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sabedoria

marginal

a cidade na ótica
ancestral-periférica

O caso do Ilê Asé Odé Ibualamo em Carapicuíba:


caminhos para reparação
sabedoria
marginal
a cidade na ótica ancestral-periférica
O caso do Ilê Asé Odé Ibualamo em Carapicuíba:
caminhos para reparação

João Pedro Manccini Fernandes


Trabalho Final de Graduação

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo


Universidade Presbiteriana Mackenzie
Orientador
Professor Dr. Celso Aparecido Sampaio
São Paulo | 2023
agradecimentos e dedicatória
Agradeço primeiro aos que vieram antes, àquelas e àqueles ancestrais que
trilharam os caminhos, caminharam para que eu pudesse correr. Também
a todos que deixaram pela estrada valiosas heranças de luta e de saberes:
mestres, lideranças, artistas, autoras e autores, centelhas de esperança.
Especialmente registro minha gratidão à Mãe Zana, que confiou na potência que
Especialmente agradeço aos que estão por perto, pois é diretamente guardo, me cuidou, apoiou e ORÍ-entou este trabalho com muita paciência, e que
graças a eles que consegui realizar esse trabalho: Mãe, Pai, Irmãos de junto dos seus aliados e aliadas autoridades da Tradição, Kotas, Tatas, Iyás e
sangue (Lorenzzo, Maria e Murillo) e companheira, Luiza. Seu afeto, Babás e suas comunidades, me fizeram aprender muito e ampliar horizontes.
carinho e apoio material, psicológico e espiritual foram essenciais para
Juntam-se a eles todas as outras pessoas que agregaram à luta de Zana: Regina
que conseguisse concluir esse trabalho.
do MNU (Movimento Negro Unificado), deputadas e vereadoras do SPPretas
Aos mestres, Pais Carlos e Gonçalves, e todos da família espiritual e Quilombo Periférico, Professor Naldo, turma da Escola da Cidade, técnicas,
que iniciou e me presentou com pontes para a ancestralidade e para o militantes, lideranças e outras profissionais que também trabalharam em
autoconhecimento. conjunto pela Frente Ilê Odé, com quem também pude aprender bastante.
Aos meus orientadores e professores, em especial ao Celso que confiou em À luta do povo preto e periférico dedico inteiramente esse trabalho, em especial
mim acolhendo divagações, críticas, inquietações e abrindo ainda mais os aos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Também dedico a todos que virão, que
caminhos que eu lhe trazia. poderão aproveitar os frutos da luta que colaboro e da minha prática futura na
Aos meus iguais, colegas, amigos e amigas que me apoiaram e profissão, que com a bênção dos ancestrais deverá dar bons frutos!
compartilharam comigo as dores e as delícias da Universidade
Presbiteriana Mackenzie: Otávio, Tenente, Taniguchi, Rafael, Hiques, Bia’s,
Fernanda, Joana, Robson, Letícia, Phineas e Pherb, Skruz, pessoal coletivo
de ProUnistas, do diretório acadêmico e muitos outros que aqui não
couberam, mas que cruzaram os caminhos da formação comigo.
Aos amigos da vida que entenderam quando tive que deixar de estar
presente e me apoiaram e incentivaram sempre que precisei: pessoal dos
escritórios, Ojuara e João, Julia, Gobbi, Jayam e Fefa, Igor e Nath, Iago,
Bruno, João e Rafa.

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A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor.
Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune.
Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado.
A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros.
A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade.
Agogôs e tamborins acompanhados de violinos, só depois da aula.
Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção.
Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da
múltipla escolha.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não quer.
Da poesia periférica que brota na porta do bar.
Do teatro que não vem do “ter ou não ter...”.
Do cinema real que transmite ilusão.
Das Artes Plásticas, que, de concreto, quer substituir os barracos de madeiras.
Da Dança que desafoga no lago dos cisnes.
Da Música que não embala os adormecidos.
Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.
A Periferia unida, no centro de todas as coisas.
Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte vigente não fala.
Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala.
É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão.
Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade
que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades.
Um artista a serviço da comunidade, do país.
Que armado da verdade, por si só exercita a revolução.
Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona.
Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à
produção cultural.
Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avantajado.
Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior.
Miami pra eles? “Me ame pra nós”!
Contra os carrascos e as vítimas do sistema.
Contra os covardes e eruditos de aquário.
Contra o artista serviçal escravo da vaidade.
Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada.

epígrafe
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor. É TUDO NOSSO!

4 Sérgio Vaz, Manifesto da Antropofagia Periférica 5


resumo
A pesquisa tem como foco o caso da remoção do Ilê Asé Odé Ibualamo em
Carapicuíba, periferia da metrópole de São Paulo, sua aproximação temática
é um olhar para a cidade a partir da periferia como lócus crítico e político
somada à cosmovisão ancestral dos Povos Tradicionais de Matriz Africana
(POTMA), centralizada na figura da Iyalorixá Odecidarewa Zana de Odé, líder
do Ilê. O trabalho se estrutura através de uma confluência de referências

resumen
multidisciplinares, buscando construir um ferramental teórico e crítico em três
eixos temáticos: memória e ancestralidade (temporalidade), corpo e culturas
afro-diaspóricas (corporalidade) e território e periferia (territorialidade).
Tendo essas discussões como fundo, se analisará o contexto urbano da La investigación se centra en el caso de la remoción del Ilê Asé Odé
cidade de Carapicuíba e do território tradicional e seu entorno desde suas Ibualamo en Carapicuíba, en la periferia de la metrópolis de São Paulo.
origens até a atualidade, buscando compreender as circunstâncias da Su enfoque temático es una mirada a la ciudad desde la periferia como
remoção. Em seguida, será apresentado um ensaio de proposições urbanas locus crítico y político, sumado a la cosmovisión ancestral de los Pueblos
e arquitetônicas que buscam reparar a violência sofrida pelo Ilê, intervindo Tradicionales de Matriz Africana (POTMA), centrada en la figura de la
diretamente no território onde ele estava estabelecido antes da remoção. Iyalorixá Odecidarewa Zana de Odé, líder del Ilê. El trabajo se estructura
Palavras chave: terreiro; periferia; afro-diaspórico; ancestralidade; POTMA. a través de una confluencia de referencias multidisciplinares, buscando
construir una herramienta teórica y crítica sobre tres ejes temáticos:
libus eorte, Cat. Gra veris, sendiemus habus octu memoria y ancestralidad (temporalidad), cuerpo y culturas afrodiaspóricas
(corporalidad) y territorio y periferia (territorialidad). Con estas discusiones
como fondo, se analizará el contexto urbano de la ciudad de Carapicuíba y
del territorio tradicional (Ilê) y sus alrededores desde sus orígenes hasta
la actualidad, buscando comprender las circunstancias de la remoción.
A continuación, se presentará un ensayo sobre propuestas urbanísticas
y arquitectónicas que buscan reparar la violencia sufrida, interviniendo
directamente en el territorio donde se asentaba el Ile antes de la remoción.
Palabras clave: terreiro; periferia; afrodiaspórico; ancestralidad; POTMA.

6 7
sumário
10 introdução
15 1. abrindo caminhos apresentação e fundamentação
16 I. padê trajetória e confluências
22 II. oti, dendê e farinha eixos embasadores
46 III. encruzilhada território e sujeitos da pesquisa

52 2. aterrar estudos e diagnósticos do território


55 I. corpo e memória, vozes ancestrais genealogias do território
64 II. metrópole e periferia Carapicuíba no contexto metropolitano
70 III. infraestrutura urbana para quem? Carapicuíba, contexto urbano e
ações estatais

90 3. reparação ensaios e propostas para o território


92 terreirizar a cidade

138 conclusão
140 referências
144 glossário
O trabalho que será exposto aqui começa numa encruzilhada entre a cidade ima-
ginária e ideal que se deseja e a cidade que existe hoje, que resiste a ser ocultada,
marginalizada e explorada. Teremos como referência o olhar ancestral das Comuni-
dades e Povos de Tradicionais de Matriz Africana (POTMA), buscando compreender
algumas dinâmicas da sociabilidade, memória, cultura e urbanidade da periferia e
utilizando essa compreensão como inspiração e base para um ensaio urbanístico e
arquitetônico. Este debate toma corpo e território pela história da Unidade Territo-
rial Tradicional de Matriz Africana (UTT) Ilê Asé Odé Ibualamo, localizada na cidade

introdução
de Carapicuíba, periferia oeste da metrópole paulistana e de sua líder, Odecidarewa
Zana de Odé, Mãe Zana.
A UTT segue, até o momento da publicação desse trabalho, em luta para reparação à
violência sofrida no ato de sua remoção, provocada pelo Estado, em face da Prefei-
tura Municipal de Carapicuíba. O principal objetivo desse trabalho passa pela com-
preensão do contexto dessa remoção em diversas escalas e métodos de análise e da
“Precisamos definir as bases para uma nova ordem urbana que também seja preta, que proposição de alternativas e caminhos para reparação, utilizando como ferramentas
também seja feminina, que comunique nossa diversidade étnica e seja alimentadora a arquitetura, o urbanismo e disciplinas complementares. O horizonte da luta é ob-
do nosso processo de empoderamento individual e coletivo. Isso tudo se afirma em um
ter parâmetros para formulação de políticas públicas e urbanas que salvaguardem
urbanismo antirracista, anti-imperialista, antissexista e anticlassista que centraliza
suas ações a partir da nascente das desigualdades e que repara, no presente, os esses territórios e tenham neles referências de cidade.
abismos deixados pelos processos históricos. Aí, sim, chegaremos no ponto que O viés da pesquisa é construído pelo olhar orgânico de um sujeito periférico, alme-
almejamos. Teremos, então, as condições para construir uma vivência urbana mais
justa e humana para todas, para todos e para todes em um futuro próximo.”
jando uma análise estrutural e racializada da cidade. O urbanismo atual e canônico
(BERTH, 2023) pouco tem olhado para essas questões, e mesmo na academia, carece o surgimento
e o protagonismo de campos e caminhos de pesquisa para tanto. A ecologia, que vem
sendo cada vez mais aclamada e suscitada como resposta para os embates da con-
temporaneidade, precisa, necessariamente, passar por esses campos para se tornar
válida. Não haverá transição verde para as cidades sem justiça social, territorial e
racial.
Somado a isso, a ecologia também tem apontado a necessidade de outras interpre-
tações da natureza que vão além do paradigma moderno-colonial, ainda hegemô-
nico, que descreve o humano como sujeito à parte dos sistemas naturais, e coloca
a espécie humana em uma posição hierárquica acima das outras espécies. Veremos
mais adiante que esses mesmos paradigmas buscam estabelecer uma hierarquiza-
ção interna à humanidade, manifestando-se principalmente através das estruturas
sociais racistas, sexistas e classistas. Portanto, ao adotar os temas centrais dos POT-
MA, este trabalho procurou se aproximar de outras perspectivas cosmológicas e on-
tológicas da natureza incluindo a humanidade em sua coletividade e diversidade.
Focou em debates que vão na contramão desses paradigmas estabelecidos. Também

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foi intencional a determinação do recorte territorial na periferia, visto que, conforme Dessa maneira a exposição se estrutura em três atos: o primeiro é (1) a contextua-
será apontado no primeiro capítulo, suas comunidades, vivências e práticas também lização e apresentação dos fundamentos temáticos através de três eixos (memória,
demonstram direções potencialmente inovadoras, que aprimoram a cidade e a práti- corpo e território), destacando o ferramental teórico levantado para a pesquisa e, ao
ca do arquiteto-urbanista. final, apresentando mais profundamente o Ilê Asé Odé Ibualamo e Zana; em segun-
Neste contexto, entende-se a sociologia, antropologia e geografia humana como fer- do lugar, (2) a discussão pousa no território, levantando aspectos de seu contexto,
ramentas interdisciplinares que complementam essa prática, ampliando o foco para histórico e conformação, articulados às questões levantadas previamente, chegando
além das questões puramente técnicas do desenho ou dos dados objetivos, propon- a uma compreensão mais precisa das circunstâncias da remoção e, finalmente, (3)
do reflexões e renovações paradigmáticas que impactam profundamente a prática. serão expostos ensaios arquitetônicos e urbanísticos para a regeneração do territó-
Com esse objetivo, o trabalho utiliza aproximações bibliográficas para construir um rio, partindo de elementos da cultura tradicional de matriz africana para embasar as
arcabouço crítico teórico-conceitual que fundamentou a pesquisa concreta no terri- proposições.
tório. É esperado que este trabalho contribua significativamente para o campo de pes-
quisa urbana, buscando uma perspectiva orgânica e anticolonial para entender as
“A cidade não está, e nunca esteve, livre de absorver os discursos que
sociabilidades e urbanidades negras e periféricas. Além disso, este estudo também
constroem a sociedade, sejam eles libertários ou opressores, estruturais
ou superficiais, progressistas ou conservadores. São esses discursos serve como ferramenta de luta para o Ilê Asé Odé Ibualamo, semeando com espe-
que, somados, configuram seu tecido e suas divisões espaciais. O rança e fé a possibilidade de reparação e o fim da luta por direitos básicos para este
território urbano é feito de manifestações e de ideias, que podem mudar e outros territórios e comunidades populares, racializados e marginais nas cidades.
no decorrer dos processos históricos, mas possuem efeito cumulativo,
especialmente se considerarmos suas consequências no tempo.” Convido o leitor a mergulhar nesta exposição com sensibilidade e uma mente aberta,
(BERTH, 2023) preparado para uma perspectiva única e potente sobre a cidade.

Esta investigação territorial foi embasada em reflexões e debates que ocorreram ao


longo deste ano, absorvendo influências de fontes diversas, majoritariamente rela-
cionadas à luta comunitária de Zana e experiências concretas. Utilizei meu próprio
corpo e experiências práticas como metodologias para uma imersão profunda no
território. A interação e o estabelecimento de laços com Zana e membros da comu-
nidade, juntamente com pesquisadores e outros profissionais que vêm somando na
luta do Ilê, foram essenciais para essa imersão. A pesquisa abordou desde aspectos
imateriais e sensíveis, como a memória e genealogia da UTT, até estudos das estru-
turas e morfologias urbanas em diferentes escalas, através de cartografias e dados
científicos. Minha dedicação e trabalho na luta foram fundamentais para a pesquisa,
já que permitiram aproximações mais precisas com as questões territoriais e com-
plementaram minhas experiências pessoais anteriores, já ligadas à vivência perifé-
rica e tradição de matriz africana.
“O debate sobre o tipo de conhecimento a ser mobilizado para
a compreensão e a concepção de projeto urbano em periferia
metropolitana deve passar necessariamente pelo encontro entre os
especialistas das formas sociais e os práticos das formas espaciais”
(PROJETO, 2010, s/p)
12 13
1. abrindo
caminhos
apresentação e fundamentação

Próximo Passo, 2023


Gustavo Nazareno
Fonte: Artsy
I. padê
trajetória e confluências
“Tudo começa com o ipadê, o padê de Exu, a cerimônia
propiciatória com farofa de dendê, cachaça (oti) e cantos
rituais, para que Exu traga bom axé para as festas nos
terreiros, cumpra seu papel de mensageiro entre o visível
e o invisível, chame os orixás e não desarticule, com suas
estripulias fundadoras da vida, os ritos da roda [...]”
(SIMAS, 2019)

Padê de Exu, 1998


Abdias Nascimento
Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural

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A etimologia da palavra Padê remonta ao termo Ipàdé, do idioma Iorubá, que sig- Esses contrastes que eu vinha percebendo ao longo da vida me fizeram construir uma
nifica encontro, reunião. O início desse trabalho é, portanto, um encontro: entre vi- visão crítica sobre a maneira como a periferia foi abordada durante o curso de gra-
vências subjetivas e um desejo de buscar uma experiência externa. A perspectiva duação, no geral muito contaminada por uma visão tecnocrata e higienista, que dava
pessoal dessas vivências atravessa dois temas: (1) o território onde fui criado e onde o maior foco à marginalidade, informalidade e precariedade, apagando outras nuan-
moro, mas também onde a partir da entrada no ensino médio, começo a passar a ces e possibilidades desses territórios, de certa maneira negando-os como parte da
menor parte do meu tempo, o município de Guarulhos; e (2) minha trajetória na es- cidade. Porém, foi à luz de obras como as de Racionais MC’s, Sabotage, Luiz Antonio
piritualidade, na qual destaco minha relação espiritual com o Orixá Exú1, construída Simas, Milton Santos e Tiaraju Pablo, que pude acessar interpretações outras, que ao
ao longo de 3 anos de Umbanda2 no terreiro em que fui batizado, no bairro da Lapa, invés de apagar, davam protagonismo à cultura, sociabilidade e saberes locais dos
em São Paulo. Essas vivências se cruzam e se desdobram em reflexões e questio- territórios periféricos, sem ignorar ou romantizar suas dificuldades e problemáticas.
namentos sobre a cidade, que me orientam ao contato com a experiência externa: Assim, comecei a construir um repertório crítico e um olhar sobre a cidade diferente
minha relação e luta junto da Iyalorixá3 Mãe Zana, seu território tradicional, o Ilê Asé daquele que me era dado como regra na escola de arquitetura e urbanismo.
Odé Ibualamo em Carapicuíba, e suas memórias, que pude aos poucos ter acesso no Essa vivência territorial periférica foi como um background orgânico da minha pes-
decorrer da pesquisa. quisa, somando-se a ela minha trajetória na espiritualidade que também impulsiona
A importância das minhas vivências subjetivas vai no sentido de que foram elas que e direciona a investigação. É nas vivências no terreiro que começo a desenvolver mi-
construíram as perspectivas deste trabalho, deram sua direção e viés. A cidade onde nha autopercepção enquanto corpo racializado não-branco, meu letramento racial e
nasci é muito grande e diversa: morei em diferentes bairros e regiões e convivi com minha conexão com a ancestralidade. Para além disso, obras de arte e pensamentos
realidades sociais diversas, ainda que na periferia da maior metrópole brasileira. como os de Abdias Nascimento, Jorge Ben Jor, Beatriz Nascimento, Ailton Krenak,
Tive acesso na infância e adolescência a ensino particular de qualidade graças a bol- Itamar Vieira Jr., Gilberto Gil, Djamila Ribeiro, além dos já citados e outros que aqui
sas de estudo, condição que me rendeu privilégios para adentrar o ensino superior, não caberiam, também me alimentaram nesse processo, antes mesmo de começar
que acessei graças ao ProUni4. Dessa maneira, minha vivência sempre foi dupla no a pensar a pesquisa e de entrar em contato com a tradição. O fio de prumo principal
sentido de um cotidiano doméstico e familiar com brincadeiras de rua, relações de dessa caminhada é minha relação de ancestralidade mítica com o Orixá Exú, para a
vizinhança próximas e uma percepção de condições materiais de escassez e dificul- qual desde meu batismo tenho me dedicado com honra e fé.
dades – tanto dentro de casa, quanto no convívio em meu bairro – que contrastavam A partir disso, o primeiro lampejo – que tomamos como ponto de partida da pes-
com as que eu tinha contato nos ambientes que frequentava para estudar. A partir quisa – é pensar uma lente crítica da cidade através de Exú, uma das divindades
da adolescência, cursando ensino médio-técnico no centro de São Paulo, ambiente primordiais da cosmovisão Iorubá5, que é presente nos cultos afro-brasileiros dessa
cosmopolita, essas diferenças se acentuam em muitas direções, e isso se repete no matriz. Aqui tentaremos dar algum contorno sobre suas características, mas pala-
ciclo seguinte ao ingressar no curso tradicionalmente elitista da Arquitetura e Ur- vras escritas e mesmo faladas são insuficientes para descrevê-lo com precisão. Ele
banismo, no contexto universitário da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) é o detentor da comunicação e da tecnologia, o mensageiro entre o Aiyé e o Orum6
também com fortes marcadores de classe. Além disso, nesse período passo a viven- – aquele que interliga os mundos e as existências. Por isso é o responsável, na litur-
ciar cotidianamente a realidade da classe trabalhadora da metrópole, enfrentando gia tradicional, por abrir e fechar a gira – já que articula essas diferentes realidades.
exaustivas horas de transporte público entre estudo, trabalho e casa. Sendo ele essa ponte que conecta polos e torna visíveis as alteridades, também
representa as contradições, a mudança e o movimento da vida. Sua morada é a en-

1 Ver glossário. 5 Os povos Iorubás são um conjunto de etnias africanas com cultura rica e diversificada, que ocupam a região onde hoje
2 Ver glossário. é a Nigéria e parte do Benim e do Togo. Sua chegada ao Brasil a partir do tráfico de escravizados durante o período colonial
3 Ver glossário. contribuiu significativamente para a formação da cultura afro-brasileira, sendo eles uma das nações basilares para os Povos
4 O ProUni é um programa criado pelo governo brasileiro em 2004 que oferece bolsas de estudo em instituições de ensino Tradicionais de Matriz Africana.
superior privadas para estudantes de baixa renda. 6 Ver glossário.

