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Capítulo 09 - Mulherando: Mulheres e suas paixões

“Porque nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda, meu peito não é
de silicone...Sou mais macho que muito homem...ratatá ratatá tatá...” (Pagú – Rita Lee).
Quando fui para a Roda de Conversa, em outubro de 2020, para falar sobre
‘mulheres e suas paixões’ parei para pensar sobre o tema e me questionei: Como me
mulherei? Que processos constituíram a mulher em mim? Aos poucos, essas perguntas
foram se filtrando internamente, infiltrando-se em minhas memórias. Então, em meu
íntimo, foram apresentando-se as batalhas do dia a dia, os diversos sentimentos que
ainda me habitam, as práticas feministas.
Em questão de segundos, quase que ao mesmo tempo, surgia uma forte pressão
na garganta, resultante de muitos discursos entalados, mal digeridos, intragáveis. Um
aperto, uma dor aguda só por pensar que tanto se fez e no tanto que ainda há de ser feito
para transformar as opressões contra as mulheres. Estamos no século XXI, e, no
entanto, vivenciamos atrocidades endereçadas e cometidas contra nós, contra o universo
feminino. São constantes os atos de violência, de diferenciação, de indiferenças.
Acompanho histórias e trabalhos que envolvem a temática da mulher e de suas
realidades, alguns com resultados belíssimos. Entretanto, são bem poucos perto do que
poderia ser - às vezes, o que sinto é que muito soa, ressoa ou ecoa no campo do
discurso, mas quando se trata das práticas cotidianas há muito preconceito, há muita
competitividade a enfrentar – o que infelizmente ocorre até mesmo entre nós mulheres.
Paro por um instante. Respiro fundo. Suspiro! Ainda sonho com um mundo
ideal no campo da evolução das mentalidades, um espaço onde o ser humano possa
vivenciar as suas potencialidades e anseios sem pré-conceitos, conhecendo suas
singularidades – processos inter-relacionais nos quais as pessoas se manifestem com
respeito, com acolhimento, com reconhecimento, com paixão. Penso em tanta coisa,
mas daí a Poliana que existe em mim acorda, e eu volto para a Maria - a Maria que de
fato sou –, como tantas outras Marias em busca do seu lugar, me deparando com dias
ensolarados, escuros, cinzentos, coloridos.
Pesquisei suscintamente sobre mulheres que fizeram nome na história da
política, da música, sobre ativistas contemporâneas, e escolhi citar - no início e no final
deste texto – uma estrofe da música Pagu, composição da irreverente Rita Lee. Esta
canção que homenageia Patrícia Rehder Galvão, ou Pagu, como ficou conhecida, por
ser uma das figuras femininas mais polêmicas da história brasileira no século XX.
Nascida no seio de uma família burguesa, em 1910, Pagu afastou-se de sua
classe social de origem, passando a militar junto ao Partido Comunista Brasileiro –
decisão essa que lhe rendeu mais de 20 prisões, entre tantas outras ações (i)legais que
sofreu como escritora, poetisa, diretora, tradutora, desenhista, cartunista, jornalista,
esposa e mãe. Contudo, meu intento ao resgatar a figura admirável desta brasileira, é o
de fazer e propor uma reflexão para pensarmos as seguintes provocações: o que é,
afinal, ser mulher? Quais os sentidos do “Mulherar-se” ou “mulherar”? Como estamos
“mulherando”?
Vamos olhar rapidamente os significados e conceitos que os dicionários nos
trazem. Conforme o dicionário Aulete Digital: 1. Mamífero primata, fêmea, bípede,
sociável, que, tal como o homem, se distingue de todos os outros animais pela faculdade
da linguagem verbal e pelo superior desenvolvimento intelectual e se distingue do
homem pela capacidade de engravidar.
Em uma breve pesquisa no Google, encontrei outras quantas definições,
relacionadas ao ‘ser mulher’ e aos papeis sociais a ela atribuídos - desde recortes
históricos através da linha do tempo, até algumas menções absurdas que trazem
significados deploráveis sobre as mulheres, de modo geral.
Volto à minha busca lexical por significados e sentidos, desta vez me atenho à
palavra Paixão: 1. Paixão (do latim tardio passio -onis, derivado de passus, particípio
passado de patī «sofrer») é um termo que designa um sentimento muito forte de atração
por uma pessoa, objeto ou tema. Bem, agora que estão explicitados alguns sentidos para
os termos que permeiam nossa temática de discussão, pergunto-lhes: o que seria uma
mulher com paixão?
O que parece uma pergunta simples, ao se fazer uma busca pontual por
definições, mostra-se uma questão que exala complexidade. Simples, entretanto,
complexa. Pensemos. Uma mulher com paixão, seria um ser humano em busca de
realizações que façam sentido à sua trajetória de vida? Seria um ser que projeta seus
sonhos e desejos, realiza-os ou não, testa seus limites, constrói a sua história, supera-se,
liberta-se?
Gostaria de pensar que ser mulher é viver suas paixões. Contudo, as amarras
subjetivas do arquétipo feminino, refletidas em uma sociedade ainda extremamente
preconceituosa, nos faz sentir limitadas ou insuficientes ao nos retratar como “Eva,
presa à costela de Adão”, de nos descrever como mulheres aprisionadas ao patriarcado.
Um patriarcado desmoronado, uma vez que a porcentagem de mulheres chefes de
família, e de mulheres com produções de famílias independentemente da figura
masculina, crescem a olhos vistos.
Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea 2018), 43%
das mulheres que são chefes de domicílio no Brasil vivem em casal, sendo que 30% têm
filhos e 13% não. Já o numerário de 34,4 milhões de mulheres responsáveis pelo lar se
divide entre mulheres solteiras com filho (32%), mulheres que vivem sozinhas (18%) e
mulheres que dividem a casa com amigos ou parentes (7%).
As informações relatadas acima, não tem como intuito instigar (mais do que o
necessário), a velha guerra social entre os sexos, que se traduz por disputa acirrada no
mercado de trabalho, por competitividade desleal, por sermos seres biologicamente
diferentes. Ao contrário, proponho aqui uma reflexão sobre como podemos pensar
alternativas para essas questões sociais que violam, sobrecarregam, oprimem, magoam e
reduzem a importância das mulheres?
Pergunto-lhes: que precisamos ainda fazer para reconfigurar, ressignificar e,
principalmente, reconstruir um espaço mais justo para as mulheres em nossas
sociedades? O quão responsáveis, ou não, somos por essa transformação? O quanto
mais de empoderamento será necessário para conseguirmos mudar essas realidades
desiguais? Para que recebamos um tratamento de equidade, de respeito, para que não
tenhamos que ser as únicas responsáveis por cumprir jornadas triplas de trabalho? Para
que não tenhamos que passar por situações vexatórias, preconceituosas e desleais de
receber salários inferiores aos dos homens que ocupam os mesmos cargos que nós?
Acaso, a recíproca não deve ser verdadeira para ser justa – os homens repensar
como estão se “homerando”, como seria “homerar-se” no atual cenário? Qual o papel do
homem nessa nova sociedade? Mas, esse seria assunto para outro artigo.
Segundo a psicanalista da Universidade de São Paulo (USP), Helena M. F. da
Mota Albuquerque (2002), mulherar é essencial:

