáculos à participação política das mulheres no Brasil sência delas, vale lembrar que a ação organizada por elas
é dizer que o mesmo país que elegeu e reelegeu em 2010 e tem seguido cursos alternativos e produzido efeitos tam-
2014, Dilma Rousseff para a presidência da república, em bém no âmbito estatal. Os movimentos feministas fazem
2016, por meio de um golpe parlamentar, a afastou pela pressão na rua, crescem de “fora” para “dentro” do Estado
misoginia e os estereótipos de gênero. É preciso debater a construindo políticas de referência para as democracias
atuação das mulheres na política para além dos processos contemporâneas no âmbito nacional e transnacional. Fre-
eleitorais. Há de se lembrar que em 1988 os movimentos quentemente, essa forte atuação se conecta com as diversas
feministas atuaram diligentemente junto ao Estado no ci- formas que têm relação direta com a representação femini-
clo democrático, renovando o ativismo feminista e, já em na nos espaços formais e produz efeitos concretos.
2003, obtendo mais força com a chegada do Partido dos
Trabalhadores (PT) ao Governo Federal. Biroli (2018), professora de Ciências Políticas, enfatiza
que falar de mulher na política no Brasil não é só dizer da
Biroli (2018) ainda afirma que obstáculos materiais, sim- sua ausência. Ela ainda coloca que, da metade do século
bólicos e institucionais levantam barreiras que dificultam a XX para cá, as mulheres têm se organizado em diferentes
atuação das mulheres e alimentam os circuitos da exclusão, contextos, incluindo as filiações partidárias, atuações em
ressaltando de uma maneira formal, que ainda há violência sindicatos e movimentos sociais, e que, com isso ampliou-
contra as mulheres na política. O espaço ainda tido como -se bastante a agenda da participação feminina na polí-
masculino, acomodado no ideal de universalidade, exclui e tica, reivindicando e destacando, por exemplo, o direito
marginaliza as mulheres. A história que vem sendo conta- a creches, o combate à violência contra as mulheres e a
da por intelectuais feministas, de um modo que traz à tona defesa dos direitos reprodutivos e sexuais. Flávia Biroli
as conexões e as tensões entre o patriarcado e o capitalis- (2018) comenta que
mo, desvenda as matrizes de dominação das instituições
políticas modernas que ao mesmo tempo são patriarcais, […] os limites à participação política das mu-
racistas e colonialistas. Mesmo com tantas barreiras à par- lheres e os conflitos em torno das lutas fe-
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ministas estão longe de ser um problema es- Janete Pietá, historiadora, arquiteta e deputada federal
pecífico de um grupo. Trata-se de questões (2006), a primeira mulher afrodescendente eleita pelo PT
paulista, além de feminista, diz que “a sociedade tem que
específicas para a democracia e seu futuro.
parar com essa visão que a mulher tem que ser esse ser
(BIROLI, 2018. p. 204)
submisso, subjugado, idolatrado como mãe, mas fenecido
e violentado, na medida em que começar a pensar e a exigir
seu direito enquanto mulher. A Lei Maria da Penha mexe
O mapa Mulheres na Política de 2019, um com essa estrutura patriarcal” (SHUMAHER; CEVA, 2015.
relatório da ONU e da união interparlamentar, revela que p. 353-354). Manuela D’Ávila, jornalista, socióloga, verea-
no ranking de representatividade feminina no parlamento dora (2004), deputada federal (2006), deputada estadual
o Brasil ocupa a posição 134, entre 193 países pesquisados, (2014), defende com afinco uma maior participação das
com 15% de participação de mulheres. São 77 deputadas mulheres nos espaços de poder, pois considera o Congres-
nas 513 cadeiras na Câmara. Dos 11 cargos da mesa direto- so Nacional um ambiente ainda patriarcal.