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cruzilhada – o encontro entre caminhos – pois é no decorrer e no cruzamento deles Conforme veremos, Exú, como símbolo do corpo em movimento, do ser-no-mundo,
que se conectam os mundos, que se fazem as trocas e que se dão as mudanças. Suas está presente em vários elementos da cultura brasileira, herdados de África, logo,
duas ferramentas são o tridente, arma metálica que tem em seu desenho o caminho também é ele um elemento forte na maneira como ocupamos a cidade e nos relacio-
cruzado, com três derivações, que podem ser vistas como as opções de escolhas namos nela. Pensar o urbano, suas histórias e contradições em Exu é uma das ferra-
frente aos caminhos; e o Ogó, bastão de madeira em formato fálico, que representa mentas que a pesquisa constrói partindo dos saberes tradicionais de matriz africana.
a criatividade da vida e a força presente no corpo.
“Legba não é o anulador tirânico das diferenças; é o comunicador que possibilita o convívio
fecundo entre elas. Gosta de fluxos, é inimigo do conforto e vez por outra desarticula tudo para
estabelecer a necessidade de fundar a experiência em bases diferentes.” (SIMAS, 2019, s/p)

Exú é a potência criativa no caos: bem e mal, certo e errado, passado, presente e
futuro para ele não são verdades absolutas, mas apenas compreensões parciais da
realidade, que nas suas artimanhas podem ser viradas e reviradas, assumindo sig-
nificados novos e diferenciados. Ele tem um caráter ambíguo, por vezes tem uma
postura jovial, de malandro e brincalhão, por outras é mais próximo do velho sábio.
A força física, agbará, ou seja, a força presente no corpo, na matéria, é também atri-
buída a ele, por isso um de seus nomes é
Elegbara, senhor da força.
Na cidade, sua energia é fortemente pre-
sente nas ruas e estradas – os caminhos,
mas também no comércio e nas festas:
em todo ambiente em que há fluxo, tro-
ca, câmbio, onde os corpos circulam, se
encontram e se movem, onde há dança,
onde há vida. É muito comum em merca-
dos públicos, feiras e locais tradicionais
de comércio em todo o Brasil ver refe-
rências simbólicas e assentamentos em
honra a Exú. Muitas escolas de samba,
botequins e territórios negros, além de,
claro, todos os locais sagrados da tradi-
ção de matriz africana de origem Iorubá
também costumam reverenciar este ori-
xá para que proteja o espaço e as pesso-
as e abençoe as práticas e costumes ali
reproduzidos. Caminhos de Exu, 2022
Ilustração do Orixá Exú Régiz Francisco
Caco Bressane Fonte: imagem cedida pelo autor
Fonte: Primeiros Negros
20 21
RPORALIDAD
CO E

II. oti, dendê e farinha contra-colonialidade

eixos embasadores quilombismo


Entender o urbano na cosmovisão de Exú não é tarefa simples que se esgotaria num culturas
trabalho como esse. Por isso, aqui estabelecemos três elementos como diretores da encantamento
pesquisa, os Eixos Embasadores, que serão apresentados de maneira mais concei-
afrodiaspóricas
tual e crítica nesse capítulo, mas que guiam e fundamentam o conjunto do trabalho,
além de terem sido essenciais para a definição do recorte da pesquisa e seu aprofun-
damento no território. São eles: (A) a memória – compreendida enquanto tempora-
lidade que se desdobrará na questão da história e da ancestralidade afro-brasileira,
também na oralidade e na transgeracionalidade, sua maneira de reprodução cultural;
(B) o corpo, onde exploraremos o desencantamento advindo do paradigma moder-
racialidade
oralidade
no-colonial presente nas cidades, em contraposição às formas de resistência e de
encantamento dos corpos produzidas nas culturas afro-diaspóricas através de suas
corporalidades, com enfoque nas tradições de terreiro e (C) o território, onde inves- memória periferia

TE MP
tigaremos as contradições históricas que territórios periféricos e negros revelam
sobre a cidade, questionando os estigmas comumente associados a eles, buscando

DE
um outro paradigma urbanístico sobre essas áreas marginalizadas. ancestralidade resistência

DA
história a sabedoria

OR

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contrapêlo da escassez
ID

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AD O R
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TER
Diagrama ilustrando os eixos embasadores
e conceitos articulados na discussão.
Fonte: Elaboração própria.

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temporalidade a retire da paralisia do conformismo e a redinamize no processo das
transformações sociais. O pensamento histórico assim, embora sempre
contemporâneo das suas formas, reavalia toda a história pelas suas
memória, história e ancestralidade condições objetivas de produção em cada um de suas etapas.”
(MAIA, 2008, p.167-168)
“Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe uma à outra.
A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente O autor critica a noção de uma temporalidade linear que a narrativa do progresso
evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações
sucessivas, vulneráveis a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de
– apropriada em diversos tempos históricos por forças políticas hegemônicas – pro-
repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que põe: um passado estanque e imutável e um futuro programável e certeiro. Para tal
não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a construção, ele se debruça a partir de uma perspectiva materialista histórico-dialé-
história, uma representação do passado.” tica sobre a ideia de progresso. É questionada essa noção de avanço ininterrupto,
(NORA, 1993, p.10) de constantes melhorias e aprimoramentos, que ignoram as injustiças, a opressão e
os apagamentos que ficam no rastro do desenvolvimento. O argumento central é de
Partindo da lente em Exú, a primeira crítica aqui proposta está dentro da questão que as condições materiais de existência da sociedade determinam os acontecimen-
da temporalidade: na história das cidades, quais narrativas são lembradas e quais tos históricos, que por sua vez são a base material da ciência que os organiza e os
são esquecidas? Neste país onde mais da metade da população é negra1, ter acesso registra — a própria História — e, ao mesmo tempo, são essas condições que demar-
à informações vastas sobre nossos ancestrais da Europa, e enfrentar uma enorme cam os vieses e apagamentos, os acontecimentos e perspectivas que a História dita
escassez de registros sobre os de África é um possível dentre vários sintomas da “oficial” deixa de registrar. Nessa toada, é possível apontar para a luta de classes e
memória seletiva e racista com a qual a história que consideramos como oficial tem sua sucessiva sobreposição de diferentes hegemonias como fatores determinantes
sido escrita. para a forma como a história é produzida e a maneira como ela chega até o presente.
Por isso, aqui referenciamos uma perspectiva outra sobre a história, que nos lança Gilberto Gil (1991) ilustra bem essa perspectiva em sua canção “O fim da história”3:
a um novo olhar sobre a cidade e sua formação: “o escovar a história a contrapelo”. “Basta ver que um povo
Essa perspectiva, proposta por Walter Benjamin2 pressupõe um olhar histórico de Derruba um czar
resgate e reconstrução, retomando saberes, culturas e lutas populares que foram Derruba de novo
Quem pôs no lugar
apagadas ou ficaram escondidas atrás da história canônica, que se dedica à des-
É como se o livro dos tempos pudesse
crição dos “grandes fatos” e a hegemonização de narrativas que mantém o status Ser lido trás pra frente, frente pra trás
quo. O contrapelo é onde moram as histórias que ficaram ocultas no fluxo temporal Vem a História, escreve um capítulo
dominante: na metáfora benjaminiana, este fluxo é o sentido com que se “penteia” a Cujo título pode ser ‘Nunca Mais’
história, ocultando certos elementos por debaixo das mechas penteadas. Vem o tempo e elege outra história, que escreve
Outra parte, que se chama ‘Nunca É Demais’
“Nas teses de “Sobre o conceito de história”, Benjamin diz que um ‘Nunca Mais’, ‘Nunca É Demais’, ‘Nunca Mais’
dos papéis do pensamento materialista é “escovar a história a ‘Nunca É Demais’, e assim por diante, tanto faz
contrapelo”, o que significa construir uma outra visão da tradição que Indiferente se o livro é lido
De trás pra frente ou lido de frente pra trás”
(GILBERTO GIL, 1991)
1 De acordo com o censo do IBGE de 2010, a porcentagem de pessoas que se autodeclararam negras (incluindo pretos e
pardos) no Brasil foi de aproximadamente 50.7%. O Brasil é considerado um dos países com a maior população negra fora do
continente africano e foi país que mais recebeu escravizados africanos durante o período do tráfico transatlântico. 3 O álbum “Parabolicamará” de Gilberto Gil, lançado em 1981, apresenta um título que simboliza a busca por uma comunica-
2 O autor desenvolve essa ideia na obra “Sobre o conceito de história”, produzida entre o fim do entreguerras e o início da ção ampliada e a valorização da diversidade cultural. A palavra “parabolicamará” une a antena parabólica, símbolo de conexão
segunda guerra mundial (1937-40), um período em que a guerra, a política e as atrocidades do nazifascismo estavam sendo com o mundo globalizado, com “camará”, termo em iorubá que significa amigo. Essa combinação representa a metáfora antro-
amplamente discutidos e causando grandes impactos nas produções da época na Europa. pofágica tropicalista entre contexto global (antena) e local (camará) numa perspectiva ancestral, fazendo referência à matriz
africana.
24 25
Benjamin utiliza como alegoria central o “Anjo da História”, presente num quadro de
Paul Klee, uma entidade que olha fixamente para o passado, tentando reconstruí-lo,
mas é impedido por uma tempestade que o impele para o futuro: o progresso. Aqui, “A ancestralidade não tem a ver apenas com um passado. Tem a
porém, buscando uma referência decolonial, ou então, contracolonial4, vamos à sa- ver também com aquilo que se projeta no futuro e [...] precisa ser
bedoria tradicional de matriz africana, que aponta também para essa temporalidade ressignificada, reconstituída, principalmente no caso dos povos negros,
reconstrutiva, múltipla e circular, em oposição à noção de tempo linear do pensa- indígenas, especialmente no caso daqueles que foram massacrados,
que foram violentados ao longo da história. [...] Então, ancestralidade
mento ocidental. Um conhecido oriki5 de Exú atravessa essa discussão: “Exu mata o não é só passado, ancestralidade também é você olhar para o futuro e
pássaro que voou ontem com uma pedra que jogou hoje”. reconstituir o sentido das suas histórias, da sua vida [...].”
A pedra de exú é o elemento que reconstrói a história, que coloca em questionamen- (ALMEIDA, 2022)
to as certezas do amanhã, do ontem e do hoje. Para Exú, o passado não é estanque
e imutável, mas uma ferramenta de construção do futuro. Cruzando as duas referên-
cias, Simas desenvolve:
“Podemos cruzar o que Benjamin chama de ‘Anjo da História’ com a
‘Pedra de Exu’. Em um tempo ‘saturado de agoras’, conforme diz François
Hartog, parece que perdemos a dimensão do compromisso com as
lutas do passado. À maioria, elas causam apenas certo alheamento,
algum enfado e, na melhor das hipóteses, curiosidade.
O pássaro do passado só pode ser alcançado com a pedra que lançamos
hoje; seu voo é incessante. Exu não vai ao ontem porque sabe que (nas
espirais do tempo) é no presente que a pedra é lançada em busca do
pássaro que, em seu voo incerto, pousará no futuro.”
(SIMAS, 2021)

Pensar outras memórias e histórias, que foram soterradas e seguem ocultas abaixo
do que nos é apresentado como cânone, é uma das premissas dessa pesquisa. É atra-
vés desse olhar atento e reconstrutor que se pretende acessar o território periférico
em estudo, tomando perspectivas ancestrais como potências que fazem emergir das
tradições – que resistiram e se transformaram até os dias de hoje – as centelhas de
esperança de Benjamin, alternativas que nos revelam outras perspectivas de cidade.
Exploraremos nos capítulos seguintes a maneira como a transmissão das memórias
e das sabedorias nas culturas de terreiro tem, na oralidade e na relação de hierar-
quias e gerações, ferramentas de salvaguarda das heranças ancestrais, atravessan-
do a história e resistindo aos apagamentos.

4 Usamos o termo contra-colonial em referência a Antônio Bispo dos Santos, pensador quilombola que vem dando importan-
tes contribuições na crítica combativa ao colonialismo. “Podemos falar do modo de vida indígena, do modo de vida quilombola, Coleção Nascentes
do modo de vida banto, do modo de vida iorubá. Seria simples dizer assim. Mas se dissermos assim, não enfraqueceremos o (fragmento), 2023.
colonialismo. Trouxemos a palavra contracolonialismo para enfraquecer o colonialismo” (BISPO, 2023) Hariel Revignet.
5 Ver glossário. Fonte: Instagram

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corporalidade palmente através estudos decoloniais1 como ferramentas que operam as opressões
sobre esses corpos, conscientes ou não deste processo.
diáspora, colonialidade e quilombismo Max Weber se debruça sobre a razão e as origens do “desencantamento do mundo”
como uma constante no mundo ocidentalizado, aqui entendida como uma das ba-
“Três espaços de sociabilidade muito próprios do povo negro brasileiro: samba, futebol e religiões ses construtoras dessas opressões, que dialoga com o conceito de encantamento,
de matriz africana. Não é só esporte, música e religião, mas espaço de sociabilidade, ali a gente se conforme exposto na obra de Simas. Segundo Weber, a origem do desencantamento
inventa, se reinventa, cria estratégias de luta, de resistência, de sobrevivência”
moderno remonta ao tempo histórico da gênese do capitalismo e da modernidade
(ALMEIDA, 2022) na Europa, quando (1) pensamento humanista, e, a posteriori, o iluminismo, deram
os fundamentos filosóficos e epistêmicos para uma abordagem mais racionalizada,
O corpo, ou a corporalidade, é um dos marcadores mais latentes nas culturas da objetivada e científica da realidade, e (2) o protestantismo formulou bases éticas e
diáspora africana na América, característica diretamente herdada das culturas afri- morais para o desenvolvimento econômico através da exploração da classe trabalha-
canas. Ela vem a essa pesquisa como uma referência de modo de vida e de ocupar a dora, visões que, combinadas, vão fundamentar as expansões capitalistas ao longo
cidade alternativa e insurgente, mas também, conforme já mencionado, na metodo- da Era Moderna.
logia, sendo uma das maneiras com que entro em contato com o território em estu-
do, a imersão corporal. Buscaremos na exposição que segue, explorar uma contrapo- Tais processos são datados entre os séculos XV até o XVIII, período do fim da Idade
sição de realidades, entre (1) o pensamento moderno-colonial, que rege as normas Média para o início da Era Moderna, quando ocorreu uma grande mudança na epis-
de produção e planejamento (aquilo que se espera) da ocupação da cidade, e acaba teme ocidental que transferia o pensamento do teocentrismo para o antropocen-
por operar violências e opressões sobre os corpos versus as maneiras com que (2) trismo. Todo o contexto que envolvia a queda de poder da Igreja Católica seguida da
as corporalidades afro-diaspóricas efetivamente ocupam esses espaços urbanos e Reforma Protestante, acabou por promover a disseminação da religião protestante
atualizam seus sentidos e funções, construindo novas significações e resistindo às e a ascensão das ainda incipientes classes burguesas, como processos conjuntos.
opressões. As construções éticas protestantes, estabelecidas pela Reforma, serviram como ins-
trumento de docilização dos corpos explorados, através da atribuição de valores
“Os praticantes ordinários das cidades atualizam os projetos urbanos
e o próprio urbanismo, através da prática, vivência ou experiência religiosos e morais ao trabalho. A disciplina, a perseverança e estabelecimento de
dos espaços urbanos. Os urbanistas indicam usos possíveis para o uma conduta de vida racional e metódica, junto da negação do sentimentalismo e
espaço projetado, mas são aqueles que o experimentam no cotidiano das paixões mundanas, eram colocadas como pontes para alcançar a predestinação
que os atualizam. São as apropriações e improvisações dos espaços divina, a salvação. Para além disso, as mesmas construções – que valorizavam a pro-
que legitimam ou não aquilo que foi projetado, ou seja, são essas
dução e o acúmulo de riqueza, pois ela advinha do trabalho – somadas ao nascente
experiências do espaço pelos habitantes, passantes ou errantes que
reinventam esses espaços no seu cotidiano.” racionalismo humanista (que mais tarde evolui para o cientificismo iluminista), am-
param a postulação do lucro como objetivo racional e lógico da existência, o que em
(JACQUES, 2008)
seguida, já no contexto industrial, legitimaria a exploração da força de trabalho da
A cidade, enquanto território, é a arena onde, ao longo do tempo, se sedimentaram classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, esses novos paradigmas esvaziavam diversos
diferentes memórias e histórias. Esses registros demarcam os paradigmas e as he- outros sentidos e modos de vida construídos fora dessa chave racionalizante. Por
gemonias através das quais o urbano “formal” tem sido planejado e produzido, que, exemplo, o termo negócio, atribuído às atividades de troca e comércio, tem origem
como veremos, são ancorados na episteme ocidental, moderna, racional e colonial no significado de “negação do ócio”, ou seja, negar práticas não produtivas.
que predominantemente agem à serviço da reprodução do capital e da produtividade
ad infinitum. Apesar de não serem fundantes do modo como a maioria dos sujeitos e 1 Afirmação baseada nas discussões do curso “Colonialidade do Pensamento Urbano”, organizado pelo LabCidade. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=mJPrpKCU6EU&list=PL4nuTkUWcUq_G4q1Hs8vFf7I-a-iGlQlT&pp=iAQB>. Acesso em
corpos ocupa e experiencia a cidade, esses paradigmas têm sido apontados, princi- 25 nov. 2023.