“Mulherar ajuda a fabricar tecido psíquico, um tecido que vai sendo


bordado coletivamente, criando novos desenhos e novas formas de
pensar e dar sentido às nossas vivências e à nossa história. ‘Mulherar’
é realizar atividades com suas amigas, com um grupo de mulheres, o
bate papo informal, formal, o cotidiano. ‘Mulherar’ é o que fazem as
mulheres reunidas, vão ao cinema, viajam, tomam café, cerveja, vinho,
choram, riem, trocam experiências das mais diversas e infinitas”.

A partir das diversas atividades realizadas em companhia das amigas, ou de


diferentes núcleos de mulheres, entrelaçamos às nossas subjetividades, o que contribui
para vários aspectos de troca de experiências e de fortalecimento de valores e de modos
de reconhecimento. Em outras palavras, um mulherando para mulherar-se.
É relevante voltarmos às nossas raízes, às nossas memórias, para relembrarmos
como esse caminho foi trilhado, para revermos como estamos mulherando desde então.
Por isso tomo a liberdade aqui, de contar-lhes um pouco das histórias que envolvem as
mulheres que estão bem urdidas em mim, em um trançado de força e de singelezas.
Uma das memórias mais afetuosas do meu primeiro núcleo feminino de
convivência, é a da minha avó materna, Crizolita – mulher sábia, que mulherou muita
gente. Com ela tive mais tempo de convivência do que com minha avó paterna, que
sempre viveu em distância territorial que não permitiu muitas experiências. Ambas avós
eram nordestinas – a que morava perto e a que morava longe, e que talvez, hoje, sejam
vizinhas na rua do Céu.
A medida que abro minha caixinha de narrativas, algumas passagens ressurgem
com facilidade em minha mente em formato de sons e imagens vivenciadas em minha
infância, em minha juventude. Entre essas reminiscências, escuto a frase mais intrigante
que ressoa entre as mulheres-filhas e mulheres-netas de minha família, e que foi
inspirada e sussurrada pela nossa matriarca: “Aguenta firme, seja homem como sua avó
foi”.
Depois, conforme fui crescendo, e me mulherando, e aprendendo sobre as coisas
do mundo, pude entender com mais profundidade o significado daquela frase. De
repente, lembrei-me, de várias outras sentenças que versejam em outras canções que
guardam semelhança de sentido, como por exemplo, “paraíba masculina, mulher
macho sim, senhor”. A representação social que esses dizeres evocam me fazem tremer
a alma. Meu mulherar vem dessa matriz de fortes guerreiras, que assim se fizeram não
por escolha, mas por sobrevivência em um universo machista e repressor, no qual a
mulher precisa “ser homem”, tinha que ser encaixada no estereótipo machista para ter a
visibilidade social de atributos que eram seus, mas só recebiam validação na suposta
comparação com a figura do homem.
Quando penso na história da minha avó Crizolita, esposa, mãe de oito filhos,
trabalhadora do campo, com tantos episódios de sofrimento, reflito: um homem não
aguentaria um terço do que ela resistiu. E me vem em mente uma frase da música Pagu
“sou mais macho que muito homem”. Uma história que representou e ainda representa
tantas outras mulheres em contextos semelhantes. Ouvi muitas narrativas de como
viveram as mulheres da minha família, soube até que tive uma tia-avó, nordestina, que
foi mãe de 25 filhos – imaginem! Não faço ideia de como foi a vida dessa mulher!
Seguindo o curso da visitação não linear de minhas memórias, sou inundada por
um fluxo de sentimentos advindos dos ensinamentos de minha mãe, Iracema. Mulher
simples, trabalhadora em seu seio familiar, como tantas mulheres à sua época – em casa,
cuidando dos irmãos e também na lida do campo, ajudando aos pais. Uma mulher que
relata uma adolescência restrita de recursos financeiros, sem roupas ou sapatos que a
fizessem sentir-se à altura, sem objetos que pudessem proporcionar-lhe alguma vaidade.
Apenas permeada pelos seus sonhos, sonhos esses que eram embalados pelas canções e
histórias que ouvia pelo rádio da família, meio de comunicação ao qual tinha acesso.
Dentre os sonhos de outrora, minha mãe nutria o de se casar e ter quatro filhos, e assim
se fez realidade – e entre seus filhos, eu.
Cresci em um lar simples e amoroso, minha mãe e meu pai nos proporcionaram