ra (incluindo suplentes) as deputadas ocupam apenas dois;
e das 25 comissões permanentes somente quatro são pre- O Sistema tremeu quando uma mulher foi presidente. Em
sididas por mulheres. Entre os 81 senadores, somente 12 2010, com 56,05% dos votos, Dilma Rousseff tornou-se a
são mulheres. Já no ranking de representatividade femi- primeira eleita da cadeira presidencial e, em seu discurso
nina no governo, o Brasil ocupa apenas a posição 149, em de posse, enfatizou a relevância do acontecimento para a
um total de 188 países. O governo de Jair Bolsonaro tem participação feminina em espaços de poder: “Venho para
somente 9% de representatividade feminina, com apenas abrir portas para que muitas outras mulheres possam, no
duas mulheres entre os 22 ministros. A média mundial é de futuro, ser presidenta; e para que — no dia de hoje — to-
20,7%. O país vive uma crise moral e de credibilidade sem das as mulheres brasileiras sintam o orgulho e a alegria de
precedentes. A política foi criminalizada, a tal ponto que ser mulher” (ROUSSEFF, 2010). A entrada de uma mu-
mesmo os que exercem a política com honradez, decência e lher para assumir a gestão de um país trouxe algumas no-
responsabilidade são vistos com desconfiança. vidades, modificando o cenário político brasileiro. Dilma
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lheres negras. Em Florianópolis, nos anos de 1920, criou A luta das mulheres é pela ocupação dos espaços que elas
e dirigiu por sete anos o jornal A Semana, onde prioriza quiserem. Seja dentro de casa, na cozinha, estudando dou-
em suas crônicas questões ligadas à educação, à política, ao torado dentro de uma universidade e principalmente no
preconceito racial e à condição feminina. A primeira depu- parlamento, que historicamente foi reservado ao homem
tada estadual negra do Brasil se elegeu por Santa Catarina, branco. Há de se pensar que, para quebrar as barreiras
na década de 30, depois de conversar e debater com as fe- e mudar o cenário de gestores públicos que desprezam e
ministas da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino anulam as liberdades femininas, o esforço tem que ter o
e também com a ativista Bertha Lutz. objetivo de propor a reserva de 50% das vagas às mulhe-
res. Com isso se conseguiria uma real equidade de gênero
Não tem como deixar de reverenciar Benedita da Silva, ou- dentro do espaço político. Concluindo essa parte do ensaio,
tra personalidade importante reverenciada pelas autoras é importante relembrar a seguinte frase dita por Michelle
Shumaher e Ceva (2015). Benedita da Silva é auxiliar de Bachelet, ex-presidenta do Chile: “Quando uma mulher en-
enfermagem, assistente social, primeira mulher negra se- tra na política, muda a mulher. Quando muitas mulheres
nadora do país (1994), vice-governadora do Estado do Rio entram na política, muda a política”.
de Janeiro (2002), ministra da Assistência Social (2003)
e deputada federal (eleita em 1986 até 2020). Mulher ne-
gra, favelada e feminista, como a própria se define, Bené
é conhecida e admirada por onde passa. Foi uma das fun-
dadoras do Partido dos Trabalhadores (PT) e acreditava
que para transformar a sociedade era preciso ter poder.
Na Câmara do Deputados, foi relatora da Emenda Cons-
titucional #72 — a PEC das Domésticas —, reafirmando o
compromisso com essa classe. Ainda no ano de 2013, criou
um aplicativo gratuito para empregados e empregadores
domésticos se informarem de seus direitos e deveres nesta
nova legislação.
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Os parlamentares que mantêm o sistema patriarcal não enfrentamento a essas e outras formas de violência de gê-
aceitam serem flagrados e exterminam quem ousar entre- nero é um caminho sem volta. Os dados apresentados no
gar seus esquemas. atlas citado devem contribuir para destacar e denunciar a
morte de mulheres, assim como a necessidade do aprimo-
Historicamente, as práticas genocidas, tais como a violên-
ramento dos mecanismos de enfrentamento.
cia policial, o extermínio de crianças e a ausência de políti-
cas sociais que deveriam assegurar o exercício dos direitos As categorias de gênero e raça são fundamentais para en-
básicos de cidadania, servem de base para a ação opositora tender a violência letal contra a mulher, que é, em última
dos movimentos negros contra o sistema. Os problemas instância, resultado da produção e reprodução da iniquida-
colocados hoje pelos temas de saúde e de população nos si- de que permeia a sociedade brasileira, como mostra o Atlas
tuam num quadro talvez ainda mais alarmante em relação da Violência (2018) oferecido pelo IPEA. Desagregando-se
aos processos de genocídio do povo negro no Brasil. a população feminina pela variável raça/cor, confirma-se
um fenômeno já amplamente conhecido: considerando os
Segundo o Atlas da Violência (2018) publicado pelo IPEA,
o início do ano de 2018 foi marcado pelo assassinato de dados de 2016 apresentados no Atlas da Violência, a taxa
Marielle Franco, um episódio hediondo que chocou a po- de homicídios é maior entre as mulheres negras (5,3) que
pulação brasileira. Ainda de acordo com este documento, entre as não-negras (3,1) — a diferença é de 71%. Em re-
a mulher, negra, mãe e moradora da favela da Maré, Ma- lação aos dez anos da série, a taxa de homicídios para cada
rielle Franco, era vereadora da Câmara Municipal do Rio 100 mil mulheres negras aumentou 15,4%, enquanto que
de Janeiro e, no dia 14 de março, foi morta em um atentado entre as não-negras houve queda de 8%. Em 20 estados, a
covarde. Treze tiros atingiram o veículo onde ela estava. A taxa de homicídios de mulheres negras cresceu no período
comoção pública e a transformação de seu nome em sím- compreendido entre 2006 e 2016, sendo que em 12 deles o
bolo de resistência são sinais de que a violência contra a aumento foi maior que 50%. Comparando-se com a evolu-
mulher está deixando de ser naturalizada. Se as leis e po- ção das taxas de homicídios de mulheres não-negras, neste
líticas públicas ainda não são suficientes para impedir que caso, houve aumento em 15 estados e em apenas seis deles
vidas de mulheres sejam tiradas de maneira tão brutal, o o aumento foi maior que 50%.