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“Aquele grande processo histórico-religioso do desencantamento “Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que
do mundo que teve início com as profecias do judaísmo antigo e, somos a humanidade. Enquanto isso — enquanto seu lobo não vem
em conjunto com o pensamento científico helênico, repudiava como —, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a
superstição e sacrilégio todos os meios mágicos de busca da salvação, Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra
encontrou aqui sua conclusão. O puritano genuíno [protestante] ia ao e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja
ponto de condenar até mesmo todo vestígio de cerimônias religiosas natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo que eu consigo
fúnebres e enterrava os seus sem canto nem música, só para não pensar é na natureza. [...]
dar trela ao aparecimento da superstition, isto é, da confiança em
Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver
efeitos salvíficos à maneira mágico-sacramental. Não havia nenhum
em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera
meio mágico, melhor dizendo, meio nenhum que proporcionasse a
uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de
graça divina a quem Deus houvesse decidido negá-la. Em conjunto
experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio
com a peremptória doutrina da incondicional distância de Deus e da
de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança,
falta de valor de tudo quanto não passa de criatura, esse isolamento
canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo
íntimo do ser humano explica a posição absolutamente negativa
convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida.”
do puritanismo perante todos os elementos de ordem sensorial e
sentimental na cultura e na religiosidade subjetiva – pelo fato de (KRENAK, 2019, s/p)
serem inúteis à salvação e fomentarem as ilusões do sentimento
e a superstição divinizadora da criatura – e com isso fica explicada Dessa maneira, o desencantamento se dá nesse afastamento, que foi imposto pela
a recusa em princípio de toda cultura dos sentidos em geral.” maquinização da vida, entre o ser humano e as forças anímicas outrora atribuídas
(WEBER, 2004, p. 30 apud. PATZDORF, 2017, p. 39-40)
à natureza, relação esta que residia justamente na experiência corpórea: o contato
A raiz da palavra racional é sobre racionar, ou seja, dividir. Esse grande giro epis- entre o ser e o meio físico, entre o(s) corpo(s) e o território. Podemos novamente
temológico que promove o desencantamento descrito por Weber opera, através do voltar à sabedoria de matriz Iorubá, para encontrar em Exú outra referência que não
racionalismo, uma cisão que, por sua vez, instaura uma visão rigidamente dualista postula dualidades incontamináveis, através do oriki das três cabaças, aqui contado
da realidade, negando alteridades e hierarquizando diferenças. Daí, ganham força por Simas:
política os valores ocidentais que dividem o pensar e o sentir, alma e corpo, huma- “Um longo poema da criação diz que, certa feita, Exu foi desafiado
nidade e cosmos, sujeito e objeto, artificial e natural, tecnologia e natureza. Eles são a escolher, entre duas cabaças, qual delas levaria em uma viagem
a origem da neurose moderna, que cria ausências de sentido na realidade, pois ela ao mercado. Uma continha o bem, a outra continha o mal. Uma era
mesma não opera da maneira como essas divisões idealizam. remédio, a outra era veneno. Uma era corpo, a outra era espírito. Uma
era o que se vê, a outra era o que não se enxerga. Uma era palavra, a
“O desencantamento do corpo é o fundamento sensorial da outra era o que nunca será dito. Exu pediu uma terceira cabaça. Abriu
modernidade. Para que aderíssemos, em massa, aos modos de ser as três e misturou o pó das duas primeiras na terceira. Balançou bem.
e estar desencantados e maquínicos requeridos pelo capitalismo, Desde este dia, remédio pode ser veneno e veneno pode curar, o bem
foi necessário destruir os elos simbólicos e sensoriais que pode ser o mal, a alma pode ser o corpo, o visível pode ser o invisível
conectavam nossos corpos ao cosmos. Essa ferida cosmossomática e o que não se vê pode ser presença. O dito pode não dizer e o silêncio
é um dos empreendimentos da colonização, ainda em contínua pode fazer discursos vigorosos. A terceira cabaça é a do inesperado:
ação sobre nossos corpos submetidos à somatopolítica neoliberal.” nela mora a cultura.”
(PATZDORF, 2022) (SIMAS, 2019, s/p)

Esvaziam-se assim os sentidos da experiência sensorial do corpo, dos corpos em As culturas tradicionais e originárias, intrinsecamente ligadas ao corpo, ao coleti-
conjunto no coletivo e da identificação corporal, subjetiva, com o território, todos vo e à Terra, sabem que não se pode separar totalmente as vivências na realidade
eles potencialmente positivos para a vida urbana e tidos como valores essenciais material da experiência mental ou subjetiva. Antônio Bispo, importante pensador
nas culturas originárias e tradicionais:
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quilombola, aponta para um processo semelhante ao desencantamento com o termo rios invadidos – processos concomitantes a essas reformulações que Weber define
“cosmofobia” que corrobora com a crítica de Patzdorf à essa separação entre o corpo como sendo fundantes da Modernidade –, assim como as posteriores expansões e
e o simbólico. O autor inclusive se apropria do termo humanismo – não necessaria- revoluções do capital, foram processos de imposição da cultura europeia em detri-
mente no rigor histórico relativo à corrente do pensamento europeu que foi coloca- mento das outras. Como aponta Berth (2023), as categorizações de classe, gênero e
do aqui – mas para apontar para a centralidade universalizante do “humano” (que raça, foram instrumentos coloniais de legitimação para a hierarquização das dife-
é homem, branco, cristão e europeu) no pensamento colonial, e para a escassez de renças, que historicamente geraram o subdesenvolvimento dos povos subalterniza-
diversidade que isso provoca. dos ao redor do globo. O discurso da missão civilizatória do homem branco europeu
demarca a noção de racialidade2 que outrora justificou a escravidão e o tráfico ne-
“A humanidade se desconectou da natureza exatamente por ter cometido
greiro em nome do desenvolvimento, do lucro e de um suposto avanço civilizatório,
o pecado original. Seu castigo foi se afastar da natureza. Por isso Adão
foi expulso do Jardim do Éden e o humanismo passou a ser um sistema, ainda hoje fundamenta o racismo enquanto estrutura intrínseca à sociedade con-
um reino desconectado do reino animal. [...] Os humanos não se sentem temporânea.
como entes do ser animal. Essa desconexão é um efeito da cosmofobia.
[...]
Assim, podemos compreender estes processos historicamente presentes no Brasil
observando a opressão e periferização dos corpos negros na cidade como conti-
Humanismo é uma palavra companheira da palavra desenvolvimento,
nuidade do projeto colonial de dominação racial, que opera em muitas frentes e
cuja ideia é tratar os seres humanos como seres que querem ser
criadores, e não criaturas da natureza, que querem superar a natureza. se utiliza do aparato estatal para tanto. A título de exemplo, podemos observar, no
Do lado oposto dos humanistas estão os diversais – os cosmológicos contexto brasileiro do final do século XIX, início da República e já no pós-abolição,
ou orgânicos. Se os humanos querem sempre transformar os orgânicos a instauração da Lei da Vadiagem, do Código Penal de 1890, que perdura até 1940
em sintéticos, os orgânicos querem apenas viver como orgânicos, como uma ferramenta institucional de perseguição de culturas e territórios de so-
se tornando cada vez mais orgânicos. Para os diversais, não se
ciabilidade negra, tendo sido utilizada para criminalizar práticas como a capoeira e
trata de desenvolver, mas de envolver. Enquanto nos envolvemos
organicamente, eles vão se desenvolver humanisticamente. os candomblés.
A humanidade é contra o envolvimento, é contra vivermos envolvidos “O controle dos corpos sempre foi parte do projeto de desqualificação
com as árvores, com a terra, com as matas. Desenvolvimento é sinônimo das camadas historicamente subalternizadas como produtoras de
de desconectar, tirar do cosmo, quebrar a originalidade. [...] cultura. Esse projeto de desqualificação da cultura é base da repressão
Os humanistas querem nos convencer de que a globalização é uma aos elementos lúdicos e sagrados do cotidiano dos pobres, dos
convivência ampla, quando de fato não é. Em vez de compreender o descendentes dos escravizados e de todos que resistem ao confinamento
globo de forma diversal, como vários ecossistemas, vários idiomas, dos corpos e criam potência de vida. O corpo carnavalizado, sambado,
várias espécies e vários reinos, como dizem, quando eles falam em disfarçado, revelado, suado, sapateado, sincopado, dono de si, é
‘globalizar’, estão dizendo ‘unificar’. O que chamam de globalização é aquele que escapa, subindo no salto da passista, ao confinamento da
universalidade. Não no sentido que nós entendemos por universalidade, existência como projeto de desencanto e mera espera da morte certa.”
mas no sentido da unicidade.” (SIMAS, 2019, s/p)
(BISPO, 2023, p. 8-17)
Esses valores da chamada Modernidade, chegam ao urbanismo atual enquanto fun-
Tais culturas e cosmovisões que cultivavam essa visão de mundo entram em choque, damento epistemológico que subsidia o modo como predominantemente se pensa
a partir da Era Moderna, com o novo paradigma ocidental que passa a ser imposto,
2 Devemos aqui, entender a racialidade não enquanto fator biológico intrínseco aos corpos, mas como construção sociopo-
tanto em território Europeu como fora dele em território invadidos com vistas à ex- lítica, conforme aponta Berth (2023, p. 126-127): “[...] em algum momento da história, as coisas se alteraram e a presença de
ploração, como foi o caso em África e América. O colonialismo e a expansão marítima melanina na pele de alguns grupos de indivíduos foi usada como mote para a organização social executada pela colonialidade.
Ou seja, raça é uma construção sociopolítica que atua como organizadora de uma hierarquia e se vale da conversão das nos-
europeia, acompanhados do tráfico, escravização e genocídio dos povos dos territó- sas diferenças biológicas e fenotípicas para justificar um lócus de inferioridade social que justifica exploração, segregação,
apagamentos e violências diversas.”

32 33
e se intervém na cidade. O paradigma moderno-colonial age desde a produção do Tradicionais de Matriz Africana que apontam outras direções de cidade, da maneira
conhecimento unilateral e supostamente neutro, validado como científico nas uni- com que se ocupa e se relaciona com a paisagem, numa nova compreensão de habi-
versidades; até sua aplicação na realidade, através da técnica como ponta de lança tat humano e relação com o ambiente.
das práticas sustentadas pelo discurso do progresso e desenvolvimento. Conforme “O quilombo é uma história, essa palavra tem uma história… [...]É
será exposto de diversas maneiras ao longo da pesquisa e aprofundado no texto a importante ver que hoje, o quilombo traz pra gente, não mais o território
seguir, o planejamento urbano se inclui nessa categoria de técnicas que acabaram geográfico, mas o território a nível de uma simbologia. [...] A terra é o meu
quilombo, meu espaço é o meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Onde
sendo instrumentalizadas para operar violências em nome da colonialidade. Aqui, eu estou, eu sou. O quilombo é memória que não acontece só pros negros,
porém, buscamos dar protagonismo a um outro referencial de ocupação e produção acontece pra nação. Ele aparece nos momentos de crise da nacionalidade.
do espaço urbano. Este referencial tem como premissas a construção do encanta- A nós não nos cabe valorizar a história. A nós nos cabe ver o continuum
mento dos corpos e da vida, baseado na corporalidade e na coletividade presente dessa história. Porque Zumbi queria fazer a nação brasileira já com
nas culturas dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Como subsídio conceitual índios e negros integrados dentro dela. Ele quer empreender um projeto
nacional de uma forma traumática mas não tão traumática quanto os
contra-colonial, buscamos uma referência no Quilombismo como perspectiva cientí- ocidentais fizeram… Destruindo culturas… Destruindo a história dos
fica histórico-social, formulado por Abdias Nascimento e desenvolvido também por povos dominados.” (NASCIMENTO, 1989)
Beatriz Nascimento.
“Os povos negros conhecem na própria carne a falaciosidade do
universalismo e da isenção dessa “ciência”. Aliás, a ideia de uma
ciência histórica pura e universal está ultrapassada. O conhecimento
científico que os negros necessitam é aquele que os ajude a formular
teoricamente – de forma sistemática e consistente – sua experiência
de quase 500 anos de opressão. [...] Proclamando a falência da
colonização mental eurocentrista, celebramos o advento da libertação
quilombista. [...]
Um instrumento conceitual operativo se coloca, pois, na pauta das
necessidades imediatas da gente negra brasileira. O qual não deve e não
pode ser fruto de uma maquinação cerebral arbitrária, falsa e abstrata.
Nem tampouco um elenco de princípios importados, elaborados
a partir de contextos e de realidades diferentes. A cristalização dos
nossos conceitos, definições ou princípios deve exprimir a vivência de
cultura e de práxis da coletividade negra. Incorporar nossa integridade
de ser total, em nosso tempo histórico, enriquecendo e aumentando
nossa capacidade de luta.”
(NASCIMENTO, 2002, p. 341-344)

Os caminhos para a reparação do povo preto periférico devem ser pensados em ou-
tras epistemes que não estas responsáveis pelo histórico de opressão e controle
herdados da ciência eurocêntrica. Entende-se aqui, Quilombo enquanto potência
coletiva de corpos negros reunidos, e Quilombismo como práxis científica que re-
conhece essas potências como referências para a construção de novas perspectivas Quilombismo (Exu e Ogum), 1980
e tecnologias. Buscaremos, portanto, nesta pesquisa, práticas e saberes dos Povos Abdias Nascimento
Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural

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territorialidade Não enxergar que a divisão do espaço é primordialmente racial é atuar
dentro de uma lógica que fortalece a discriminação [...].”
(BERTH, 2023, p. 117-118)
a cidade além do centro
Esse processo pode ser notado nas ações do poder público para intervenções urba-
“Aqui, sentindo flores, prometeram um mundo novo
Favela, viela, morro tem de tudo um pouco
nas do começo do século XX – principalmente nas capitais nacionais do Rio de Janei-
Tentam alterar o DNA da maioria (Rei Zumbi) ro e de São Paulo – definidas por Joice Berth e Felipe Neres como eugenistas. Berth
Antigamente quilombos, hoje periferia (2023, p. 111-115) aponta para um urbanismo eugênico presente nessas intervenções,
Levante as caravelas que definiu fronteiras raciais na cidade, e em seguida para um urbanismo daltônico1
Aqui não daremos tréguas não, não posterior a elas, que, na ausência de atenção à questão racial, tem perpetuado e, em
Então que venha a guerra”
alguns casos, acentuado essas fronteiras. Ela ainda indica o higienismo e a importa-
(Z’ÁFRICA BRASIL, 2002) ção de modelos europeus, como as referências de embelezamento urbano inspiradas
na Belle Époque parisiense, como desdobramentos dessa abordagem eugenista.
O entendimento que se pretende trazer de territorialidade para esta pesquisa é na
chave das tensões entre centro e periferia presentes na metrópole. Aqui, discutire- “[...] a eugenia foi apresentada como uma solução ou como uma espécie
mos os processos que consolidaram a racialidade da população dos territórios peri- de portal que transportaria o Brasil para os braços da modernidade e
féricos, devido principalmente à periferização dos corpos negros, mas também agre- do desenvolvimento. [...]
gada a outros processos. Para além disso, buscaremos em Milton Santos e Tiaraju No pós-abolição [final do século XIX e início do XX], o Brasil, diante
Pablo, referências para discutir uma ressemantização para o termo periferia, através da entrada e consolidação da industrialização (e do capitalismo) e,
consequentemente, de novos modelos de cidade, veria a negritude
de uma lente periférica sobre o urbano, que nos colocará na dimensão de uma tercei-
como um grande problema urbano. Não pela sua existência em si, mas
ra contra-colonialidade, desde a perspectiva territorial: a do sujeito periférico. pela recusa da sociedade branca dominante em incluir a população
A formação das periferias metropolitanas está associada a diversos processos, des- negra como seres sociais. Nesse momento histórico, a eugenia já tinha
feito seu estrago.”
tacamos aqui a maneira como a infraestrutura urbana e as políticas habitacionais
foram implantadas, e os vieses com os quais o planejamento urbano organizou essas (BERTH, 2023, p. 134)
intervenções. Conforme já exposto, existe um fundamento colonial, racista e patriar-
Da mesma maneira, Neres (2023) descreve especificamente as reformas urbanas
cal que estrutura a sociedade brasileira e as relações de subalternização nela pre-
do começo do século XX, como responsáveis pela despossessão dos territórios ne-
sentes através de categorizações hierárquicas dadas pelos marcadores biológicos e
gros nas áreas centrais, que, no caso de São Paulo – ainda pouco desenvolvida para
sociais, e isso se reflete formalmente no espaço urbano enquanto território.
além de seu núcleo histórico original – primeiramente se deslocam para as áreas de
“A cidade tem cor. Ou melhor, cores. Uma vez que a colonialidade se várzea dos rios Tamanduateí, Tietê, Anhangabaú e Saracura. Posteriormente, com a
estabeleceu e categorizou pessoas, formando identidades e usando progressiva expansão da metrópole essas populações se deslocaram para áreas pe-
nossas diferenças biológicas, sexuais, fenotípicas etc. para fins de riféricas, mais próximas das fronteiras e núcleos periurbanos. O autor descreve que
organização social hierárquica, o território se apresenta como cenário
fiel dessas representações. [...] É o território que, reflexo da condição
esses processos consolidaram as práxis das políticas de planejamento urbano num
material de uma sociedade, pode consubstanciar toda e qualquer cenário nacional, que “tensionam o conflito racial no espaço urbano na contempo-
decisão sobre o espaço. [...] raneidade”.
Se nos marcadores e nas estatísticas apuradas são a negritude, “[...] as reformas urbanas empreendidas no início do século XX por
os indígenas e as mulheres que aparecem na condição de maior
precariedade, isso de alguma forma tem chão, isso está territorializado.
1 Berth (2022) referencia Melissa M. Valle (2017) para essa discussão.

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Francisco Pereira Passos no Rio de Janeiro e Antônio da Silva Prado em em cortiços e favelas, mas também apagava suas práticas culturais
São Paulo, são exemplos emblemáticos de tentativas de eliminação dos e memórias presentes nos arredores dos rios Saracura e Tietê, que
vestígios negros pelo processo da eugenia, instaurando um método de agora jazem sob as avenidas. A implantação sucessiva de melhorias no
se planejar cidades no país. [...] sistema viário [...] reforçou e consolidou a lógica da cidade tentacular,
provendo lugares para reassentamento dessas populações nas zonas
As experiências [dessas reformas], se revelam por intensos processos
periféricas”
de despossessão dos corpos negros, que levam à periferização e se
reverberam nos mais variados modos de se fazer e planejar o urbano (BARONE, 2022, p.13)
no país.”
(NERES, 2023, s/p) A autora explica que “esses planos nos ajudam a entender a dispersão dos negros
pela cidade, apesar de nenhum deles mencionar questões ligadas aos afrodescen-
A continuidade se dá nos seguintes modelos de urbanização aplicados à metrópole dentes” (BARONE, 2022, p.3), o que corrobora também com a já exposta tese do ur-
paulistana, encabeçados pela gestão pública da capital. Eles operaram com as mes- banismo daltônico, por Berth (2023) em referência a Valle (2017). Somado a isso,
mas características, que promoveram a expulsão das populações negras e paupe- apontamos aqui também para os intensos movimentos migratórios4 que ocorrem
rizadas das regiões centrais em articulação com a promoção de infraestrutura que principalmente ao longo dos anos 1970 e 80, das populações da região Nordeste e
possibilitava as ocupações periféricas, aos poucos expandindo as fronteiras urba- das zonas rurais para a metrópole, que, junto daquelas expulsas das regiões cen-
nas. Barone (2022) aborda a maneira como o conhecido Plano de Avenidas de Prestes trais, vão se assentar nas periferias recém infraestruturadas, por forte influência de
Maia, da primeira metade do século XX, com seu modelo radial-concêntrico que in- políticas habitacionais como do BNH, COHAB e CDHU.
centivava o espraiamento urbano, seguido das propostas de planejamento metropo- Dessa maneira, a conformação da metrópole paulistana parte de um pequeno núcleo
litano2 dadas pela prefeitura de São Paulo ao longo dos anos 1950 e 60, que cunha- central articulado por poucas estradas com núcleos semirrurais, mas a partir da dé-
ram o termo “Cidade Tentacular”, foram essenciais nesse processo de formação das cada de 1940, inicia o espraiamento urbano e consolidação desses núcleos, mobili-
periferias. zados pelas políticas de urbanização problemáticas já descritas, sendo em São Pau-
“São Paulo nunca superou sua estrutura urbana original. [...] A forma lo destacadas a implementação de infraestrutura viária e ferroviária e as políticas
da cidade era tão emblemática que foi batizada de ‘cidade tentacular’. habitacionais. Daí, a periferia passa a existir enquanto fenômeno social e urbano,
Na verdade, o relatório dos trabalhos públicos movidos por [Carlos3] impulsionado pelo boom populacional dado principalmente pelos setores marginali-
Lodi no final da década de 1950 representa apenas um novo capítulo zados da sociedade brasileira: pretos, nordestinos, povos tradicionais, originários e
na velha história da cidade radial”
do campo, que vão determinar a cultura, sociabilidade e os modos de vida diversos
(BARONE, 2022, p.13) reproduzidos nestes territórios.
Em seguida, completa apontando para as obras de grandes eixos viários implanta- A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver
em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos.
das sobre as áreas de várzea ou mesmo sobre os leitos de importantes corpos d’água
Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares
das regiões centrais: de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as
pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral,
“Toda essa devastação não apenas destruía as moradias negras com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar
loucas neste mundo maluco que compartilhamos.” (KRENAK, 2019, s/p)
2 Essas propostas se deram em variadas frentes, mas a autora destaca principalmente as melhorias e conexões na infra-
estrutura viária, com grandes pontes, viadutos, vias arteriais e terminais urbanos de ônibus como pontos chave com grande
responsabilidade no processo de expulsão dos negros da região central e na manutenção da segregação territorial racial no 4 Sobre o chamado êxodo rural, Berth (2023, p. 135) pontua: “[...] agentes públicos teriam previsto esse deslocamento, que
contexto urbano de São Paulo. era composto primordialmente por negros descendentes de escravizados, excluídos da nova ordenação social e espacial, que
3 “Carlos Lodi foi Diretor do Departamento de Urbanismo da Prefeitura Municipal de São Paulo e membro do Instituto de viviam na precariedade e viam nessa migração as chances de, finalmente, ter trabalho e vida digna.” Dessa forma, a autora
Engenharia. Ele advogou pela desconcentração e reestruturação do crescimento urbano através da legislação.” (BARONE, aponta para uma ausência de políticas públicas para inserir o negro na sociedade no pós-abolição, o que culminou na margi-
2022, p. 11) nalização dessas populações nos territórios urbanos.