bons cuidados e incentivo aos estudos. Fundamental ressaltar que não cresci em um lar
violento, não tive um pai machista ou opressor, pelo contrário, um pai humilde que nos
orientou sobre as diferenças entre o “possível” certo e errado, nos colocou a assumir as
consequências de nossas escolhas. Infelizmente, nem todas as meninas tem essa sorte.
Minha irmã mais velha, Delvânia, foi minha primeira amiga, muito me mulherei
por meio dela. A partir daí, vieram as primas, as tias, as amigas da escola, da catequese,
dos diferentes grupos de convivência, cada um com suas peculiaridades e aprendizados.
Porém, o interessante é perceber como as afinidades e as diferenças compõem nossas
subjetivas femininas, por meio de identificação, afinidades; por outro lado, com
sentimentos de repulsa e até mesmo de muita repressão. E aqui falo da subjetividade
genuína, aquela empírica na trajetória de cada uma, constituída das sensações, das
percepções, das interpretações, das experiências que vão nos fazendo ao longo da vida,
de menina até mulher.
Repensar essa experiência é fundamental para o reconhecimento de sua matriz,
para entender como você está agora, o que você quer mudar ou não. O que de fato te
move dentro da sua constituição. No entrelaçar desta subjetividade é difícil separar
quem somos em nosso íntimo – quem somos por meio das nossas escolhas, o que é do
outro que está em mim, o que tem contribuído para quem eu estou sendo ou para
descobrir se estou apenas reproduzindo discursos internalizados. O exercício da
autoconsciência é necessário para esse embate, para centralizar-se na mulher que és, e
na mulher que quer ser a cada dia, em médio ou longo prazo.
Neste sentido, também quero ressaltar sobre o papel que as mídias e as redes
sociais vêm exercendo em nossas vidas. Me formei em Comunicação Social,
Radialismo, profissão a qual me dedico há anos, pois uma das minhas paixões é a
comunicação radiofônica. E, os meios de comunicação, ao longo de sua história, tem
sido utilizados para influenciar, ditar normas, condutas e tendências à vida do sujeito
consumidor e dos públicos alvos. Por isso aproveito para te cutucar - Como a mídia tem
ditado suas paixões? Que impactos tem gerados sobre a sua representação do que é ser
mulher?
A influência do cenário midiático em nossas vidas femininas é preciso ser
analisada com muita cautela, pois é muito fácil confundirmos as projeções de nossas
paixões pelo que é belo, perfeito ou ideal, gerando comportamentos que podem vir a
causar novas clausuras, novos padrões, novos emparedamentos. Clausuras, por
exemplo, como os padrões de beleza, a indústria da beleza, que tem o potencial
tecnológico para transformar visualmente as pessoas, ao ponto delas próprias não
reconhecerem suas faces, seus corpos, suas vestes, o que, consequentemente são
elementos para distorções psíquicas, distorções de personalidade. Clausuras obsessivas,
promovidas por fotos felizes de vidas “perfeitas”, “de mulheres perfeitas” publicadas
nas redes sociais. Clausuras essas, que podem gerar traumas, frustações, que impactam
no cotidiano, podendo provocar baixo estima, por não valorizarmos de fato as nossas
vidas “reais”, por nos colocarmos em competição e comparação, tornando-nos injustas
conosco mesmas.
Nesse caminho, essa Roda de Conversa significa uma oportunidade para
falarmos de nós, para pensarmos em nós. Para nos conectarmos entre as mulheres que
somos. Para analisarmos com qual meio de condução estamos circulando no mundo, e,
por meio dele quais caminhos estamos percorrendo, quais são os pontos de paradas, de
chegadas, e até mesmo onde se fazem necessários os pontos finais.
E assim, a Roda Mulherando fluiu, momentos intensos e descontraídos de papo
bom. Conversas necessárias para mulherarmos, para revermos e intensificarmos nossas
paixões – nossas paixões por aquilo que somos e podemos vir a ser.
Sigamos mulherando-nos, humanizando-nos e contestando, aqui outra frase da
letra de Pagu – onde a canção diz “Minha mãe é Maria ninguém... Hu huhuh”, convido-
lhes a mulherar, respondendo no mesmo tom, que sua mãe, com certeza, foi uma “Maria
Alguém”, e que você ...você pode ser a Maria que você quiser!
REFERÊNCIAS