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A conceituação de feminicídio político vem de uma triste nosso conhecimento todos os dias? O epistemicídio é um
realidade da nossa sociedade e explica o contexto sobre o conceito de Boaventura de Souza Santos, que classifica o
qual ocorre a execução de uma mulher com carreira ascen- não reconhecimento e/ou a destruição do conhecimento,
dente na política. Sendo assim, é possível incluí-la nas es- saberes e cultura não assimilados pelo Ocidente branco.
tatísticas do Atlas da Violência de 2018 do IPEA que apon- Quer dizer que a produção do conhecimento advindo de
tam o crescimento de 15% no número de feminicídios de países negros não é reconhecida pela hegemonia branca,
mulheres negras, em apenas dez anos. Sem dúvidas o ma- colonizadora.
chismo e o racismo são gatilhos letais. Marielle por vezes
denunciou que essas mortes também podem ser creditadas Enquanto Renata Souza (2020) fazia uma leitura do Dos-
ao Estado, por sua negligência e omissão diante da inércia siê Mulher de 2018, cujo mote jogava luz à história de
em aplicar políticas públicas que preservem a vida das mu- Marielle, veio à cabeça dela que a execução da vereadora
lheres. caracterizava na verdade um feminicídio político. Assim
que passou a utilizar o termo, em falas públicas para refe-
Renata Souza, jornalista e doutora em Comunicação e Cul- renciar o que acontecia a olhos vistos, alguns companhei-
tura, é nascida e criada na Favela da Maré, no Rio. Negra e ros optaram por não admitir tal formulação, questionando
feminista, Renata atua na defesa dos Direitos Humanos há o fato de a expressão ressaltar o crime de ódio e esvaziar
mais de 12 anos. Eleita deputada estadual no RJ, ela nos o seu caráter político. Mesmo que entendesse a análise, a
oferece o termo feminicídio político, em seu artigo do site jornalista havia procurado se embasar em conceitos so-
Mídia Ninja, como a expressão que considera mais adequa- ciológicos brasileiros e, levando em consideração os dados
da para sistematizar o possível resultado de um conjunto alarmantes de violência contra mulheres — em especial as
de violências políticas a ela destinadas. Algumas pergun- negras, moradoras de favelas e periferias, os corpos consi-
tas deixaram a jornalista inquieta — o conceito de Marielle derados matáveis —, organizou sua formulação comunica-
contribui para uma elaboração mais aprofundada sobre o tiva, dando uma noção bem acabada ao termo. Nesse sen-
que as mulheres, negras e crias de favela vivenciam todos tido, as estatísticas são assustadoras: em dez anos, entre
os dias? Ou o epistemicídio seguirá matando ou anulando 2007 e 2017, ainda de acordo com o Atlas da Violência de
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2018 publicado pelo IPEA, houve um aumento em cerca de […] Nos reconhecer enquanto sujeitas po-
30% de feminicídio de mulheres negras e de 1% de mulhe- líticas, com toda dor e luta que isso repre-
res não-negras. Além do alarmante crescimento, no referi-
senta, não nos permite silenciar diante do
do ano, em mais de 300% da violência contra a mulher em
apagamento histórico. Eu estou deputada
decorrência de conflitos agrários e da luta por justiça so-
cial, de acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra.