38 39
Graças à própria lógica do capital de concentração de recursos, essa parcela não é
maioria, e sim exceção. Pode-se dizer que há um gradiente de domínio da globaliza-
ção, consequentemente de racionalidade nos espaços: maior em núcleos territoriais
que concentram recursos e menor nos territórios onde eles são mais escassos. A
“No instante do clic, espanta a forma com que o cidade, ao concentrar riqueza, cria os limites da racionalidade, ou seja, da aplicação
garoto, na sacada de sua residência - semelhante do saber técnico hegemônico à paisagem, pois faz com que ela não atinja a maioria
a um púlpito do pastor marginal ,– parece recitar o de seu território.
ritmo e poesia consagrados pelos Racionais Mc´s,
reforçando a música como “Raio X” territorial, sua “Mas nem tudo é colonizado pelas técnicas modernas. As diversas
atemporalidade e a potência cultural periférica: frações da cidade se distinguem pelas diferenças das respectivas
‘É lá que moram meus irmãos meus amigos densidades técnicas e informacionais. [...] Certos espaços da produção,
E a maioria por aqui se parece comigo da circulação e do consumo são a área de exercício dos atores “racionais”,
E eu também sou bam bam bam e o que manda’” enquanto os demais atores se contentam com as frações urbanas
menos equipadas. A ação humana é desse modo compartimentada,
(ARANTES, 2023) segundo níveis de racionalidade da matéria. [...] o imperativo da
competitividade leva à aceleração da modernização de certas partes da
cidade em detrimento do resto. O uso dos recursos sociais, a começar
pelos bens coletivos, torna-se irracional. A globalização, pois, tem um
papel determinante na produção da irracionalidade e no uso irracional
da máquina urbana.”
O Habitar e o Encontro, 2022
Otávio Campos Arantes (SANTOS, 2006, p.208)
Fonte: Imagem cedida pelo autor.
Nessas zonas, encontraremos outras maneiras de atuar e se relacionar com a pai-
A partir desse acúmulo cultural de memória ancestral e caráter étnico expressivo é sagem, tidas como irracionais ou invalidadas, já que as racionalidades não encon-
que essa pesquisa tem um olhar mais atento aos territórios periféricos – definidos tram recursos ou compatibilidade para se instaurar nesses territórios. Santos define
pelo geógrafo Milton Santos, na obra A Natureza do Espaço, como zonas opacas – – numa toada contra-colonial, apesar de esse debate ainda não estar consolidado
do que aos territórios centrais – as zonas luminosas. Para Santos, essas últimas à época de sua produção – essas maneiras como contra-racionalidades: práticas,
são aquelas onde a paisagem e o espaço já foram saturados pela racionalidade5 da culturas, valores e atividades que não estão necessariamente subordinadas às pers-
globalização, processo que encontra nas centralidades a maior concentração de re- pectivas da racionalidade hegemônica, e, justamente por isso, apresentam soluções
cursos disponíveis para sua reprodução, sendo nelas imperativas as ações sobre a criativas e potencialmente insurgentes para esses territórios.
paisagem baseadas na ciência, na técnica e no conhecimento hegemônicos.
“No campo e nas cidades, o aprendizado e a crítica da racionalidade
Por outro lado, as zonas opacas, periféricas, estão – pela escassez de recursos alia- hegemónica se fazem através do uso da técnica e da experiência da
da ao desinteresse do poder público e do mercado, entre outros fatores – à margem escassez. [...] Essas contra-racionalidades se localizam, de um ponto
desses processos ditados pelo poder dominante. Portanto, os modos de vida e tec- de vista social, entre os pobres, os migrantes, os excluídos, as minorias;
de um ponto de vista económico, entre as atividades marginais,
nologias racionalizantes, ditados pela ciência e tecnologia hegemônicas, tem muito
tradicional ou recentemente marginalizadas; e, de um ponto de vista
mais força nos segmentos mais abastados do território urbanizado, as centralidades. geográfico, nas áreas menos modernas e mais “opacas”, tornadas
irracionais para usos hegemônicos. Todas essas situações se definem
5 Em sua obra “A Natureza do Espaço”, Santos define a racionalidade do espaço como uma forma de compreender e organizar
pela sua incapacidade de subordinação completa às racionalidades
o espaço geográfico de acordo com as necessidades e interesses humanos. Ele argumenta que a racionalidade do espaço é dominantes, já que não dispõem dos meios para ter acesso à
construída socialmente e está sujeita a influências políticas, econômicas e culturais.

40 41
modernidade material contemporânea. Essa experiência da escassez é esta pesquisa, produz, conforme exposto na tese, duas leituras: o viés marxista e o
a base de uma adaptação criadora à realidade existente.” antropológico.
(SANTOS, 2006, p.208-210)
O primeiro viés formula visões mais macroestruturais, partindo de um entendimento
Os territórios opacos, em escassez de recursos, criam por adaptação suas próprias da periferia enquanto “bolsão de reprodução da força de trabalho, onde a classe tra-
racionalidades e definem novos modos de viver e ocupar a cidade, diferentes da ló- balhadora se reproduzia enquanto tal e em condições críticas” (D’ANDREA, 2022, p.
gica de dominação, competitividade, exploração e concentração de riqueza imposta 69). A partir de autores como Lúcio Kowarick e Ermínia Maricato, o segmento passa
pelo sistema vigente. Em tempos de crise dos modelos dominantes, esses modos a compreender diversos fenômenos comuns em territórios periféricos como formas
devem tomar lugar de protagonismo, e irromper com novidades, gerar revoluções. específicas de reprodução do capital, sendo entendida a cidade não somente um
Como nos traz Beatriz Nascimento no trecho exposto anteriormente, é nos períodos palco para sua produção, mas uma de suas formas materiais. Há um novo olhar para
de crise da nacionalidade que irrompem os quilombos como memória de resistência “fenômenos aparentemente corriqueiros como a falta de planejamento, os vazios
da nação. urbanos, os loteamentos irregulares, os terrenos baratos sem infraestrutura” (D’AN-
DREA, 2022, p. 72) que passam a ser entendidos como processos integrantes da dinâ-
“[...] O Brasil ergue muros contra os subalternizados, mas esses muros mica de extração de renda do solo urbano, que geram desordem e desconfiguração
apresentam fissuras. E nas fissuras, ou nas brechas [...] nós vamos na ocupação da cidade de maneira intencional, por negligenciar o planejamento em
observar que ocorrem reconstruções incessantes de modos de vida.
nome do lucro.
[...] Como é que na precariedade você constrói isso? [...] Milton Santos
falou numa outra dimensão que é a ideia da sabedoria da escassez. “Dita desordem seria o resultado da ação empreendedora de uma série
[...] a circunstância da escassez te coloca na dimensão da reinvenção de agentes dispostos a auferir renda e lucro de tal (des)configuração
do mundo. [...] O encantamento [a reinvenção] é a afirmação da vida urbana. Como não há uma ação organizada por parte destes, mas sim
contra a morte.” uma série de empreendimentos privados sem planejamento urbano, a
(SIMAS, 2022, p.63) resultante teria sido o caos e a desordem.”
(D’ANDREA, 2022, p.73)
A periferia está para a cidade, como os quilombos estão para a nação: fissuras no
muro da subalternização que revelam gérmens de novidade, de revolução, de racio- O outro viés destacado por D’Andrea, o antropológico, busca compreender a periferia
nalidade alternativa e fértil, de mudança. Num caminho semelhante, Tiaraju Pablo não mais na chave das macroestruturas políticas e econômicas propostas pelos mar-
D’Andrea, vai apontar, em sua tese, transformada no livro lançado em 2022, “A For- xistas, mas numa aproximação com a realidade material do cotidiano periférico, seus
mação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos”, a maneira como houve uma mudança modos de vida, hábitos e experiência vivida. Uma importante conclusão que aqui
na interpretação e no uso do termo periferia, e como essa transformação se dá num destacamos, é como essa interpretação antropológica deu “ênfase na diversidade
processo histórico de organização e empoderamento político desses sujeitos. Esse de fenômenos existentes” (D’ANDREA, 2022, p. 76). Ou seja, a periferia é ali entendi-
processo, catalisado pela atuação de coletivos culturais periféricos e pela própria da como um fenômeno social complexo, que não é somente definido pelos guarda-
efervescência cultural e artística que se dá nesses territórios a partir da década de -chuvas midiáticos da precariedade, marginalidade e violência, nem tampouco pela
1990, deu visibilidade, principalmente na academia, a uma nova perspectiva de en- romantização estereotipada das concepções estéticas mercadológicas da indústria
tendimento da cidade e do mundo, que D’Andrea (2022, p. 264) propõe como uma cultural, como ocorreu na última fase da preponderância do termo, conforme anali-
“epistemologia periférica”. sado pelo autor:
Segundo o autor, o termo periferia atravessa três fases, onde preponderam histo- “Estávamos na era em que favela, pobreza e periferia tinham virado
ricamente três diferentes atores na definição de seu sentido: (1) a academia, (2) a moda. [...] Periferia e favela haviam se transformado em um produto de
periferia em si e (3) a indústria cultural. A fase acadêmica que é pioneira na cons- grande aceitação e bastante vendável no mercado de bens simbólicos”
trução de um olhar crítico ao processo de periferização importante também para (D’ANDREA, 2022, p.83-86)
42 43
Buscaremos aqui um foco na segunda fase, a preponderância periférica sobre o ter- Por fim, o autor formula a categoria sujeito periférico que aqui tomamos como ferra-
mo periferia, na qual a apropriação do termo por parte dos movimentos sociais, co- menta de construção para uma visão de mundo, tida como ponto de partida para ob-
letivos culturais e dos próprios moradores das periferias realmente ressemantizou servar a cidade e suas dinâmicas. O sujeito periférico age a partir de sua vivência, de
seu significado. seus costumes e de sua experiência objetiva e subjetiva construídas na periferia, lo-
cal de residência e sociabilidade, mas também se reconhece no trânsito em ambien-
“De fato, a preponderância sobre a utilização do termo periferia começou
tes não-periféricos ou “territórios de sociabilidade burgueses” (D’ANDREA, 2022, p.
a mudar de mãos quando uma série de artistas e produtores culturais
oriundos dos bairros populares começou a pautar publicamente 218), podendo assim tomar consciência e se identificar com a condição de periférico,
como esse fenômeno deveria ser contado e abordado. [...] O cerne da pensando e se colocando no mundo a partir daí. É destacada a importância de o
preponderância do discurso deste movimento cultural foi, sem dúvida, sujeito periférico não apenas formular sobre sua própria condição de inferiorização
o fato de falarem da periferia sendo moradores da periferia. O falar ou de precariedade social, mas sim pensar outras temáticas não necessariamente
“de dentro” foi utilizado como recurso para relativizar outros postos
correlatas, pensar o mundo a partir da periferia. Este trabalho tem esse viés, tanto a
de observação. Posteriormente, com a entrada de jovens das periferias
nas universidades, esse ponto de vista se potencializou também na partir de minha vivência subjetiva, implícita ou explícita, quanto a partir da metodo-
esfera universitária.” logia de pesquisa e de seu recorte territorial e temático.
(D’ANDREA, 2022, p.81)

Periferia começa a ser construída, para além de mera condição territorial urbana,
como um locus de atuação crítica e política e como uma subjetividade compartilha-
da, uma possível identidade. Esse processo ganha força sobretudo nos anos 1990,
com a ação e produção dos coletivos e artistas periféricos, dentre os quais se desta-
ca o grupo dos Racionais MC ‘s. Esses atores vêm suprir algumas lacunas no tecido
social periférico, marcas da precariedade, violência e dificuldades comuns a esses
territórios:
“Os coletivos culturais das periferias fizeram o que puderam em
trinta anos de contexto histórico bastante desfavorável. Politizaram
quando os partidos políticos não estavam. Criaram políticas públicas
quando o Estado estava ausente. Tiraram milhões de jovens do crime
quando a única opção era o tráfico. Geraram renda quando o trabalho
nos moldes capitalistas massacrava. A arte e a cultura das periferias
tocaram mentes e corações. Ousaram, transformaram, abriram janelas
para o sonho e para a imaginação de que um novo mundo pleno de
poesia é possível, ainda que esses versos de futuro tenham que ser
escritos com lama e raiva.”
(D’ANDREA, 2022 p.181)

44 45
Charge sobre a remoção.

III. encruzilhada
Autoria de João Bacellar
Fonte: Instagram Frente Ilê Odé.

nar uma referência para o Estado


de reparação à violências contra
território e sujeitos da pesquisa POTMA, ainda que o processo es-
teja inconcluso.
Partindo destes três debates, a pesquisa encontra o Ilê Asé Odé Ibualamo e a Iyalo-
rixá Odecidarewa Zana de Odé, Mãe Zana. A Unidade Territorial Tradicional (UTT) e O caso da Unidade Territorial Tra-
sua líder ganharam certa visibilidade na mídia pelo acontecimento de sua remoção dicional (UTT) se alinhou muito
violenta e arbitrária, em novembro de 2022. É através da notícia no portal LabCidade1 com as questões que a pesquisa
denunciando o ocorrido que essa pesquisa entra em contato efetivo com o caso. vinha acumulando, primeiro por
se tratar de um Ilê, manifestação
A remoção, iniciada na semana da consciência negra, foi causada por obras de infra-
viva da corporalidade e coletivida-
estrutura urbana movidas pela Prefeitura Municipal de Carapicuíba (PMC), com re-
de ancestral. Este Ilê sofreu várias
cursos advindos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), programa federal
formas de violências, incluindo
voltado a financiar obras de infraestrutura, complementado por fundos estaduais. O
tentativas racistas de apagamen-
objetivo das obras é canalizar o Córrego do Cadaval, corpo d’água central na cidade
to, oriundas de ações estatais,
que atravessa diversas favelas e assentamentos precários, para construção de um
alinhadas com os paradigmas dis-
novo eixo viário arterial sobre seu leito. Este tipo de projeto de infraestrutura adota
cutidos anteriormente. Além dis-
uma lógica de construção de avenidas de fundo de vale, se valendo do sufocamento
so, era localizado num território
do curso d’água, em nome do rodoviarismo, ou seja, a priorização dos automóveis
periférico, sendo uma potência que organizava o coletivo localmente. Analisar as
em detrimento de outros modais de transporte e da fruição urbana.
circunstâncias da remoção e de propor uma alternativa urbanística com um desen-
“Eu estou tentando acordar ainda desse pesadelo. A cena dos políciais adentrando ao volvimento arquitetônico que honrasse sua memória e buscasse reparar os danos
território sagrado, como se estivessem a cassar o mais perigoso dos bandidos, quando o causados foi um vislumbre para o desenvolvimento deste trabalho.
que se tinha era uma mulher negra que estava retirando com seus filhos pacificamente
os pertences materiais que complementavam sua existência e história naquele espaço.” Uma confluência fortuita e significativa acelerou meu contato com o território e a
(ODECIDAREWA, 2022)2 história do Ilê e de Zana: logo após decidir focar a pesquisa nestes aspectos, surgiu
a oportunidade de encontrar a Iyalorixá numa mesa de debate na Escola da Cidade-
Por mais de uma década, Zana tem se engajado politicamente e liderado lutas em ade3. Nesse encontro foram compartilhadas narrativas impactantes sobre territórios
defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (POTMA), buscando dar visibilida- negros no centro da cidade como o Quilombo Saracura, Samba do Vai-Vai, Cemitério
de ao seu território antes que as obras o alcançassem. Atualmente, ela atua como ar- dos Aflitos, Vila Itororó e outros. Além disso, Mãe Zana, fez uma exposição poderosa
ticuladora política dos POTMA tanto no contexto municipal em Carapicuíba, quanto a sobre sua própria trajetória, inseparável do território tradicional, o Ilê Asé Odé Ibua-
nível nacional, participando ativamente no Fórum Nacional de Segurança Alimentar lamo, e sua experiência como líder espiritual e articuladora comunitária periférica.
e Nutricional dos Povos de Matriz Africana (FONSANPOTMA). O movimento e esforço
na coletividade fez com que sua história ganhasse visibilidade a nível de se tor-
3 A mesa fez parte da semana inaugural da pós-graduação da Escola da Cidade de fevereiro de 2023, e teve como tema
1 “LabCidade” é uma abreviação para Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade, um laboratório de pesquisa e ação da “Pesquisa acadêmica, movimentos sociais e ressignificação por novas narrativas: territórios negros da cidade de São Paulo”.
Universidade de São Paulo (USP). Ele se dedica ao estudo e à promoção do direito à cidade, buscando compreender e intervir Foi aberta por Catherine Otondo, então presidente do CAU/SP, mediada por Luiz O. de Faria e Silva, docente da instituição, e
nas dinâmicas urbanas. protagonizada por, além de Mãe Zana, Abílio Ferreira, professor e historiador que pesquisa territórios negros no centro de São
2 Relato de Zana de novembro de 2022, extraído do Instagram da Frende Ilê Odé. Paulo e Cláudia Alexandre, doutora em sociologia, pesquisadora e militante em defesa dos territórios do Quilombo Saracura e
do Vai-Vai.
46 47
Ao final do evento, tive a oportunidade de ter uma conversa informal com Zana. Ela
se mostrou imediatamente interessada e conectada com o que pude expor sobre mi-
“Nós somos frutos da nossa ancestralidade, que foi covardemente retirada das suas terras
nha trajetória, afetos e anseios, enxergando em meu projeto de pesquisa uma ferra-
e trazida para cá [para o Brasil]. Nos tiraram muitas coisas, menos a vontade de lutar e de
menta para sua luta e se dispondo a manter contato. A partir desse encontro, fomos reinventar. Depois de ver a minha casa sendo demolida, entendi o recado da sociedade. Precisamos
estreitando as relações entre conversas informais, reuniões e eventos da Frente Ilê nos impor e dizer qual é o nosso lugar aqui, e deve ser do jeito que a gente é. Tentaram moldar
Odé, frente de luta em defesa do terreiro que passei a integrar a convite de Mãe Zana. a nossa cultura, mas não conseguiram moldar a gente. Vamos lutar para que não vejamos mais
nenhum de nós tombar”(ODECIDAREWA, 2023)4
Através da Frente pude participar e ajudar na organização de oficinas, atos, audiên-
cias, seminários, reuniões, festividades e outros eventos, onde entrei em contato e
colaborei com técnicos do IPHAN, da Escola da Cidade, representantes do Judiciário
e da Defesa Pública e de diversas pastas do Executivo, além da própria comunidade
local, o que decerto agregou no acúmulo e aprofundamento da pesquisa. Destes
eventos, destaco a audiência pública nacional, iniciativa da Defensoria Pública do
Estado de São Paulo, do Projeto Territórios Vivos do Ministério Público Federal (MPF)
em parceria com a Agência Alemã de Cooperação Internacional (GIZ) e a Rede de
Povos e Comunidades Tradicionais (Rede PCTs), em abril de 2023. Com o título “Dis-
criminações Históricas, Socioeconômicas e Estruturais contra Povos de Terreiros e
Comunidades Tradicionais: O caso Ilê Asé Odé Ibualamo e o Caminho para Preven-
ção e Reparação”, a audiência contou com a presença de lideranças tradicionais, Se-
cretarias do Governo Federal, representantes de organizações da sociedade civil, e
acadêmicas, e, contrastando com a discreta presença da PMC, representada por um
porta-voz jurídico.
Além disso, dois fatores se destacam como cruciais para o desenvolvimento do tra-
balho: (1) a possibilidade de sentir o território pessoalmente acompanhado de Zana
e de pessoas da comunidade, com quem criei laços e pude conversar bastante e (2)
o aprendizado com Iyalorixás, Babalorixás e outros partícipes e autoridades da Tra-
dição de Matriz Africana, transmissores do conhecimento ancestral. Através destes
contatos diversificados, o trabalho enriqueceu-se com uma ampla gama de perspec-
tivas sobre a vida na cidade e especialmente na periferia. Ele deu ênfase a visões
orgânicas, oriundas de experiências reais e vivências na periferia e em contextos
ligados à Tradição. Com base nestas percepções e utilizando as ferramentas especí-
ficas, mas cruciais, da Arquitetura e do Urbanismo, o projeto propõe caminhos para
a reparação.
Registros da mesa na Escola da Cidade: à esquerda Zana em destaque,
à direita inferior, respectivamente, Cláudia Alexandre, Abílio Ferreira e Mãe Zana.
Acima e à direita, registro de Mãe Zana realizando fala na Audiência Pública Nacional.
Fonte: Instagram Frente Ilê Odé e Blog Racismo Ambiental.