Biografia. https://www.ebiografia.com/pagu/ Acesso em: 08 out. 2020.

Cinquenta e Mais, Vida Adulta Inteligente.


https://50emais.com.br/psicanalista-helena-albuquerque-mulherar-
mulherando/#:~:text=*%E2%80%9CMulherar%E2%80%9D*%20ajuda%20a,viv%C3
%AAncias%20e%20%C3%A0%20nossa%20hist%C3%B3ria.%E2%80%9D - Acesso
em: 08 out. 2020.

Dicionário Caldas Aulete, Aulete Digital. https://www.aulete.com.br/dicionario -


Acesso em: 08 out. 2020.

Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.


https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_alphacontent&ordering=3&limit
start=4460&limit=10 - Acesso em: 08 out. 2020.

Maria Góes é Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal


de Mato Grosso (UFMT). Especialista em Planejamento e Gestão Cultural e
Especialista em Cinema e Audiovisual pela Universidade de Cuiabá (Unic). Bacharel
em Comunicação Social/Radialismo pela Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT). Graduanda em Psicologia pela Universidade de Cuiabá (Unic). Tem
experiência e atua nas áreas de Comunicação, Educação e Cultura. É apaixonada por
música e pelos sons da vida.
CV: http://lattes.cnpq.br/0666313159280422

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