estadual, mas sou jornalista por formação e
Ou seja, Marielle, mulher, negra, LGBT, periférica, se en- intelectual com doutorado na UFRJ. A pro-
quadra “perfeitamente” como um corpo matável no Brasil. dução de conhecimento preto, pobre e fa-
E era justamente para a preservação da vida desses grupos velado caminha junto com a opção política
que a vereadora dedicara sua militância, sua política e toda de luta contra as desigualdades, em espe-
sua energia dentro do parlamento. cial de gênero, raça e classe. É por Marielle,
Como presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos Hu- mas é por todas nós.
manos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado (SOUZA, 2020)
do Rio de Janeiro (Alerj), Renata Souza afirma que dará
continuidade ao trabalho desenvolvido por Marielle Fran-
co quando coordenou por cerca de dez anos esta Comissão. Como salienta Renata Souza (2019), a investi-
Ainda de acordo com a referida matéria no site da Mídia gação do feminicídio político que vitimou Marielle precisa
Ninja, como iniciativa, pretende ampliar o atendimento às ser levada adiante. Querem encerrar o caso como crime de
vítimas de violência do Estado — um grande desafio e res- ódio porque seu algoz afirmou que a matou por “repulsa”.
ponsabilidade, diante de governos reacionários que carre- Depois de 363 dias para chegar aos assassinos, não tem
gam a bandeira da ignorância e do ódio como questões de como não concluir que não houve um mandante, já que
políticas públicas. tanta demora se deu por se tratar de um crime praticado
por assassinos profissionais que já praticavam crimes sob
encomenda. É imprescindível saber quem mandou matar
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Marielle e quais as motivações. A luta e exigência de uma Ainda de acordo com a publicação do Instituto
resposta concreta do Estado brasileiro continuam. Como Humanitas Unisinos (2020), em comunicado à imprensa,
Renata Souza finaliza seu texto, o feminicídio político de a organização não governamental Anistia Internacional
Marielle fragiliza a democracia. revela a importância de haver um grupo independente de
especialistas para acompanhar o restante das investigações
Viúva da vereadora, Mônica Benício insiste que o escla-
e o processo. “A organização reitera que ainda há muitas
recimento do crime e a condenação de todos os envolvi-
perguntas não respondidas e que as investigações devem
dos são um dever do Estado, para aqueles que esperam
continuar até que os autores e os mandantes do assassinato
justiça e para se fazer valer a própria democracia, e que é
sejam levados à justiça”.
fundamental saber quem mandou matar Marielle Franco
(INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS, 2020). Depois de
serem denunciados pelo Ministério Público, pelos assas-
sinatos de Marielle Franco e de seu motorista, Anderson
Gomes, o policial reformado Ronnie Lessa e o ex-policial
militar Élcio Queiroz foram presos.
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MANIFESTAÇÕES
CULTURAIS E ARTÍSTICAS
COMO FORMA DE
CONSTRUÇÃO
DA IDENTIDADE DO
JOVEM BRASILEIRO
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índios sofreram com a chegada dos do aborda a história trágica entre corrupção e traição; os
portugueses, ou os africanos, du- bastidores do golpe midiático-jurídico-parlamentar (ter-
mo usado pelo jornal El País, 2020) da primeira mulher
rante a escravidão. Se o funk é hoje
presidente do Brasil, Dilma Rousseff; o julgamento de seu
uma instituição e serve para expor
antecessor Luiz Inácio Lula da Silva; a eleição do candidato
as crenças e realidade de um povo, de extrema-direita Jair Bolsonaro; e a crise político-econô-
tem a mesma função social que o mica recente do Brasil. Com acesso privilegiado a políticos
rap, por exemplo. importantes, o filme entrelaça o pessoal e o político, anun-
(FRANCO, 2020) ciando um momento decisivo da história recente do Brasil,
e serve de alerta para todas as democracias do mundo.
Luyara Franco, filha de Marielle Franco, com-
Lembrando que as mulheres negras sempre foram silen-
pleta sua reportagem com a seguinte passagem: “Daqui se-
ciadas pela sociedade racista. Produções internacionais
guimos firmes no compromisso de, seguindo os passos de
também levaram para a telona a questão. O filme Estre-
minha mãe e honrando as melhores memórias afetivas do
las Além do Tempo (2016) retrata a história real de três
meu pai, defender que o funk é uma expressão da cultura
cientistas, matemáticas e engenheiras afro-americanas que
favelada que insistem em criminalizar — e nós, em resistir”
trabalhavam no Centro de Pesquisa da NASA. As reflexões
(FRANCO, 2020).