4 Fala de Abertura da audiência pública mencionada, proferida por Mãe Zana em abril de 2023.

48 49
Colagem digital com imagens de portais de no-
tícias, inspirada em fala de Mãe Zana proferida
durante reunião da Frente Ilê Odé
Fonte: Folha de São Paulo, Portal LabCidade,
Ponte Jornalismo e Elaboração prória.

50 51
2. aterrar
estudos e diagnósticos do território
Iniciaremos a análise do território em estudo abordando primeiramente sua
dimensão mais sensível e imaterial, compreendendo as confluências histó-
ricas e ancestrais que conformaram o estabelecimento do Ilê Asé Odé Ibua-
lamo no Vale do Cadaval em Carapicuíba. Em seguida, expandiremos o foco
para entender o contexto do município na escala metropolitana, destacando
as redes, massas e fluxos determinantes para as dinâmicas urbanas locais.
Posteriormente examinaremos a evolução da paisagem urbana de Carapicuí-
ba, para finalmente chegar à compreensão direta das motivações por trás da
obra do eixo viário que provocou a remoção do Ilê, bem como de seu impacto
no contexto local.

Abenigo y Tchoua, 2023


Hariel Revignet
Fonte: Instagram
I. corpo e memória,
vozes ancestrais
genealogias do território
“O que é a civilização Africana e Americana?
É um grande transatlântico.
Foi transportado para a América um tipo de vida que era africana.
É a transmigração de uma cultura e de uma atitude no mundo…
de um continente para outro, de África para América.
De África chegaram ao nosso continente centenas, milhares de povos, de
culturas diferentes.
Mas América, por certo, unificou estas famílias…
unificou estas nações
ao dar-nos um só destino…
entorno à luta comum, pela libertação de nossa raça”
(NASCIMENTO, 1989)

Diáspora e retorno, 2022


Régiz Francisco
54 Fonte: imagem cedida pelo autor 55
Para uma aproximação adequada com o território, é fundamental compreender as mente. O esforço de resistência consistiu em encontrar nessas terras uma lingua-
origens, a memória e a ancestralidade por trás do Ilê Asé Odé Ibualamo. Buscaremos, gem comum entre os oprimidos, indígenas e africanos, que trouxesse significação à
em primeiro lugar, contextualizar o leitor para a condição da diáspora africana para vida e permitisse a continuidade das tradições. As línguas africanas, ameaçadas de
a América. É essencial a exposição desse tema difícil, mas frequentemente debatido apagamento, se misturaram com o português e com as línguas nativas, conforman-
e que ainda sofre com abordagens superficiais e equívocas. Com base nesta discus- do novas línguas, originadas na diáspora, que permitiram continuidade do vínculo
são, buscaremos investigar e restituir uma genealogia do Ilê Asé Odé Ibualamo e de africano.
Zana, numa perspectiva de compreender o território através da ancestralidade que
O Candomblé é tradição oral. Essa religião de matriz africana
ali se estabeleceu.
conseguiu, em seu seio, preservar a linguagem dentro dos terreiros.
A diáspora é uma continuidade transatlântica, marcada por violações de direitos [...] a língua, por mais que tenha havido perda, ainda é um
dadas na escravização, estupro, tráfico, genocídio, sequestro e exploração dos po- conservatório cultural e histórico que difere de outras instâncias
afro-brasileiras, sociológica, religiosa e musical, pois foi preservada
vos que viviam em África. Essas ações, motivadas por ideais e estruturas sociais através dos cantos. Por exemplo, falamos e nos fazemos entender
racistas, já debatidas anteriormente, provocaram o transporte das culturas africanas ou ser entendidos pelos nossos orisàs somente no idioma deles e
para o contexto da América, transformando-as de diversas maneiras, principalmente não no português, nossa segunda língua [...] Para Munanga (2004, p.
em tentativas de apagar, desarticular e desconectar os povos subalternizados de 157), “a linguagem, eixo fundamental de toda a cultura e das religiões
suas origens. Delas, podemos destacar primeiramente o apagamento de memórias de origem africana na diáspora, guarda certa identificação com as
raízes. Principalmente a linguagem dos gestos, que expressa valores
operado como estratégia de colonização: os escravizados tinham seus nomes origi- tradicionais”. A travessia e a preservação da oralidade não ocorreram
nários trocados para os nomes de seus senhores, identidades apagadas; ao serem num passe de mágica, mas sim num processo de fechamento entre os
afastados de seus territórios, perdiam o contato com as culturas e com as famílias, próprios negros na senzala, na lavoura e até mesmo nas construções,
enfraquecendo os vínculos com as práticas tradicionais, e ainda a língua era um fa- apesar da própria história do Brasil negar todo esse processo.”
tor de desarticulação, pois africanos de diferentes origens eram colocados juntos de (IYAGUNÃ, 2013, p. 52-55)
maneira a dificultar a comunicação e organização.
O sagrado também resistiu: não somente através do sincretismo1, mas também com
“Segundo Mattos e Silva (2004), diversos pesquisadores que estudam a manutenção do vínculo com os ancestrais divinizados de origem africana, que aqui
a história linguística do Brasil e a formação do português brasileiro no Brasil passaram a ser cultuados de outra maneira, mas com a mesma essência.
concordam que dois fatos teriam contribuído para as línguas africanas Existe uma especial relação com esses ancestrais (que para cada matriz têm um
não terem se estabelecido no Brasil: primeiro, a política do tráfico que
nome2), que retoma uma noção de identidade muito forte. Cultuá-los não significa
procurava separar desde o continente africano aqueles de mesma
etnia e língua, para impedi-los de se organizarem; segundo, a não apenas o culto à divindades, mas também à ancestrais, ou seja, significa pertencer a
constituição plena de famílias de escravizados, em que pudessem um povo, ter uma identidade, ter uma história e uma memória de seus antepassados.
firmar esses núcleos linguísticos. Assim, os escravizados africanos, Todos esses elementos sofreram tentativas de apagamento e violências durante o
para se comunicarem, teriam adotado os recursos linguísticos processo da diáspora e da escravidão, e até hoje sofrem devido às estruturas racis-
disponíveis, que teriam sido as línguas indígenas, as línguas gerais
tas da sociedade. Porém, é graças às tradições que essas culturas conseguem ser
indígenas ou o português do colonizador. O português teria sido mais
comumente utilizado, de modo que a língua teria sido profundamente salvaguardadas e recuperadas, dando ao povo preto ferramentas para reexistir.
reestruturada pelos africanos no processo de aquisição”
(SILVA, 2004 apud. ELTERMANN, 2018, p. 36)
1 O sincretismo costuma ser referenciado como processo de adaptação das culturas de matriz africana às violências colo-
niais, apontando principalmente para a adoção dos santos católicos como substitutos ou paralelos aos ancestrais divinizados
Assim, a diáspora foi marcada por opressões que violentaram direitos fundamentais de origem africana. Esse processo se torna problemático quando interpretado à luz do fato de que a catequização dos povos
africanos, praticada pelos escravistas tanto na América quanto em África era carregada de colonialidade, através da hierarqui-
ao corpo, à terra e à identidade. O colonizador tentou apagar a cultura, mas graças zação cultural e da suposta superioridade civilizatória das culturas europeias.
à resistência e à organização dos povos que aqui chegaram, não conseguiu total- 2 Orixás, inquices e voduns, ver glossário.

56 57
É através dessas transformações, ressignificações, resistências e adaptações que Lélia Gonzales desenvolve esse debate das transformações culturais no contexto da
as tradições de matriz africana se formam no Brasil. São tradições dinâmicas, que diáspora através do conceito de Améfrica, apontando para uma perspectiva afro-
se transmutaram ao longo do tempo, mas mantendo principalmente os marcadores -diaspórica americana que reconhece conexões e intersecções entre os povos africa-
da oralidade, corporalidade e territorialidade, herdados de África. A língua falada é a nos e afrodescendentes que constituíram culturas na América. Na mesma toada, An-
principal transmissora do saber dos mais velhos, da tradição; a linguagem corporal tônio Bispo se refere aos povos afroconfluentes, demonstrando uma convergência e
é restituição da liberdade ao corpo como expressão, privada e oprimida pela escra- unidade nessas culturas, reconhecendo sua diversidade, e seu acúmulo de saberes
vidão, e a territorialidade tem a ver com a noção de coletividade, pertencimento e através da resistência e do respeito à coletividade.
partilha da terra que foi negada aos escravizados, mas que é também recuperada nos Assim, os POTMA, aqui referenciados através das tradições e saberes do candomblé,
quilombos e terreiros. Assim aponta Iyagunã (2013), sobre a linguagem do corpo, em umbanda e outros, se constituem como algo além de simples religiosidade ou sa-
sua tese “Os saberes do candomblé na contemporaneidade”: cralidade, mas numa noção ampla de povo, cultura e ancestralidade complexa, rica
“A linguagem oral no contexto africano e afro-brasileiro não se resume e plural, que vem de África mas que no Brasil se transforma por resistir e continuar.
à fala, mas abrange também o idioma corporal, porque o corpo fala, As três principais origens étnicas africanas que conformaram as culturas dos POTMA
canta e dança. Por meio da dança se está comunicando algo. Assim, coincidem com as origens ancestrais do Ilê Asé
a dança compõe-se como linguagem corporal codificada do ponto de Odé Ibualamo, são elas: Jeje, Iorubá e Bantu3.
vista estético e religioso. As pessoas conhecedoras ou vivenciadoras do
Candomblé sabem que estão se referindo à gestualidade, a sincronias Através dos relatos de Zana proferidos em con-
de pés, mãos e corpos. Tudo é uma linguagem cultural que requer textos de oficinas e reuniões da Frente Ilê Odé,
outro saber que não está objetivado em livros de ciência ou literatura.” remontamos a chegada de seus ancestrais afri-
(IYAGUNÃ, 2013, p. 57)
canos da geração de bisavós, tanto paternos
E ainda completa Sodré (1988), na clássica obra O Terreiro e A Cidade, referindo-se quanto maternos, principalmente na cidade de
à corporalidade da dança e do jogo, ritualísticos ou lúdicos, como ferramenta trans- Porto Seguro, na Bahia. Seu estabelecimento se
gressora dos ditames escravocratas: deu predominantemente nas cidades de Cama-
cã e Canavieiras, sul baiano, nesta última onde
“Os agrupamentos ou as associações controladas não sufocavam
a preservação da memória originária ou da criação cultural no
meio da escravaria. E essa criação era propiciada pelo jogo, tanto 3 É importante destacar que esses nomes têm seu significado extrema-
mente atrelado ao contexto da diáspora, visto que um único nome abar-
na forma do culto mítico religioso como do ludismo festivo que ca uma pluralidade de povos e culturas que foram tidas como unificadas
se esquiva às finalidades produtivas do mundo dos senhores. [...] pelo olhar escravista, mas que não necessariamente possuíam afinidade
Ao dançar, colocando-me ora aqui, ora ali, eu posso superar a étnica. Jeje é um etnômio de origem etimológica incerta, adotado pelos
dependência para com a diferenciação de tempo e espaço, isto é, a minha traficantes de escravizados que denominava os povos da Costa da Mina
na África Ocidental, absorvido por esses africanos trazidos à América
movimentação cria uma independência com relação às diferenças como forma de autodenominação. Da mesma maneira, Bantu representa
correntes entre altura, largura, comprimento. Em outras palavras, a um grande grupo étnico que abrange um enorme território em África,
dança gera espaço próprio, abolindo provisoriamente as diferenças mas quando falamos da tradição Bantu para os POTMA, comumente nos
com o tempo, porque não é algo especializado, mas espacializante, referimos às culturas originárias dos povos Bakongo (Congo) e Mbundu
(Angola), sendo fortemente presentes nas raízes das tradições da um-
ou seja, ávido e aberto à apropriação do mundo, ampliador da banda, quimbanda e nos candomblés bantos. Já os Iorubás eram povos
presença humana, desestruturador do espaço/tempo necessariamente também plurais, falantes da língua homônima que tinha variantes re-
instituído pelo grupo como contenção do livre movimento das forças.” gionais. Eles ocupavam uma região vizinha aos Jejes, porém com uma
(SODRÉ, 1988, p. 122) unidade cultural mais sólida, com línguas e práticas mais aproximadas.

Fotografia do Babá João Canavieiras ao lado


de sua filha Glória, tia de Zana.
58 Fonte: Imagem cedida por Zana.
59
Zana relata que seus bisavós constituíram um quilombo após sua alforria4, já no a conexão da tradição com os elementos naturais da paisagem, sendo essenciais
contexto pós abolição. Neste quilombo nasce Marina Clarinda Oliveira de Jesus, Mãe para diversas práticas, como abordaremos mais à frente. A compra do terreno se
Caçailê, conhecida como Mãe Nega, mãe de Zana e filha do Babalorixá5 João Cana- deu de maneira informal, sem registros ou documentos, algo comum nos territórios
vieiras e da Makota6 Maria de Lourdes Evangelista, seus avós maternos. populares brasileiros.
Nos anos 1970, Mãe Nega migra da Bahia para São Paulo, para a cidade de Cubatão, Os trabalhos de Mãe Nega perduraram em Carapicuíba por quase 20 anos, criando
onde nasce Zana. Já em meados da década seguinte, com Zana ainda criança, a ma- profundas raízes e conexões com o território e a comunidade, constituindo na UTT
triarca estabelece sua UTT na cidade de Carapicuíba, já no terreno às margens do uma territorialidade negra, remanescente herdada de quilombos baianos, naquela
Córrego do Cadaval, que à época era um local pouco urbanizado, característico da pe- região. Em 1997, a matriarca faz sua passagem para o Orum, legando a Zana, sua pri-
riferia metropolitana. A presença do riacho, ainda limpo e preservado e de vegetação mogênita, a continuidade na liderança do Ilê Asé Odé Ibualamo. A paisagem já vinha
abundante foram essenciais para que a Iyalorixá estabelecesse seu Ilê por ali, dada à época se transformando, dado o desenvolvimento urbano e a crescente periferi-
zação na metrópole. O córrego, antes limpo, ficava cada vez mais poluído, as cheias
mais perigosas e a vegetação foi dando lugar a lares de outras famílias que vinham
4 Mãe Zana relata que mesmo após libertos, seus ancestrais ainda tiveram que se constituir coletivamente nos quilombos
como maneira de subsistência e organização coletiva. Isto corrobora com a discussão já realizada citando Joice Berth, que ocupar a área da margem, terreno pertencente ao poder público que deveria ser área
aponta para uma omissão racista do estado brasileiro em prover políticas públicas para os negros libertos no contexto do de proteção permanente, por sua sensibilidade ambiental, mas que acabou sendo
pós-abolição.
5 Ver glossário. totalmente ocupado pela urbanização informalizada.
6 Ver glossário
Imagem de satélite destacando o córrego poluído e a UTT. Foi registrada
poucos meses antes de a obra alcançar o território.
Fonte: Google Earth e Elaboração Própria.

“A gente teve que se esconder. Geralmente


os terreiros tem muros altos, e quando
não tem, utilizam os amontoados de casas
das periferias como seus próprios muros,
muros habitáveis. É criado um padrão de
proteção contra a cidade hegemônica, um
escudo de blindagem contra a violência.”
(ODECIDAREWA, 2023)7

7 Relato proferido por Zana em outubro de 2023, duran-


te reunião da Frente Ilê Odé.

Ilustração demonstrando o avanço da urbanização


sobre um território tradicional.
Fonte: Retirado da tese de Iyagunã (2013).

60 61
tráfico humano (1500~)
fluxo migratório (1970~)
limites administrativos atuais
territórios de povos africanos*
municípios de ancestrais
BENIM
município do Ilê Asé Odé Ibualamo TOGO

NIGÉRIA

GANA yorubá
jeje ÁFRICA

CONGO
OCEANO
ATLÂNTICO R.D.C.

bantu

AMÉRICA
bahia

canavieiras ANGOLA
BRASIL

p. seguro
são paulo camacã

S
Mapa da ancestralidade transatlântica de Odecidarewa Zana de Odé
carapicuíba * ver nota de rodapé de número 3 deste subcapítulo
Fonte: Base Stamen Maps e Elaboração prória.
II. metrópole e periferia
Carapicuíba, uma cidade de porte médio, situada na sub-região oeste da Região
Metropolitana de São Paulo (RMSP), faz divisa com os municípios metropolitanos
de Osasco, Cotia, Barueri e Jandira. Destacaremos os fluxos das massas populacio-
nais que conformam as dinâmicas urbanas nessa região da metrópole. Porém, antes
Carapicuíba no contexto metropolitano disso, devemos entender as redes urbanas estruturantes do território, através das
quais os fluxos acontecem. Essas redes incluem: (1) a ferroviária, (2) a rodoviária e
“[...] a configuração das cidades funciona de acordo com um conceito básico da colonialidade: o (3) a fluvial.
antagonismo centro–periferia. Ao confinar os indesejáveis (ou o outro grupo social construído
pela colonialidade) em espaços longe das áreas onde se pretende manter a visualidade branca, A primeira rede, a ferroviária, é representada pela linha Diamante da CPTM, antiga
se exercita a afirmação das hierarquias espaciais. Ou seja, nos centros urbanos, onde é inevitável Estrada de Ferro Sorocabana, que conecta a região ao núcleo central da capital, sen-
o encontro de entes sociais distantes das hierarquias, não se pode construir habitação social.” do um caminho para o oeste paulista que atraiu aglomerações e desenvolvimento
(BERTH, 2023) urbano principalmente nos pontos onde havia paradas e estações edificadas, e que
hoje é responsável pelo fluxo migratório pendular. As redes rodoviária e fluvial ope-
Após compreender as relações de memória e ancestralidade intrínsecas ao território,
ram de maneira interligada, pois foi comum na aplicação das políticas urbanas de
nosso foco se volta para a escala urbana metropolitana onde essas questões se in-
viés rodoviarista e higienista que a canalização de cursos d’água acompanhasse a
serem. Consideraremos o contexto da metrópole como uma rede urbana, seguindo a
criação de eixos rodoviários junto de ou sobre seus leitos. Esse foi o caso de dois dos
definição de Milton Santos (1980, p.173), no Manual de Geografia Urbana, como sen-
eixos de importância metropolitana da região estudada: (1) o Rodoanel Mário Covas
do o “resultado de um equilíbrio instável de massas e de fluxos, cujas tendências à
junto do Ribeirão Carapicuíba, que demarca a divisa com Osasco, conectada ao extre-
concentração e à dispersão, variando no tempo, proporcionam as diferentes formas
mo norte da capital, e ao sudoeste da RMSP, e (2) a Rod. Presidente Castello Branco,
de organização e de domínio do espaço pelas aglomerações”.
continuidade da Marginal Tietê, que conecta a região ao centro metropolitano e se
estende em direção ao interior do estado. A exceção a esta lógica fluvio-rodoviária é
a Rodovia Raposo Tavares, originária do caminho do Peabiru1, que articula o trecho
sul do município com as zonas mais abastadas da capital, seu núcleo sudoeste.
O desenvolvimento da cidade no contexto metropolitano atravessa a história do Ilê
e de Zana, como também de muitas outras famílias e grupos migrantes, que vieram
para a metrópole em busca de melhores condições de vida. Esse processo constituiu
uma continuidade diaspórica (conforme já comentado no capítulo I, no texto sobre
territorialidade) já que muitos dos migrantes eram descendentes de escravizados
e sua precariedade nas condições de vida se devia à negligência (e muitas vezes,
à violência) estatal para com as populações negras no pós-abolição. Este fluxo de
migrações foi constituidor das massas populacionais na metrópole paulista, princi-
palmente nas periferias, onde essas populações pauperizadas se instalaram, e em
Carapicuíba esse processo também é notado.