e discussões giram em torno de raça/gênero e mostram a
Acerca da manifestação artística nas produções cinemato- invisibilidade dessas mulheres no setor tecnológico. Base-
gráficas, com o avanço da tecnologia e investimentos, os ado no livro de Margot Lee Shetterly, autora de livros de
filmes que dizem respeito aos movimentos feministas e a não-ficção que que também é afro-americana. Ela cresceu
democracia ganham espaços importantes na cena cultu- numa família de cientistas, engenheiros e físicos — muitos
ral brasileira e no mundo. A cineasta Petra Costa dirigiu deles trabalharam na NASA. O filme é um documento pre-
Democracia em Vertigem, indicado ao Oscar como me- ciso dos desafios enfrentados pelas mulheres negras que
lhor documentário de longa-metragem em 2020. O enre- trabalhavam na NASA há 60 anos.
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No filme As Sufragistas, a história se passa no início do to de guerreiras. A trama valoriza as particularidades dos
século XX. Após décadas de manifestações pacíficas, as povos africanos e conta a trajetória política do movimento
mulheres ainda não possuem o direito de voto no Reino negro nos Estados Unidos pela luta por direitos sociais. A
Unido. Um grupo militante decide coordenar atos de in- sociedade norte-americana conviveu com a escravidão du-
subordinação, quebrando vidraças e explodindo caixas de rante séculos, como aconteceu também no Brasil, onde até
correio, para chamar a atenção dos políticos locais à causa. hoje o povo preto tem de lidar com a falta de oportunidades
A personagem principal, sem formação política, descobre iguais e a desigualdade econômica (ADOROCINEMA).
o movimento e passa a cooperar com as novas feministas.
Ela enfrenta grande pressão da polícia e dos familiares para E quanto à leitura? Temos referências de literatura femi-
voltar ao lar e se sujeitar à opressão masculina, mas deci- nista ou feminina? Como mostra a história, a exclusão das
de que o combate pela igualdade de direitos merece alguns mulheres em todos os setores, no campo literário, não se-
sacrifícios (ADOROCINEMA). Já na série Mrs America, ria diferente. Para elas eram reservados apenas os papéis
de 2020, o enredo problematiza a vida de uma advogada de personagens secundários, já que as escritas masculi-
e ativista conservadora na década de 70. Conhecida nacio- nas insistem em apresentar as mulheres com estereótipos
nalmente por suas ideias antifeministas, ela trava embates de submissão, obediência e silenciamento feminino, bem
entre o grupo que liderava e suas oponentes feministas. como o modelo do patriarcado manda. No livro A More-
Esses encontros são responsáveis por mudar o cenário po- ninha, Carolina era marcada pela sua beleza, delicadeza
lítico-cultural dos Estados Unidos completamente. (ADO- e fragilidade, e o casamento era a promessa de futuro. Já
ROCINEMA). para Capitu, de Dom Casmurro, apesar dos esforços do
autor em problematizar a liberdade, ainda temos apenas
O ano era 2018 e Pantera Negra estreava repleto de refe- a narração sob o ponto de vista de um homem ciumento
rências históricas e culturais, além de reafirmar a luta por e possessivo. Nunca saberemos a versão dela. Em 1970,
direitos. A história traz uma mulher como líder do reino Kate Millet publicou a tese de seu doutorado, Sexual Po-
fictício de Wakanda que ganha os poderes do Pantera Ne- litics, onde deu visibilidade à escrita de mulheres, tentan-
gra para proteger seu povo, além de contar com um exérci- do denunciar e desestabilizar a ideologia reducionista das
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personagens femininas. A partir daí, a importante Crítica xão e questionamento no casamento. E a maioria nem se
Literária Feminista foi consolidada. considerava feminista. Nem precisava. Ao fazer a leitura da
crítica feminista, percebem-se grandes modificações nas
Fazendo mais um resgate, trazemos nomes nunca listados representações de mulheres e das suas amarras sociais; e
em livros didáticos e nunca indicados para vestibulares e por fim, 3) Da Mulher - A década de 90 é marcada por
concursos. Segundo a pesquisadora Elódia Xavier, no ar- novas identidades para as mulheres, já libertas do peso da
tigo Narrativa de autoria feminina brasileira: as marcas tradição. Nessa fase a produção escrita por mulheres teve e
da trajetória (1998), são três as fases da literatura prati- ainda tem um papel, mesmo que inconsciente, de desesta-
cada por mulheres no Brasil, com base no estudo de Elai- bilizar a tradicional representação da mulher na literatura
ne Showalter (1985), sendo elas apresentadas da seguinte canônica que divergia com a grande diversidade de identi-
forma: 1) Feminina - O reconhecimento das primeiras dades femininas que povoam a realidade extraliterária da
mulheres nas letras no país se dá com a publicação de Úr- mulher contemporânea. São elas: Ana Paula Maia, Patrícia
sula, de Maria Firmina dos Reis, em 1859, considerado o Mello, Nilza Rezende, Conceição Evaristo, Jarid Arraes,
primeiro livro escrito por uma mulher no Brasil, mas só Stella Florence, Leticia Wierzchowski, Tatiana Salem Levy,
reconhecido no século XIX. Ela ainda teve que usar um Carola Saavedra, Carol Bensimon, Aline Bei, entre tantas
pseudônimo, “A Maranhense”. Ainda presas no modelo pa- outras. Ainda que o painel já tenha se alterado — e elas acu-
triarcal, mas que já marcam a mudança no protagonismo mulem algumas conquistas significativas de direitos, em
feminino e que vale muito a pena a leitura, são: Júlia Lopes várias frentes —, as mulheres ainda são minoria nas edito-
de Almeida, Carolina Nabuco, Gillka Machado, entre ou- ras mais consagradas do Brasil.
tras; 2) Feminista - Junto com os avanços do movimen-
to feminista no Brasil, no século XX surge uma nova fase
com a publicação Perto do Coração Selvagem, de Clarice
Lispector. As mulheres dessa fase, Nélida Piñon, Lygia Fa-
gundes Telles, Lya Luft, entre outras, repensam a condição
da mulher na sociedade e passam por momentos de refle-
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CONCLUSÃO
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CONCLUSÃO
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tanto a indicadores sintéticos, como o IDH (Índice de De- de empoderamento é no intuito de promover uma mudan-
senvolvimento Humano) ou o Índice de Condição de Vida ça estrutural numa sociedade dominada pelos homens e
(ICV), como a indicadores específicos desagregados, por fornecer outras possibilidades de existência e comunidade.
exemplo: taxa de mortalidade, taxa de analfabetismo, de-
fasagem série/idade na escola, oferta de serviço público e Ainda no resgate histórico, a autora, professora, teórica fe-
acesso a eles, probabilidade de morte por violência, entre minista, artista e ativista social estadunidense, Bell Hooks,
outros. Adiciona ainda que são premissas do governo bra- em seu livro O feminismo é pra todo mundo (2020), defen-
sileiro assegurar a confiança internacional e concentrar de que a educação feminista para uma consciência crítica
todos os esforços no que diz respeito aos acordos que se deve ser contínua. Enquanto mulheres usarem poder de
referem à economia como um todo. Espera-se a mesma classe e de raça para dominar outras mulheres, a sorori-
atenção pelos compromissos sociais e de desenvolvimento dade feminista não poderá existir por completo (HOOKS,
humano pactuados internacionalmente. Para isso, bastaria 2020. p. 36). De acordo com Hooks (2020), é preciso reno-
incluí-los entre os objetivos e metas de um Plano Pluria- var o comprometimento com a solidariedade política entre
nual (CARNEIRO, 2018). Djamila Ribeiro (2018) enfatiza as mulheres, força essa que antes fazia mudanças significa-
que as pessoas que ignoram o racismo e o machismo, como tivas e positivas acontecerem, mas que hoje está ameaçada
elementos que baseiam a realidade de nossa sociedade, e desvalorizada. É preciso resgatar esse momento embrio-
não percebem que nenhum espaço está isento de ações re- nário, surgido com tamanha força quando o movimento
pressivas. Falar de questões vistas como inferiores, falar da feminista começou.
mulher, da população negra e LGBT QIA+ é romper com
a visão conveniente de universalidade que exclui. Discu-
tir temas como esses tornou-se questão de sobrevivência
e nos vale como denúncia para a dura e desigual realidade
Nós devemos erguer-nos enquanto
(RIBEIRO, 2018. p. 76). Não é possível falar de política, subimos. Assim como nossas ances-
sociedade e arte sem falar de racismo e sexismo. A autora trais se organizaram pela aprovação
(RIBEIRO, 2018) também comenta que quando falamos de uma lei federal antilinchamentos
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– e se envolveram no movimento dariedade com seus principais alvos, aquelas e aqueles opri-
sufragista feminino a fim de assegu- midos em razão de sua raça e nacionalidade (DAVIS, 2017).
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