Trabalhadores migrantes.
Década de 1950 1 Caminho do Peabiru possui uma importância histórica significativa em São Paulo, sendo uma rota utilizada pelos indígenas
(estimado) e posteriormente pelas bandeiras.
Fonte: Facebook
Carapicuíba Antiga

64 65
“O crescimento urbano de São Paulo está relacionado diretamente Uma segunda problemática nessa dinâmica pendular é a tendência de rotular as
ao fenômeno migratório, e este, aos processos de urbanização e cidades periféricas envolvidas nessa relação como cidade-dormitório, uma designa-
industrialização. O fluxo migratório nacional de maior destaque
foi o dos nordestinos para São Paulo. Segundo Baptista (1998), a
ção que carrega uma certa conotação colonialista. Este estudo questiona essa sim-
participação dos migrantes nordestinos, no total de imigrantes em São plificação, adotando a cosmovisão de Exu e tomando a lente periférica como visão de
Paulo em 1950 era de 27,8%, em 1974 de 49%, em 1982 de 56% e em 1997 mundo, vemos que essa definição ignora muitas nuances locais desses territórios.
de 46%.” (BAPTISTA, 1998 apud. GOMES, 2006) Primeiro, ao descartar os outros 50% da população que não se desloca e os 30% do
Outro fluxo significativo nas dinâmicas metropolitanas é o da migração pendular, tempo da população que se desloca, mas reside no território, tomando como viés
evidente na rede ferroviária já mencionada. Existem dados2 de que mais de 50% da único a perspectiva central da metrópole. Como consequência desse viés, se descon-
população de Carapicuíba se desloca do município diariamente para trabalhar e/ou sidera grande parte das dinâmicas culturais e das sociabilidades construídas nesse
estudar. Esse grande fluxo por um lado prejudica o desenvolvimento econômico do território, tomando aquela parte da cidade apenas como um “dormitório da classe
município, por deslocar parte considerável de sua força de trabalho para outros ter- trabalhadora”, e não como lócus da reprodução de um modo de vida complexo, rico e
ritórios, e por outro afeta fortemente a qualidade de vida da população, que dedica diverso, o modo de vida periférico.
em média 3h diárias para o deslocamento, entre ida e volta. Considerando 8h de
sono e 8h de trabalho diárias, podemos estimar que 50% do tempo desperto dessa
população é trabalho e 20% é transporte. Somam-se ao longo de um ano útil, 50
dias dedicados ao deslocamento. Pode-se falar numa experiência de desterro, se-
melhante ao da diáspora gerado por esse processo, visto que o munícipe, impelido a
passar boa parte do tempo em outras cidades e no transporte público, não consegue
dedicar muito tempo à experiência de seu território, esvaziando-se o sentido da ter-
ritorialidade, prejudicando seus vínculos e redes locais.

2 “Registros do ano 2000 apontam que Carapicuíba era a 2º cidade [na RMSP] com maior diferença negativa em seu movi-
mento pendular e que mais de 50% de sua população se desloca diariamente para outros municípios para trabalho ou estu-
dos” (Plano Local de Habitação de Interesse Social, PMC).

Ônibus circulando nas ruas precariamente


Trem de passageiros urbanizadas
Década de 1970 (estimado) Década de 1980 (estimado)
Fonte: Facebook Carapicuíba Antiga Fonte: Facebook Carapicuíba Antiga
66 67
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CARAPICUÍBA he
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rio
a
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cursos d’água
pendularidade
estação carapicuíba
eixo ferroviário
eixos rodoviários S
municípios limítrofes
capital metropolitana Mapa do contexto metropolitano do território em estudo.
município em estudo Fonte: Base de dados Google Earth e Elaboração prória.
III. infraestrutura
É dos três eixos definidores nas di-
nâmicas metropolitanas (ferroviário,
rodoviário e fluvial), que se dá a for-

urbana para quem?


mação da paisagem urbana de Cara-
picuíba numa escala municipal. Lo-
calizada entre os vales do Rio Cotia
e do Ribeirão Carapicuíba, a cidade
Carapicuíba, contexto é seccionada pela cumeeira que di-
vide suas bacias, sobre a qual passa
Carga chegando ao matadouro municipal

urbano e ações estatais


Década de 1960 (estimado)
a principal via da cidade: a Av. Ino- Fonte: Facebook Carapicuíba Antiga

cêncio Seráfico, uma centralidade linear. Na bacia do Rio Cotia está o Córrego do
“O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas
Que cresceram com a força de pedreiros suicidas Cadaval, curso d’água que atravessa boa parte do território, cortando também a área
Cavaleiros circulam vigiando as pessoas foco, onde se localizava o Ilê. Numa visão geral, Carapicuíba é uma cidade que possui
Não importa se são ruins, nem importa se são boas grandes desafios quanto à justiça social, com pelo menos um quarto de sua popula-
E a cidade se apresenta centro das ambições ção vivendo em alta ou muito alta vulnerabilidade social1, grande número de favelas
Para mendigos ou ricos e outras armações
(160) e largo déficit habitacional2.
Coletivos, automóveis, motos e metrôs
Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs Essas condições podem ser bem compreendidas ao observarmos o histórico de for-
A cidade não para, a cidade só cresce mação da cidade, que explicita a precarização e informalidade em seu território. O
O de cima sobe e o de baixo desce [...]
A cidade se encontra prostituída
nome Carapicuíba, vindo da língua tupi, tem significado incerto, mas foi demarcado
Por aqueles que a usaram em busca de saída pela criação da Aldeia de Carapicuíba, um assentamento jesuítico fundado por volta
Ilusora de pessoas de outros lugares de 1580. A aldeia tinha como objetivo a catequização indígena e o povoamento dos
A cidade e sua fama vai além dos mares.” caminhos da expansão bandeirante em direção ao oeste paulista, sendo hoje um
(CHICO SCIENCE, 1994) sítio histórico da cidade notado pela sua boa preservação, que remonta a memória
da violência colonial desde suas origens, e muito apropriado pela população local,
sendo um polo turístico e cultural. Apesar da importância histórica, o crescimento
de Carapicuíba não se dá fortemente a partir da aldeia, mas sim com a chegada da
Estrada de Ferro Sorocabana, e 1875 e a criação das estações nas proximidades de
onde hoje a cidade está estabelecida.
Dessas estações, duas de notável importância foram a Estação Carapicuíba, que con-
formou os primeiros loteamentos urbanizados, que posteriormente constituíram o
centro comercial da cidade, e a estação General Miguel Costa, ponto de chegada de
bovinos para abate num importante matadouro que existiu na região até meados da
década de 1960. Esse entendimento da chegada da infraestrutura como força motriz
Trabalhadores na urbanização do
centro de Carapicuíba 1 Dados da Fundação Seade, Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS), de 2010.
Década de 1950 (estimado) 2 “Atualmente, segundo a Prefeitura de Carapicuíba (PLHIS, 2011; entrevistas) a cidade contém aproximadamente 160 fave-
Fonte: Facebook Carapicuíba Antiga las, as quais abrigam 24,4 % dos domicílios carapicuibanos. Esta elevada taxa gera ao município o 8º maior déficit absoluto
de moradias da RMSP (Fundação João Pinheiro-CEI, 2000)” (PELLEGRINO, 2017, s/p)

70 71
Vista aérea da COHAB Castello Branco
Década de 1980 (estimado)
Fonte: Facebook Carapicuíba Antiga
do crescimento urbano é uma das chaves para a compreensão do desenvolvimento
de Carapicuíba.
Paralelamente ao processo de infraestruturação da metrópole, observa-se a peri-
ferização e marginalização dos corpos negros, o que se soma à já descrita diáspo-
ra nordestina3. Assim, Carapicuíba passa a crescer demograficamente e constituir
um extenso tecido urbano popular a partir dos anos 1950. Conforme discutido no
texto sobre territorialidade no primeiro capítulo, é nesse período que as obras de
infraestrutura urbana e o planejamento metropolitano começam a ter mais peso no
desenvolvimento da metrópole. Essas obras, como defende Barone (2022), passam
a expulsar as populações pauperizadas das centralidades que começavam a se con-
formar, deslocadas em direção às periferias. Esse movimento foi impulsionado pelas
políticas habitacionais, materializadas nos grandes conjuntos que levavam a infraes-
trutura urbana básica para territórios periurbanos ou ainda ruralizados, e garantiam
o transporte dessa massa populacional para exercer sua força de trabalho na capital.
Em Carapicuíba não é diferente: um ponto que demarcou o crescimento demográfico
e a urbanização da paisagem na cidade foi a construção do Conjunto habitacional da
COHAB Castello Branco, na década de 1980, um dos maiores conjuntos do estado,
que foi seguido de muitos outros conjuntos construídos em seu território.
Ao passo que, durante a segunda metade do século XX, no entorno das estações
ferroviárias e junto dos grandes conjuntos habitacionais começaram a surgir uma
densa cidade popular formalmente urbanizada; a extensa maioria do território de
Carapicuíba passa a ser ocupada informalmente, já que a política urbana estatal não
dá conta do crescimento populacional advindo das migrações e periferizações. É
nesse contexto que Mãe Nega ocupa o território da UTT, numa Carapicuíba semirru-
ral e informal, sem infraestrutura básica, cuja população aumentava cada vez mais. A resultante é que grande parte da paisagem urbana hoje é marcada por favelas,
Esse crescimento populacional só diminui significativamente a partir dos anos 2010, loteamentos informais e assentamentos precários, bem como pela autoconstrução.
conforme expresso na tabela4 a seguir: Esses trechos explicitam a vulnerabilidade urbana e social, carecendo de equipa-
mentos públicos, áreas livres, em muitos casos ocupando zonas ambientalmente
sensíveis como encostas e fundos de vale, além da ausência parcial ou total de infra-
estrutura urbana básica. Pellegrino (2017) explicita esse processo, trazendo a tona
um histórico da favelização da cidade:
“Dos loteamentos clandestinos da década de 1970 surgiu a maior
parte dos bairros carapicuibanos. Pode-se dizer que o prolongamento
das infraestruturas urbanas básicas, no curso de implantação da
3 Especificamente em Carapicuíba: “A década de 1970 ficou marcada pela chegada ao município de um grande número de COHAB, foram facilitadoras e estimulantes a esta outra forma de
migrantes, em sua maioria vindos da região nordeste que, atraídos pelos empregos nas industrias paulistanas se alojavam
em Carapicuíba, onde os lotes eram mais baratos.” (PLHIS 2012, PMC)
ocupação urbana. Deste processo de produção do urbano, da primeira
4 Dados demográficos do IBGE. Elaboração própria irregularidade – a fundiária - desencadeara-se impedimento à “cidade

72 73
legal” em sua amplitude. Respectivos bairros tardaram a ser equipados
com infraestruturas urbanas básicas e até hoje carecem de espaços
e equipamentos públicos essenciais a adequado desenvolvimento
urbano, isto é: praças, parques, espaços público no geral, ruas
trafegáveis, postos de saúde, centros culturais e esportivos, ordenação
urbanística, adensamento construtivo controlado, dentre outros. Até
hoje 70% dos imóveis de Carapicuíba não têm inscrição cartorial.
Entretanto, esta situação se altera na metrópole paulistana a partir
da primeira metade da década de 1970. Desde então há um grande
crescimento no número de habitantes de favelas, pelo surgimento de
novas favelas e pelo adensamento das que se consolidavam. Se antes as
poucas favelas eram elementos característicos das áreas mais centrais
do município núcleo, embora notadas em outros municípios industriais
metropolitanos, a expansão do fenômeno vai ser acompanhada pela
formação cada vez mais periférica de favelas. Na década de 1980 elas
já estão fortemente presentes nos distritos novos e periféricos da
capital e na década de 1990 tornam-se significativas nos municípios Sinopse do Censo 2010 - Densidade
Demográfica Preliminar (Habitantes/Km2)
periféricos, inclusive, em Carapicuíba. Mapa de densidade demográfica, demonstrando concentração de 0 a 12643.43

densidade demográfica mais nos territórios informais,nas porçoes 12744.81 a 18480.71

Grande parte das favelas da cidade, principalmente aquelas que norte e central, do que nos enclaves, a sudoeste do município 18546.22 a 23465.29

marcam o princípio da favelização no lugar, surgiram pela apropriação Fonte: IBGE Sinopse por setores (Censo 2010) 23522.29 a 31868.33

31956.48 a 366054.16

ilegal de áreas institucionais de loteamentos populares. Estas áreas Fonte: IBGE, Sinopse por Setores, Censo 2010;

são aquelas que, conforme as normas urbanísticas, destinar-se-iam “Ao passo da produção pública voltada ao contingente populacional
ao uso comum, ao provimento de espaços públicos. [...] de São Paulo, a urbanização periférica também foi sendo pautada
Em terrenos desse feitio, de forma lenta e gradual e sem grandes pela construção de pequenos lotes e autoconstrução. Já em
organizações horizontais ou influência de agentes externos se oposição a estes padrões de urbanização, começava a se instaurar
formaram então as primeiras favelas carapicuibanas. Neste momento na periferia metropolitana um padrão produzido pelo mercado
a iniciativa partia dos que ali se alojariam, precedendo apenas da imobiliário para o consumo das classes médias da capital: grandes
comunicação cotidiana entre os moradores da época e familiares condomínios horizontais e loteamentos parcelados em grandes áreas.”
e conhecidos de fora do município. Os bairros carapicuibanos (CARVALHO, 2015, p. 42)
que abrigaram este processo inicial foram: Vila Dirce, Jardim
e
Tonato, Ana Estela, Vila Marcondes e São Daniel e alguns outros.”
(PELLEGRINO, 2017) “A solução dada pela política habitacional, entretanto, nos seus
maiores investimentos do BNH/SFH, como o Conjunto Habitacional
Há, ademais, uma clara fronteira, linha de transição que opõe essa cidade informa- Castelo Branco da Cohab-SP em Carapicuíba, reafirmaram e
lizada de ocupação condensada e autoconstruída a uma zona com paisagem menos intensificaram o processo de urbanização marcado pela segregação
socioespacial, promovendo uma urbanização metropolitana marcada
antropizada, e ocupação urbana mais dispersa, marcada pela presença de enclaves pelo espraiamento. [...] Ao olhar para Carapicuíba e a formação de
urbanos, os condomínios ou loteamentos fechados. Esse tipo de morfologia urbana seu território, as relações entre as ações do Estado e do mercado
aparece com frequência nas bordas da metrópole paulistana, sendo especialmente imobiliário se apresentam nas segregações socioespaciais que se
emblemático nessa região, oeste da RMSP, pelos “Alphavilles” em Barueri. Carvalho exprimem na urbanização pelo conjunto habitacional Castelo Branco
(2015), corrobora em: da Cohab-SP, pelas habitações autoconstruídas e pelos condomínios
da Granja Viana. Assim, nas atuais intervenções habitacionais, há um
acúmulo de processos de reprodução do espaço periférico em que esse
espaço descrito é remodelado.” (CARVALHO, 2015, p.44-45)
74 75
que talvez mostre um ponto de partida para pensarmos um outro
projeto de cidade.” (CARVALHO, 2015, p. 20)

E, se referindo especificamente para o processo do PAC Cadaval, que moveu boa par-
te da canalização do córrego em curso:
“Por um lado, os proponentes, em geral, são prefeituras municipais
com uma organização administrativa precária e quadro profissional
técnico limitado. Por outro, as intervenções em favelas são complexas,
exigem grupos técnicos multidisciplinares, demandam uma disposição
de recursos e tempo difíceis de serem fornecidos pelas prefeituras.
Para solucionar o problema das limitações internas às prefeituras,
os governos municipais (o de Carapicuíba é um exemplo), contratam
escritórios de arquitetura e engenharia, empresas gerenciadoras
Foto aérea mostrando e assessorias técnicas para realizar projetos e os trabalhos de
extensão da canalização do gerenciamento social. Esta externalização das atividades das
Córrego do Cadaval a norte,
com a quadra do Ilê em destaque, prefeituras com a contratação de empresas resolve imediatamente
botada parcialmente abaixo. o problema da obra que se vincula à questão dos recursos públicos,
Como referência, bem ao fundo e à mas vai deixando espaços de decisão política aos agentes privados
direita, vê-se o pico do Jaraguá. e aprofundando a precariedade institucional destas prefeituras.”
Carolina Klocker, outubro de 2023
Fonte: cedida pela autora. (CARVALHO, 2015, p. 106)

Huana Carvalho apresenta também em sua tese5 intitulada “A Caixa Econômica Fe- Nessa toada, podemos observar confluências entre as ações estatais e interesses de
deral como agente da política habitacional”, de 2015, que estuda inclusive as obras agentes privados na região compreendendo o histórico das obras no Córrego do Ca-
no Córrego do Cadaval, seu ponto de vista sobre essa conformação histórica que daval, bem como sua relação com as centralidades urbanas da cidade e como elas se
resultou na segregação urbana dada em Carapicuíba. Ela aponta para lacunas nas articulam entre si. As obras de canalização e criação de um eixo viário sobre o leito
políticas estatais como brechas para influência de agentes privados, conformando do córrego vinham desde a década de 1990 na promessa de criar um desafogamento
oportunidades para interesses mercadológicos agirem na urbanização. Esta análise no fluxo rodoviário da cidade e resolver os problemas ligados aos riscos hidroló-
corrobora com o que é citado de D’Andrea (2022) no debate realizado no primeiro gicos, dados na ocupação de suas margens. Ocorre que, ao longo do processo, que
capítulo, visto que observamos a cidade sendo cooptada pelo capital, se tornando partiu da foz, no Rio Cotia, se optou por uma solução de adequação do curso d’água
não somente a arena para as forças produtivas atuarem, mas a própria forma para pouco sensível às questões ecológicas, que, ao impermeabilizar o fundo do vale e
sua reprodução: limitar a vazão com uma canalização fechada, agravou a ocorrência de enchentes em
diversos pontos à montante do avanço das obras. Também é importante mencionar
“[a pesquisa investiga] a via institucional pela qual tem sido possível que, antes de atuar no território precário onde o Ilê se localizava, a obra atravessou e
uma extensão de formas empresariais de uma “racionalidade neoliberal” promoveu remoções em outras favelas, em destaque para a Favela do Murão6. Sobre
no território e nas subjetividades. Este caminho permite uma reflexão a canalização, Carvalho (2015) comenta:
sobre a subjetividade constituída na produção socioespacial urbana

6 Este trecho da obra recebeu recursos do PAC, tendo previsto o reassentamento local dos moradores. Foram propostos 3
5 A dissertação analisa projetos habitacionais do PAC e PMCMV para o território em estudo em Carapicuíba, focando nas conjuntos habitacionais, que seriam viabilizados através do CDHU, para atender as famílias removidas pelas obras. Um deles,
ações da Caixa Econômica Federal. Busca compreender as práticas institucionais da CEF e suas relações com outros agentes proposto dentro do território da favela do murão, não foi construído, e os outros dois tiveram as obras iniciadas, mas apenas
da política habitacional. A pesquisa investiga a influência da lógica neoliberal, a produção empresarial do urbano e a extensão um concluído, sendo ambos em terrenos vazios muito próximos da favela. O outro conjunto, com a obra embargada, foi ocupa-
dessa lógica ao poder público local por meio dos agentes privados envolvidos nas obras urbanas, mostrando como esses pro- do de maneira irregular, havendo registros de famílias que viveram lá em condições precárias.
cessos influenciam na subjetividade e nos modos de vida das populações alvo das políticas públicas urbanas.

76 77
“Note-se que as soluções projetuais dessa relativa melhora das quadra vizinha. Junto da chegada desses empreendimentos, se dão as remoções ao
condições ambientais, exatamente por não serem o objetivo central longo das ocupações lindeiras ao curso d’água para a construção da nova avenida,
da intervenção, são muito limitadas ou evidentemente equivocadas
– como se pode depreender da canalização fechada do córrego que
num caminhar que, somado à ausência de provisões habitacionais locais, certamen-
vem sendo realizada. [...] Conforme exposto acima, no próprio manual te tenderá à um processo de gentrificação no território, expulsando os moradores
do programa, fica estabelecida a preferência a canalizações abertas, locais.
sendo destacada a facilidade de manutenção com esta solução. Além
deste argumento, é possível evidenciar o ganho paisagístico para Nesse contexto é que se dá a remoção do Ilê Asé Odé Ibualamo, junto do apaga-
essas populações na sua relação com os recursos hídricos e o meio mento e destruição em meio aos tratores, lama e concreto das obras, de diversos
urbano.” (CARVALHO, 2015, p. 96) documentos8, pertences e itens sagrados, registros ancestrais e axés plantados. É
imensurável a perda desses bens, que constituíam um valor imaterial e patrimonial
As três centralidades urbanas que se destacam em meio à paisagem de Carapicuíba para a territorialidade negra que se estabeleceu naquela região. Com isso, se nota
são (1) a envoltória da estação Carapicuíba da CPTM, que evoluiu a partir do núcleo a continuidade histórica em Carapicuíba, nas diversas escalas em que observamos,
histórico atraindo o movimento devido a sua proximidade com o eixo ferroviário; (2) das violências e injustiças raciais herdadas da colonialidade, consequências de um
a Av. Inocêncio Seráfico, via arterial que constitui a centralidade linear, articulando o racismo estruturante na sociedade brasileira, presente na periferização dos corpos
núcleo central a norte com o sul da cidade, e o (3) Shopping Plaza Carapicuíba7, que negros tal como descrita por Neres (2023) e Barone (2022). Esse processo é mantido
também constituiu um importante polo de movimentação econômica e empregos pelo urbanismo daltônico, apontado por Berth (2023), praticado por agentes públi-
para a cidade, articulado com a via arterial já constituída. A construção do shopping cos negligentes ou impotentes, que acabam por sucumbir facilmente aos interesses
e sua estratégia de implantação é um ponto chave para a compreensão da transfor- de agentes privados conforme argumenta Carvalho (2015), os quais por sua vez não
mação da paisagem no entorno do Ilê. O centro comercial foi construído já próximo a têm compromisso algum com as memórias e territorialidade do povo preto e perifé-
centralidade dada no eixo arterial estabelecido (Inocêncio), mas também num lote à rico, mas sim com a utilização do solo urbano para a extração de renda e lucrativida-
frente do Córrego do Cadaval, onde estava prevista a chegada da Av. Marginal do Ca- de, como já apontado por D’Andrea (2022).
daval, garantia de novo eixo com potenciais novos fluxos em sua direção. Inclusive,
a obra do shopping acompanhou a canalização do pequeno trecho de Córrego à sua 8 Zana relata que um dos importantes documentos perdidos foi a carta de alforria de seu bisavô.
frente e pavimentação de uma via de várias pistas sobre seu leito, como um “engate” Registro sobre o leito do córrego observando
as obras em curso e ao fundo o shopping.
aguardando a nova avenida. outubro de 2023
Fonte: Fotografia do autor.
“Art. 37 - O setor do Cadaval abrange a área ao longo do córrego e da
avenida com mesmo nome, se caracteriza por obras de canalização,
abertura e prolongamento da via, pela necessidade de reassentamento
de famílias desalojadas pelas obras e pelo potencial interesse do
mercado imobiliário na área lindeira a nova avenida, características
que apontam para a necessidade de controle e regulação da ocupação.”
(PMC, Plano Diretor Participativo)

A presença do novo polo atraiu a atenção do mercado imobiliário, fato apontado pelo
próprio plano diretor municipal, e comprovado pela presença de pelo menos dois
novos empreendimentos na região, um logo em frente ao shopping, e outro numa

7 O shopping center foi inaugurado em 2016 numa quadra lindeira à área em estudo, que já foi ocupada por assentamentos
precários. É interessante notar como sua aparência homogeneizada destoa do caráter periférico de Carapicuíba, característica
acentuada pela fachada com painéis coloridos, que falha em mimetizar a paisagem do entorno..

78 79
rio tietê

Núcleo histórico
est. de ferro sorocabana, 1875
estação carapicuíba, década de 1920
vila e 1º loteamento, 1927

Matadouro Municipal
proximidades eixo ferroviário, 1923-1965

COHAB Pres. Castello Branco


políticas habitacionais, década de 1980

BARUERI

rio
co
tia

bacia d
bacia d

o cara
o cotia
córr

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e go

i cu
picuíb
do
ra p
ca

ca
o

da


va

ribei
l
OSASCO

JANDIRA

núcleos históricos
Aldeia de Carapicuíba
assentamento jesuítico, 1580

estações

eixo ferroviário
cumeada (divisa de bacia) S
cursos d’água
Ilê Asé Odé Ibualamo Mapa do meio físico e condicionantes históricas de Carapicuíba
área foco COTIA Fonte: Base de dados Google Earth e Elaboração prória.
rio tietê

Centro comercial
ancorado na estação da CPTM

BARUERI

Av. I. Seráfico
centralidade linear

OSASCO

Shopping Center
inauguração em 2016

JANDIRA
eixo viário arterial

centralidades

estações

eixo ferroviário
cumeada (divisa de bacia) S
cursos d’água
Ilê Asé Odé Ibualamo Mapa das centralidades de Carapicuíba
área foco COTIA Fonte: Base de dados Google Earth e Elaboração prória.
rio tietê

BARUERI

fa
co vela
n s
en den
c
dis lav s ad OSASCO
pe es a
rsa

favelas (PLHIS/2012)
transição morfológica
JANDIRA
eixo viário arterial

centralidades

estações

eixo ferroviário
cumeada (divisa de bacia) S
cursos d’água
Ilê Asé Odé Ibualamo Mapa da morfologia da ocupação de Carapicuíba
área foco COTIA Fonte: Base de dados Google Earth e Elaboração prória.
rio tietê

trecho 1
1996-2008
aprox. 2 km
recursos federais e
estaduais

BARUERI
provisão
concluída
famílias reassentadas

provisão
trecho 2 obra embargada
2008-2017 ocupação
aprox. 1 km
recursos federais (PAC) favela do murão
remoções em 2014

OSASCO
trecho 3
2019-hoje
aprox. 1 km
recursos estaduais

favela afetada
reassentamentos
canalização e pavimentação
JANDIRA
eixo viário arterial

centralidades

estações

eixo ferroviário
cumeada (divisa de bacia) S
cursos d’água Mapa mostrando trechos das obras no Córrego do Cadaval, e
Ilê Asé Odé Ibualamo intervenções realizadas no último trecho, na favela do murão
área foco COTIA Fonte: Base de dados Google Earth e Elaboração prória.
CPT
M/c
en Av. Inocêncio Seráfico
tro
avanço das obras da
da Av. do Cadaval c i da
de

Córrego do Cadaval
Gran
ja Via
n a/
Cot
ia

Ilê Asé Odé Ibualamo

córrego canalizado
córrego em obras área foco
fundo do vale do
via coletora Córrego do Cadaval
via arterial
UTT violada nas obras
área foco shopping

Diagrama de contexto geral do trecho do vale em estudo e da área foco. Fotos aéreas mostrando a extensão da canalização a sul, com shopping e empreendimento imobiliário ao fundo. O antigo
Fonte: Elaboração própria sobre base Google Earth “[...] espaços de sociabilidade negra, lutam por local do ilê é em frente à casa amarela à direita na imagem superior. Carolina Klocker, outubro de 2023.
sua existência e se constroem como lugares Fonte: Imagens cedidas pela autora.
de resistência urbana. Assim, as decisões
e políticas legitimadas pelo Estado, levam
ao embranquecimento de territórios, onde
corpos são levados à exotização e a constantes
processos diaspóricos.” (NERES, 2023)

Imagens na perspectiva do pedestre mostrando a destruição


das obras: pertences pessoais abandonados em meio a lixo e
entulhos e casas parcialmente demolidas.
88 Fonte: Fotografias do autor 89
3. reparação
ensaios e propostas para o território

Oxunmaré Ascende, 1972


Abdias Nascimento
Fonte: HKW (Denmark)
terreirizar a cidade
“Eu não encaro terreiro como espaço fixo de rito religioso. Ele pode até ser isso, mas vai
além, é um espaço praticado na dimensão do encantamento do mundo. A Marquês de
Sapucaí, no Rio de Janeiro, é uma avenida inóspita, feia, não tem árvores, é um espaço
urbano desencantado, um território funcional. Mas quando uma escola de samba se prepara
para entrar na avenida, o cavaco dá um acorde, o repique chama a bateria e o desfile
começa, você terreirizou aquele espaço, ele foi praticado numa dimensão de encantamento
do mundo. O primeiro terreiro é o corpo, encantar a vida começa fundamentalmente pelo
encantamento do corpo. Quando começa uma roda de samba numa esquina, quando alguém
cospe uma cachaça pro santo, quando um corpo dança soberanamente, você tá terreirizando
um espaço e o seu próprio corpo. E a gente terreiriza a cidade.”
(SIMAS, 2020)

92 93
As diretrizes dessas propostas emergiram de um esforço colaborativo com diversos O segundo aspecto é o cuidado com a transmissão de saberes, do conhecimento. Na
agentes culturais, destacando-se a contribuição fundamental de Mãe Zana. Elas são tradicionalidade, como já visto, a principal ferramenta que promove a transmissão
baseadas no acúmulo de práticas e saberes dos Povos Tradicionais de Matriz Africa- dos saberes é a oralidade, sustentada através da hierarquia entre os mais novos e
na, tomando as UTTs como referências de urbanidade. Foi observado que elas estão os mais velhos, característica herdada das cosmovisões Iorubás. Ela é a maneira
nos territórios periféricos não somente no sentido religioso, mas também como es- como as narrativas atravessam gerações, como a história não contada oficialmente é
sencial costura do tecido social, fomentando laços comunitários, criando redes de transmitida e como essas culturas constroem nos seus saberes um enorme respeito
solidariedade e prestando serviços de forma local. Essa dinâmica se dá através da à memória – o legado de quem veio antes – e à continuidade dessa memória, o es-
autogestão e transmissão de saberes, aspectos enraizados na tradição. Três fatores perançar em quem está por vir. Isso se reflete numa atenção essencial às infâncias
dessa urbanidade intrínseca às culturas tradicionais foram destacados para funda- e senioridades, questões que as cidades ocidentais contemporâneas ainda debatem
mentar as propostas projetuais, detalhados a seguir. caminhos para cuidar, “na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que se
O primeiro aspecto fundamental é a relação dos povos de Matriz Africana com a pai- queima” (AMADOU HAMPÂTÉ BÂ1).
sagem natural, que possuí um significado que transcende a compreensão ocidental O terceiro e importante aspecto é a coletividade, um elemento central em quase
da ecologia. Essas culturas se caracterizam por uma abordagem ecológica mais pro- todas as práticas tradicionais. Isso se manifesta de forma particularmente forte em
funda e radical, baseada no respeito à todos os seres como entidades vivas e que atividades relacionadas à alimentação – plantio, colheita, cozinha, consumo, tudo é
guardam em si axé. Isso é bem exemplificado no trecho de Muniz Sodré: feito em comunhão coletiva. Em muitas comunidades vulneráveis, os terreiros de-
sempenham um papel crucial na provisão e gerenciamento dos alimentos. O abate
“Tempos atrás, vivi no terreiro baiano do Axé Opô Afonjá um instante
sagrado de animais, que envolve a partilha da carne com a comunidade, é um exem-
radicalmente ecológico. Era uma tarde de meio de semana e eu levava
a visitar o espaço da comunidade-terreiro alguns amigos meus. plo dessa prática. Além disso, a alimentação frequentemente se associa à festivi-
Depois da visita às casas, um ogã [...] conduziu-nos até o mato: queria dade, que por sua vez é atrelada à dança e à música, libertações do corpo frente às
presentear um dos visitantes com uma muda de planta. Ali, cercados amarras da vida, como já mostramos em Sodré (1988), no capítulo II. As cidades
de vegetação, todos viram-no abraçar um tronco – o velho Apaoká –, contemporâneas precisam muito aprender com as comunidades tradicionais o modo
murmurar algumas palavras e pedir licença à arvore para arrancar-
coletivo de viver solidariamente partilhando recursos, alegrias e dificuldades.
lhe um broto. A cena ainda me é intensa na memória, talvez porque
em sua simplicidade contraste a fundo com um discurso que vem “Todas as festas públicas, geralmente, se encerram com farta
ganhando foros na Urbs contemporânea [...] – o da ecologia. Não se distribuição das comidas sagradas para os presentes, em ampla
tratava ali de falar sobre a relação que o individuo deve ter com o meio comunhão que busca fortalecer o axé da coletividade e de todos os que
ambiente, não se tratava do discurso liberal do preservacionismo, mas se dispuseram, adeptos ou não da religião, a comparecer ao festejo.”
de agir de tal maneira que o elemento natural, a árvore, se tornasse (SIMAS, 2019)
parceira do homem num jogo em que cosmos e mundo se encontram”
(SODRÉ, 1988 p. 151)
Estes três elementos – a relação com natureza, a transmissão de saberes e a cole-
A territorialidade de matriz africana atribui um papel central à paisagem e aos ele- tividade – podem ser explorados sob diversos outros ângulos e enriquecidos com
mentos da natureza. Ao contrário da visão positivista ocidental, que tende a tratar inúmeros exemplos. Eles foram selecionados aqui principalmente para ilustrar os
a natureza como fonte de recursos, com entidades objetificadas e passivas, que po- fatores que influenciaram a concepção do projeto que será apresentado a seguir.
dem ser coletadas e exploradas; nas culturas de matriz africana, estes elementos Estes aspectos de urbanidades são fenômenos que merecem ser reexaminados e
– plantas, animais, água, terra, ar, e tudo que compõe o ambiente e o partilha com considerados com maior atenção pela cidade hegemônica, que frequentemente os
a humanidade – são considerados ativos e dotados de energia vital, características ignora em seus processos de desenvolvimento urbano.
e vontades próprias, merecendo grande respeito e importância, sendo considerados
1 Amadou é um pensador malinês que produziu obras sobre as plurais epistemes africanas. O fragmento foi retirado de notí-
como sujeitos. cia na folha, disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1609200312.htm>. Acesso em 22/11/2023.

94 95
soluções urbanas
Av. do Cadaval
canalização e pavimentação
obras em andamento

novo trecho
As propostas de projeto visam oferecer uma alternativa à obsoleta solução de aveni-
das de fundo de vale, imposta pelo planejamento vigente na cidade. Essa abordagem
tem sido uma fonte de conflitos socioambientais no território, já evidentes desde retorno

antes da demolição do Ilê. Além disso, o projeto propõe um avanço arquitetônico em


R. Jaime de Araújo Lima
um equipamento público baseado em práticas e saberes tradicionais - o CERPOT- via existente
MA - Centro de Referência dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Para a solução desvio proposto

urbanística, se busca restaurar a memória da paisagem natural, respeitando a pre-


R. Airão
sença do curso d’água e promovendo a permeabilidade do solo e a preservação da via existente
vegetação nas margens. Isso foi alcançado por meio de uma abordagem alternativa desvio proposto

ao planejamento viário, que permitiu a implantação do novo eixo sem a necessida-


de de pavimentação do fundo do vale. Além disso, as soluções habitacionais foram
pensadas para manter a população na mesma região, mantendo seus vínculos ter-
ritoriais e comunitários, de maneira a evitar a iminente gentrificação do território, desvios propostos

apontada na pesquisa. nova via


obra em andamento

parque linear
reestruturação socioambiental
infraestrutura azul e verde
memória
alagável
habitações
realocação com 400 UH
conjuntos T+3 e uso misto
área total 1,97 ha

alagável

remoções
fundo de vale (submoradia)
área de 4,8 ha
350 famílias (PLHIS/2012)

córrego
alagável
talvegues realocação
parque linear remoção
mata ciliar habitação
96 97
habitação ambiental
Aprimorando as condições de habitabilidade e o cuidado socioambiental, serão removidas as ocupações nas margens Para estruturação paisagística e ambiental, o vale é reocupado com o Parque Linear do Cadaval. Nele, é prevista
do Córrego. De maneira a preservar laços de territorialidade e rede vizinhança haverá o reassentamento total da co- uma recuperação da mata ciliar como APP do Córrego existente, mantendo-o a céu aberto e recompondo seu
munidade no mesmo território. Para tanto, são previstas três provisões habitacionais, sendo duas (1 e 2) em áreas já leito. Para manejo das águas, são previstas áreas alagáveis de acomodação das cheias e técnicas compensató-
ocupadas e outra (3) num terreno subutilizado, somando 400 UH. Os conjuntos, com térreo + 3 pavimentos devem ter rias de drenagem ao longo do parque. Promovendo educação ecológica e apropriação efetiva do espaço público
uso misto no térreo, suplantando realocações de pontos comerciais desapropriados no vale. são desenhados bolsões recreativos com pontos de lazer.

provisão 3
80 famílias
~0,40 ha

provisão 2
160 famílias
~0,75 ha

provisão 1
160 famílias
~0,75 ha

alagável

nova via
trecho complementar

mata ciliar

lazer
CERPOTMA retorno
largo da memória via compartilhada
marco territorial equipamento de borda
alimentação e cuidado
cultura e saúde
desvios educação e trabalho
desvios

viário reparação
Como alternativa à avenida de fundo de vale, se aproveitam vias existentes compondo um binário, a serem requalifi- Para reparação da violação etnocida e irresponsável dada na demolição da UTT, propõe-se o Largo da Memória
cadas com novas pistas e pavimentação semi permeável, o que possibilita a conectividade urbana do novo eixo, sem como marco territorial em seu local original de ocupação. Complementando o memorial e dando protagonismo
o prejuízo ambiental da ocupação do talvegue. Foi necessária a criação de um trecho complementar e um retorno ao aos agentes culturais com forte presença no território, é proposto o Centro de Referência dos Povos Tradicionais
centro da longa quadra, proposto como via compartilhada. Além disso, como para valorização de outros modais, são de Matriz Africana - CERPOTMA. Ele atuará como equipamento de borda guardião da nova APP e como espaço de
previstas faixas de corrida, bicicleta e nova calçada na orla do Parque. salvaguarda e fomento à culturas tradicionais, ressignificando a violência à memória e territorialidade do local.
O trecho norte do parque foi escolhido para a implantação dos produtos arquitetônicos do projeto. Essa escolha foi feita tanto pela
presença do local original do Ilê, quanto pela disponibilidade de uma área mais ampla, o que permite uma ocupação uma constru-
ída com menor impacto ao volume arbóreo da mata ciliar. O conceito central do projeto é a memória: a primeira etapa envolve a
demarcação do local do Ilê demolido, criando um grande largo - uma praça cívica destinada ao uso público, que visa homenagear e
6 ressignificar a memória da UTT.
A B 5 legenda A partir desse espaço simbólico, desenvolve-se uma passarela serpenteante, que atravessa a mata, cruza o curso d’água e conecta
1. memorial
D os diferentes espaços propostos, integrando-os à paisagem circundante por meio de um deck. Na tradição Iorubá, a serpente é um
2. CERPOTMA
C 3. basquete
animal mítico que carrega o simbolismo da transmutação, dos ciclos e do tempo. Chegando à outra margem, este elemento interliga
4. academia da terceira idade os três edifícios do CERPOTMA, e se expande em uma varanda de integração com a paisagem da mata ciliar e na extremidade final,
5. pista de skate a passarela cruza novamente o rio, conectando-se ao equipamento de lazer do parque, contínua à escadaria, formando um elo com
6. quiosque de picnic o tecido urbano pré-existente.
7. calçada
8. pista de corrida Igualmente a orla do parque foi desenhada pensando no pedestre, agregando também uma pista de corrida e outra de rolamento.
9. pista de bicicleta Os espaços de lazer e recreação foram propostos contíguos à orla de passeio, interconectados por caminhos de pedriscos através da
10 10. trilha de pedriscos mata. De modo a aproveitar trechos onde o solo será impermeabilizado, foram propostos dispositivos de drenagem como técnicas
drenagem
7 8 9 compensatórias, mitigando os riscos hidrológicos dados na região. Uma vala de infiltração sob a pista de bicicleta recebe as águas
5 A. caixa receptora
B. vala de infiltração
da orla do parque e as infiltra no solo aos poucos. Abaixo da rampa de skate e da quadra de basquete - áreas concretadas - foram
C. bacia de retenção previstas bacias de retenção - que retardam a chegada da água do sistema de drenagem à calha do córrego.
6 D. leito do córrego

2 2

1,00
2
0,00

-0,65

1
-3,40
-2,20 5 3
-1,90 2,00
4

S
0
10
CERPOTMA
O conjunto formado pelo memorial no local do antigo Ilê e o novo equipamento público complementa a memória evocada pelo
parque, homenageando os Povos de Matriz Africana como guardiões da paisagem e promovendo educação ambiental e a conscien-
tização territorial. Alinhado a isso, as propostas arquitetônicas buscaram referências formais e de materialidade afrocentradas,
com enfoque em soluções de baixo impacto ecológico, dando preferência a materiais locais e naturais. Terra, pedra e madeira pro-
tagonizaram a materialidade geral dos edifícios, e foram priorizadas, salvo exceções, soluções de execução simples, possibilitando
mão-de-obra em regime de mutirão, já que a coletividade é uma forte característica das práticas tradicionais.
O projeto se organiza em torno de três eixos programáticos, baseados nas práticas tradicionais: (1) o cuidado, (2) o sagrado e (3) o
saber-fazer. O eixo do cuidado se materializa no núcleo de acolhida, um espaço que conta com dois usos de assistência à comunidade
comumente praticados nas UTTs: um restaurante popular e uma creche. O eixo do sagrado é representado pelo barracão, espaço que
abrigará práticas sagradas de cura e grandes encontros para festividades. O eixo do saber-fazer se manifesta no centro educativo,
uma grande escola-oficina, que poderá acolher dinâmicas de trabalho e cultura já existentes, mas também fomentar novidades,
estruturando a produção e o intercâmbio de saberes e incentivando a geração de renda. Complementando esses três eixos e compre-
endendo a relação com os elementos naturais como essencial às culturas tradicionais, o paisagismo é implantado numa integração
a fatores como alimentação e cura, aspectos comuns em UTTs, especialmente em áreas zonas rurais e periurbanas.

2 3
4 9 5 6 0,00
9
1
0,00 7
2,00

1,00 1,00
0,00

-0,40

8
11 -1,20 0,30

10
11
S
0
5
planta
barracão

B
Este espaço se constitui como uma referência direta ao grande articulador da coletividade
2,30 na tradicionalidade de matriz africana, que possui diversos nomes, sendo um deles o Bar-
racão. Na tradição, ele é espaço que acolhe os encontros, os xirês (festividades e danças),
onde a família de santo se reúne para se articular. Trazer essa carga simbólica do coletivo
3
para esse equipamento público é algo essencial e central, por isso esse edifício tem des-
A 4
taque e interliga os outros dois do conjunto. Ele deve ser dedicado às práticas sagradas
5
1 5 que têm lugar especial no CERPOTMA, mas também deve acolher grandes encontros para
2,00
2
oficinas, aulas, apresentações e eventos. Além disso, dado que a cura emana do sagrado
contido na relação com os elementos naturais, este local é rodeado por um herbário vivo e
A
conta com um espaço para manipulação das ervas, a farmácia viva.
Seu partido formal é o círculo, desenho que remete à equanimidade e que é nas diversas
tradições afroconfluentes e amefricanas associado ao coletivo e ao encontro. Sua constru-
1,00
ção segue referências vernaculares de terreiro, a terra está presente nas paredes e no piso.
Elementos como as pedras e o adobe apontam para uma tectônica de aterramento, espaço

B
que acolhe e protege. Uma cúpula com vigas de madeira, numa estrutura recíproca, compõe
0,00
a cobertura do círculo principal, coberta com a palha santa fé e complementada com poli-
carbonato no lanternim e sobre a farmácia viva. O generoso beiral protege a alvenaria de
0,30

6
terra crua das intempéries, e sua elevação somada ao vão central garantem boa ventilação
e iluminação natural ao ambiente. Além de promover inércia térmica, as largas paredes de
legenda adobes contribuem para a acústica pelo formato dos blocos, com arestas abauladas.
1. salão comum
2. quarto sagrado
3. atabaques
S
4. farmácia viva
5. herbários 0
6. redário 5

CUMEEIRA
13,20

ANEL
5,30

TÉRREO SUP.
2,00

corte AA corte BB 105


corte ampliado
planta
núcleo de acolhida

C
D
0,70
Este edifício, situado na entrada da passarela serpenteante, foi concebido para abrigar
o cuidado e assistência que as Comunidades Tradicionais têm como base. Nas culturas
de terreiro, tudo o que envolve o alimento, desde seu plantio até seu preparo e consumo E
tem simbolismos e é sagrado. Comer e oferecer comida é algo basilar nessas culturas. 3 3 3 3
6 7

Já as infâncias também são de detonada importância para os povos, com forte presença 2 0,00
4
em suas mitologias, principalmente representando a renovação e a continuidade da tra- E
E
G
B
1
dição. Na prática, os terreiros, roças, tendas e barracões costumam reunir a comunidade 6 F D
C
A
em torno da sacralização da comida, sendo sempre presente nas festividades a partilha 5

do alimento. Também é comum que nas comunidades urbanas as UTTs sejam locais de
segurança e acolhimento para crianças, já que no tempo em que seus pais não podem
cuidá-las, sempre há alguém de confiança no terreiro para tal tarefa.
0,00

-1,10

Com base nesses elementos, foi projetada a creche, equipada com um amplo dormitó-

C
D
rio, lactário e fraldário, além de um grande salão para atividades e brincadeiras. O salão
se complementa com todo o trecho do jardim na margem do rio, um local para que as 8

crianças tenham contato com a natureza, ponto importante da pedagogia tradicional. O 9

restaurante popular foi desenhado com uma cozinha industrial bem equipada, prevendo
fluxos desde o armazenamento ao serviço dos alimentos e espaços de preparo genero-
sos absorvendo o possível envolvimento de grandes grupos na cozinha, como prática legenda
tradicional e para receber cursos e oficinas. O edifício ainda conta com um grande ba- 1. dormitório/berçário

nheiro com duchas, para banhos de cura ou uso diário. As áreas do jardim são dedicadas
2. lactário cozinha:
3. cabines de lactação A. despensa

a agricultura agroflorestal, servindo tanto para educação ecológica quanto para fornecer 4. fraldário B. câmara refrigerada

alimentos para o restaurante. A concepção do edifício segue uma curvatura que se abre
5. salão infantil
6. banheiros
C. pré preparo/preparo frio
D. preparo quente
S
7. refeitório E. serviço
para a cidade, com grandes beirais que formam varandas voltadas tanto para a calçada 8. jardim lúdico F. limpeza 0

quanto para o deck. 9. roça agroflorestal G. caixa 5

COBERTURA AC.
3,20

TÉRREO INF.
0,00

corte CC corte DD

COBERTURA AC.
3,20

TÉRREO INF.
0,00

106
corte DD
planta

H
G
centro educacional
2,13
Este pavilhão, seguindo a mesma tipologia construtiva do núcleo
1,50 de acolhimento, é inspirado na vocação educadora inerente às cul-
2
turas de terreiro. Um dos pilares das tradições de matriz africana
3 3
4 é a transmissão dos saberes, dada na hierarquia geracional e na
5
oralidade. Aqui, se propõe um edifício de caráter mais institucional,
0,40
1
0,00 0,00 mas ainda no propósito da transmissão, intercâmbio e produção de
saberes: um polo de educação e trabalho.
0,00

F 5

0,00 6
Ele se constitui em dois blocos, articulados por um vazio central
3 3

1,00
2 como local de convivência, que recebe quem chega da rua e da ou-
5 9 tra margem do rio. Ambos podem ser fechados de maneira inde-
1,00 pendente sem prejudicar os fluxos do conjunto. O primeiro bloco
0,00 5
10
abriga programas mais ruidosos, contando com salas para oficinas
-0,40 8 e trabalhos manuais, junto do anfiteatro que é aberto à cidade, um
7
espaço para receber intervenções culturais, apresentações e even-
G

tos. O segundo bloco é voltado para atividades mais tranquilas ou


H

reservadas, com salas para aulas, trabalhos em grupo ou pequenas


legenda reuniões. A biblioteca com amplas janelas de vidro se integra com o
1. anfiteatro
2. banheiros F' paisagismo do entorno e fica visível como uma vitrine que convida
3. oficinas
4. cantina 11 o transeunte a se apropriar do espaço. Este bloco ainda abriga as
5. aulas/estudos
6. administração
funcionalidades administrativas do CERPOTMA, completando suas
7. funcionários
8. biblioteca
S utilidades.
9. acervo restrito
10. recepção 0
11. roça agroflorestal 5

COBERTURA EDUC.
4,20

TÉRREO INF.
0,00

corte FF'

COBERTURA EDUC.
4,20

TÉRREO INF.
0,00

109
corte GG corte HH
construtividade
Já para o barracão, que possuía especificidades formais e relacionadas a seus usos,
foi adotado um sistema de alvenaria mais robusto, que cumpre também função es-
trutural. Será feito em adobes também produzidos em canteiro, com terra argilosa
Para a construção dos dois edifícios pavilionares, optou-se por uma solução cons- e areia da mesma origem do BTC, porém a diferença é que não são prensados, mas
trutiva comum, com o intuito de facilitar a execução já que ambos têm distribuições moldados numa forma de ferro e secos ao ar livre. Foi adotado um formato especí-
formais semelhantes. É utilizado um sistema estrutural de pórticos sucessivos com fico de adobe com as arestas abauladas, para melhorar a performance acústica do
pilares e treliças, amarrados por contraventamentos transversais. Para as alvenarias ambiente1. Os adobes receberão as cargas da cobertura – estruturada em peças de
foi pensado o BTC, bloco de terra comprimida, que pode ser feito com terra argilosa madeira engenheirada – dissipadas por um anel estrutural de tração, que suporta
e areia, potencialmente encontrada no local através dos movimentos de terra pre- as peças de transição conectadas às vigas recíprocas conformadoras da cúpula do
vistos em projeto, ou agregada de bota foras de outras obras públicas, e prensado telhado, coberto com palha santa fé, que tem boa durabilidade e intervalo de manu-
no próprio canteiro, com um maquinário simples – prensa hidráulica ou manual. Os tenção. Como elemento de fechamento superior que permite a ventilação e ilumina-
blocos permitem uma melhor racionalidade construtiva compatível com o esquema ção foi proposto um lanternim estruturado em madeira
estrutural modular – somada à agilidade e facilidade na subida das alvenarias. Nas aparelhada e coberto com policarbonato translúcido.
aberturas se adotaram esquadrias de madeira, que se integram visualmente com a
proposta do todo, e são de fácil acesso. Para os fechamentos superiores, se adota- Para o centro educacional e a farmácia viva, usou-se
ram painéis de tramas de fibras vegetais que permitem a ventilação cruzada perma- um forro de bambu com cobertura em policarbonato
nente, aliados à telas mosquiteiro, evitando a entrada de animais. Em alguns pontos translúcido estruturado em madeira, permitindo uma
o forro em lambri de madeira se alinha ao nível de topo das paredes, fazendo a vez iluminação parcial e sombreamento que garante o con-
dos painéis. Nas coberturas buscou-se um sistema leve dado em um madeiramento forto térmico. Um detalhe inserido foi a inspiração na
comumente adotado sobre as treliças, porém substituindo as ripas por chapas de simbologia Adinkra2 para execução dos cobogós que fe-
OSB, e sobre ele na cobertura se utilizaram telhas onduladas de baixo impacto am- cham a farmácia viva e para o desenho do guarda corpo.
biental, semelhantes às telhas cimentícias, porém produzidas com fibras vegetais. Nos cobogós foi adotado o adinkra Eban, que significa
cerca, e remete às noções de acolhimento, segurança,
Cúpula de adobes acústicos de Gernot Minke, Telha Ondulada de fibras vegetais e trama de bambus a ser
amor e cuidado presentes no lar. Já no guarda corpo,
aplicada nos fechamentos superiores, da esquerda para a direita. que acompanha a passarela serpenteante, foi utilizado
Fontes: Editora Solisluna, Onduline e Madeiramadeira, respectivamente.
o adinkra Owo Foro Adobe, que significa a cobra subin-
do a palmeira ráfia, associado a eventos ou feitos extra-
ordinários, à persistência e prudência para atravessar
desafios. Justamente foi adotado junto da passarela
com o valor simbólico já exposto, de transformação e
superação. Além disso, em todos os pisos se utilizou
uma técnica de piso de terra, com camada de isolamen-
to e substrato drenante em brita. Também contribuin-
do para o escoamento de águas, foram adotadas como
fundações baldrames e arrimos em pedra. Adinkras Eban acima e Owo Foro Adobe,
abaixo. Fontes: O Globo e A Ban Against
Neglect (Perfil no Pinterest),
respectivamente

1 Referenciado na solução adotada por Gernot Minke, apresentada em seu livro “Manual de Construção com Terra”.
2 Ver glossário.
1. Telha ondulada em fibra vegetal A. Alvenarias Adobe
2. Chapas OSB B. Anel de tração
3. Caibros C. Forro de bambu
4. Terças D. Cúpula recíproca
5. Treliças E. Madeiramento
6. Contraventamentos F. Palha Santa Fé
7. Fechamentos superiores G. Estrutura lanternim
8. Alvenarias BTC H
H. Policarbonato translúcido
9. Forros em Lambri 1
G
10. Guarda-corpo Adinkra 2
F

3
H H
E

1
4
D 2

3
5
4
6
B

C C

6 5

A
9 7
8

9
10

8
cortes ampliados
pavilhões (típico)

COBERTA
telha ondulada pré fabricada; i=18%
feita de composto de fibras vegetais
chapas de OSB 3cm
caibros 5x8cm
FORRO
lambri de madeira
TERÇAS
madeira aparelhada 8x20cm

FECHAMENTOS VENTILADOS
trama de bambu ou madeira
tela mosquiteiro
TRELIÇAS E CONTRAVENTAMENTOS
madeira aparelhada
secção banzos 8x20cm
secção peças secundárias 8x15cm
ALVENARIA DE VEDAÇÃO (BTC)
bloco autoportante de terra crua "T" e "L" com graute
comprimida in loco com prensas hidráulicas e vergalhão
15x10x25cm
PILARES
toras de eucalipto tratado Ø 30cm
ESQUADRIAS meio bloco,
madeira tratada e vidro canaleta e bloco
PISO DE TERRA
traço de terra e fibra vegetal
base+acabamento 15cm
isolamento 5cm vergas, contravergas e
substrato brita 25cm cinta com graute e
BALDRAMES E ARRIMOS vergalhão
parede de pedras
assentamento c/ traço de solocimento
GUARDA CORPO
madeira tratada e bambu
simbolismo adinkra
DECK EXTERNO
madeira tratada
cortes ampliados
barracão

COBERTA
palha santa fé
i=60%

CAIBROS E RIPAS
madeira aparelhada

VIGA RECÍPROCA
assentamento madeira engenheirada
radial secção 45x15cm

VIGA DE TRANSFERÊNCIA
madeira engenheirada
secção 45x15cm

ANEL DE TRAÇÃO
madeira engenheirada
secção 40x30cm

ALVENARIA ESTRUTURAL
adobes de terra crua
formato acústico
20x15x40cm
PISO DE TERRA
traço de terra e fibra vegetal
base+acabamento 15cm
isolamento 5cm
substrato brita 25cm
forma e bloco BALDRAMES E ARRIMOS
parede de pedras
assentamento em solocimento

GUARDA CORPO
madeira tratada e bambu
simbolismo adinkra

DECK EXTERNO
madeira tratada
visões seriadas 1-3

2
3
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10
7

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8
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visões seriadas 4-6

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visões seriadas 7-9

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visões seriadas 10-12

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visões seriadas 13-15

2
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visões seriadas 1-3

8
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visões seriadas 4-6

8
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visões seriadas 7-9

8
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7
6
5
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3
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visões seriadas 10-12

8
2

10

11
7
6
5
4
3
1

12
134 135
conclusão
Este trabalho trouxe à tona questões que sempre despertaram minha curiosidade,
mas que se manifestaram timidamente ao longo de minha trajetória acadêmica. Isso
se deveu tanto a minha própria hesitação em explorar além dos modelos estabele-
cidos, quanto pela escassez de referências e discussões abertas e acessíveis sobre
esses temas, que me apareceram em raras ocasiões.
Minha experiência pessoal e envolvimento com a luta e a vida comunitária no ter-
ritório estudado transformaram profundamente minha visão sobre a prática pro- Não fizemos os quilombos sozinhos. Para que fizéssemos os quilombos, foi preciso
fissional e conhecimento adquirido na universidade. Não considero esse conheci- trazer os nossos saberes de África, mas os povos indígenas daqui nos disseram
mento invalido, mas acredito na necessidade de cautela ao aplicá-lo em contextos que o que lá funcionava de um jeito, aqui funcionava de outro. Nessa confluência
desconhecidos, ou compreendidos apenas através imagens de satélite e cartografias de saberes, formamos os quilombos, inventados pelos povos afroconfluentes, em
descritivas. conversa com os povos indígenas. No dia em que os quilombos perderem o medo
das favelas, que as favelas confiarem nos quilombos e se juntarem às aldeias, todos
Espero que este trabalho e seus desdobramentos futuros possam reverberar e conti- em confluência, o asfalto vai derreter!
nuar a apoiar a luta de Mãe Zana e das comunidades tradicionais de Matriz Africana,
incentivando mais estudos, trabalhos e movimentos, tanto dentro e quanto fora da (BISPO, 2023)
academia, para dar visibilidade e enriquecer o mundo com novas maneiras de estar,
de aquilombar e terreirizar a cidade a partir da periferia e da negritude.
Com as indagações, debates e críticas apresentados, busquei alinhar-me a perspec-
tivas e metodologias inovadoras e contra hegemônicas para enfrentamento dos de-
safios urbanos contemporâneos. Desejo que a arquitetura e o urbanismo sejam cada
vez mais contaminados pela realidade concreta do povo brasileiro, que possui Cor e
Gênero, que reside à margem, nas periferias dos grandes centros e que cria potên-
cias, reinventando a vida coletiva nas cidades.

138 139
referências
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142 143
glossário
Gira termo muito utilizado na umbanda que provém do quimbundo njira (tradição
Bantu), que significa caminhos. Seu sentido pode variar de acordo como contexto,
mas ele remete à reunião da comunidade para o trabalho espiritual.
Axé o poder e a força cósmicos presentes em tudo o que existe. Encruza contração da palavra encruzilhada, na umbanda, quimbanda e outras
Aiyé a Terra, ou o plano terreno, material. tradições é o cruzamento de ruas, caminhos, veredas, vias férreas etc., local
considerado morada de Exu e Bombon’jila.
Makota termo ligado à tradição Bantu, que significa o mesmo que Ekedji na Iorubá:
cargo que denomina as filhas de santo encarregadas de cuidar dos orisàs quando Adinkra Os adinkra são um conjunto de mais de 80 símbolos pertencentes ao povo
incorporados, paramentando-os, amparando seus filhos, especialmente nos dias de Ashanti, que representam ideias abstratas, valores morais, provérbios e eventos da
festa. história oral da cultura ancestral. Esses símbolos são encontrados principalmente nos
países Gana, Burkina Faso e Togo, na África Ocidental, mas também estão presentes
Ilê proveniente do Iorubá, significa casa ou lar; por extensão significa casa de culto
em outras partes do mundo devido às diásporas africanas. O termo “adinkra” significa
sagrado, terreiro.
adeus e os símbolos são destacados pelo seu significado simbólico e muito presentes
Orixás divindades ligadas aos cultos de matriz Iorubá. São, no contexto afrodiaspórico em cerimônias fúnebres. No Brasil é possível notar a presença de alguns deles em
brasileiro, correlatos aos Inquices de matriz Bantu e Voduns de matriz Jeje. Apesar elementos na construção civil, como as serralherias de portões e gradis, que eram
da correlação dada pela confluência diaspórica, não se deve interpretar essas feitas por mãos negras escravizadas, mas que ainda guardavam a memória de suas
diferentes cosmovisões como paralelas ou formalmente semelhantes, mas sim cada identidades e códigos culturais.
uma com sua especificidade e trajetória cultural.
Exu Orixá do panteão Iorubá ligado à individuação, à comunicação, à dualidade e ao
mistério das coisas terrenas.
Odé Ibualamo Odé está ligado a Oxóssi, orixá caçador ligado à fartura, prosperidade,
liderança e estratégia. Ibualamo é uma denominação territorial, que dá ao orixá
qualidades mais específicas. É comum na tradição que os orixás tenham complementos
em seus nomes apontando para características complementares ou especificidades
em sua história.
Iyalorixá Cargo de Autoridade tradicional de matriz africana Iorubá, matriarca líder
de território tradicional.
Babalorixá Cargo de Autoridade tradicional de matriz africana Iorubá, patriarca líder
de território tradicional.
Orum o Céu, plano espiritual, dos ancestrais e divindades.
Oriki Rezos, cânticos, invocações e provérbios.
Umbanda conjunto de práticas plural e diverso que deriva principalmente da matriz
Bantu e tem inúmeras variações regionais, podendo estar ligado mais fortemente
ou fracamente a outras tradições e cultos como o juremá, catimbó, cultos xamânicos
originários, espiritismo kardecista, catolicismo e magia natural.
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João Pedro Manccini Fernandes
Trabalho Final de Graduação

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo


Universidade Presbiteriana Mackenzie
Orientador
Professor Dr. Celso Aparecido Sampaio
São Paulo | 2023

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